quarta-feira, 29 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16248: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (18): Resposta ao Manuel Luís Lomba

 
 1. Em mensagem de 28 de Junho de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos a sua apreciação/resposta ao texto do camarada Manuel Luís Lomba publicado no Poste 16243 para integrar a sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".



A Minha Guerra Petróleo (18)

“Resposta ao Manuel Luís Lomba”

Começo por informar que não li o livro do Cor. Golias. As considerações que vou fazer têm unicamente que ver com as afirmações do Luís Lomba no post 16243.

Recordo ao camarada que a História demonstra que Portugal teve sempre dificuldade em se afirmar a no seu espaço geoestratégico e, por consequência, não é verdade que tenha descido da “glória legada pela gente de rija têmpera de outras eras, a protectorado dos seus principais credores internacionais e que estes sobrepuseram a sua “troika” à governação nacional”. Basta recordar, entre outras, as sucessivas intervenções britânicas ao longo dos tempos, as invasões francesas, etc.

Em qualquer apreciação que se faça é irrelevante que “Portugal seja o segundo país mais antigo da Europa, terceiro mais antigo do Mundo, todas as suas instituições creditadas de Direito e acreditadas em todas as instâncias internacionais”. Entre países, tamanho não é qualidade e idade não é posto. Recordaria também que se “de facto, nem o regime nem o governo eram sancionados pelo povo” haveria que fazer qualquer coisa… especialmente ao fim de 13 anos de “guerra”. Não sei, ainda hoje, o que seja a “corporação militar nacional, acusando a sua usura nas guerras de África, destituíra-os, com economia de sangue, de desordens, sem a vacatura nas nossas instâncias supremas e restabelecera de imediato a cadeia de comando das nossas FA”. O texto parece-me confuso e gostava de ser esclarecido neste ponto…

Ignoro a existência de um plano B, mas sempre considerei que se fosse realizada uma tentativa de cessar-fogo entre os beligerantes no terreno, as coisas iriam esclarecer-se a nível internacional, primeiro, e nacional, depois. Já disse, noutro local, que as conversações directas Spínola-Cabral poderiam ter poupado muitas vidas e recursos. Não concordo, portanto, com a ideia do PAIGC de só negociar com o governo português. Admito que eu não seja um português “de rija têmpera”, mas não vale a pena continuarmos no campo das hipóteses. De qualquer modo, há que ter em conta que o país era só um e que havia os antecedentes da revolta da Madeira/Guiné/Cabo Verde que seria uma hipótese a não descartar. Ignoro, mas admito que o sob o “impulso da arma de Transmissões da Guiné, os primeiros militares a tomar conhecimento do sucesso total, o MFA de Bissau executou esse golpe por conta própria, na manhã do dia 26, decapitando o alto comando militar, secando a sua fonte de informações, pela dissolução da PIDE/DGS, à revelia da orientação do MFA central e das ordens do seu supremo comando”. Para mim, o decapitar do comando militar, lá como cá, era intuitivo. Quanto à PIDE, não creio que ela tivesse campo político para tomar qualquer atitude de oposição, por falta de apoios no local, assim como também não estou a vê-la a pesquisar activamente informações junto do In ou ex-In e a ir diligentemente fornecê-las ao MFA.

O favorecimento do IN surgiria, mais tarde ou mais cedo com a independência – e não havia outra solução – a menos que as unidades estacionadas na PU pretendessem, pelo menos em grande parte, continuar com a luta. Não creio que as NT admitissem tal hipótese, não vejo a finalidade, nem as possibilidades de êxito, mas o camarada lá saberá no que se fundamenta.

É lapidar afirmar que “a quebra do moral e da disciplina são recompensas ao IN e foi desde sempre comum ao soldado, profissional ou do contingente geral e que um golpe daquela natureza, em tão sensível teatro de guerra, seguramente não buscava o contrário”. Nem outra coisa era de esperar! Tem sido sempre assim em todos os países e guerras do mundo. Já afirmei que a tal “Descolonização Exemplar” foi a que foi possível no contexto nacional e internacional (este mais preponderante). Em política, como na guerra, faz-se o que se pode e os outros agentes envolvidos deixam e não o que queremos fazer. Treinadores de bancada, só à noite, na BolaTV. No que respeita à “desgraça dos povos colonizados, com os quais Portugal levava 500 anos de compromissos” quero recordar que a expressão colonizados fala por si e que não há ”compromissos” estabelecidos com aqueles a quem colonizamos. A colonização não assenta em compromissos, mas no domínio efectivo de outro povo. A situação actual do nosso país não é de compromisso, mas de domínio. O “empobrecimento de todos, em favorecimento de terceiros, que nunca derramaram uma lágrima, uma gota de sangue ou de suor, nem pelas gentes nem por aquelas terras africanas” não é para mim, uma preocupação. É uma questão que diz respeito aos guineenses. Com efeito, se combatemos os movimentos independentistas era porque não queríamos “aquela” solução, ou alguém levou a que não a quiséssemos, porventura de modo fraudulento, o que é grave. Não tendo tido força para impor – especialmente a nível local e internacional – o nosso ponto de vista, só temos que aceitar os acontecimentos e actuar em conformidade.

Claro que nos (e a todos nós, penso eu) “assiste o direito de o “escrutinar(?)” como uma desobediência grave aos seus supremos superiores hierárquicos, o Presidente da República e o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, já então legitimados pela circunstância, pelo seu afã de obstar que a Descolonização da Guiné, e, por extensão, a do restante Ultramar”. É uma opinião como outra qualquer. Os “partidos armados” eram, como é natural, os únicos merecedores de tentar a “satisfação das utopias que povoavam a cabeça de minorias e das ideologias em moda”. Neste ponto, considero uma injustiça que os que se expuseram e esforçaram para atingir um objectivo (fosse ele qual fosse) tivessem de ser sujeitos a um sufrágio. Gerido e vigiado por quem? Nunca por Portugal que era parte interessada e cujas FA estavam cansadas da situação. Ou ainda haveria portugueses de “rija têmpera” prontos para essa tarefa? Uma tal solução é dar aos que nada fizeram, a possibilidade de participar em qualquer coisa que se obteve com esforço. Depois, com o evoluir da situação interna da Guiné, logo se veria. As maiorias raramente realizaram algo, em momentos difíceis de qualquer país, antes pelo contrário. Quanto à “realidade concreta”, se calhar, se bem observada, seria surpreendentemente diferente da que nos vendiam. A caixa de Pandora abrir-se-ia sempre e não colou a “imagem de “república das bananas a Portugal”. Se a Guiné-Bissau “se transubstanciou em Estado falhado” não é da nossa responsabilidade. Se calhar “as maiorias”, mas de lá, têm uma palavra a dizer… Mas não os portugueses.

“São as nações que fazem os exércitos e não os exércitos que fazem nações. E, na realização dessa “Descolonização exemplar”, o MFA de Bissau apenas só teve ouvidos para os tiros e para os que os disparavam”. Mais duas verdades incontroversas. Uma é um tema vasto que nos levaria longe. Basta perguntar para onde queria ir a Nação Portuguesa com o Exército que ia produzindo, dia a dia. Quanto à segunda, basta recordar as razões porque estávamos ali. Se nunca tivesse havido tiros e quem os disparasse teríamos ficado cá, julgo eu. Não penso que se mobilizassem unidades militares para ir desenvolver o “TO daquela PU” ou doutra.

“Em 1974, o exército do PAIGC tinha tantos anos de vida (10) como de errância, indigente de massa territorial, e ousava-o disputar com o Exército Português, com os seus 900 anos de existência e de gloriosas armas, o seu currículo de conquistas territoriais e de gentes, à dimensão das margens do Atlântico e do Índico, que transformara num “lago português”. Calma, camarada! Estes arroubos de patriotismo carecem de fundamento. Se falamos de conquistas (territoriais e de gentes) estamos a admitir que atacámos e subjugámos e, nesse caso, seria bom sabermos porquê e para quê. Claro que há os contextos históricos, por isso uma certa moderação impõe-se especialmente nas margens dos oceanos… Se calhar, não foi bem assim. A História não é um desafio de futebol a contar para a “Taça dos Países com Guerra”. Os fenómenos são complexos e quando nos são apresentados assim devemos desconfiar. Quanto à tal “errância, indigente de massa territorial” recordo que a vida de guerrilheiro é mesmo assim e, normalmente, só envereda por ela quem quer.

A retirada de Guileje, “decidida sob a responsabilidade e comando de um oficial superior”, já foi aqui dissecada. Naquela posição havia apenas um obus de 14 cm operacional, e não 14,5 cm, com o alcance que o construtor britânico lhe deu e inferior ao das peças do inimigo. Para trás tinha ficado o Pel. Fox de Guileje e agora havia apenas uma viatura blindada. O camarada saberá como se reage com “morteiros de 81, canhões s/r 10,7”, ao fogo da artilharia do In, de alcance superior ao nosso. Por mim, confesso a minha ignorância. Os “abrigos de betão armado, resistentes a granadas perfurantes, poderiam constituir “uma espécie de Termópilas para a sua guarnição, no entanto longe de idêntico e funéreo”. Não sei o que os que lá estiveram acham disto. Por mim, acho pobre uma comparação romântica e inútil o conceito táctico, uma vez que o importante é que uma missão é uma ou mais tarefas com uma ou mais finalidades. Ou seja, é importante o que se faz, mas mais importante para que se faz e o que vai fazer depois. Nunca participei nas “colunas de reabastecimento de ida e volta a Gadamael” e sempre achei absurdo que se fizessem “colunas de ida e volta à água, a 4 km de distância”. Acho uma impiedade o comentário feito, mesmo que por alguém muito valente.

A “nomadização” é um tipo de operação de infantaria característica da guerra subversiva e que nada tem que ver com o abastecimento de água que se insere na área da Engenharia. É óbvio que “a população preferiu acompanhar a retirada da tropa e ficar ao seu lado, à libertação oferecida pelo PAIGC, não obstante patrocinada por todo o mundo - ONU, Organização da Unidade Africana, Blocos Ocidental, Comunista e Não-Alinhados...” Como o camarada sabe, em certos locais a separação das populações estava feita de tal modo que, quem não estava por nós (ou por eles) era contra nós (ou contra eles). Como reagiriam as NT se a população preferisse ficar? E como reagiria o In ao entrar no quartel e ver a população calmamente entregue às suas tarefas quotidianas ou arvorando bandeiras do Partido?

A crise de Gadamael, “sequela da retirada de Guileje” também foi já bastamente discutida. Não acredito nos 30 “portugueses de rija têmpera” num universo de 400. Não estive lá e por isso acho que devo abster-me de comentários desagradáveis e avaliações abusivas. Tenho muita consideração por quem lá esteve e estarei disposto a ouvi-los, se alguma vez encontrar algum. Não sou capaz de criticar o “esmorecimento moral com sentido a derrota e a contagiante quebra da disciplina” dos que ficaram. Julgo que só os que lá estiveram poderão fazê-lo, entre si. Do mesmo modo não me pronuncio sobre a crise de Guidaje. Vi passar a 38.ª de Comandos, a coluna Bissau-Farim carregada de munições e torpedos bengalórios para abrir caminho a partir de Farim. Vi passar o Nord-Atlas, à vertical da estrada, carregado de munições para reabastecer os cercados e tive conhecimento de que a coluna de reabastecimento que foi montada não chegou ao objectivo e acabou bombardeada pela FAP. Não sei, por isso, se esta batalha foi a “mãe de todas as batalhas” ou se teve com elas outro grau de parentesco. Talvez avó…

Não sei a que Guiné nos estamos a referir ao falar da obra “que os nossos antepassados realizaram em 500 anos”. A nossa observação à chegada e os factos históricos que têm vindo a ser divulgados e estudados não corroboram esta tese. A História regista a “Descolonização da Guiné”, com o seu efeito sistémico no restante Ultramar, como seria lógico. Obtida a independência pelo PAIGC, como visualizamos a situação nos outros TO? Será que as tropas estacionadas em Angola e Moçambique tinham um ataque de patriotismo e valentia e ganhavam a guerra em três tempos? Ou também optariam por “um acto de irreverência com ou sem o apoio de um grupo de jovens oficiais, uns mais e outros menos contaminados pela ideologia em moda?” Nunca o saberemos, mas eu creio mais na segunda hipótese.

Estive na Guiné e não encontrei os tais “tão seculares “compromissos” assumidos entre portugueses e guineenses”. Guineenses? Portugueses? Então não era tudo o mesmo país? Não vejo quais poderiam ser os diálogos mais “alargados e abrangentes”, e com quem, para além dos “monólogos impositivos dos camaradas José Araújo, Pedro Pires e até do Juvêncio Gomes”, tendo em conta a situação acumulada desde 1973.

Os “indicadores estatísticos referidos às situações militar, económica, sociológica e histórica da Guiné” demonstram, quer se queira, quer se não queira, “a iminência da nossa derrota no campo de batalha”, propalada pelos nossos militares profissionais, não desde 1974, mas em consequência de uma análise constante da situação. Esta análise não “configura menos respeito pelos que deram a vida em combate e algo de menosprezo pelas centenas de milhares de portugueses que se entregaram ao serviço militar do seu país, sem nada pedir e sem perguntar se o país lhe daria alguma coisa”. Antes pelo contrário. O que fazer para parar com uma fenómeno sociológico que ninguém queria? Prolongar o sacrifício em nome de quê ou de quem? Infelizmente as coisas são como são e não como gostaríamos que fossem.

Na sua reincarnação(?) como idealistas pela autodeterminação e pela democracia dos povos em vias de colonização, o que é que os nossos corifeus do MFA/Descolonização viram de semelhante a esse ideal, na prática dos chamados Movimentos de libertação, para além de partidos-armadas, e não viram nos movimentos e correntes de opinião, que perseguiam os mesmo fins, mas sem derramamento de sangue - porque a civilização e a moral lhes ensinara que os fins não justificam os meios -, que justificasse o apressado abandono de territórios e gentes? Compadrio ideológico ou medo dos seus tiros? Eles eram formados, formatados, municiados, alimentados e patrocinados pelos países do Bloco Comunista e do Terceiro Mundo, plenos de ditaduras e de aversão aos direitos humanos. Duas perguntas longas e profundas! Por mim, não “reincarnei” em nada, nem em ninguém e já atrás falei sobre estes temas.

Os povos estavam colonizados e não em vias disso. Nunca tive ocasião de encontrar nenhum movimento ou corrente de opinião, que perseguia os mesmos fins dos movimentos guerrilheiros, mas sem derramamento de sangue e muito menos na Guiné. O camarada saberá melhor que eu o que fizeram, onde e quando.

Desconheço o compadrio ideológico a que o camarada se refere e quem foi formado, formatado, municiado, alimentado e patrocinado pelos países do Bloco Comunista e do Terceiro Mundo, plenos de ditaduras e de aversão aos direitos humanos. Não encontrei esta tendência num número significativo de portugueses.

Pois claro! O que o que havia a fazer era “consultar o Zé Povinho” que saberia discernir o que havia a fazer. Nunca tinha discernido, mas agora iria discernir. Ou prolongar a guerra ou a conceder a independência ou uma terceira solução: talvez a independência concedida aos bocadinhos… Não sei o que seria discernido, mas… era uma hipótese académica de trabalho.

Aparte a referência à idade dos países, sugiro ao camarada que verifique se Portugal foi “fundador da ONU e da NATO e de todas as suas instituições reconhecidas pela Comunidade internacional”, e das condições em que tal se verificou.

A autocrítica pública do General Spínola só a ele diz respeito, mas sei que o Brig. Spínola de 1968 não era o Gen. Spínola de 1973 e creio que o camarada deveria pensar nisto. É que as mentalidades mudam os modos de ver alteram-se e essa mudança é que é sinal de inteligência.

E sendo um “ex-combatente amador da Guerra da Guiné, faço uma achega à “profissional”: Não obstante os seus picos, com a crise dos 3 Gs, Canquelifá, Pirada, etc., a gradação da Guerra da Guiné não ultrapassou a fasquia da “baixa densidade”. Esclareço que os conflitos são de baixa intensidade e não de menor densidade. E, mesmo assim, não quer dizer que se ganhem, ou melhor que se resolvam com maior facilidade. Está mais que dito e redito quais eram as características deste conflito de baixa intensidade.

À sua afirmação de que “desde 1128 que o Exército Português vinha sendo glorioso em guerras de “média e alta densidade”… quero recordar que em 1128 não havia Portugal, que conviria que desse uma volta pela História de Portugal para saber exactamente o que se ganhou e onde e o que se perdeu e porquê. Regresse ao passado fique-se e fixe-se nele, sem ideias feitas e com a necessária abertura para reconhecer onde estivemos bem, menos bem e até mal ou muito mal, sendo certo que as causas em História são remotas, próximas e pretexto para a ocorrência dos factos.

“O comunismo e o seu bloco implodiram, mas Portugal preservou-se(?) comunista, pela partilha da sua Língua com os povos que beneficiaram/sofreram a sua Colonização”. Sobre a língua portuguesa falada pelos tais povos de que o camarada fala recordo os longos diálogos de português camiliano que eu tive com as minhas lavadeiras e os debates literários que sustentei com os militares do recrutamento local. E, ainda hoje, ao entrar num comboio da linha de Sintra, fico pasmado com a fluidez do diálogo em português literário dos fulas que por aqui habitam. Que riqueza de vocabulário! Que exactidão nas expressões!

As minhas desculpas e um Abraço ao Camarada Manuel Luís Lomba
António J. P. Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15809: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (17): O Moral das Tropas é Bom!

Guiné 63/74 - P16247: Os nossos seres, saberes e lazeres (161): A pele de Tomar (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Há qualquer coisa na atmosfera tomarense que me fala incessantemente em resistência e tratamento a um fausto perdido e, em simultâneo, tem-se um sentimento de abandono e mesmo de capitulação. Ninguém ignora o que aconteceu quando se volatizaram as grandes fábricas e as pequenas indústrias, a cidade foi perdendo estatuto, deixou mesmo de ser sede de Região Militar, ficou com uma imagem de relíquia do passado, uma encruzilhada turística porque há o Convento de Cristo, há cidadania militante que faz cineclubismo, teatro amador, há artífices, atividades culturais múltiplas, mas tudo conjugado teme-se pelo futuro. Na circunstância, limito-me a desvelar peles de grande valor, imagens da cidade que merecem ser olhadas como joias fora do cofre.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (11)

Beja Santos

É evidente o esforço de recuperação do património arquitetónico, e momentos há em que o nosso olhar é atraído por um relicário, uma prova de amor em pôr muito antigo com sinais de vitalidade. Mas há o choque da imagem, o contraste entre o que se pôs de pé e o que aguarda na agonia expectante ou a boa sorte ou a má morte.





Não é preciso adivinhação, o viajante veio até à Mata dos Sete Montes, à procura de odores primaveris, foi um Abril de águas mil, de céus de chumbo, de ventanias mais sibilantes do que é costume. Mas a natureza tem um relógio implacável, brota a florescência a despeito das intempéries, dos caprichos do tempo. E dá gosto por aqui passear, ouvir o escorripichar da água por regos, vendo crescer os fetos, é como se esta natureza quebrasse as regras aos dias tristes da invernia e anunciasse uma juventude eterna, indomável.




Também não é preciso fazer nenhum esforço de adivinhação, este é o convento da padroeira, quem aqui arriba velozmente em autocarros de excursão até é capaz de pensar que o miolo é compatível com a fachada. Desgraçadamente, não é. A fachada está retocada para não se esbarrondar, tem belas fotografias, e quem se passeia na Ponte Velha nem tem a dimensão da grandeza da ruína. O viajante percorreu o interior e momentos houve em que até pensou que houvera um bombardeamento pesado, ou de canhões ou aviões. O que houve foi desprezo, abandono. Vejam-se estes azulejos e o que foi um belo espaço para mirar a cidade. Nem tudo está irremediavelmente perdido, mas até se pergunta se na arquitetura não é como na saúde: mais vale prevenir do que remediar.




Os anos passam e ganha cada vez mais consistência a afirmação de que olhamos para quase tudo sem ver. Foi preciso uma chuvada arreliadora, ali à saída da Mata dos Sete Montes, para ter corrido para a proteção desta arcada de um belo edifício onde se continuam a dar informações sobre turismo. Segundo consta, um antigo presidente de câmara determinou que se aproveitassem restos de edifícios e casas demolidas. Verdade ou não, quando aqui se entra fica-se com a sensação de um caleidoscópio de estilos, embora, no seu conjunto, haja uma apreciável harmonia. O que acontece é que por causa da chuva arreliadora, o viajante teve tempo para ver a qualidade dos relevos das portas, o belíssimo fecho de abóbada que foi adossado ao teto da arcada e a lanterna, diz-se sem qualquer exagero, é de uma grande harmonia. Bendita chuva arreliadora que permitiu tais delícias para os olhos.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16227: Os nossos seres, saberes e lazeres (160): A pele de Tomar (10) (Mário Beja Santos)

Guime 63/74 - P16246: (De)Caras (43): Domingos Ramos, o "incendiário do leste": (i) João Cá, de seu nome de guerra; (ii) antigo 1º cabo miliciano das NT; (iii) amigo e camarada do Mário Dias (, do 1º CSM, Bissau, 1959): (iv) reconhecido em Bafatá, no bairro da Nema, por volta de maio de 1963, por Alcídio Marinho e Mamadu Baldé; (v) volta a encontrar o amigo e antigo camarada "tuga" nas matas do Corubal, em 1965: e (vi) "tem a felicidade de morrer em combate", em Madina do Boé, em 10/11/1966, ao lado do 'internacionalista' cubano Ulises Estrada...


Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964, Da esquerda para a direita,  Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá",

Fonte: Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056  (Reprodução parcial, com a devdia vénia)


1. Dois comentários ao poste P16226 (*): 




(i) Alcídio [José Gonçalves] Marinho [, foto à esquerda, da sua página no Facebook, ex-fur mil inf, CCAÇ 412 (Bafatá, 1963/65); vive no Porto; é membro da nossa Tabanaca Gradne desde 23/9/2011]


Conheci de relance o Domingos Ramos (**) em Bafatá. Assim, a CCaç 412 chegou a Bafatá a 9 de abril de 1963.. Já havia passado cerca de três semanas e um fim de tarde resolvi ir conhecer o bairro da Nema, que ficava a Leste da cidade,pois os outros bairros já os conhecia bem (Rocha e Ponte Nova).

Estava destacado na Companhia um cabo Mamadu Baldé (fula-forro) e pedi-lhe para me acompanhar, tendo ele correspondido ao meu pedido. Seguimos pela Rua, passamos a casa da D.Rosa [,. a libanesa,] , em frente das instalações  do Batalhão 238 e entramos na Nema.

Ao virarmos para uma rua transversal vimos um indivíduo alto,  que passou por nós, o cabo estremeceu e disse "Domingos Ramos!". Então fixei outra vez o individuo e vi distintamente que era exactamente igual à fotografia, existente na secretaria da Companhia.

Viramos para trás e corremos para apanhá-lo, mas ele já havia desaparecido.

Entretanto, já tinha tirado a pistola Walter que levava presa no cós traseiro das calças por baixo da camisa e esta fora das calças.

Depois viemos a correr à companhia, demos o alarme e foram deslocados diversos pelotões para cercar a Nema e outros para patrulhar a cidade.

Na altura foram capturados uns tipos suspeitos que acabaram por confirmar que o Domingos Ramos havia estado dois dias em Bafatá-Também se veio a saber que ele escapou,  atravessando o rio Colufe para oN regulado de Badora, em direcção ao sul.



(ii) Manuel Luís Lomba [ex-fur mil, CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66; autor do livro "Guerra da Guiné: a batalha de Cufar Nalu". Faria, Barcelos, Terras de Faria, Lda: 2012, 314 pp.]


Os militares adquirem uma especial sensibilidade face à injustiça. Tive essa experiência própria.

Invoco o então capitão Vasco Lourenço, de boa idade e recomenda-se, a quem as injustiças do general Bethencourt Rodrigues, então ministro do Exército, em 1969, referidas à sua mobilização para a Guiné, do general Spínola, no seu escrutínio da responsabilidade da morte do régulo de Cuntima, terão sido a causa remota da sua transformação no motor com turbo do MFA/25 de Abril/25 de Novembro.

O herói nacional bissau-guineense Domingos Ramos, o Kant de seu nome de guerra [, ou melhor, João Cá], foi aliciado por Amílcar Cabral para o PAIGC, através do seu irmão Luís [Cabral], de quem era colega quando era balconista da Casa Gouveia, tendo sido preterido como funcionário das Finanças, após estágio na respectiva Repartição, talvez por efeito da aludida "porrada" sofrida no CIM [de Bolama].

À data em que o Alcídio o viu junto ao quartel [, ou melhor, no bairro da Nema, em Bafatá], era o comandante da Frente Leste, que havia rendido o comandante Pascoal Costa  [ou melhor,  Vitorino Costa, 1937-1962] - despromovido, transferido por fracassar e que morrerá no contexto do cerco e assalto à tabanca de S. João (Fulacunda), executado pela CCaç 153  [em julho de 1962]-, sendo suposto a fazer o reconhecimento  [do quartel de Bafatá] para o atacar, como a cidade natal do Amílcar e a segunda cidade da Guiné´, objectivo que, a par de Bissau, será deferido no tempo.

Quanto aos seus rendimentos (*)- haverá no mundo algum militar profissional que não perceba ordenado ou soldo?  Pela regra do Exército Português, 80 contos corresponderia ao rendimento anual e, como se tratava de "progressistas", talvez incluísse os subsídios de férias e de Natal...


2. Domingos Ramos, o "incendiário do leste", que teve a "felicidade de morrer em combate", ou seja, como "herói":


Como aqui temos dito, Domingos Ramos é um dos nomes míticos da fase inicial da guerrilha do PAIGC que teve a "felicidade de morrer" como herói,  no campo de batalha, muito antes de chegar ao poder, portanto em "estado de graça". Sobre ele não pesam as suspeitas, as sombras e as acusações de traição, nepotismo e corrupção que mancham a memória de muitos outros "filhos" de Amílcal Cabral como Osvaldo Vieira ou 'Nino' Veira...O próprio Amílcar Cabnral, o "pai da Pátria", não chegou a conhecer a autora da liberdade... E a maior parte dos seus camaradas de luta já morreram. A última foi a Carmen Pereira, desaparecida aos 79 anos, em 4 do corrente.

Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão "politicamemnte correta"  usada na época pelas autoridades portuguesas, para distinguir os guineenses "civilizados" e "não-civilizados".

Fez, juntamente com o nosso camarada Mário Dias, o 1º curso de sargentos milicianos (CSM), em 1959, em Bissau. Infelizmentye, este curso iria ser um autêntico viveiro de quadros político-militares para o o PAIGC. Não sabemos em que data precisa o Domingos Ramos aderiu a (ou foi aliciado para) a "causa nacionalista". Mas terá sido no ano de 1960...

Sabemos que a 8 de maio de 1959  inicia a recruta, juntamente com Mário Dias, no quartel da Bateria de Artilharia de Campanha em Bissau, Santa Luzia, defronte ao que viria a ser mais tarde o Quartel Genera (QG). O português e o guineense ficam paar sempre amigos, embora depois siagm caminhos diferentes: a guerra vai polos em campos opostos...

Em 10 de agosto foi o juramento de bandeira. Quatro dias depois, a 14, inicia-se o   1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) que houve na Guiné, e para a frequência do qual se exigia já, como escolaridade,  pelo menos o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal.

Em 29 de novembro  de 1959 tanto o Domingos Ramos como  Mário Dias são promovidos a primeiros cabos milicianos.  Ao que sugere o Mário Dias, o Domingos Ramos ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, um ano depois, em novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça (***) enquanto 1º cabo miliciano, no CIM de Bolama, por parte de um oficial português cuja identidade está por descobrir (*), 



Guiné > Bissau > 1959 > 1ºs cabos milicianos Mário Dias (à direita, na segunda fila, de pé), Domingos Ramos (à esquerda, na priemria fila) e outros...

"De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro."

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados



Logo em janeiro de 1961, ele é enviado por Amílcar Cabral para a Academia Militar de Nanquim, na China,  frequentando o primeiro curso de comandantes do PAIGC, juntamente com João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes [ou Francisco Tê], Constantino Teixeira, Pedro Ramos ( irmão de Domingos), Manuel Saturnino,  Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa (, irmão mais velho de Manuel Saturnino) e Hilário Gomes,  (Manuel Saturnino Costa, nascido em 1942, é o único deste grupo que ainda está vivo).

Em 1962, Domingos Ramos organiza, na região de Xitole (que abarcava Bambadinca e Bafatá), as primeiras ações de sabotagem e aliciamento da população [, vd. documento abaixo, do Arquivo Amílcar Cabral]. 

Em 1964, participa no I Congresso do PAIGC, em Cassacá. na região de Quitafine.

O Domingos haveria de encontrar-se com o seu amigo e ex-camarada de armas, do 1º CSM, o furriel mil comando Mário Dias, pela última vez, em 1965... Em circunstâncias insólitas, em pleno mato,... É uma das histórias mais fantásticas que já lemos sobre a guerra e a grandeza humana que pode haver mesmo numa situação de guerra (****)....

Foi na região do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou durante toda uma vida e revelou, em primeira mão, em 2006,. aos seus amigos e camaradas da Tabanca c Gradne, Foi um dos momentos altos da história do nosso blogue. (*****).

Um ano depois, morreu prematuramente em combate, a 10 de novembro de 1966, em Madina do Boé, ao lado do "internacionalista" cubano Ulises Estrada, tendo-se tornado num dos heróis da luta de libertação nacional.

Os seus restos mortais  repousam agora no panteão nacional da Guiné-Bissau,m na antiga Fortaleza da Amura,
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Portal: Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.056.033 [Clicar aqui para aceder ao original]
Título: Comunicado - Zona 7, 8 e 11

Assunto: Transcrição de um comunicado em código, assinada por João Cá (Domingos Ramos), sobre as operações de sabotagem nas áreas de Xitole / Bambadinca, bem como sobre a acção militar portuguesa na mesma zona. O comunicado solicita o envio de "camaradas" e de armamento e refere-se à situação das zonas 7, 8 e 11 como um inferno.

Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Citação:
(s.d.), "Comunicado - Zona 7, 8 e 11", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40543 (2016-6-28)







[ Este documento manuscrito deve ser de junho de 1962, uma vez que nele se faz referência a um dos nossos T-6 (T6-G #1677) que se despenhou, no rio Corubal, em 29 de maio de 1962,  na região de Mina / Fiofioli,  roubando a vida a dois camaradas nossos da FAP. o fur mil pil Manuel Soares de Matos, natural de Arrifana, Santa Maria da Feira,  e o ten pilav  José Cabaço Neves, Embora tenham sido comsideradas  mortes "em combate", o T 6 deve ter-se despenhado, não por ter sido atingido por fogo IN,  mas em resultado de uma manobra, aquando do reconhecimento de  uma piroga suspeita, no  rio, perto da tabanca de Mina, na maregm direita do rio Corubal. Na época poucos militantes do PAIGC teriam armas, a não ser gentílicas, e  quando muito pistolas para defesa pessoal. A pistola P38 aqui citada seria uma Walther, roubada ao exército português... Segundo o nosso especialista em, armamento, o Luís Dias, "a pistola usada pelas forças de guerrilha do PAIGC era, principalmente, a Tokarev TT-33"]




Domingos Ramos, "herói nacional": ilustração do Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72). 

Lição nº 23: Um grande patriota... [Destaque para a frase: "Ele gostava muito dos seus soldados e não gostava de maltratar os prisioneiros".]




Portal: Casa Comum

Instituição:
Fundação Mário Soares

Pasta: 05360.000.084 [Clicar aqui para ampliar a imagem]

Título: Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China

Assunto: Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China, para iniciarem treino militar na Academia Militar de Nanquim: João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa e Hilário Gomes.

Data: 1961

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias

Direitos: A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Arquivo Amílcar Cabral > 11. Fotografias > 3.PAIGC > Exterior

Citação: (1961), "Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43247 (2016-6-27)

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Notas do editor:


Comentário de um leitor (guineense):

(...) Chamo me Adilson Adolfo Mendes Ramos... tanto pesquisei sobre histórias da minha família, e este blog é certamente o que mais me ajudou. Obrigado por o ter criado... Grande abraço

6 de agosto de 2013 às 15:40  (...) 

Guiné 63/74 - P16245: Parabéns a você (1102): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Mort Ind 912 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16239: Parabéns a você (1101): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

terça-feira, 28 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16244: Em busca de... (265): Camaradas da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), que ajudaram o meu pai, José Salvador Pinto Aires: cap mil Mansilha, alf mil Gouveia, 1º cabo aux enf Martins (José Carlos Aires, filho)

1. Do nosso leitor José Carlos Aires, filho de José Salvador Pinto Aires, militar da CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganture. 1967/68 [, crachá, abaixo, cortesia do nosso amigo e camarada Carlos Coutinho] 




Data: 27 de junho de 2016 às 20:06

Assunto: Localização de ex combatentes - Guiné Zorba 1659

Boa tarde, ilustres Senhores.

Devido à vossa facilidade de localizarem antigos combatentes, recorro aos senhores, com o intuito de vos pedir uma ajuda, caso esteja ao vosso alcance, claro.

O meu pai, José Salvador Pinto Aires, teve um acidente com alguma complexidade, quando esteve em comissão na Guiné, caiu de um veículo de combate.

Teve a ajuda de alguns camaradas, com os quais gostaria de voltar a contactar ou saber o seu paradeiro para poder também mais uma vez agradeçer.

Não sei se me podem ajudar, ou se me indicam, quem possa facultar esta informação.

O meu pai que era atirador especial, ainda recebeu um louvor, por ter salvo o grupo em que seguia, porque ao caírem numa emboscada com fogo cerrado, pegou num morteiro que estava ao seu alcance e conseguiu afastar o inimigo.

Ficam aqui os dados do meu pai, se for preciso mais alguma informação é só dizerem para o meu Mail, o que necessitam mais.
Guiné - Companhia Zorba 1659

José Salvador Pinto Aires
Nº 004749


Obrigado pela vossa atenção e tempo dispensados.

Atenciosamente

Com os melhores cumprimentos

José Carlos Ferreira Correia Pinto Aire

PS - Camaradas que o meu pai pretende localizar:

Manuel Francisco Fernandes de Mansilha - Cmdt Companhia [], foto à direita, no último convívio, em 2015]

Luís Alberto Alves de Gouveia - Cmdt Pelotão

José Augusto Fraga Martins - 1º Cabo Enfermeiro

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Guiné 63/74 - P16243: (In)citações (94): A Guiné e a sua circunstância: Da efeméride da crise dos “3 Gs” e do livro “Descolonização da Guiné”, da autoria do Coronel Jorge Sales Golias (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705,  Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 21 de Junho de 2016:

A Guiné e a sua circunstância: Da efeméride da crise dos “3 Gs” e do livro “Descolonização da Guiné”, da autoria do Coronel Jorge Sales Golias, um assumido e notável actor da mesma

Quando o nosso país, por manifesta fraqueza da geração de governantes superveniente ao 25 de Abril, desceu da glória legada pela gente de rija têmpera de outras eras, a protectorado dos seus principais credores internacionais e que estes sobrepuseram a sua “troika” à governação nacional, logo a Guiné e a sua circunstância me acudiram à lembrança. Ante o seu anunciado regresso, ora para apalpar nossa frouxidão, lembrei-me de regressar ao passado da Guiné.

Para a realidade de Portugal como o segundo país mais antigo da Europa, terceiro mais antigo do Mundo, todas as suas instituições creditadas de Direito e acreditadas em todas as instâncias internacionais, sem exclusão do regime político e do governo, o acontecimento do 25 de Abril de 1974 foi um dia inicial inteiro e limpo. De facto, nem o regime nem o governo eram sancionados pelo povo e a corporação militar nacional, acusando a sua usura nas guerras de África, destituíra-os, com economia de sangue, de desordens, sem a vacatura nas nossas instâncias supremas e restabelecera de imediato a cadeia de comando das nossas FA.

De acordo com o seu plano B, seria desencadeada uma rebelião em Bissau, em alternativa ao eventual insucesso na Metrópole.

Com o plano A rápida e exemplarmente triunfante em Lisboa e no país, ocorreu um evento paradoxal: por impulso da arma de Transmissões da Guiné, os primeiros militares a tomar conhecimento do sucesso total, o MFA de Bissau executou esse golpe por conta própria, na manhã do dia 26, decapitando o alto comando militar, secando a sua fonte de informações, pela dissolução da PIDE/DGS, à revelia da orientação do MFA central e das ordens do seu supremo comando.

Golpismo em favorecimento do IN, não por contingência, mas por “criação” ideológica, bem patente na narrativa, sem dúvida sincera e honesta, do Coronel Jorge Sales Golias.

O saber de que a quebra do moral e da disciplina são recompensas ao IN foi desde sempre comum ao soldado, profissional ou do contingente geral. E um golpe daquela natureza, em tão sensível teatro de guerra, seguramente que não buscava o contrário. E terá sido a “mãe de todas as batalhas” que levaram à tal “Descolonização exemplar”, para desgraça dos povos colonizados, com os quais Portugal levava 500 anos de compromissos e o empobrecimento de todos, em favorecimento de terceiros, que nunca derramaram lágrima, gota de sangue ou de suor, nem pelas gentes nem por aquelas terras africanas.

E assiste-nos o direito de o escrutinar como uma desobediência grave aos seus supremos superiores hierárquicos, o Presidente da República e o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, já então legitimados pela circunstância, pelo seu afã de obstar que a Descolonização da Guiné, e, por extensão, a do restante Ultramar, fosse realizada tendo por sujeito os povos e a sua realidade concreta e não para satisfação das utopias que povoavam a cabeça de minorias e das ideologias em moda, sustentadas em partidos armados, mas estranhas às suas maiorias. E terá constituído como que uma caixa de Pandora que se abriu para a impunidade campeadora, que colou a imagem de “república das bananas” a Portugal e que transubstanciou a Guiné-Bissau em Estado falhado.

São as nações que fazem os exércitos e não os exércitos que fazem nações. E, na realização dessa “Descolonização exemplar”, o MFA de Bissau apenas só teve ouvidos para os tiros e para os que os disparavam.

Em 1974, o exército do PAIGC tinha tantos anos de vida (10) como de errância, indigente de massa territorial, e ousava-o disputar com o Exército Português, com os seus 900 anos de existência e de gloriosas armas, o seu currículo de conquistas territoriais e de gentes, à dimensão das margens do Atlântico e do Índico, que transformara num “lago português”.

A retirada de Guileje enquadra-se numa manobra militar, não imposta mas decidida, da responsabilidade e comando de um oficial superior. Era uma posição dotada de obuses de 14,5 de longo alcance, morteiros de 81, canhões s/r 10,7, viaturas blindadas e abrigos de betão armado, resistentes a granadas perfurantes, predestinada por Amílcar Cabral a campo de batalha, uma espécie de Termópilas para a sua guarnição, no entanto longe de idêntico e funéreo fim. Como as baixas constituem o indicador da densidade das guerras, nesse período a que foi alvo de flagelações, massivas e continuadas, do armamento pesado registou-se uma só vítima mortal – o malogrado furriel de minas e armadilhas. Com o seu sorriso habitual e cínico, Nino Vieira dizia que a sua guerra contra Guileje só rendia baixas fora do quartel – nas ocasiões das colunas de reabastecimento de ida e volta a Gadamael e da ida e volta à água, a 4 km de distância.

A nomadização fora instalada em 1964, objecto de tanta intervenção da Engenharia de Bissau e, ao longo de 9 anos, até 1973, não foi possível abrir poços ou fazer furos mais próximos?

Essa famigerada retirada denuncia uma singularidade, apenas timidamente focada: a população preferiu acompanhar a retirada da tropa e ficar ao seu lado, à libertação oferecida pelo PAIGC, não obstante patrocinada por todo o mundo - ONU, Organização da Unidade Africana, Blocos Ocidental, Comunista e Não-Alinhados...

Seguiu-se a crise de Gadamael, sequela da retirada de Guileje e o seu preço, pago aqui com elevado número de mortos, imposto pelos factores cruciais: a troca da posição principal de resistência, dotada de abrigos específicos, por uma posição secundária, dotada de valas a céu aberto, a sua súbita e imprevista sobrecarga de população e militares e, sobretudo, o esmorecimento moral com sentido a derrota e a contagiante quebra da disciplina. A defesa de Gadamael passou por um período em que apenas foi sustentada pela valentia de cerca de 30 militares, do seu universo de 400. A chegada de uma companhia de pára-quedistas em seu reforço não só foi suficiente para a aguentar, mas também para forçar o IN a recuar para o território estrangeiro; e, se mais alguns chegassem, tirariam partido da “época das chuvas” como aliada e teriam perseguido os atacantes, enquanto estes chafurdavam no terreno, empenhados em safar o armamento pesado investido nas flagelações.

A crise de Guidaje foi a “mãe de todas as batalhas” dessa “Operação Amílcar Cabral” e a maior devoradora de vidas em ambos os campos. O aquartelamento só não terá imitado a retirada de Guileje, aos primeiros momentos do seu brutal ataque, graças a um factor: o desempenho ético e profissional do seu comandante, em posição de comando avançada, Tenente-coronel Correia de Campos que, com o seu exemplo de competência, coragem e valentia, obstou à quebra do moral e da disciplina aos seus comandados. Virá a ser o ignorado comandante no terreno da manobra das forças da Cavalaria de Santarém e de Estremoz que “convenceram” Marcelo Caetano à rendição, no 25 de Abril.

A História regista que a “Descolonização da Guiné”, com o seu efeito sistémico no restante Ultramar, foi obra da irreverência de um grupo de jovens oficiais, uns mais e outros menos contaminados pela ideologia em moda, por haverem voltado o feitiço (MFA) contra o seu feiticeiro (o General Spínola) - facto assumido por um dos seus actores principais, no aludido livro homónimo – que se apressaram em abandonar, em 5 meses, o que os seus antepassados realizaram em 500 anos.

Os tão seculares compromissos assumidos entre portugueses e guineenses não mereceriam diálogos mais “alargados e abrangentes”, que os monólogos impositivos dos camaradas José Araújo, Pedro Pires e até do Juvêncio Gomes?

Não invocando os indicadores estatísticos referidos às situações militar, económica, sociológica e histórica da Guiné, a iminência da nossa derrota no campo de batalha, propalada pelos nossos militares profissionais, desde 1974, configurará menos respeito pelos que deram a vida em combate e algo de menosprezo pelas centenas de milhares de portugueses que se entregaram ao serviço militar do seu país, sem nada pedir e sem perguntar se o país lhe daria alguma coisa. O PAIGC e os seus 4 mil militares seriam tão virtuosos e capazes que correriam a tiro os 45 mil militares/militarizados sob a bandeira de Portugal?

Partilho a indignação dos Pilav`s, esses tão poucos “cavaleiros do céu”, a quem tanto se deveu, em lidar com a atoarda da “perda da superioridade aérea”. Segundo o dicionário, “superioridade é a qualidade do que é superior” e, quanto aos meios aéreos da Guerra da Guiné, os tugas dispunham de aeronaves de pistão e de propulsão, enquanto os turras só disporiam de papagaios de papel…

Na sua reincarnação como idealistas pela autodeterminação e pela democracia dos povos em vias de colonização, o que é que os nossos corifeus do MFA/Descolonização viram de semelhante a esse ideal, na prática dos chamados Movimentos de libertação, para além de partidos-armadas, e não viram nos movimentos e correntes de opinião, que perseguiam os mesmo fins, mas sem derramamento de sangue - porque a civilização e a moral lhes ensinara que os fins não justificam os meios -, que justificasse o apressado abandono de territórios e gentes? Compadrio ideológico ou medo dos seus tiros? Eles eram formados, formatados, municiados, alimentados e patrocinados pelos países do Bloco Comunista e do Terceiro Mundo, plenos de ditaduras e de aversão aos direitos humanos.

Se consultado, o Zé Povinho saberia discernir: Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és!...

Outorgante expedito da “democracia” aos africanos, o MFA menorizou a nós, aos nossos pais e avós na sua outorga. Pela minha parte, já perdoei ao seu ideólogo programático, o falecido e então Major Melo Antunes, essa discriminação negativa: um ano de espera para uma Assembleia Constituinte, outro ano de espera para uma Assembleia Legislativa, dois anos de espera para eleger um Presidente da República e 8 anos de tutela armada – extinta pela revisão constitucional de 1982.

E porquê? Pela lógica idêntica à dos partidos armados da Guiné, Angola e Moçambique: não o sendo formalmente, o MFA era também um partido-armado…

No seu impetuoso “progressismo”, o MFA desvalorizara flagrantemente a nossa qualidade de segundo pais mais antigo da Europa e de terceiro mais do Mundo, reconhecido de Direito Internacional, desde 1179, fundador da ONU e da NATO, todas as suas instituições reconhecidas pela Comunidade internacional, então regido por uma constituição, das mais avançadas do mundo – reconhecimento do próprio Amílcar Cabral, que o complementava com o lamento de não ser cumprida.

Foi uma bizantinice, em resposta à qual avoco a autocrítica pública do General Spínola:
- “Sinto-me responsável pelo nascimento e criação do MFA e arrependo-me em não ter obviado o problema ao recusar-me a chefiar o golpe de Estado que instituiria da democracia; antes do 25 de Abril. Toda a Calçada da Ajuda (zona dos quartéis) e toda a Cavalaria estavam do meu lado”.

E sendo um ex-combatente amador da Guerra da Guiné, faço uma achega à “profissional”: Não obstante os seus picos, com a crise dos 3 Gs, Canquelifá, Pirada, etc, a gradação da Guerra da Guiné não ultrapassou a fasquia da “baixa densidade”.

Desde 1128 que o Exército Português vinha sendo glorioso em guerras de “média e alta densidade”…

Regressei passado, mas não fico nele. O comunismo e o seu bloco implodiram, mas Portugal preservou-se comunista, pela a partilha da sua Língua com os povos que beneficiaram/sofreram a sua Colonização.

Manual Luís Lomba
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16236: (In)citações (93): O que será a paz? (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381)

Guiné 63/74 - P16242: (De)Caras (43): A minha lavadeira Aline... "herdou-me" (Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt Pel Rec Daimler 3089, Teixeira Pinto 1971/73)


Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > Outubro de 1972 > "A minha lavadeira Aline com a Maria Helena, nas traseiras da nossa".

Foto (e legenda): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A minha lavadeira Aline

por Francisco Gamelas

A Aline “herdou-me”.
(Para uma nativa, um nome estranho.
Deveria ser investigado.)
Eu estava designado
no testamento,  num desenho
a propósito: um periquito. Contou-me

o alferes que fui substituir
que também tinha sido “herdado”.
A Aline era uma instituição.
Geração após geração
houve sempre o cuidado
de se lhe atribuir,

desde o seu tempo de bajuda,
o alferes das Daimlers.
Bonita tradição.
E por que não
se, entre todas as mulheres,
ganhou o posto sem ajuda?

Fui eu quem ganhou
com a  “herança” da Aline.
Presença bem esmerada,
roupa sempre limpa e asseada,
é a manjaca que define
o seu sentir  do que “herdou”.

Francisco Gamelas.
ed. de autor, Aveiro, 2016,  p. 53


Texto e foto dr Francisco Gamelas , ex-alf mil cav,  cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73). Engenheiro eletrotécnico de formação quadro superior da PT Inovação reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente "Outro olhar - Guiné 1971-1973. Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust. Preço de capa 12,50 €.

Os interessados pode encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal franciscogamelas@sapo.pt. O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.
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Nota do editor:

Último poste da série >  b22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16226: (De)caras (41): O cor inf ref José Severiano Teixeira nunca comandou o Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama, pelo que nunca poderia ter sido ele o oficial que puniu, em 1960, o 1º cabo mil Domingos Gomes Ramos, hoje herói nacional da Guiné-Bissau... E mais me disse que nessa época, em Bissau, constava que o Amílcar Cabral oferecia 80 contos (!), para se alistarem no PAIGC, a cada um dos militares guineenses do 1º Curso de Sargentos Milicianos (1959), a que pertenceu o nosso Mário Dias (Joaquim Sabido, advogado, Évora)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16241: Nota de leitura (852): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Naqueles anos de 1980, a obra do José Brás teria que surpreender pela riquíssima associação criada entre as vindimas que ele conheceu a ponto das suas descrições serem páginas de antologia e as vindimas no capim, como ele relata no final do seu soberbo romance, vindimas de mil cansaços, dos estrondos, das rajadas, nas febres, na água podre, nas centenas de quilómetros de picada, de trilhos, de selva virgem, nas horas e horas a rastejar sobre capim, na lentidão do tempo para o regresso, no frio das tripas nos cercos da estrada de Guileje, de Buba-Tomboli e de Gadembel.
Um acaso feliz permitiu uma nova e naturalmente refrescada leitura de um livro de um confrade nosso que marcou presença, por direito próprio, no que há de melhor na literatura da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário


Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (2)

Beja Santos

Chama-se Filipe Bento, veio do meio rural (concelho de Alenquer), depois o mancebo percorreu vários quartéis, está agora no Sul da Guiné, foi colocado em Cutima, uma localidade Fula. Descreve o pesadelo das colunas, neste caso a primeira que lhe coube na rifa:
“Eram quinze ou dezasseis carros. Velhas GMC’s, Mercedes, Unimogs, duas autometralhadoras Fox, duas Daimlers da grande guerra. Isto tudo fazia mais de um quilómetro de coluna. O pessoal sobre a carga, camuflados novos, caras pálidas, do Inverno de Santa Margarida e do enjoo do porão do Niassa…
E aquele calor sufocante das três da tarde. Os pulmões à rasquinha para separar o oxigénio da humidade.
A caravana pôs-se em marcha lentamente. Nas caras dos meninos podíamos ver o quê?
Sei lá! Como é que eu posso dizer o que é que ia naquelas caras se eu nem sei o que é que ia na minha! O que lhes ia nas caras era de certeza o que lhes ia nas almas. Havia ali muita cagufa!
Até eu, armado agora em cronista, até eu, repito, até eu não tinha muita certeza se a conversa dos outros gajos era a sério ou… Simples gozo, a acagaçar quem acagaçado estava já…”.

Estamos a falar de um livro soberbo, “Vindimas no Capim”, José Brás, 2.ª Edição, Publicações Europa América, 1987.

E Filipe Bento deambula, deriva para outras histórias, um Benedito que queria matar o capitão e feriu gravemente outros; o padeiro em Camba-Jate, que nunca tirava os pés do quartel, e que um dia lhe deu na bolha e acompanhou uma patrulha, achou um engenho, artesanal, já ferrugento. Fechou-se em copas, trouxe-o para o quartel. Segue-se a brutalidade da descrição:
“Depois do banho e da cerveja fresca, lembrou-se daquilo. Foi buscá-lo para o mostrar ao cabo do bar e para explicar ao outro, um pouco assustado e a olhar de lado para a lata velha, que não havia perigo nenhum, aquilo havia passado Invernos à chuva e já tinha pólvora que prestasse.
Tentou desmanchá-la. Começou a batê-la contra o cimento da cantaria. Uma, duas, três, quatro, pum!
O padeiro ficou todo arranhado no peito nu e na barriga. E a mão lá se foi!
No lugar dela havia uma pasta de sangue cheirando a trotil que tresandava. A mão válida agarrou-se ao pulso mutilado e o padeiro iniciou uma corrida doida, aos berros, em direção ao posto de socorros. O cabo do bar observou que tivera sorte em ser canhoto".

É uma escrita pontuada pelo pícaro, pela intensa coloquialidade, pela ênfase no horrível, na sensualidade, na muita insensatez no uso do mando, na vida insípida e num tempo aparentemente parado arame farpado adentro, de igual modo quando passa a limpo as tragédias das emboscadas.

Mas voltemos a Cutima, um hectare cercado de paliçada de cibos e lata de bidão. Um dito aparentemente vulgar introduz um novo ritmo na atmosfera: comia-se bem em Cutima-Fula, mas havia a ganância do vagomestre, as roubalheiras do despenseiro, ali a vida simulava o ritmo velho, com comerciantes a usar caminhos estranhos para vender a mancarra em Bafatá, as máquinas Singer continuavam o velho costume de juntar o tecido ao destino da linha, e depois chegou o Spínola e a guerra mudou de feição, se no passado em Cutima-Fula a guerra só chegava nos estrondos dos ataques a Nhala, a Colibuia e ao Xitole, agora batia à porta de Cutima-Fula, as colunas tornavam-se duríssimas, o sangrento da guerra espalhava-se pelas picadas. E há discursos que fazem avivar a perda da lógica, o contrassenso de todas as guerras, um exemplo:
“A mina antipessoal estava colocada do outro lado do tronco da árvore caída na picada. Era uma velha prática do PAIGC, toda a gente sabia, mas não havia maneira de evitá-las. De resto, não era esta a única forma de semear minas e armadilhas num trilho qualquer. E vocês estão a ver! Como é que se podia perder tempo a procurar minas num percurso de vinte quilómetros de carril feito de capim podre e milhões de folhas secas? A bem dizer, de que cada vez que se assentava um pé era uma angústia, a cada passo a sensação de que era o último”.

Temos agora nova deriva, vamos até Gatoeira, não será muito longe de S. Jerónimo, terra da criança Filipe Bento, mas onde onde ele nasceu foi mesmo nesta Gatoeira, veio ao mundo numa das casas do avô materno, ao lado da adega, só aos oito anos é que mudaram para S. Jerónimo. De novo uma descrição antológica, voltemos às vindimas:
“Fiz toda a limpeza da poda da vinha do meu avô paterno e quando chegaram as curas lá fui eu de novo para o patrão da vindima, agora a carregar o canequinho cheio de sulfato entre a barrica e o pulverizador.
Dias inteiros sem parar.
No princípio, as vinhas ainda têm as golas, as parras pequenas, levam pouco líquido, as boquilhas dos pulverizadores têm os orifícios estreitos, cada carrego do caneco leva um tempo razoável a esgotar-se no pulverizador. Se a barrica da cauda não ficar muito longe do local onde opera o sulfatador, o servente folga um pouco. Depois, começam as cepas a encorpar, as parras a crescer, os buracos de saída das boquilhas a alargar… É um vê-se-te-avias”.

E temos uma confissão, ainda a propósito destas sulfatadas:
“Nos sulfates, não imaginam vocês, o cobre da solução aquosa cola-se à pele, introduz-se nas unhas, penetra nos poros todos… Se passarmos as mãos apenas por água do poço, ou se as deixarmos até sem uma boa lavagem… Ou até ao fim da semana… Ou havia quem fizesse assim até ao fim da temporada toda das curas, três meses, mais ou menos, no final aquilo não são mãos, mas uma porcaria qualquer, nojenta, um polvo negro a agitar os tentáculos.
Eu cá, ao fim do dia, lavava as mãos com mijo! Acabava o trabalho, se tinha vontade de mijar afastava-me um pouco, virava-me a esconder o pirilau numa cepa mais ramalhuda, e vá de escorrer o freguês para as mãos. Aquilo era remédio santo. O cobre desaparecia e as mãos ficavam macias”.

Fala-se de bruxedos, de bebedeiras e navalhadas, de como se soube que havia uma guerra lá para as Áfricas, há queixas na GNR por maus tratos dos patrões, está aqui um retrato finíssimo de um mundo rural que se apagou, décadas atrás. Mas o autor justifica que há amarras entre os escravos brancos e pretos e que essas amarras rebentaram, a um preço sem igual carregámos aos ombros moribundos, conhecemos todas as cores da fome e da sede, do calor e do frio. Mas que o leitor não se iluda, aqui também fomos escravos, embora muitos “Não se sentiram nunca abusados, esmagados, nas madrugadas da praça de homens, valorados em lanços de coroa ou dez tostões, um quarto de pão escuro na mesa da ceia".

Para que conste, há muitas maneiras de falarmos das vindimas no capim. E José Brás foi magistral nas associações que criou entre o mundo rural de Alenquer e aquele devastador Sul da Guiné, onde ele também vindimou.
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Nota do editor

Poste anterior de 24 de Junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16233: Nota de leitura (851): Relendo uma obra soberba: Vindimas no Capim, por José Brás (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16240: Inquérito 'on line' (56): As nossas lavadeiras, quem não as tinha ?... Já responderam 97 camaradas... O prazo de resposta termina amanhã.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho..

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas. Todos os direitos reservados

INQUÉRITO 'ON LINE': "SIM; NO TO DA GUINÉ, TIVE LAVADEIRA"...


1, Sim, tive lavadeira mas só me lavava a roupa > 
85 (87%)

2. Sim, tive lavadeira, lavava a roupa e fazia outras tarefas domésticas > 
0 (0%)

3. Sim, tive lavadeira e também me fazia "favores sexuais" > 
8 (8%)

4. Nunca tive lavadeira > 
4 (4%)

Total de respostas > 97 (100%)

Votos apurados (até hoje de manhã): 97
Dias que restam para votar: 1
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P16239: Parabéns a você (1101): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16231: Parabéns a você (1100): António Branco, ex-1.º Cabo Reab Material da CCAÇ 16 (Guiné, 1972/74) e Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)

domingo, 26 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16238: Blogpoesia (455): "Das cordas dum violino..." e "Nunca eu vacile...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Mais dois belíssimos poemas do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), dos vários que nos vai enviando ao longo da semana, e que nós recebemos com prazer:


Das cordas dum violino...

Quando a tristeza me visita,
vou junto do mar pedir ajuda,
aquele santuário vasto e majestoso
que tudo afoga,
até os males...

Eficaz seu exorcismo,
me lava a alma
e volto leve,
sem aquelas pesadas penas
que não me deixavam voar.

Ou então, chamo a divina arte
do piano e violino.
Me invade a alma
com seus eflúvios etéreos
e tão fecundos.

Como a luz do sol,
vencendo a noite,
de dia, ilumina o mundo,
a alegria renasce
e minha vida incolor,
de cores se veste...

ouvindo David Hope "Salut d'amour"

amanhecer cinzento

Berlim, 21 de Junho de 2016
9h19m

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Nunca eu vacile…

Nunca eu vacile
A fazer o que devo
Na hora precisa
E exacto.

Custa bem caro
A omissão do dever.
O tempo é escasso
Para reaver o perdido.
Às vezes, para sempre.

Reparar se feri.
Repor se tirei.
Aliviar o sofrer
Onde cheguem meus braços.

Calar minha voz
Se já disse o devido.
Ouvir quem chegou
E precisa contar.

Nunca esquecer
O bom que nos deram.
Louvar o Senhor
Por cada dia que nasce…

Ouvindo Sibellius, sinfonia nº 2

Berlim, 26 de Junho de 2016
8h52m

Dia duvidoso de sol

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16221: Blogpoesia (454): "Cabeça de parafuso..." e "Atrevimento...", por J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728