1. Em mensagem de 30 de Setembro de 2016, o nosso camarada António
José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART
1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá,
1972/74), enviou-nos o seu ponto de vista acerca da literatura e cinema dedicados à Guerra Colonial para integrar a sua série: "A
Minha Guerra a Petróleo".
A Minha Guerra Petróleo (19)
Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial
Aqui há uns posts atrás, o Branquinho levantou uma questão pertinente que se prende com a definição de literatura da “Guerra Colonial”. Poderá parecer uma questão secundária, mas só agora, já que, para o futuro, ela deverá ser claramente estabelecida, sob pena de se tomarem obras sérias por refugo e vice-versa. E já agora, tendo em conta a recente estreia do filme
“Cartas da Guerra”, parece-me oportuno estabelecer o que se deverá entender por Cinema “da Guerra Colonial”. Podemos também juntar-lhe o teatro sobre o mesmo tema, embora esta forma de arte não tenha tido a “guerra” como tema, por razões que será difícil concluir.
Tenho para mim que estas três formas de arte: literatura, cinema e teatro revestem características documentais – registo, tratamento objectivo e exposição à consideração do espectador/leitor de factos ocorridos – que não estão presentes noutras, o que lhes permite serem mais aptas para a reanálise e reconstituição do sucedido num dado momento histórico. O Livro descreve detalhadamente os factos ocorridos, enquanto o Cinema mostra-os. E, enquanto o primeiro deixa ao leitor uma liberdade de interpretação, o segundo, através da imagem móvel, permite uma maior latitude de interpretação. Quer isto dizer que o espectador dá mais de seu na interpretação e apreciação de um filme do que o leitor de uma obra literária ou até (porque não) poética. Ambos estão sempre disponíveis para a consulta, o que não sucede com o teatro – essencialmente efémero – em que cada representação é sempre uma nova narrativa, quase sempre melhor a cada exibição… Mas o teatro, por si só merece uma análise mais detalhada.
O Branquinho
[1] começa por apresentar uma premissa que também considero fundamental para a definição do que é "literatura da guerra colonial" e à qual dou o meu acordo total: deixando de lado toda e qualquer postura política ou ideológica.
Das cinco definições que apresenta considero a primeira (todo e qualquer escrito sobre a guerra) demasiado vaga, aberta e imprecisa. Nela cabe tudo, até os estudos científicos ulteriores, de qualquer tipo, sempre necessários sobre uma guerra ou outro qualquer facto histórico. Convirá que seja mais precisa, de modo a que o que se define seja claramente caracterizado, pois, de outro modo não valerá a pena sequer esboçar a definição. Com efeito, a guerra pode ser abordada, especialmente por estudiosos, segundo diversos ângulos, hoje ou em qualquer outro momento do futuro. Pode ser também abordada de modo algo fantasioso, o que, se não houver aviso prévio, poderá induzir o leitor a interpretações erróneas e opiniões inexactas. Bem bastam as que surgirem, com o passar dos anos!
Também não considero relevantes as três seguintes definições que propõe, considerando que todos ou quase todos sofremos a guerra à distância, bastando para tal sermos portugueses, vivendo ou não em Portugal. Igualmente era suficiente sermos portugueses para que sofrêssemos a guerra nos espaços de guerra ou longe dos espaços de guerra. Se, para escrevermos sobre a guerra, basta termos sido portugueses num momento histórico, teremos de concordar que, mesmo tendo vivido nos espaços de guerra, tudo não passará de uma recordação que, por vezes, não vai muito para além do “ouvi dizer que”. Tratar-se-á de uma evocação da memória, mas que não se fundamenta na experiência directa do facto. A “Guerra Colonial” será assim, mais uma envolvente, mais um elemento caracterizador do ambiente que enquadra a história que o autor quer narrar. Cabem neste caso as histórias das mulheres que esperaram os maridos ou namorados, as mães e pais que sofreram com a partida e tiveram ou não a alegria do regresso ou as experiências dos que residiam nos “TO daquelas PU”.
E resta a última, que considero a mais válida pela autenticidade do relato, mesmo prevendo que cada um de nós terá a “sua” verdade, expressa na narrativa que apresentar. É dado adquirido que, o modo como se viu e viveu uma dada situação e o respectivo relato posterior, podem estar marcados pela subjectividade. Isto pode criar dúvidas ou até suspeitas sobre se as coisas terão mesmo ocorrido assim e serve, muitas vezes, de argumento para que a respectiva credibilidade seja diminuída. Porém, não é menos verdade que o abuso do recurso a esse tipo de argumento não é nada conveniente. Chamo a vossa atenção para a grande coincidência entre as descrições do mesmo facto ou situação que se viveu e que está bem patente em muitos posts do blog, escritos por vários camaradas que viveram a mesma situação. É por isso que considero que literatura de guerra colonial é aquela escrita feita somente por quem fez a guerra. Às outras, falta a experiência vivida que nada pode substituir, mesmo que o narrador se esforce muito.
Esclareço que não pretendo vedar a ninguém o direito de escrever sobre a “guerra”, mas não haja dúvidas, de que uma coisa é fazer a guerra outra coisa é sofrer (de vários modos) com a guerra. E muito mais se o que se pretende é transmitir informação sobre o sucedido. A literatura baseada no "consta que" ou no "ouvi dizer" é deficiente e nunca poderá ser aceite nem em relação a esta guerra, a outra qualquer ou a um dado facto histórico.
Fico satisfeito quando encontro estudos sobre a “guerra”, mas não podemos tomar um estudo científico como literatura. Venham eles, objectivos e bem elaborados para que tenhamos (ao menos agora) uma perspectiva do que sucedeu!
Nada nos impede de escrever um romance sobre a guerra colonial. Porém, para além da trama que fica toda ao critério do escritor (ou até cineasta e dramaturgo) tem de haver um escrúpulo muito grande, de forma a criar um ambiente autêntico onde a acção se passe. É assim que se escreve bem e não faltam exemplos no nosso país e na literatura estrangeira. Quem escreve sobre o passado deverá ter sempre realizado previamente um estudo sobre o ambiente onde a acção decorre. Sei que esse trabalho é cansativo, especialmente se for detalhado e preciso. Ainda não escrevemos nada e já nos fartámos de ler e consultar fontes. Estas actuam sobre quem escreve como linhas a não transpor, sob pena de se faltar à verdade e, consequentemente, transmitir informação falsa a quem ler o livro ou vir o filme. É como pôr soldados romanos a combater os lusitanos, usando relógios de pulso. Nada nos impede mas, se calhar não era bem assim…
Voltando agora ao cinema, chamo a atenção dos camaradas para a reconstituição de ambientes feita pelos cineastas das séries inglesas que passam na TV. É um exemplo a seguir. No que respeita à literatura poderia citar, “Guerra e Paz”, “Adeus às Armas” e tantos outros que acabaram por se eternizar, principalmente pela veracidade de tudo o que rodeia a história que o leitor “devora”.
E acabei por vir ter ao filme “Cartas da Guerra”! Não conheço o realizador, mas vejo cinema há alguns anos. Também não sei nada de música, mas não sou surdo. E só por estas duas frases já podem ver que não gostei, mesmo nada do filme.
Poderia perder-me em pormenores técnicos como a voz da artista que fala em voz off e que, ou necessita de regressar ao Conservatório para aprender a dizer, ou o som da sua voz foi mal captado. Por mim, desmobilizei de tentar entender o que ela dizia. Não conheço as cartas que estão na base do filme e não estive nunca em Angola.
E ditas estas “declarações de interesses” passemos àquilo que mais me desagradou, por forte suspeita de falta à verdade. Chamo a atenção dos camaradas para o fardamento utilizado, as viaturas – aquela do Unimog 1300 com as guardas levantadas e o pessoal sentado daquele modo – os oficiais com a pistola “à banda” dentro do quartel, aquele quartel… que parecenças terá com aqueles em vivemos? Em suma: a reconstituição dos ambientes está – em minha opinião – imprecisa, mesmo que tal se deva à falta de meios.
Achei, no mínimo ridículo aquela cena em que os militares progridem numa área alagada com o terreno seco ao lado. Mas o pior é o médico com a G-3 e a bolsa de primeiros socorros a tiracolo. Conheci quatro médicos em companhias operacionais, dois deles viveram mesmo no aquartelamento da companhia e nem sequer tinham arma distribuída. Nunca vi nenhum deles com a bolsa a tiracolo, embora possa aceitar que se deslocassem a aldeias para exercerem a sua arte. Aceito que as intenções do realizador tenham sido as melhores, (é óptimo que alguém vá pegando este tema) mas os resultados não foram nem sequer modestos.
Parece-me portanto que deveremos considerar como
“literatura da Guerra Colonial” os textos e só estes produzidos por ex-combatentes. Aqueles textos em que a guerra esteja presente, como elemento enquadrante da acção dos personagens, serão uma forma de literatura obviamente válida, mas não me consta que os escritores americanos (por exemplo) escrevam sobre a Guerra do Viet-Nam ou a da Coreia, quando escrevem um romance cuja acção se passa nos Estados Unidos, naquelas alturas e a elas façam referências.
Em relação ao cinema entendo e dou o máximo valor ao modo como o realizador “descreve” o ambiente em que a acção decorre reconstituindo o que as personagens veriam, os utensílios que usavam, o modo como vestiam, enfim tudo o que permita que quem vê o filme se sinta dentro da cena.
Podemos considerar que as “Cartas da Guerra” poderão ser um filme sobre a Guerra Colonial, mas não creio que tenha prestado um grande serviço à divulgação e à manutenção da respectiva memória.
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Notas do editor
[1] - Vd poste de 2 de setembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é?
Poste anterior da série de 29 de junho de 2016 >
Guiné 63/74 - P16248: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (18): Resposta ao Manuel Luís Lomba