quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9122: O nosso fad...ário (3): Fado Sangue, suor e lágrimas (Manuel Moreira, CART 1746, Ponta do Inglês e Xime, 1968/69)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) > 1968 > O Manuel Moreira Vieiria junto ao obus 10.5... A CART 1746 (i) teve como unidade mobilizadora o GCA 2, (ii) seguiu para a Guiné em 20/7/1967, (iii) regressou em 7/6/1969; (iv) esteve em Bissorã e no Xime (aqui desde princípios de 1968); comandante: Cap Mil António Gabriel Rodrigues Vaz.


Antes desta unidade de quadrícula, passou pelo Xime a CCAÇ 1550 (1966/68) (estivera antes em Farim; era comandada pelo Cap Mil Inf Agostinho Duarte Belo). À CART 1746, seguiu-se a CART 2520 (1969/70), a CART 2715 (1970/71), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)... (LG)

Foto: © Manuel Moreira (2009)/ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




1. Letra que nos foi enviada pelo nosso camarada, e poeta de Águeda,  Manuel Vieira Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746 (Bissorã, Xime e Ponta do Inglês, 1967/69):

Sangue, Suor e Lágrimas

por Manuel Vieira Moreira (*)



Adapt do Fado Saudade, silêncio e sombra
Letra (**): Nuno de Lorena: Música: Pedro Rodrigues-Fado Primavera; criação: Teresa Tarouca [Vd. vídeo aqui no TouTube] (**)

Muitas noites tenho passado,
Na Guerra bem acordado,
Por não conseguir dormir.
Com os olhos sempre alerta,
Pois é sempre pela certa
Que os Turras cá possam vir.
(Bis)

Certa noite fui acordado
E por estrondos alarmado,
Às duas da madrugada.
Mas rapidez é comigo,
Corri logo a um abrigo
P'ra responder de rajada.
(Bis)

A nossa bela Nação
Defendo-a do coração,
Estas são as minhas dádivas.
Misturadas com a dor,
Lágrimas, Sangue e Suor,
Suor, Sangue e Lágrimas.
(Bis)

(Final)

Xime, 20 de Dezembro de 1968 (****)

 © Manuel Moreira (2009)/ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28  de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5557: Cancioneiro do Xime (2): Sangue, suor e lágrimas (Manuel Moreira)

(**) Comentário: (...) "Ouvi este fado muitas vezes durante a guerra colonial. Encontrava-me na Madureira,  acampamento militar entre Nambuagongo e Zala em 1969. Todas as vezes que ía para uma operação tinha que [o] ouvir num pequeno gravador, antes de partir. Aliviava-me a alma". [antonio62203]

(**) Letra reproduzida aqui:

A saudade, meu amor,
é o martírio maior
da minha vida em pedaços,
desde a tarde desse dia
em que ao longe se perdia
pra sempre o som dos teus passos.

Saudades fazem lembrar
silêncios do teu olhar,
segredos da tua voz.
E essa antiga melodia
que o vento na ramaria
murmurava só para nós.

Lembraste daquela vez,
quando eu cantava a teu pés
trovas que não tinham fim.
Quando o luar prateava
e quando a noite orvalhava
as rosas desse jardim.

Jardim distante e incerto,
sinto tão longe e tão perto
o passado que te ensombra,
devaneio e irrealidade,
silêncio, sombras saudade,
saudades silêncio e sombra.

28 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9109: O nosso fad...ário (1): O Fado da Emboscada (CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1969) (João Carvalho / José Martins)

Guiné 63/74 - P9121: Parabéns a você (346): Carlos Schwarz da Silva (Pepito), Director Executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento da Guiné-Bissau

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9096: Parabéns a você (345): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Bigene, Guidage e Barro, 1968/70)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Guiné 63/74 – P9120: Memórias de Gabú (José Saúde) (16): Protecção avançada a um avião que trazia novidades…



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

PROTECÇÃO AVANÇADA A UM AVIÃO QUE TRAZIA NOVIDADES…

E NÓS LÁ ÍAMOS PARA PROTEGER A ATERRAGEM E A DESCOLAGEM

Dia em que o Capitão me chamava para organizar o grupo e avançar para a protecção à pista, era dia marcado pelo sofrimento. Horas a fio a olhar para o ar, tentando, por outro lado, ouvir os motores dos velhos Noratlas ao longe, era um dilema com o qual o pessoal se debatia quando a obrigação se deparava. 

No terreno, e já devidamente instalados, o frenesim do tempo imperava: “Furriel, isto é gozar com a malta!”, confidenciava-me o mais pacato militar. “Uma manhã inteira aqui e até agora avião nem vê-lo!”, adiantava o cabo Rodrigues. “São quase horas do almoço a nós aqui continuamos!”, afirmava o soldado Damásio.
Eu, calmamente, confortava rapaziada com umas dicas avulsas a fim de criar um ambiente entre o grupo. 

Num repente começavam-se a ouvir estridentes motores do Noratlas.”Vem aí, bolas, custou mas foi!”, dizia-me o soldado Carvalho com um ar bonacheirão. “Está a fazer-se à pista!”, reforçava o Silva. 

Depois de tantas interrogações seguia-se o momento de levantar voo. Tudo corria pelo melhor quando o tempo em terra era rápido. Porém, havia ocasiões que o tempo de espera se prolongava de tal forma que o pessoal desesperava por completo, voltando o trocadilho de acusações face ao sucedido. Problemas que se prendiam com o transporte de feridos que obrigavam a incertezas profundas. 

O sorriso voltava quando ouvíamos de novo o reactivar dos motores e a descolagem da aeronave. 

Num início de uma noite recebemos ordens para ir iluminar a pista com pequenas candeias imbuídas em gasóleo. Foi um trabalhão enorme! Sabíamos que se tratava de evacuar feridos vindos de Piche. Particularmente não procurei saber ao certo o que se passara. Fomos para o terreno. Todo o grupo foi incansável. Ninguém se escusou à tarefa. A nossa entrega à causa foi determinante para uma aterragem e descolagem calma do avião. Ou seja: para facilitar uma melhor visão ao comandante a bordo no momento da descolagem. 

De vez em quando uma candeia apagava-se e prontamente havia um voluntário para contornar o problema. 

Os feridos de Piche começaram a chegar. Nós, ansiosos para saber o que se tinha passado, não parávamos na nossa entrega. 

À medida que os feridos chegavam à pista trazidos em cima dos Unimog's, fomos tendo conhecimento do acidente. 

Dizia-me o Alferes, um dos feridos, que na última saída para o mato e com o grupo nos últimos retoques para saber se tudo estava em ordem, o homem da bazuca descuidou-se, virou a arma e a granada rebentou no meio do pessoal. O atirador teve morte imediata e o resto é o que se via.

Muitos feridos, gritos de dor e de revolta pelo sucedido, tendo em conta que a comissão do Batalhão de Piche já tinha terminado e o pessoal aguardava com alegria o regresso à Metrópole.

Infelizmente o imprevisto aconteceu e a revolta abateu-se sob almas desesperadas!


Eu com um camarada enquanto aguardávamos novas de uma aeronave que tardava
Esperando sinais para a chegada do avião a Gabú

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P9119: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (11): Sexo - a quanto obrigas

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 28 de Novembro de 2011:

Caros Camaradas
Esta é mais uma história que não gostaria de contar. Para quê falarmos das
misérias e mal-estares que passámos na guerra da Guiné? Porém, seguindo o
princípio do Blogue LG, que nos incentiva a sermos nós a contar as nossas
histórias e, por outro lado, sentindo a necessidade de que tudo deve ficar
registado, junto este testemunho denominado "Sexo - a quanto obrigas".

Um abraço do
Silva da Cart 1689


Outras memórias da minha guerra (11)

Sexo - a quanto obrigas!

O furriel Silveirinha nunca se envolvia em conquistas pontuais com as mulheres nem, tão pouco, era visto a aproveitar algum contacto com as bajudas ou com a sua lavadeira. Portava-se tão bem que elas se deixavam “apanhar” a banhar-se, com ele a olhar. Normalmente dizia que as respeitava porque, quando as via, imaginava a namorada, as irmãs e a sua própria mãe. Por outro lado, sentia muita relutância por causa da falta de higiene. Até porque eram abundantes as notícias de doenças contraídas nesses contactos.

À medida que o tempo ia passando, maior era a sua luta pela abstinência sexual. Ele lia muito, banhava-se mais, rezava bastante e procurava distrair-se permanentemente. Seguramente, tinha um comportamento mais comedido que o de alguns religiosos missionários.
Porém, em conversa com os seus militares mais directos, por vezes, confessava as suas carências e a sua crescente necessidade sexual.

Estávamos em Outubro de 1968. Fomos fazer a coluna de reabastecimento a Nova Lamego, capital do Gabu. Gozava-se de um bom período de paz naquela zona, que era visível no ambiente relativamente alegre que ali se vivia. A povoação, de ruas largas em terra batida e algumas casas de madeira com primeiro andar e varandas, até parecia uma “city” do Texas, nos tempos da corrida ao ouro.

O Soldado Montalegre, também conhecido por Montacabras, depois que um seu vizinho de Boticas o descobriu numa das nossas passagens por Bambadinca, era o terror do sexo oposto. Pelo menos, fama de “montar” não lhe faltava quer na nossa Companhia quer, pelos vistos, naquela região transmontana. Ele tinha ido a Bissau arrancar dois dentes do siso e estava ali há alguns dias, à nossa espera, para regressar a Canquelifá. Como se dava muito bem com o Silveirinha, veio dizer-lhe que estava cansado de tanto foder e que tivera a sorte de apanhar a melhor miúda de Nova Lamego. Acrescentou que, como costumava ir dormir com ela, podia dar-lhe a vez.

À noite foram a um pequeno Bar indígena. O Silveirinha viu aquela miúda linda a sorrir-lhe, não acreditava no que estava a acontecer.

O Montacabras despediu-se e o Silveirinha seguiu logo atrás da miúda. Efectivamente, tratava-se de um “borrachinho” de “mama firme”, bastante jovem, de carnes duras, pele cor negro/bronzeado, com feições arredondadas. Não teria mais que 14 anos. Tinha caído ali, em Nova Lamego, há pouco tempo e, com tanta tropa carente de sexo, ela não tinha tempo para descansar.

A miúda acendeu uma vela, que colou no chão, tirou o vestido amarelado, fino e curto, que era a única peça de roupa que vestia. E ficou nua à frente do Silveirinha. Este, sentado na cama, atrapalhado, não conseguia despir as calças porque se esquecera de descalçar as botas. Quando ele se lançou ao ataque, já a miúda tinha apagado a vela e se estendera na cama.

Depois da "primeira", a moça, que não falava crioulo e que falava uma língua que o Silveirinha não entendia, por gestos, pediu para descansar, porque era evidente o cansaço resultante do desgaste no “emprego” recente. Ela virou-se e ele não esperou muito tempo para ela recuperar.

Faminto como andava, não aguentou a demora e toca a forçar a jovem, para "dar outra". Ela, cansada e com o sono pesado, fazia um esforço enorme para corresponder à volúpia do Silveirinha. Ele descarregou os tomates, mas a miúda já dormia. Entrou em sono profundo.
O Silveirinha ainda voltou ao ataque, mas a jovem nem se mexia. Inclinou-se para a berma da cama e adormeceu também.

Quando acordou, já se sentia uma nesga de claridade. Voltou-se de barriga para cima e começou a reagir à medida que ia despertando. E, quando se apercebeu de que estava com a miúda, excitou-se rapidamente. Voltou-se para ela, que estava de bruços, e deu início a nova investida. Como ela não reagia, puxou-a pelas pernas mais para baixo. Porém, não conseguiu acordá-la. Tentou a penetração e lá concluiu da forma que pôde esta última relação.

Relaxou um pouco e pareceu-lhe estar a despertar de um sonho estranho. Caiu na real. Olhou a parede/divisória marcada de escarros e cuspidelas, levantou-se de repelão e sentiu os joelhos “enlameados” naquele lençol imundo. Pôs-se a pensar que essa “lama” era de outros e que ali nem se podia limpar sequer.

Ficou apavorado. Veio-lhe tudo à cabeça, recuperando assim, todas as suas preocupações e o seu comportamento exemplar.

Largou apressadamente a caminho do Quartel e não descansou enquanto não foi directamente ao chuveiro lavar-se de uma noite que nunca esqueceria.

A partir dali, sempre que se falava em relações sexuais, o Silveirinha não demorava cinco minutos para passar com toalha e sabonete na direcção do chuveiro.

Silva da Cart 1689

Fur Mil Silva e o seu vizinho, Alf Mil Armando Alves

Chegada da coluna de reabastecimento a Nova Lamego, a caminho de Canquelifá.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9087: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): O Zé Maria ou as cambanças da nossa geração

Vd- último poste da série de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9056: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): O grande choque (2)

Guiné 63/74 - P9118: Contraponto (Alberto Branquinho) (41): (Somos uns) Mal-agradecidos

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 28 de Novembro de 2011:

Olá Carlos, Boa noite!
Junto vai o texto para o Contraponto (41), fresquinho, acabado de sair.

Abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (41)

MAL-AGRADECIDOS!!

Há três dias que olho atentamente o blogue e nem um agradecimento, uma homenagem, um simples escrito!

Sim, porque a pensão atribuída aos antigos combatentes, bem avantajada nos seus cem (sem?) euros ANUAIS, atribuída por Sua Excelência o (então) Ministro da Defesa Sr. Dr. Paulo Portas, com pompa e circunstância (a pensão, claro!), NÃO vai sofrer qualquer corte no Orçamento de Estado para 2012.

Assim foi anunciado e só quem é surdo não ouviu!

Façam já um abaixo-assinado, atento, venerador e obrigado, seus mal-agradecidos! E enviem-no para as redacções de todos os jornais diários de Lisboa e Porto!


Epílogo

Como o Luís escreveu para nós mandarmos letras de fados, eu conheço o “Fado do 31”, mas só me lembro desta passagem:

“ … como ele não há nenhum
tudo baila e tudo canta
o Fado do 31.
Olarilóléla!
Como ele não há nenhum…
(etc., etc..)”
.


(Tenham cuidado com os etc.s!)

Alberto Branquinho
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8826: Contraponto (Alberto Branquinho) (40): Assim foi o primeiro Encontro da Tabanca de Setúbal

Guiné 63/74 - P9117: (In)citações (36): Para melhor compreendermos a África... (Artur Augusto Silva, 1963)



Cota: A7/1.3_013.002

Assunto: Província da Guiné, Conselho de Governo, Acta da Sessão de 7 de Julho de 1964 - n.º 2

Membros presentes: Presidente: Governador da Província, Brigadeiro Arnaldo Schulz;

Vogais Eleitos: Mário Lima Wahnon, Dr. Artur Augusto Silva, Joaquim Baticã Ferreira;

Vogais Natos: Secretário-Geral, Inspector Administrativo, James Pinto Bull, Comandante Militar, Brigadeiro, Gaspar Maria Chaves de Sá Carneiro, Delegado substituto do Procurador da República, Dr. Severino Gomes de Pina, Chefe dos Serviços de Fazenda e Contabilidade, Director de 2.ª classe interino, Tomaz Joaquim da Cunha Alves


Secretário: Manuel Trindade Rodrigues Lisboa


Termos de referência: Ordem do dia: projecto de D.L. sobre a entidade a quem competirá o controle da migração de nacionais e estrangeiros; projecto de D.L. aprovando o regulamento de publicidade radiodifundida; projecto de portaria para aprovação do 1.º orçamento suplementar ao ordinário para o ano económico de 1964 dos C.T.T.; projecto de portaria fixando normas, disciplinando o exercício de comércio nas diversas localidades da Província e alterando a Portaria n.º 971, de 1-2-958.


Data: 7.JUL.1964
Tipo de Documento: Actas
Fundo: DIP - Documentos INEP/A7 - Fundo do Gabinete do Governador
INEP / A7-Fundo Gabinete do Governador / 2-Cons. Legislativo e de Governo / Actas

Fonte: Fundação Mário Soares / INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Bissau) (Com a devida vénia...)




1.  Pequena homenagem no âmbito de um duplo aniversário: o de um homem (Carlos Schwarz da Silva - Pepito, para os amigos - que fará amanhã 62 anos de vida, vida de um lutador e de um sobrevivente) e  o da sua obra (AD - Acção para o Desenvolvimento, de que foi um dos co-fundadores  há 20 anos, e de que é o diretor executivo)...

Uma dupla reprodução: por um lado, uma cópia de um ata de uma sessão do Conselho do Governo da Província da Guiné, com data de 7/7/1964, presidida pelo Governador da Província, Brigadeiro Arnaldo Schulz, com a presença do Dr. Artur Augusto Silva, na sua qualidade de vogal eleito...

Desconhecíamos este dado biográfica, o lugar que o pai do Pepito chegou a ter no Conselho do Governo da Província, em 1964 (ao lado régulo manjaco, Joaquim Baticã Ferreira, e de Mário Lima Wahnon), antes de ser preso pela PIDE, em 1966, no aeroporto de Lisboa, e impedido de voltar à Guiné, à terra dos seus antepassados, que ele tanto amou ao ponto de lá ter morrido, em 1983.

Por outro, reprodução de mais um excerto, com a devida vénia do livrinho  Pequena viagem através de África, de Artur Augusto da Silva (1912-1983), pp. 15-18 (Originalmente, uma "conferência pronunciada em 1963 no Salão Nobre da Associação Comercial da Guiné, no 46º aniversário da sua fundação", publicado em Bissau, 2009; ed lit, Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schawarz). [Os destaques, palavras-chave e realce a cores, é da nossa responsabilidade] (LG)

(…) Para melhor compreendermos a África, torna-se necessário descrever, embora sumariamente, as diversas formas de organização social que a tradição ainda mantém para, em seguida, lançarmos um olhar ao que se está tentando levar a cabo.




Anarquia


O primeiro sistema social, aquele que mais fere a compreensão dos ocidentais, é a anarquia que vigora nalguns povos africanos.


Tomemos, por exemplo, os balantas. A sua organização social corresponde à definição etimológica de anarquia: ausência de governo.


O sistema vigora em todos os agregados africanos de pequenas dimensões — agrupamentos sociais lhes chamaríamos nós — tenham eles por base a família, a religião ou associações de carácter defensivo-ofensivo, como as classes de idade.


O primado das condições materiais é o fulcro da organização anárquica: não existe, nem é necessária, uma autoridade nem força, porque as disputas são reduzidas ao mínimo pela aceitação tácita dos costumes imemoriais.


Sanção: desprezo da comunidade, suicídio, doença e morte, banimento


A desobediência tem como sanção um elemento moral da mais alta transcendência: o desprezo da comunidade. O homem que as sofre, na maioria dos casos, só no suicídio encontra uma fuga para o terrível isolamento em que passa a viver.


Por vezes, pode juntar-se ao desprezo da comunidade uma outra sanção moral, de fundo religioso: a doença e a morte provocadas pelos espíritos dos antepassados que velam pela boa ordem do povo.


Só em caso de extraordinária gravidade é que a colectividade toma uma deliberação extrema: o banimento daquele que infringiu o costume instituído pelos antepassados.


O parentesco ou a ligação em classes de idade é o vínculo que une os homens.


Regulação do(s) conflito(s)


E as próprias lutas dentro da tribo, mais se assemelham a competições desportivas do que a guerras, porque nunca ultrapassam o aspecto desportivo. Veja-se como entre os felupes, por exemplo, quando duas tabancas entram em guerra, logo surge outra tabanca que vai apreciar a luta e não deixa que esta atinja grande crueldade. Quando os árbitros vêm que a contenda toma foros de crueldade, logo intervêm e apaziguam os beligerantes.


Este sistema anárquico não vive, como pretendiam os teorizadores  europeus do século passado, de um individualismo sublimado, mas de um comunitarismo onde o indivíduo não existe.


Entre estes grupos anárquicos, não existe nenhum chefe — os balantas e os felupes, por exemplo, não os têm — e o único comando ou regra de vida é o costume legado pelos antepassados.


Poder-me-ão dizer que entre os felupes existe um chefe, «o Aiu». Mais uma observação precipitada daqueles que querem generalizar as nossas instituições a todos os povos.


O Aiu é um chefe que não comanda, nem é obedecido. Limita-se a revelar o costume. Mas porque o costume tem base mística, o Aiu é também o grande revelador.


O poder das crenças religiosas, uma liberdade ampla, uma vida comunitária sólida e uma igualdade de fortuna, mantêm a paz social e a felicidade do povo.


Entre os felupes, há uma palavra comum para designar LIBERDADE, PAZ, FELICIDADE: «kasumeie».


Como acontecia na Roma antiga, tudo o que perturbe a ordem, é considerado um sacrilégio. E sacrilégios são a ambição, a riqueza, a vaidade…


Do regulado ao império


O regime de regulados é outra forma de organização tradicional africana, ainda em vigor, e floresce normalmente nas regiões de estepe ou de savana.


Aí, a necessidade da defesa num ambiente aberto às razias ou algaras, obrigou as famílias a reunirem-se em volta de um chefe simultaneamente político e religioso.


Aliás o binómio temporal-sacral das nossas sociedades é completamente desconhecido em África. Quem detêm o poder temporal, guarda também o poder religioso.


Por vezes, esta poeira de pequenos regulados aglutina-se e surgem os impérios que a história africana regista: do Gana, do Mali, dos Zulus, etc. etc…


As dificuldades da comunicação cedo vêm quebrar a unidade e de novo se volta ao sistema dos regulados.


Quem conhece a história da Europa medieval, facilmente compreenderá este fenómeno. (…)

_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de Novembro de 2011 >  Guiné 63/74 - P9114: (In)citações (35): Museu Memória de Guiledje, em que a história é o conjunto das histórias de todos (Pepito)

Guiné 63/74 - P9116: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (10): Júlio, o pilha-galinhas do Xime



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > Militares da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74), em passeio despreocupado pela tabanca do Xime. O Sousa de Castro, o nosso tertuliano nº 2 (ou o nosso tabanqueiro mais antigo),  é o segundo a contar da esquerda para a direita.  Por outros arruamentos, três anos antes, também andou a parelha Zé Ferraz-Júlio... (LG)


Foto: © Sousa de Castro (2005) / Blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



1. Mais um história do Zé Ferraz, português radicado nos EUA desde 1970 (vive atualmente em Austin, Texas), ex-Fur Mil Op Esp, CART 1746 (Xime, 1969; CCS/QG, Bissau, 1969/70):


Caríssimo companheiro e camarada Luis: Hoje [,24 do corrente,]  estou de folga e tenho passado algumas horas a ler várias histórias. Formidável, o nosso Blogue. Digo nosso,  por ousadia... 


Quando estava a recordar vendo as fotos da RTX [, Rádio Televisão do Xime,] lembrei-me de outra história do Júlio,  homem desenrascado e esperto até dizer chega...Ora bem,  havia um acordo tácito de que galinha que entrasse para dentro do arame farpado era nossa e ia para o tacho ...

Júlio, mais do que qualquer outro,  era formidavel com a sorte que tinha em apanhar as pobres galinhas ou assim pensava eu até que me dei conta que não era tanta a sorte como a esperteza...

Aqui vai o resto da história: o Júlio numa coluna que fizemos até Bafatá disse-me que ia comprar milho e eu perguntei-lhe:
- Milho? 
- Pois,  meu furriel,  se quer comer galinha ... - E lá foi. 


Não pensei mais no milho até que regressámos ao Xime e,  no dia seguinte,  tínhamos galinha como reforço do rancho... Aí lembrei-me do milho e questionei-o:
- Ó Julio,  o que é isso com o milho ?

Diz-me ele com um sorriso de esperto:
- Vê,  meu furriel ... - E mostra-me um buraco no bolso dos calções, continuando:
- Encho o bolso de milho,  dou um passeio pela tabanca e vou deixando cair o milho... Quando volto cá prá dentro,  as galinhas vêem o milho e seguem-me até entrar no quartel. Aí, pumba, e tacho com elas!... 


Que eu saiba nunca ninguém na tabanca se deu conta disto e o pessoal balanta reforçava o seu rancho... Ah grande Júio!


Um forte abraço, Zé.

________________

Nota do editor:


Postes anteriores  da série < 29 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9110: Se bem me lembro... O bau de memórias do Zé Ferraz (9): E aqui estou eu hoje vivo...

(...) Numa dessa operações de inflitração em território inimigo, [ no subsector do Xime,] com o propósito de destruição dos seus meios de vida, entrámos por uma tabanca em que as cubatas eram de paredes redondas com um poste central que suportava o tecto, e à volta do qual havia uma parede cilíndrica que formava um silo para a bianda [, arroz] (...)

27 de Novembro de 2011> Guiné 63/74 - P9106: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (8): O meu colega do Liceu do Oeiras que fui encontrar em Mansambo e em Bambadinca...

(...) Uma vez cheguei a Bambadinca e a minha farda de campanha consistia em calças camufladas, dólman a que tinha cortado as mangas, uma écharpe de seda que havia pertencido a minha mãe; como armamento, a G-3 com a tanga do primeiro turra que lerpei, atada ao tapa-chamas; como galhardete, cinturão sem cartucheiras, um punhal enorme, fula, cujo cabo era um cartucho calibre 50; e cinco granadas de mão. (...)
26 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9101: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (7): Um acidente... no Pilão

(...) Um dos meus amigos fixes desse tempo era um furriel miliciano, destacado no Cacheu, que sempre que conseguia desenfiava-se e aparecia em Bissau, quase sempre de madrugada. Abreviadamente, era o A. T....Vinha bater a porta do meu quarto sempre com a burra e o mesmo grito:
- Zé, acorda vamos pró Pilão que as meninas estão à MINHA espera (...).

25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9095: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (6): Não matem a bajudinha...

(...) Falando de acção psicossocial, de que sempre fui partidário, lembrei-me que durante uma operação de penetração ao sul do Xime, aprisionámos 2 elementos IN.  Depois de interrogados, guiaram-nos a uma tabanca IN. Fizemos um assalto e durante esse combate ferimos uma miúda, bajuda, com um tiro por detrás do joelho que lhe destroçou a patela [ ou rótula]. (...)

 
24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9090: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (5): O desenrascanço... na justiça militar!
 
(...) Quando prestava serviço na CCS/QG em Bissau, uma vez por mês tinha que prestar serviço como sargento da guarda na prisão do QG (à direita da porta d'armas do dito quartel), guarda de honra em funerais locais e ainda montar segurança no Pidjiguiti ao navio de abastecimento quando atracado nas suas fainas. (...)
 
23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9084: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (4): Quando os nossos soldados indígenas se suicidavam...
 
(...) Já estava no QG, [em Bissau, em meados de 1969,] quando um dia, por volta do almoço, apareceu lá um jeep da PM [ Polícia Militar]. Queriam falar comigo urgentemente (...) 


22 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9080: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (3): Hugo Spadafora, o Che Guevara italopanamiano (1940-1985), terá estado no (ou passado pelo) Fiofioli nos idos anos de 1965/67

(...) Da conversa que tive com o Hugo Spadafora, nessa tarde tão interessante, houve de princípio certa reserva da minha parte devido à multitude de emoções que sentia nesse momento. Passado isso, fomo-nos abrindo pouco a pouco e aqui está o que me lembro (...)

21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9070: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (2): Hugo Spadafora (1940-1985), que combateu como médico e guerrilheiro nas fileiras do PAIGC (entre 1965 e 1967), e que encontrei na década de 1980 no Panamá...


(...) Na década de 80, quando era Zone service manager - para a América Central e Caraíbas - da divisão Detroit Diesel Allison da General Motors, ia muitas vezes ao Panamá. (...)

20 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9068: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (1): O valente soldado Júlio


(...) Uma manhã ao alvorecer saí do Xime com a minha malta para montar segurança na área do costume, entre o Xime e Amedalai para uma coluna de reabastecimentos que sairia pouco depois. Sem novidades passaram e nós regressamos ao Xime.  Essas colunas de reabastecimento de costume regressavam por volta das 3 da tarde. Chegam as três e nada... Quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze e nada. Nunca soube porque os meios rádio nesse dia estavam de rastos e não conseguíamos comunicar com Bambadinca. (...)

Guiné 63/74 - P9115: Agenda Cultural (172): Lançamento do livro A Primeira Derrota de Salazar, de Paulo Aido, dia 1 de Dezembro pelas 17 horas, na Casa de Goa, em Lisboa (Teresa Almeida)

1. A pedido do nossa tertuliana Teresa Almeida (Bibliotecária da Liga dos Combatentes), damos a conhecer o lançamento do livro A Primeira Derrota de Salazar, de autoria de Paulo Aido*, dia 1 de Dezembro pelas 17 horas na Casa de Goa. Narana Coissoró** será o apresentador.




CONVITE


[...] "A Primeira Derrota de Salazar" acompanha os eventos em Goa nos dias do fim desta colónia portuguesa. Lisboa procura, por todos os meios, influenciar os países amigos a interceder a nosso favor contra o colosso indiano, mas, com o passar do tempo, percebe-se que a invasão vai mesmo acontecer. Todos sabem que é impossível vencer militarmente, mas Salazar ordena que só pode haver soldados vitoriosos ou mortos! Nem sequer admite a hipótese da rendição, mas a catástrofe está iminente.[...] Fonte: sítio Zebra Edições.


(*) Paulo Aido tem 49 anos, é jornalista há mais de duas décadas e, actualmente, vereador [,independente,]  na Câmara Municipal de Odivelas. É também autor de diversos livros de temática religiosa que se têm revelado verdadeiros bestsellers. É o caso de "A Mensagem da Irmã Lúcia", "O Peregrino de Fátima" e "As Mais Belas Orações", apenas para citar os mais recentes. Em "A Confidente de Sá Carneiro", embora não abdicando do rigor que sempre pautou a sua escrita, assume uma clara mudança de registo, enveredando pela primeira vez pela literatura de memórias biográficas. Fonte: sítio Zebra Edições.


(**) Sobre Narana Coissoró:


Nasceu em Goa a 3 de Outubro de 1931. É um advogado e professor português.
Licenciado em Direito, na Universidade de Coimbra e doutorado pela Universidade de Londres, é advogado, professor catedrático jubilado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, onde preside ao Instituto do Oriente, e professor catedrático da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Militante histórico do Centro Democrático Social, foi eleito deputado nas I, II, III, IV, V, VI, VIII e IX Legislaturas, liderando o Grupo Parlamentar do CDS, entre 1978 e 1991. Autor de vários livros, é membro da Academia Internacional de Cultura Portuguesa. (...)  Fonte: Wikipédia
____________


Nota de CV:


Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9098: Agenda Cultural (171): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (9): Rescaldo da sessão do dia 23 de Novembro de 2011 (Carlos Cordeiro)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9114: (In)citações (35): Museu Memória de Guiledje, em que a história é o conjunto das histórias de todos (Pepito)

1. Mensagem do nosso amigo Pepito, director executivo da AD - Bissau, que está duplamente de parabéns: por estes dias (depois de amanhã, 1 de Dezembro, é o seu dia de aniversário; por outro lado, a sua ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento comemorou, no passado dia nove, 20 anos de existência, "20 anos a inovar, agir, desenvolver"):

Data: 28 de Novembro de 2011 19:58
Assunto: Diário de Notícias-Guiledje

Amigo Luís,



Confesso-te que foi com uma grande alegria que li esta reportagem feita por um português (neste caso por uma portuguesa) cujo pai também andou pelas Áfricas de Além Mar.

Veio de Portugal e só em Guiledje teve a oportunidade de, como ela diz "...Foi lá que li a carta que Casimiro escreveu aos pais sobre a retirada de 1973...".

Se ela a quisesse ler, em Portugal, não o podia fazer. E isto porque houve uma iniciativa da AD,  associada ao nosso Blogue,  que deu no Museu "Memória de Guiledje" o qual permite aproximar povos e juntar memórias.

A alegria é tanto maior quando me lembro quanto fiquei magoado por ver alguns camaradas (que não o deixaram de ser por terem opiniões e visões diferentes) ligarem Guiledje a Aljubarrota, aludindo ao facto do Blogue ter apoiado uma visão unilateral da história por parte dos guineenses.

Afinal, hoje, é uma portuguesa que tem de ir a Guiledje para conhecer a opinião daqueles que foram contemporâneos do pai dela, e aperceber-se que, de facto, não temos por cá Nunos Alvares Pereira,  e que sempre percebemos a história como o conjunto das histórias de todos.

Recebe um abraço muito amigo e agradecido

pepito

2. Reprodução, com a devida vénia, do artigo de opinião, de Ana Cristina Pereira, jornalista do Público, publicado no DN- Diário de Notícias, de 27 de Novembro de 2011



Estilhaços do tempo:  Impossível não ficar a pensar no que terá passado o meu pai durante a guerra colonial

por Ana Cristina Pereira

"Ainda não sei se foram os soldados que se juntaram todos e abandonaram o quartel ou se foi ordem dada pelo comandante-chefe, mas uma coisa é certa: GUILEDJE ESTÁ À MERCÊ 'DELES'."


José Casimiro Carvalho não estava. Tinha ido coordenar uma operação de reabastecimento da companhia. Guiledje era o fim do mundo. Os mantimentos vinham em batelões de Bissau até Cacine. Seguiam em lanchas de desembarque médias até Gadamael. E por coluna até ali. 
A situação tornara-se insuportável. Durante três dias, o aquartelamento fora bombardeado 37 vezes. Sobre ele tinham caído 795 granadas. A cozinha fora destruída e a tropa estava impedida de formar coluna para ir buscar água. Já não tinha água e já só podia comer rações de combate. 


Guiledje dista três quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacry. O exército assentara arraiais em 1964. Tentava impedir a entrada de armamento e de víveres para o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, via "corredor da morte" ou "caminho di povo", consoante o lado da luta. 




A famosa carta enviada pelo José Casmiro Carvalho (Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350), enivada aos pais, remetida de Cacine, em 22/5/1973, anunciando a a saída de Guileje....


Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.




Agora, só se pode imaginar a rede dupla de arame farpado, as trincheiras a céu aberto, as trincheiras subterrâneas, o morteiro, as messes, os quartos, o posto de rádio, o posto de socorro, a arrecadação, a cantina, a cozinha… Depois da retirada de militares e civis, António de Spínola, então governador militar da Guiné, mandou bombardear o que restava.

Há uma maqueta no Núcleo Museológico de Guiledje. O lugar está a ser recuperado, muito por força da Associação para o Desenvolvimento. Para já, apenas uma sala com isso e com utensílios e textos de época. Visitam-na antigos combatentes e familiares. Às vezes, aparecem filhos ou netos de militares já mortos, à procura de pistas de um passado silenciado.



Foi lá que li a carta que Casimiro escreveu aos pais sobre a retirada de 1973. E um impressionante depoimento de João Tunes, importado do blogue Bota Acima: "Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guiledje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida. Os que não estavam malucos por lá andavam perto".


Impossível não ficar a pensar no que terá passado o meu pai durante a guerra colonial. Não combateu na Guiné-Bissau. Combateu em Moçambique, mas enquanto lá estive ligou-me várias vezes, inquieto. Suponho que para ele Guiné ainda é sinónimo de inferno.
A guerra colonial começou há 50 anos. Oficialmente, acabou há 37. Em quantas cabeças ainda ecoa?"

______________



Nota do editor:


Último poste da série > 9 de Outubro de 2011 >  Guiné 63/74 - P8875: (In)citações (34): Que país é este, Portugal, que faz de poetas soldados e de soldados poetas ? (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P9113: Convívios (389): O Convívio da Tabanca da Linha visto por José Manuel Matos Dinis

1. Em mensagem do dia 28 de Novembro de 2011, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), relata-nos o que viu, sentiu e deglutiu no último Convívio da Tabanca da Linha, realizado no passado dia 24.

O dia apresentou-se soalheiro e de temperatura muito agradável, como quem diz, nem quente, nem frio, e muito simpático para o convívio antecipadamente combinado, e veiculado pelo melhor dos orgãos de divulgação de convívios, almoçaradas, e outros acontecimentos de heroicidades comprovadas.

De repente, digo mesmo: súbita e inesperadamente, ouviu-se uma voz tonitoante, de comandante a impor a autoridade dos galões: seus grandes pasmados, não vêem como o Dinis come a sobremesa, que lhe levam à boca a colher cheia de pudins?

A surpresa admoestante paralisou a todos, que dirigiram os olhares para o canto do fundo da mesa, lugar onde se encontrava o distinto Comandante das tropas e das operações (com direito a que lhe levassem os doces à boca), amparado entre dois pesos mais ou menos pesados, de um lado o Mário, que não costuma aguentar-se com dislates, do outro o António, que levitava entre poesias orientais e o aroma dos primeiros cafés a serem servidos, enquanto os olhares inquietos dos circundantes se fixavam naquela espécie de última ceia, e algumas colheres suspensas deixavam cair por virtude de desiquilibrios, as adocicadas e gostosas iguarias pasteleiras, que sujavam calças, saias, ou a borda da toalha, onde permaneciam como destroços até que fossem sacudidas. Todos se aguentaram à bronca.

Todos não! Porque a minha psicóloga, imperturbável, feliz, e ciente do que gosta de fazer, ainda me trouxe à boca mais duas colheres de sobremesa, antes que o Comandante Rosales tivesse manifestado vontade de me medalhar com uma porrada, pelo que disse ser o meu comportamento mimado, mas, desconfio, apenas representava a inveja que os poderosos sentem, quando as classes exploradas vivem com alegria os pequenos prazeres da vida.

Mas o excelentíssimo público de leitores merece uma reportagem mais circunstanciada. Vamos lá:

Conforme a ampla divulgação prévia, foi grande o interesse suscitado na participação em mais uma etapa gloriosa, com vista ao aplacar de fomes e sedes, que a feliz iniciativa da Magnífica Tabanca, superiormente liderada pelo controverso Comandante Rosales, e excelentemente levada a cabo por este vosso humilde e guloso criado, concretizou com manifesto agrado.

A confirmar o que antecede, bateu-se o recorde de inscritos e de mastigantes, o que constitui uma exemplar prova do exercício desinteressado da política alimentar. Houve uma falta por motivos imprevistos, e outra, sem ai nem ui, provocada por um conhecido autarca que, desleixadamente, terá ficado a contrapôr estatísticas da greve. Também a esposa do Domingos não veio, mas por motivo de saúde, embora não se trate de situação alarmante. Virá para a próxima. Também por motivo de doença faltou o Vitor Balalaica, a quem fazemos votos de que vença a adversidade, e de quem esperamos poder ouvir os magnificos fados que interpreta como poucos. A ver se o nosso Segundo-Comandante (com a colaboração do Zé Carioca) se mantém atento e providencia um próximo encontro com homenagem musical. Porém, à guisa de compensação, vierem dois piriquitinhos, filhos de dois conhecidos atabancados: o António Santos (com umas barbas à Agostinho da Silva), e o nosso investigador José Martins, que tem muita matéria para publicar.

Também para publicar e testemunhar futuramente, desdobraram-se em trabalhos fotográficos os tertulianos, Miguel Pessoa (também conhecido por ser o esposo da nossa Camarada Giselda Pessoa, extraordinária de atenções e dedicação aos ex-combatentes das bolanhas guineenses; Manuel Resende, que não sendo um jovem, é uma promessa da fotografia; Humberto Reis, que apesar de acompanhado por duas indefectíveis e fidelíssimas canadianas não teve tantas oportunidades para engatilhar retratos; e o Jorge Canhão, que, com objectivas de grande calibre, ainda teve tempo para confraternizar, manducar e beber da inspiradora sangria, enquanto se batia ao prémio "o melhor fotógrafo do evento", prémio que ficou por atribuir por falta de exemplares para o empate registado (só havia um prémio). Mas o Colaço seria o justo vencedor, em caso de desempate, com uma única fotografia que me tirou.

As estrelas, como vem sendo costume, foram todos, que mantiveram um ambiente muito agradável, e juram não faltar futuramente.

Falta referir-me às especialidades que foram servidas: as entradas confirmaram-se num plano acima da razoabilidade, e foram deglutidas com gula, já que estes combatentes não registam a traumática doença da falta de apetite: croquetes, queijos, e patê de marisco, serviram de treino para o repasto; depois veio uma sopa vegetal, onde as couves marcaram presença.

O prato de peixe era bastante substantivo, pois tratou-se de um arroz de lulas, muito tenrinhas e de dimensão adequada, acolitadas com gambas e ameijoas, num conjunto que se revelou bem temperado, aromático, e muito apaladado. Foi excessiva a quantidade, e ainda sobrou.

O prato de carne apresentou um rolo de lombo de porco recheado um enchido saboroso, e vinha acompanhado de batatinhas e cebolas a aflorar de um molho sucolento que merecia mais atenções e dedicações, não fora os antecedentes terem dimuinuído a capacidade volumétrica para ingerir, pelo que voltou a sobrar.

Nos finalmentes, houve uma mesa de doces, onde se podia escolher entre farófias, pudins, mousse, maçã assada, e não tive capacidade para mais, apesar de muito entusiasmado pela variedade de paladares.

O vinho era suficientemente bom, e nem me interessou saber das castas de onde fora espremido, nem a região de proveniência, nem os outros ítens que glorificam os enólogos, como também foi suficiente para eu não ter provado a sangria ou a água cristalina, que o pior, vocês sabem, são as misturas.

Jorge Rosales - O Comandante e Tesoureiro

José Manuel Matos Dinis - O Relator

Assim se apresentavam as mesas
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9103: Convívios (381): Tabanca da Linha, Restaurante A Camponesa, Cabreiro, Alcabideche, Cascais, 24/11/2011: Fotos de José Colaço, Manuel Resende e Humberto Reis

Guiné 63/74 - P9112: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (3): A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate

1. Terceiro episódio de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - III

A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate

Bissorã era uma vila já com bastante população em que havia alguns estabelecimentos comerciais, muito deles já abandonados, mas ainda assim com um ou outro em funcionamento (os pertencentes a libaneses), perdi a sensação de tremendo isolamento que me tinha acompanhado durante a permanência em Fulacunda, tendo em vista que a vila tinha ligações por estrada, com Mansoa, Barro, Olossato e Mansabá, para esta última através do assustadora mata do Morés, considerado um refugio do IN, daqui a que desde que fosse assegurada a necessária desminagem e segurança se fizessem colunas. Ficamos durante alguns meses em conjunto com a Companhia 1419 e aparte os patrulhamentos e observações nas tabancas limítrofes, apenas têm relevância no plano militar dois acontecimentos que vieram abalar o contingente: em primeiro lugar junto à pista de aterragem rebentou uma mina antipessoal que provocou a amputação do querido amigo Lageira – 1.º Sargento da 1419. À posteriori o 2.º Sarg Sarrico por descuido deixou rebentar no bolso do camuflado uma granada de fósforo que o queimou e estropiou bastante. Vim encontrá-lo com sofrimento tremendo já no Hospital da Estrela onde foi horrivelmente tratado, quando da minha evacuação por ter sido atingido a tiro, e já fortemente estropiado. O Sarrico veio a falecer depois com uma cirrose hepática.

As condições em Bissorã já eram mais aceitáveis, sendo que inclusive tomávamos refeições de boa qualidade num estabelecimento do exterior, e um grupo de furriéis, em que me incluía, alugou uma casa também no exterior do quartel para pernoitar e repousar. Era realizado sistematicamente pela população um tradicional mercado ao ar livre. Existiam dentro da vila, em tabancas separadas e nos arredores, diversos grupos e sub-grupos étnicos, nomeadamente fulas, mandingas, biafadas, alguns balantas e um curiosíssimo sub-grupo, os saracolés que teciam e produziam os panos azuis, que as mulheres dos diversos grupos usavam a servir de saias. Havia alguns artesãos habilidosíssímos que criavam em pau-santo belas peças das quais adquiri alguns exemplares que hoje possuo, mas o artigo para mim mais interessante é um corta papeis em feitio de punhal manufacturado a partir do bronze do invólucro das balas e do alumínio das caixas de outra munição que não me lembro já hoje e que de certeza utilizei tendo em linha de conta que andei dezenas de vezes aos tiros com todo o tipo de armamento. Junto à casa do administrador de Posto chamou-me a atenção uma viçosa horta que produzia permanentemente durante todo a ano alfaces, tomate etc. Aqui não há os períodos de inverno ou verão, basta regar todos os dias como verifiquei ser feito por elementos da população, não sei contratados como. Também aqui me chamou a atenção um enorme monte de mancarra, (amendoim) que veio depois a ser transportado para Bissau (Casa Gouveia - Sucursal local do Grupo CUF) e com o monopólio da exportação de todo o amendoim da Guiné para Portugal..

A casa do Administrador.

A tasca do senhor Maximiano. A nossa messe em Bissorã

Rua com duas bombas de gasolina à direita


Terminado este período de aparente acalmia, mais uma vez nos deslocamos em viatura pela estrada para ficarmos localizados em Mansoa, ainda nos deslocamos algumas vezes a Bissorã com colunas de abastecimentos.

A igreja católica vista de frente.

A mesquita com os seus crescentes nos minaretes

Nesta vila onde pensávamos terminar a nossa comissão de serviço com menos tensão, veio a ser a zona de maior desgaste e com momentos mais angustiantes e onde sofremos os mais dramáticos e terríveis acidentes de guerra e onde viemos a ter as mais traumáticos situações e tropelias. Por aqui passava a estrada alcatroada que vinha de 10Km, (andava em construção – atribulada é certo - o pessoal de Engenharia envolvido era frequentemente atacado – também várias vezes fizemos a segurança aos mesmos e entramos em combate com o IN desfazendo as ferozes emboscadas feitas à estrada, que estava planeada para servir de ligação entre Bissau e Bafatà. Era também já uma vila com vida própria com alguns comerciantes, principalmente libaneses e raros portugueses um posto de Correios, onde algumas vezes telefonei para casa, a sede do Os Balantas, clube de futebol onde existia uma ampla esplanada e um cinema ao ar livre. Tinha também um administrador que aqui residia com a esposa e que eram assíduos frequentadores do cinema, o único inconveniente é que todos os filmes pareciam ser de guerra, porquanto milhares e milhares de melgas que pejavam o chão no fim de cada sessão, voavam permanentemente na frente do projector parecendo no ecrã uma enfiada de balas tracejantes.

O centro com o café e esplanada.

A Estação dos Correios

Quartel de Mansoa visto do cimo do depósito da água

O quartel era já de grande dimensão porquanto era aqui o comando de um vasto sector. Aqui chegados e instalados, veio, depois de algumas incursões dolorosas no mato sob o Comando (digamos que nos acompanhou) o verdadeiro comandante era já o Rui Ferreira, o Cap. Capador, um ineficaz que só atrapalhava, convenhamos que saía mudo escondia-se por todo o buraco que aparecia e regressava calado sendo que foi neste período que tivemos os mais duros contactos com o inimigo e tivemos diversos feridos. Foi a companhia desmembrada, sendo que ao nosso pelotão/grupo foram destinadas as funções de guarnições em destacamentos avançados, (mais uma vez o isolamento e a solidão), e que eram Braia, um bunker na estrada a caminho de Bissorã, nada existia para além do bunker e o arame farpado a toda a volta e onde foi colocada a primeira a Secção comandada pelo sensato, responsável e corajoso, José Monteiro, e Cutia em que existia dentro da cerca de arame farpado algumas moranças e onde exceptuando o refeitório tudo o resto eram abrigos debaixo de terra e cibes onde dormíamos e que ficava na estrada a caminho de Mansabá. Aqui fui colocado com o Ameixa e o resto do pelotão e onde mais tarde se veio juntar um alferes em substituição do Rui, que entretanto tinha sido ferido em combate em operação durante o tempo que permanecemos como companhia de intervenção em Mansoa.

O fortim para defesa da ponte. No chão, feito com garrafas de cerveja enterradas, pode ler-se: “Piratas do Oio 1420″.

Vista parcial da tabanca, dentro do arame farpado, e do Destacamento, onde se vê a bandeira na Porta de Armas.

Perdidos na memória do tempo os nomes dos diversos locais onde sofremos cruéis emboscadas, e procuramos e atacamos acampamentos e casas de mato do IN, apenas me marcam profundamente aquelas onde viemos a sofrer mortos e feridos.

Inscrição na parede de uma caserna.

Choveu copiosamente no percurso para o assalto a uma casa de mato, só participei nela porque ali ia o meu extraordinário grupo e era comandado pelo grande Rui, fui de chinela de praia porque nesse mesmo dia o meu Camarada Carolino (o enfermeiro da companhia) me tinha extraído uma unha arreliadoramente encravada, no meio da aterradora escuridão tropecei no fio de um fornilho que felizmente, eventualmente por causa da chuva, só rebentou o detonador o que não diminui o ânimo do pessoal, não sei exprimir o que senti. Chegamos de madrugada e ao sermos alvejados irrompemos pela casa de mato provocando a sua destruição pondo o IN em fuga desesperada com feridos e capturando diversas armas; no regresso dois elementos já longe do local dedicavam-se à pesca, obrigamo-los a acompanhar-nos para o Quartel, nunca soube de mais nada. Em nova incursão para a mesma zona somos recebidos a partir da berma de uma pequena mata por imensa metralha, no afã de desalojar o IN e porque seguia como de costume no inicio da coluna, avançámos o mais abrigado possíveis naquele sentido, pedindo eu aos dois bazukeiros, o Feijões e o Antunes, que se aproximassem da minha linha de fogo para melhor alvejarem o IN, assim fizerem o que resultou no desalojar dos mesmos mas, como ainda hoje me dói e me faz amiúde sonhar com o acontecimento, na morte de Antunes com um tiro na carótida. Foi dramática a evacuação daquele camarada transportado, aos nossos ombros, em maca improvisada até um local que o helicóptero pudesse pousar.
Pouco tempo após este acontecimento, vim de férias a Portugal, tendo regressado a Mansoa no mesmo dia que era inaugurada a primeira ponte sobre o Tejo. Acho graça a esta coincidência, para um revoltado permanente sem saber porquê.

Durante o período de férias recebi em casa, carta do meu amigo Rui onde me transmitia que uma secção do 4.º Pelotão tinha sofrido uma tremenda emboscada em que uma bazookada tinha atingido a viatura que se dirigia o destacamento da ponte de Uaque para levar a alimentação tendo morrido o 2.º Sargento Monteiro e havido diversos feridos de entre eles o mais grave era o nosso amigo Raimundo (o puto) entre a malta que era a vedeta futebolística da companhia e que faz o favor de ser um meu grande amigo. Era oriundo de uma família de pescadores da Costa da Caparica onde ainda hoje reside já em local diferente. Ficou e está completamente estropiado numa das pernas e num dos braços além do estropiamento ainda ficou amputado de parte dos dedos. Poucos dias passados e ainda de férias recebo nova carta do Rui que me comunica que o nosso pelotão tinha sofrido uma emboscada vindo o nosso amigo Augusto Palhais a ser atingido e ia ser evacuado para a metrópole. Fui visitá-lo ao Hospital onde constatei que tinha sido atingido por uma bala que lhe tirou uma vista. Este jovem, o único casado e já com um filho era a responsabilidade e ponderação que muito nos fazia falta e nos ajudava, está também entre os amigos, quase a generalidade, que se reúnem periodicamente para confraternizar. Originário de Mira – Aveiro ali se radicou.

Vindo de Cutia em trânsito por Mansoa com destino ao Hospital de Bissau para ser observado pelo facto de ter dado uma violenta queda que me provocava fortes dores no peito e tive a alegria de encontrar já recuperado o meu amigo Rui que aguardava transporte para se juntar a nós, em quem notei imediatamente um sentimento de revolta e inconformismo. Então não é que, por que o Comandante do 4.º Pelotão que se encontrava ausente para Bissau e estando aquele grupo para sair com a missão de avançar para o mato para o desalojamento e eliminação de alguns focos referenciados, o Comando de Batalhão, o tinha indigitado para comandar aquele grupo ao que ele reagiu acabando no fim praticamente por ser coagido a aceitar a missão; de imediato abandonei a ideia de ir para o hospital e lhe transmiti: se vais eu também vou, assim já seremos dois a aguentar o barco! Oh diabo, voaram mosquitos por cordas; não penses nisso, nem em sonhos, se for preciso proíbo-te de ires porque sou teu superior, era um poço de humanidade e brincalhão este Rui, depois de acesa discussão com este teimoso lá verificou que não merecia a pena insistir, pelo que lá nos juntámos aos camaradas do 4º. Pelotão. Depois de diversas peripécias no atravessamento de imensas bolanhas aproximamo-nos de uma tabanca isolada na extremidade de uma pequena mata, indo como de costume na frente da coluna, avistei em fuga em elemento, pelo que impetuosa e impensadamente me lancei em sua perseguição, vindo a ser gravemente ferido quando um grupo, emboscado estrategicamente, disparou diversas rajadas de metralhadora atingindo-me duas balas que me provocaram perfuração intestinal e o esmagamento de diversos ossos da bacia que me condenaram ao estropiado que hoje sou. Felizmente não houve mais feridos, porquanto vinham ligeiramente mais atrasados e puderam abrigar-se e eliminar aquela frente de fogo.

Fui em pouco tempo evacuado de helicóptero para Bissau, vindo ao fim de 15 dias para o HMP e posteriormente para a semi-clausura do Anexo vindo a terminar no DI no largo da Graça, locais de onde guardo a mais confrangedora das recordações. E assim termina a saga africana deste anónimo labrego.

No dia 10 de Junho de 1968, ainda andava em bolandas pelas instalações hospitalares donde só saí em Março de 1972, fui condecorado com a Cruz de Guerra, assunto que não pretendia aludir mas que devido a um facto acontecido me obriga a abordar e que anexo no fim.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2011> Guiné 63/74 - P9097: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (2): A nossa estada em Fulacunda