quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6844: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (15): Buba, quotidiano, deveres e desenrascanços

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2010:

Camarada e Amigo Carlos Vinhal, renovadas saudações Guinéuas.

Pretendo traçar um quadro das minhas “estórias,” passadas no Teatro Operacional “TO”, em Buba, passando pela segurança aos trabalhos da abertura da nova estrada por Samba Sambali–Nhala, em direcção a Aldeia Formosa e bem como do meu quotidiano nos deveres e na procura dos desenrascanços.

Com um abraço amigo
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Auto Rodas
CCaç 2381, Os Maiorais de “Empada”


As minhas estórias em Buba (2)

Parte 1

Foto 1 – Guiné> Região Quinara> Buba> Aspecto do Refeitório> 1969 > Na hora da refeição destinada à Companhia. Num quadro negro a simular saborear um pitéu, “argamassa pestilenta” de bianda com chispe que não comi. Fui somente buscar o pão e o vinho, com cuidado o “diabo do bufe” podia tece-las e informar o Oficial Dia.

O refeitório e zonas de apoio de cozinha e despensa apresentavam um estado de degradação de condições miseráveis e desumanas, assim como as mesas e bancos de assentar. As refeições alternavam-se entre chispe, dobrada e salsicharia, produtos com má conservação, e eram confeccionados com o arroz (bianda), o feijão-frade (ciclistas) ou as batatas desidratadas (foto 1). O vinho carrascão chegava em garrafões de 20 litros.

Em Buba, era servida comida com odor pestilento, tratavam-nos de forma irracional sendo uma desconsideração como humanos, digeria uma repulsa de não ter frequentado o CSM e depois quanta diferença em Empada. Mas enfim não há bela sem senão e contudo estou a escrever estas “estórias”..!

Tudo se agravara em Fevereiro/69 após um ataque In a duas Lanchas em que se faziam os transportes de mantimentos, ficando uma temporariamente inoperacional, dificultando ainda mais os reabastecimentos.

Mas como quem não tem cão caça com gato, contrapondo com a deficiência alimentar, sendo eu conhecedor da forma de apanhar peixe por meio de rebentamento. Dando a volta à interdição de usar granadas de mão, pelo perigo dos estilhaços e ao forte estrondo que seria facilmente perceptível pelo Comandante do Sector, Major Carlos Fabião.

Assim, na subida de maré, de preferência da manhã, aguardava a chegada dos fartos cardumes, depois optava por retirar o detonador de uma granada de mão e esta assim por si deixava de produzir qualquer efeito explosivo (ensinaram-me a queimar a carga de rebentamento comprimida de forma inofensiva e lentamente). Seguindo-se quando fosse propício aos maiores peixes, o retirar a cavilha do detonador e lançando-o ao rio, com a detonação dava-se a danificação do sistema da bexiga-natatória dos ditos, levando-os à sua morte e vindos à superfície em que os maiores seriam os escolhidos.
Não seria a melhor forma de apanhar os peixes, devido a algum desperdício de matar grandes e pequenos e em que alguns iam morrer distante, mas era a lei da sobrevivência saciando a fome a muita gente e de outros peixes.

Sendo necessário agora “amanhar” o apanhado, a confecção teria de ser no mesmo dia (para o almoço e jantar) porque não tínhamos frigorífico e o 1.º Cabo Escritas (hoje grande empresário na restauração, em Soure) tinha a incumbência de resolver a confecção. No entanto ficava pendente do 2.º Sargento da Secretaria, João Gouveia (Madeirense) e que nem sempre o libertava atempadamente.

Possuíamos um chalé/abrigo T1, com fogão a petróleo, despensa com vários temperos, batatas do “gamanço,” pão do dia e o vinho trazidos do refeitório, as frutas eram as bananas, laranjas e enlatados, a cerveja e/ou coca - cola (ver foto 2)


Foto 2 – Guiné> Região de Quinara> Buba> Abril-1969 > Pela Páscoa, na sala de refeições (espaldão de morteiro 81mm), estando comendo sobremesa de pudim, está colocado num pequeno alguidar (não havia frio para consolidar). Foi um luxo enviado ao tempo pela minha namorada. Na direita da foto, a zona da espalda do abrigo, onde o cabo escritas dependurado estava a ver um fogacho In.

Quando havia abundância, por vezes tínhamos convidados amigos por conveniência, porque a despensa tinha que estar fornecida, para bom entendedor meia palavra basta e porque quem mexe no mel também lambe os dedos.



Foto 3 – Guiné> Região de Quinara> Buba> Abril de 1969 > Pela Páscoa, eu, assentado no coroamento do espaldão do abrigo do Morteiro 81 m/m e bebendo whisky já com o mostruário da minha garrafeira, porque na Metrópole era contrabando e numa forma geral só era servido em “Bar-Boites.” Não esquecendo o conhecido “Whisky Palhinha feito numa banheira, em Lagoa e tipo Sacavém.

Tendo eu uma certa flexibilidade de horário para exercer funções de especialidade, as quais cingiam-se ao período da manhã e por conveniência dado não termos viaturas distribuídas, havia os mecânicos auto da CCS e da CCaç 2382, os quais só por si pretendiam assegurar o serviço diário.

Estando livre, era normal fazer natação junto ao Cais e o serviço de fotógrafo no exterior, chegando a noite por conseguinte havia energia eléctrica e efectuávamos os trabalhos no pequeno laboratório instalado na gruta do citado abrigo de morteiro.
Como curiosidade em fotografia era fácil obter com bajudas com o peito a descoberto, porque quando pretendiam tirar fotos tipo passe para o Cartão de Identidade “cá mist fotografia di mama firme” e assim sendo dizia-lhes que para aquele fim ficava só do peito para cima.

Foto 4 – Guiné-Bissau> Região de Quinara> Sector de Buba> 1969 > Linda bajuda de mama firme, é um dom de Deus e privilégio da natureza.

Foto 5 – Guiné-Bissau> Região de Quinara> Buba> 1969 > Kadi, filha da lavadeira. No interior da Guiné era comum as bajudas andarem de tronco nu e sem qualquer pudor.


Parte 2

Aos Praças, estavam destinadas instalações de acomodação, de apoio e de defesa, que não eram adequadas na sua capacidade e funcionalidade para a situação de guerra. Estando o Comando ainda numa fase de recuperação, do tempo perdido de adaptação há realidade e que ainda pensavam na sorte da má pontaria In.

Havia quatro casernas (só protegiam-nos do Sol, da chuva e das balas), havendo outros compartimentos para pequenos grupos e tendas de campanha. Nas casernas os beliches pela sua disposição dificultavam uma rápida evacuação.
No ponto de visa sanitário existiam grupos de balneários/lavadouros em condições que deixavam muito a desejar, mesmo sendo o possível.

O Bar e Cantina, também tinham as suas limitações, tomando como referência, em tempo, os cerca de seiscentos militares ali estacionados.

Relativamente ao sistema de protecção em caso de flagelação, existiam valas/trincheiras dispersas pelo aquartelamento e abrigos construídos, alguns de forma tosca e com localizações pouco pensadas (ver foto 4, ponto3).

Durante o tempo que permaneci no Aquartelamento de Buba, o In flagelou estas instalações militares por quatro vezes, só actuando na astúcia devido também há forte actividade no Sector, das nossas tropas de Elite, Pára-quedistas, Fusas e Comandos, das situações realce as seguintes “estórias:”

-Em 22/07/68 e14/02/69, deram-se fortes flagelações a Buba, as quais já foram amplamente descritas por mim nos Postes P5304 e P5699, e agora mencionar seria repetitivo.

-Em 21/04/69 era noite estando com o 1.º Cabo Escriturário António Soares, na gruta do abrigo do morteiro, a executar trabalhos fotográficos, o In flagelara o quartel de Buba com armas pesadas e instaladas na margem esquerda de um braço do Rio Buba.

Como mandavam as regras (em ataque à distância) aguardei na expectativa, o meu sócio “inteligente” foi observar o espectáculo no exterior, dependurado no coroamento do espaldão do abrigo (ver foto 2). Tentei convencê-lo a se recolher mas estava a gostar do espectáculo, dera-se uma explosão, em que tive o pressentimento de ter sido no e/ou junto ao abrigo. Pensando o pior, vociferei c.b. já lerpaste, fui vê-lo estava confuso também pelas terras e estilhaços que lhe caíram por cima.

Na manhã seguinte fomos presenciar os estragos, vimos a sorte que ele teve por a granada de canhão s/r ter vindo na sua direcção e o impacto da mesma dar-se no lado exterior contíguo ao muro do espaldão. Se no local de disparo a pontaria fosse feita mais ou menos uma milésima, “já foste” e hoje não continuávamos grandes amigos.

-Também nos primeiros dias de Maio, quando já aguardávamos o embarque da segunda leva na LDM, de parte do pessoal da CCaç 2381, para se agruparem no Subsector de Empada e a fim de renderem a CCaç 1787 (foto 5).

Estando com camaradas, nos balneários/lavadouro em zona que não incomodava o descanso de outros, para passar o tempo jogávamos à lerpa. Eis que grupo In efectuou uma flagelação, vindo da margem esquerda do rio e lateral ao Aquartelamento. Eu e outro camarada, protegemo-nos dentro de um tanque de lavagem de roupa e os outros seis foram para outro local. Quando ao entrarem no vão de acesso de um abrigo (ponto 6 na foto 4) e por conseguinte dobrados, dera-se uma das explosões de granada de canhão s/r, na parede traseira do Depósito de Géneros ou Arrecadação de Material de Guerra (veja-se foto 4), porém os dois últimos que estavam a aguardar a entrada levaram com estilhaços nas nádegas e nas costas.

Foto 4 – Guiné> Região de Quinara> Buba> Aquartelamento> 1969 > Estou sentado no coroamento do espaldão do morteiro. 1- Balneário e lavadouro; 2- Base do celebre poilão de referência para pontaria In; 3- Abrigo de protecção de construção tosca e com entrada lateral; 4- Parede do impacto da granada canhão s/r In; 5-Rampa; 6- Zona contigua ao relacionado abrigo e com descrição idêntica ao ponto 3.

Tendo efectuado uma visita há Enfermaria, vendo-os nas macas “de nádegas pró ar” com ferimentos e havendo a natural galhofa “com os normais palavrões de ocasião.”
Os sortudos não eram da minha Companhia, mas de unidades de passagem e/ou fixadas em Buba caso ainda existam ou os Enfermeiros de serviço, podiam também dar uma achega daquela situação e porque além do azar tiveram uma pontinha sorte.

Foto 5 – Guiné> Região de Quinara> Buba> No leito do Rio Buba> Maio de 1969 > À esquerda, o Soldado Condutor Auto Hermínio Andrade da CCaç 1787, vindo de Empada de passagem para Quinhámel, depois do ataque a Buba, sendo meu conterrâneo e ex-colega de classe da Escola Primária, fora propositadamente cumprimentar-me. Veja-se as calças com brilho “encharcadas,” teve que saltar da LDM para terra.


Parte 3

Devido a que o In actuava por vezes em situações de surpresa e de vantagem, dava a entender que as nossas tropas estavam a ser controladas em certas acções operacionais e nomeadamente o que acontecia com a 15.ª Companhia de Comandos, que chegara a Buba em Janeiro/69, a qual era comandada pelo Capitão Garcia Lopes e onde também operava o Tenente Robles, identificado pelas cicatrizes na cara.

Não sendo eu parte interventiva nem presencial, embora memoriando algumas situações da 15.ª Companhia de Comandos, Guiné 68/70, não me compete comentar o desenrolar dos prós e dos contras, contados por interpostos camaradas. No entanto não deram tréguas ao In e com resultados de grande êxito militar nomeadamente em 10 de Abril/69.

Sabendo-se que esta Unidade Militar de Elite recolhera a Bissau, em meados de Outubro/69, dado ao grande esforço das acções empreendidas e ao desgaste físico. Posteriormente vários dos seus operacionais foram distribuídos reforçando outras Unidades e inclusive como recompletamentos para a CCaç 2381 (ver fotos 6 e 7).

Foto 6 – Guiné> Região de Quinara> Empada> 1969 &gt > O ex-1.º Cabo Comando Atirador, Nuno Rosa, quando colocado na CCaç 2381.

Foto 7 – Guiné> Região de Quinara> Empada> 1969 &gt > Na Porta de Armas do Aquartelamento, o ex- Soldado Comando Atirador, por exclusão de partes presume tratar-se de “António Bastos.”


Parte 4

Assim como outras Unidades de Intervenção não tiveram tarefa fácil nas missões de patrulhamentos e segurança aos trabalhos de abertura da nova estrada de Buba - Samba Sambali – Nhala - Aldeia Formosa, nomeadamente a CCaç 2381, que estando lutando com insuficiência de operacionais devido a evacuações, baixas médicas e de férias.

Por conseguinte tiveram que alinhar camaradas do Pelotão de Comando e Serviços, situação onde me incluía e tendo o fim de ficarmos colocados em Samba Sambali – Nhala, ex-Tabanca abandonada e a partir 11 de Março/69.

A antes situação deveu-se a que a 10 de Março/69, quando se procedia à ligação da variante da estrada de Samba Sambali – Buba, o “Caterpillar D 7” do BENG, accionou uma mina a/c reforçada causando dois feridos (um Oficial e um Sargento) e elevados estragos à máquina tornando-a inoperacional.

Pela situação deparada do “Caterpillar D 7” não poder regressar a Buba, sendo necessária a sua reparação no local, para dar protecção também a outras máquinas por decisão do COMSECTOR, evitando-se a sobreposição de esforços e de perdas de tempo.
Por conseguinte dentro do cercado da Tabanca, uma máquina de terraplanagem efectuara escavações formando poços para abrigos, onde se montaram tendas de campanha e no seu perímetro amontoaram-se as terras para se construírem roços/trincheiras, sobre as mesmas colocavam-se sobrepostos sacos cheios de terras materializando-as com frestas.

Das várias vezes que efectuei segurança à estrada e escoltas, não ouve algo a assinalar de intervenção com o In por o mesmo não se ter manifestado directamente.

Uma das situações que ainda hoje me está na retina, foi dentro do cercado de Samba Sambali da presença de um indivíduo à civil de raça negra, com muito àvontade não aparentando ser capinador e/ou Milícia, de cara com bom trato e vestes tradicionais que me chamou a atenção. Fitamo-nos olhos nos olhos, ele seguiu o seu caminho, eu como precaução simulando segui-o a certa distância levando a G3 e a observar os seus movimentos, passara por vários e não tendo qualquer interferência. Retirando-se sem ser referenciado nem pelos africanos e nunca mais tornara a vê-lo.

Ponderando a situação deparada fiquei com o dilema se o interpelo poderia dar-me complicações, o de interferir com um civil e/ou elemento da “PIDE,” por meio de coacção sem que para isso estivesse incumbido lembrando a APSICO. Se fosse In já vinha preparado para tudo, eu na dúvida seria o surpreendido e assim joguei na reacção ao acontecimento. Contudo nada acontecera no período que eu ali permaneci, mas, e ainda continuo a relembrar aquela situação.

Nos primeiros dias de Abril/69, a minha CCaç 2381 fora rendida penso que pela CCaç. 2464 e regressando a Buba.
Posteriormente contaram-me que numa das flagelações ao reduto de Samba Sambali, no local onde construi o meu sistema de protecção e de acomodação, um militar africano a quem eu lhe cedera o lugar, foi vitima de granada In e/ou do dilagrama da sua arma (porque eu vi que ele a usava instalada e fiz-lhe essa observação), isto é podendo ter disparado com bala real e causando-lhe acidente.
Assim como soube-se que em determinado dia, guerrilheiros do In disfarçados de capinadores surpreenderam as nossas tropas e tendo estas reagido de imediato pondo-os em debandada (poderá ter algum relacionamento com a minha situação).


Parte  5

Conquanto em Buba havia a suspeição de alguns mandingas, que ao rio iam pescar “nkadjam nha canua” encalhavam a canoa e iam transmitir informações ao In. Quando se ausentavam, por vezes chegavam tarde e não se preocupavam. Nós víamos e comentávamos que estavam conotados com o In, estes por vezes tinham conhecimentos antecipados de alguns movimentos das nossas tropas.
Como curiosidade temos que de noite ao passarmos pela Tabanca e se havia silêncio, era pormenor de que estava para acontecer uma flagelação.

E assim, observara que devido às antecedentes situações suspeitas, no mês de Abril/69, o COMCHEF General António de Spínola, expulsara parte da população de Buba e sendo toda da etnia dos mandingas.

E, lá fomos presenciar o pessoal africano (parecia uma romaria) transportando os seus pertences, com uma algaraviada clamando para que não os mandassem embora, porque todos se achavam inocentes e pagando o justo pelo pecador. Por conseguinte embarcaram no Cais de Buba e ouvimos dizer que levavam “guia de marcha” para uma determinada Ilha do Arquipélago dos Bijagós.

Também a minha lavadeira por ser Fula e mulher de um Milícia, ficou contente pela situação deparada e contando-me que suspeitavam dos pescadores mandingas de serem bandidos.

Assim, citei de forma superficial e sucinta, algumas “estórias” aquando da minha estada em Buba e Samba Sambali – Nhala, com situações várias que foram comuns a muitos camaradas.

Com um abraço amigo
Arménio Estorninho

Ex-1.º Cabo Auto Rodas
CCaç 2381, Os Maiorais de “Empada”
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 9 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6838: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (14): Buba, Operação Larga Passada

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que me chegou às mãos, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

II Parte > Excertos (pp. 5-8)

Instalado em Bissau, a partir de Novembro de 1960, com o desenvolvimento da minha vida empresarial, os contactos alargaram-se. Festas conjuntas em casa do amigo João Vaz [, alfaiate,], ou na minha, a acolhermos os estudantes vindos de férias, e a envolvermos os amigos – além do João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Pereira, Júlio Pereira, Duarte Vieira e o Dr. Maurício Dias (de visita frequente a Bissau).

Estes contactos foram avolumando suspeitas, porque a repressão colonial era tal que tudo, para eles, era motivo de suspeitas.

7. Não descuidávamos o apoio aos que partiam para a luta. Lembro-me de Armando Faria, Dr. Venâncio, Fidelis Cabral de Almada, Hugo Borges, etc. Organizávamos quotizações para um jantar, bailes, caso do Dr. Fidelis, até uma ajuda pecuniária. Foi ali que descobri a acção do Dr. Severino Gomes de Pina. Era secretário da Câmara [e advogado].

Na recolha de contribuições para um jantar, Elisée Turpin aconselhou-me a irmos pedir ao Dr. Pina. Fomos à Câmara. Estava a falar com o funcionário europeu, de nome Ventura, pai do conhecido Abel Ventura. Não hesitámos, dirigímo-nos a ele e pedimos a sua contribuição. De modo contrariado, ripostou-nos o Dr. Severino Gomes de Pina, com a recusa, o que me deixou contrariado. Mas no mesmo dia e noite, procurou-nos para pedir desculpas e para a dar a contribuição. O Elisée recebeu mas eu mantive-me zangado, afastei-me deles.

9. Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

10. Havia muita dificuldade da população em se abastecer de arroz. Organizei o apoio de abastecimento em arroz, e praticamente em tudo o que era alimentação. As pessoas passaram a vir dormir ao pé das minhas instalações. Destaco nesse empreendimento o apoio de Cipriano Correia Dias, que era alto funcionário da Economia e responsável da distribuição das requisições. Protegeu-me sempre a iniciativa, que reforçava com os que conseguiam requisições e não conseguiam fundos para o levantamento de arroz. Vendiam-se as requisições a troco de algum lucro.

"Depressa a fama da distribuiçãio de arroz galgou notícia por todo o país e eram centenas as pessoas que vinham dormir para serem as primeiras a ser atendidas.

11. Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granda atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim (**). Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

12. Eu era vereador da Câmara Municipal  de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.



(Continua)


[ Revisão / fixação de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

30 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6807: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (1): Encarregado de uma empresa francesa, em Bissau e depois Bolama (1946-1951)



(...) Em 1946, aos 17 anos (nasceu portanto em 1929), o autor era “paquete de escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel”. Ganhava 120 escudos de salário mensal. Essa família Barbosa incluía Antoninho Barbosa e César Barbosa, tios do Caló Capé.

Achando que não era lugar de (ou com) futuro, candidatou-se a (e ganhou) o lugar de auxiliar de escriturário numa firma francesa, SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano (proprietária do edifício onde está hoje a Pensão Berta), com várias lojas pela Guiné (Bissau, Bolama, Bissorã…). (...)


2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense nos anos 50

(...) Na pág. 5, Parte I, o autor refere o nome de diversas personalidades que, ainda antes da chegada de Amílcar Cabral, foram influentes na vida pública, social, cívica e cultural, da cidade de Bissau, devendo ser tidas em conta no estudo da génese do nacionalismo guineense... Entre esses nomes (vd. recorte acima, ponto 13), o autor cita os dos pais do nosso amigo Pepito, o Dr. Artur Augusto Silva [, 1912-1983, ] "advogado, defensor dos arguidos políticos", e a Dra. Clara Schwarz da Silva, "esposa do Dr. Artur Silva, mãe dos estudantes", professora do Liceu Honório Barreto, e hoje membro da nossa Tabanca Grande, com a notável idade de... 95 anos, feitos em Fevereiro passado! (...)

5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6828: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (3): Estabelecido por conta própria em 1955

(...) "17. Foi a fase em que surgiu Amílcar Cabral, [em 1952, o qual ] jogou um papel importante, inteligente, em que organizou a sociedade, fazendo serenar os ânimos [exaltados devidos às ] rivalidades, e levando os adeptos a uma camaradagem que se impunha, e a um convívio em paz. E unidos, no sentido de organizar o combate ao único inimigo da Pátria, o nefasto colonialismo. (...)"

8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6836: Memórias de Um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (4): Casado em 1956, vereador em 1957, em Bolama, regressa a Bissau em Novembro de 1960, como convicto nacionalista

(...) "1. Casei-me a 8 de Setembro de 1956, viajei para Dakar, a 12 de Setembro de 1956, de ambulância, de Lulula para Zinguinchor. Era condutor um amigo e colega de infância José Bapote, que ainda vive. De Zinguinchor segui para Dakar, onde passei um mês na companhia da esposa e do Djack, Jacinto Gomes, meu sobrinho que eduquei desde os dois anos e meio, após a morte da mãe.(...)

(**) Vd. postes de:

4 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5211: Efemérides (32): 1 de Novembro de 1965 – Relatório Oficial da Carnificina em Farim (António Paulo Bastos)

3 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5203: Efemérides (26): 1 de Novembro de 1965 - Carnificina em Farim (António Paulo Bastos)

(...) No passado dia 1 completaram-se 44 anos, sobre um ataque que me marcou profundamente. Tenho duas fotos de uma das sobreviventes e lembrei-me de enviar para serem publicadas no blogue.

Tudo aconteceu em Farim, resultante do rebentamento de um engenho explosivo, em pleno batuque na tabanca do Bairro da Morcunda.

Eram 21h30, quando um elemento da milícia lançou um fornilho (uma granada embebida em pregos, lâminas e bocados de ferros), para o meio do pessoal presente.

27 mortos e 70 feridos graves, uma deles era uma senhora que podem ver nas fotos e que, nessa altura, era ainda uma criança de 10 anos. Chama-se Cáti, mora actualmente em Farim e, em Março de 2008, fui encontrá-la numa festa na Missão Católica em homenagem a um grupo de turistas “tugas”, que por ali passaram 2 dias. (...)

18 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2060: Bibliografia de uma guerra (14) : o testemunho de Pedro Pinto Pereira. Memórias do Colonialismo e da Guerra (Dalila C. Mateus)/vb

Guiné 63/74 - P6842: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (10): Os meus fantasmas

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 9 de Agosto de 2010:

Caros camarigos editores
Num intervalo das minhas semi-férias, (sem net), envio mais um escrito.

O tempo passa sobre as coisas escritas e vai-me dando vontade de voltar a escrever sobre a Guiné.
E fico curioso a pensar o que serão as minhas memórias ainda, ou melhor, como verei agora à distância aquilo que vivi?

Boas férias, para quem as tem!

Um abraço forte e camarigo para todos do
Joaquim


DEPOIS DA GUINÉ, À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (10)

OS MEUS FANTASMAS

Tenho as noites povoadas
de estranhos fantasmas
que se arremetem contra mim
e não me deixam descansar.
Vêm de longe
estes fantasmas,
de longe no tempo,
e no espaço até,
vêm de África,
vêm de terras da Guiné.
Por vezes atormentam-me,
fazem-me sofrer,
fazem-me chorar.
Por outras vezes contudo,
fazem-me rir,
obrigam-me a viver,
povoam o meu sonhar.
Há noites em que acordo,
encharcado em suor,
ou serão lágrimas de dor,
que molham o meu travesseiro?
Mas outras noites há também,
em que adormeço pacifico,
como que envolvido na paz,
embalado no amor.
Durante o dia aquietam-se,
não saem a terreiro,
passeiam-se comigo,
é certo,
mas não se fazem notados,
nem pela forma,
nem pelo cheiro,
(não há nenhum que se afoite),
mantêm-se adormecidos,
como que a ganharem forças,
para me fazerem companhia…
à noite!
É o cheiro da terra quente,
o pôr-do-sol encarnado,
o macaréu apressado,
que abafa o grito da gente,
que se tinge de coragem
à falta de outro fado.
Trato-os por tu,
são meus,
embora eu muito suspeite,
que também atormentam outros,
ao longo de cada noite,
mal dormidas,
mal sonhadas,
misturadas de suores,
e de lágrimas choradas,
compondo um quadro pintado
das mais violentas cores,
um quadro longo, longo,
que nunca está acabado.
Deito-me com eles,
os meus fantasmas,
já fazem parte de mim,
do meu dormir,
do meu sonhar,
são como um despertador
que não me deixa dormir,
que me obrigam a lembrar,
o que foi o meu viver,
por terras dessa Guiné.
Dizem-me ao ouvido,
baixinho,
que não querem atormentar,
nem sequer o meu existir,
nem tão pouco o meu viver,
mas apenas querem gritar,
bem alto,
para que todos ouçam,
o que os outros que por aqui andam,
fazem questão de esquecer.

27.12.91
__________

Nota de CV:

Vd. postes da série de:

27 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6258: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (1): A viagem

7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6339: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (2): Vida

19 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6431: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (3): Sem título I

28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6486: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (4): Sem Caminho

10 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6572: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (5): Sem Título 2

18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6615: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (6): Sem Título 3

8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6697: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (7): Eu sei quem sou

15 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6742: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (8): Foi-se a Paz

28 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6799: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (9): Estar lá, estando cá

Guiné 63/74 - P6841: Parabéns a você (138): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63) e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Binta, 1973/74) (Editores)

1. Dia 10 de Agosto é data de aniversário dos nossos camaradas Alberto Nascimento e Tomás Carneiro*.

Alberto Nascimento esteve na Guiné entre 1961 e 1963, sendo portanto um dos camaradas que assistiu ao início (oficial) das hostilidades naquela ex-província ultramarina.

Como Soldado Condutor Auto, cumpriu a sua comissão de serviço integrado na CCAÇ 84 que esteve em Bambadinca.

Nos antípodas, temos o outro nosso aniversariante, Tomás Carneiro, que fechou as portas da guerra, pois cumpriu a sua comissão de serviço, como 1.º Cabo Condutor Auto, integrado na CCAÇ 4745/73 (Águias de Binta), entre 8 de Julho de 1973 e 9 de Setembro de 1974, por terras de Binta de não muito boa memória.

Vamos dar os parabéns aos nossos camaradas Alberto Nascimento e Tomás Carneiro, desejando-lhes o melhor da vida: saúde, amor e algum dinheiro para gastos.

Como o tempo passa depressa nas nossas idades, diz-se, não tarda estaremos aqui a renovar estes votos.

Um, neste caso, dois abraços da tertúlia para o Alberto e para o Tomás.

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4805: Parabéns a você (17): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6834: Parabéns a você (137): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Editores)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6840: (Ex)citações (90): O nível das modalidades desportivas amadoras de Bissau tinha baixo nível e recorria aos militares ali estacionados (Rogério Cardoso)

1. Mensagem de Rogério Cardoso* (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), com data de 8 de Agosto de 2010:

Amigo Carlos
Depois de ler o P6831**, lembro o pequeno período de outras actividades desportivas.

Assim, depois de ler com atenção o referido poste de Nelson Herbert-USA sobre o futebol na época de 50/60 na Guiné, fez-me lembrar os anos 64/65, mais propriamente os meses de Março a Junho, curto período em que o BART 645-ÁGUIAS NEGRAS, permaneceu em Bissau com o "estatuto" de intervenção ao norte.

Nesse pequeno período, os nossos militares eram assediados diariamente para fazerem parte de diversas modalidades desportivas, mais propriamente para o SPORTING CLUB DE BISSAU, SPORT BISSAU E BENFICA, UDIB, etc.

Para os que estiveram em Bissau nessa altura, recordam-se que o nível desportivo era muito baixo, mais precisamente nas modalidades chamadas pequenas, como andebol, basquetebol e hóquei em patins.

Como exemplo posso contar da minha participação no andebol sportinguista, não sendo eu um praticante de valor, assim como outros elementos da Cart 643, em que com alguma facilidade num jogo de carácter particular, claro pelo Sporting, vencemos o Benfica que tinha sido no ano transacto campeão da Província da Guiné.

Outra modalidade em que elementos dos Águias Negras participaram, foi a de hóquei em patins, não me lembro por qual dos clubes.

Claro que os clubes "viviam" à custa dos militares estacionados em Bissau, hoje eram boas equipas ganhadoras, amanhã eram vencidas com facilidade.

Houve momentos em que os jogadores convocados, eram à ultima da hora substituídos, quando haviam, por terem sido chamados para uma eventual saída, claro que o desequilíbrio provinha desse facto.

E para finalizar, lembrei-me agora de um jogador de basquete, que salvo erro jogava na UDIB, de nome Canhão, era um excelente jogador e marcador, tinha sido no ano anterior o melhor marcador do campeonato, em que era o de menor altura, talvez 1,65m.

Um grande abraço a todos os camaradas da Guiné.
Rogério Cardoso
ex-Fur Mil
Cart 643-Águias Negras

Guiné-Bissau > Bissau > s/d (pós-independência > Campo de jogos de Bissau (antigo estádio Sarmento Rodrigues) > Um jogo de futebol, sob a bandeira da nova República, duas equipas locais, com equipamentos de clubes portugueses (Benfica e Sporting). Foto de autor desconhecimento.
Imagem: Gentilmente cedida por Nelson Herbert / Maria da Conceição Silva Évora
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6830: Em busca de... (138): Procuro o ex-Fur Mil Carvalho ferido numa emboscada, em meados de 1965 no Gabú (Rogério Cardoso)

(**) Vd. poste de 6 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6831: (Ex)citações (71): Futebol e nacionalismo nos anos 50/60 (Nelson Herbert)

Guiné 63/74 - P6839: A galeria dos meus heróis (7): Furriel Carvalho, ou melhor, Car...rasco, o homem do 'tiro de misericórdia' (Luís Graça)

Mais uma história da série A galeria dos meus heróis, onde qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência... 

Foto do autor, à esquerda, em Contuboel, Junho de 1969 (LG).

Foto (e texto): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados


1. Chez Toi


Conheci-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheci-o, de Tavira, do CISMI. Pertenceremos, ambos, à Companhia de Instrução,  comandada por essa figura impagável que era o tenente Esteves (**).

Em Bissau, eu estava hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. Tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi… Para mais em francês, comme il faut… Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa…

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de carne de fêmea, branca, o Chez Toi devia ter um especial encanto que eu nunca consegui descortinar… Devia trazer-lhes algumas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa, Porto e Coimbra, que o resto era paisagem no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato…

Não sei como lá fui parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Mas para o caso não interessa. Andava desenfiado em Bissau, antecipando o gozo do início das férias na Metrópole. Aguardava o avião da TAP para Lisboa. Eram as primeiras férias pagas da minha vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Devo dizer que não tive problemas de consciência nem devolvi, à Pátria, o dinheiro, sujo, de mercenário, saudação a que tive direito à chegada, num dos primeiros grafitos que me lembro de ver, naquela época,  num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa…).

Estávamos em plena época das chuvas, em Junho ou Julho de 1970, já não me recordo bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E eu deixava para trás um ano de intensa actividade operacional. Nessa noite fui dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, falava francês, ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris). Mas o bas fond em Bissau era, para a malta da tropa o Pilão.

Por azar, logo na primeira noite, alguém arrombou a porta do meu quarto, forçou o cadeado da mala de cartão e fanou-me uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, era toda a riqueza que eu levaria a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionava comprar no Taufik Saad.

Nessa mesma noite,  tive uma conversa (desagradável) com o gordo do gerente do Chez Toi, sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa.

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, papel do Biombo, se não me engano, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a nós, a mim e mais o meu parceiro do Pilão. E aí, às tantas, o clima começou a ficar propício à pancadaria e ao linchamento. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.

Eu e o sabujo do gerente já tínhamos chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum buraco no chão para se enfiar. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de asneiras:
- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar,  trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que eu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado, out of control.

Tive então a infeliz ideia de responder à sua provocação:
- O camarada vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com…

O tipo não me deixou sequer completar a frase, saltou como um leopardo  de garras afiadas, direitinhas à minha carótide… Foi a primeira (e única) cena de porrada em que eu me vi envolvido no teatro de operações da Guiné, com luta corpo a corpo… De facto, nunca tinha sentido o inimigo tão perto, olhos nos olhos…

Providencialmente foi nessa altura que ele apareceu, fardado... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-me daquela situação de embaraço e apuro.

Escusado será dizer que o meu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião,  que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar até ao Geba apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando me dei conta eram três da madrugada…

Ele, o meu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que o meu conhecido de Tavira, com quem de resto eu ainda tinha umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a minha versão dessa história que me estava atravessada e que remontava a 1968, em Tavira:

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da nossa instrução, levei dele uns socos valentes nos queixos. Eu tinha adoptado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperava que o meu parceiro, com mais cabedal do que eu, 12 cm mais alto do que eu, entrasse no jogo do faz de conta… Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar…

Devo confessar que fiquei-lhe com um pó dos diabos!... Não tinha grandes razões para me lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabei por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as nossas duas companhias para a Guiné (ou ele ia em rendição individual, já não me recordo).

2. (In)confidências

Voltei a reencontrá-lo quarenta anos depois, num encontro fortuito de antigos combatentes… Fui eu que o reconheci, mas ele já sabia da minha existência, por portas e travessas. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado:

Não acreditas, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné.  Lá,  e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não consegui, não consigo…

Sem surpresa, vejo agora que afinal toda a malta tinha o seu… diário secreto. Do cabo ao alferes, um tipo com o qual, de resto, nunca fui à bola… Porquê ? Ia-me matando com uma granada de dilagrama… Talvez um dia te conte essa história triste, miserável, que acabou com mortos e feridos graves, mas que foi branqueada pelo capitão no relatório da operação e na história da unidade…

Mas,  voltando aos diários secretos, soube da sua existência o ano passado, por ocasião do almoço anual da malta. Achei piada, havia vários camaradas que trouxeram os seus, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… E ainda diziam (dizem!) que éramos uma geração de iletrados.

No meu caso, são simples notas, apontamentos, esboços, rabiscos, até recortes e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida das tabancas por onde andei… Uma forma de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo.

Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las ? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...

Retomar a escrita é qualquer coisa de desafiante, sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa)…Mas também é muito penoso.

Tento voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Faço até gala nisso. Nunca poderia fazer parte do teu blogue, sobre o qual, de resto,  já ouvi críticas (algumas) e elogios (muitos). Não acreditas, mas não tenho email. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros…

Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no front office. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…

É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Pública Camarária. Vivo numa cidadezinha idiota do meu distrito natal, Bragança. Bom filho à casa torna. A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade. Lisboa, por exemplo,  deprime-me.

Pois é, voltei à folha de papel A4, ao caderno de linhas, como na 4ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de basquete, tal como um não menos candidato frustrado a Polícia Militar.  Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.

Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei com um conhecido advogado de província, um sacana que depois haveria de chegar a deputado por um dos partidos do poder. Eu fazia a biscatagem de solicitador. Bati centenas e centenas de requerimentos em papel selado…

Ainda te lembras do papel selado ?!... Quando o Chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um “Vou-te embrulhar em papel selado!”…

Pois eu, como ajudante de solicitador, recebia um santo antoninho, vinte paus, por cada requerimento batido à máquina… Ainda te lembras da notinha, esverdeada ?!

Mas agora acabou. A minha velha máquina de dactilografia está arrumada a um canto. Como eu. Foi das primeiras máquinas, portuguesas, a aparecer no mercado. Não me perguntes a marca. De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro sobre a Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.

Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não  é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invectiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

Nasci em 1947 - como tu, suponho, somos da mesma colheita – num país à beira mar plantado, mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa ? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher do régulo,  que tinha muitas)… Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais. Tive uma educação cristã, como tu, como toda a gente. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí).

Matei, não matei ?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, mas apenas por razões humanitárias....Matei para abreviar o sofrimento de um homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

Medo ?, perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, muitas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Como sabes, fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo à Foz do Corubal… Ainda era periquito e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanhas da companhia, meias- lecas, como o valentaço do meu alferes.

Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lado de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta, da minha estatura, estava por um fio… Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava visivelmente nervoso e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o turra ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu.

Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão olhava, constrangida,  ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. Ainda periquitos,  com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe  o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.

Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos abutres e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV  (era assim que se dizia ? ) nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar de sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...

Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica:
- Depressa, tuga... E que o teu deus te pague!

Fui tocado por aquele olhar de humanidade. Não, não era um animal ferido  que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda há dois meses atrás, numa caçada nocturna. Era um homem que estava a morrer, igual a mim, excepto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, gemendo, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão... E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu...

Seguimos a corta-mato, o Destacamento A,  a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente,  regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não se saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica e injusta, de Furriel Car...rasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. C'était une guerre pas comme les autres. Só vias a cara dos prisioneiros ou dos guerrilheiros abatidos junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate, arredondando sempre para cima.

Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma outra vezes. Mas nessa ocasião,  recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro, beafada, do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da politica do Spínola. E isso dei-me uma algum consolo.

Não, eu nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Preferi o tiro na nuca. Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero  um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo uppercut  que te ia pondo KO... (Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos  que tiveste de desenvolver para te saberes defenderes...). Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti.

Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos. Um deles até é magistrado, ainda pior.  Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de os perder... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Hoje tratam-me pelo meu apelido (Carvalho, sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o Furriel Car...rasco. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.

Deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, meu conterrâneo, O Alma Grande, da colectânea Novos Contos da Montanha, se não me engano... De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do abafador, a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos... E em que só se chamava o médico... para passar o atestado de óbito!

Despedimo-nos com um Alfa Bravo apertado... E eu, confesso, fiquei por um por de horas com um nó na garganta, não menos apertado...

Luís Graça

_______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes da série:

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4849: A galeria dos meus heróis (6): O Renoir de Montemuro, nascido no ano zero da idade atómica (Luís Graça)

(...) Tinha nascido no ano zero. 1945. Lembro-me de teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI (Lembras-te, em 1966 ?!... Ainda pensámos em dar o salto até Paris, éramos vagamente existencialistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmarte, enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!... Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta a financiar o nosso inconsistente projecto de aventura). (...)

Tinha nascido no ano zero. 1945. Lembro-me de teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI (Lembras-te, em 1966 ?!... Ainda pensámos em dar o salto até Paris, éramos vagamente existencialistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmarte, enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!... Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta a financiar o nosso inconsistente projecto de aventura).

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)


(...) 'Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo!'' terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante, de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca (…)

1 de Agosto de 2006  > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané

(...) Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias (...).

12 Janeiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá

(...) Como um cão apanhado na rede – repetia eu, nessa manhã de 2 de Junho de 1969, no fundo da LDG Bombarda, entre fardos de colchões de espuma, cunhetes de munições, Unimogs novinhos em folha e velhas malas de viagem atadas com cordões, enquanto os fuzileiros, hercúleos, heróicos, em tronco nu, de garrafa de cerveja na mão, assustavam bichos e homens com tiros de morteirete próximo da temível Ponta Varela, exorcizando os diabos negros que infestavam o tarrafe e os cerrados palmeirais que circundavam as margens do Geba, ao mesmo tempo que um solitário T-6, protector como um anjo da guarda, sobrevoava a foz do Corubal, ronceiro, sob um céu de chumbo (ou de bronze incandescente ?), em círculos concêntricos como o voo do sinistro jagudi - que fareja a morte, dizem os guinéus, a quilómetros de distância -, acabando por alijar a sua carga mortífera lá para longe, talvez a norte, em Madina/Belel, talvez a sul, no Fiofioli – após a nossa chegada a bom porto (...).

 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

(...) Aguerra.

Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)
 
(...) - E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…

- Mas, ó Campanhã, era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes Pimentel, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

- E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhei eu, tentando sem jeito deitar água na fervura.

- E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o Campanhã.

- Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa! - opinou o Pimentel.

- Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão! – vocês até eram uns fidalgos: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, brancas ou verdianas de vez em quando, em Bissau; vinham de férias, na TAP, à Metrópole (...).


(**) Vd. comentário de L.G. ao poste de 30 de Maio de 2010  > Guiné 63/74 - P6496: Controvérsias (79): Os nossos instrutores militares não tinham experiência de contra-guerrilha (Manuel Joaquim)

 (...) De quem me lembro, [em Tavira,] foi do Tenente Esteves, que era o comandante da minha companhia (estava a tirar a especialidade de Armas Pesadas de Infantaria), e do parvo de um alferes miliciano, lateiro, que nos dava instrução, no campo da feira (adorava, o sádico, pôr-nos a rebolar em cima da bosta de boi, enquanto ele passava o tempo a "namorar" à janela, uma das meninas ou coironas lá da terra....). Era algarvio, com sotaque, nunca pusera os pés em África... Deve ter apodrecido nos CISMI...

O que é que eu aprendi com um homem, boçal, como este, que me tenha sido útil na Guiné ? Nada...

Do Esteves recordo-me apenas a sua lengalenga patrioteira e já gasta, lembrando-nos, a propósito e a despropósito, que "nós éramos a fina flor da nação"... Nós: emendávamos, entre dentes: "a fina flor do entulho"...

E, claro, não posso esquecer o inefável comandante do CISMI que me proibiu, a mim e mais um camarada, a inauguração de um exposição documental sobre a II Guerra Mundial (que estamos a organizar, na caserna, e estava praticamente pronta...) com o argumento, mesquinho, safado, de que "para guerras já bastava a nossa"...

Mário Pinto e Manuel Joaquim, ora aqui está um tema, divertidíssimo, para a gente filosofar até aos 100 anos...

Admito que houve gente expcionalmente bem preparada para fazer a guerra... Não foi o meu caso. (...)

Guiné 63/74 - P6838: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (14): Buba, Operação Larga Passada

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2010:

Camarada e Amigo Carlos Vinhal,
Saudações guinéuas “corpi di bó jámetum.”

Da História da Unidade CCaç 2381 “Os Maiorais,” relativamente aquando colocada em Buba, Região de Quinara, e onde constam os factos mais importantes das actividades e ocorrências, no período que mediou de 04/Janeiro/69 a 01/Maio/69. A partir desta data fora fraccionada em três Destacamentos, em que o Comando da Companhia + 02 GRCOMB deslocaram-se para Empada, permanecendo 01 GRCOMB, Destacamento “Alfa,” que dirigiu-se para Mampatá e 01 GRCOMB, Destacamento “Bravo,” continuando em Buba e ficando adido à CCaç 2382 até à missão desta no local.

Conforme digitalização extraída de parte da História da Unidade, embora de pouca qualidade foi a possível, podendo estas páginas serem trabalhadas pelo co-editor a fim de ser possível a leitura.

Conjugando o tempo antes mencionado com outro seguido e findo em 03 de Dezembro/69, nesta data deu-se o regresso definitivo dos 02 GRCOMB a Empada e reunindo-se a Companhia pela primeira vez desde que fora para o Sul da Guiné.

Clicar nas imagens para as ampliar

Posteriormente o Destacamento “Alfa” voltara a Buba e agrupando-se ao Destacamento “Bravo.” Conquanto do período de 01 de Junho/69 a 03 de Dezembro/69, não consta relatório das actividades destes 02 GRCOMB e provavelmente devido a estarem a dar apoio a outras Unidades Militares, onde esses registos contam como somente fazendo parte destas.

Com cordiais cumprimentos “mantenhas,
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec. Auto Rodas
CCaç 2381 “Os Maiorais de Empada”
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6655: Convívios (173): 10 de Junho de 2010 (Arménio Estorninho)

Vd. último poste da série de 5 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6538: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (13): Três acontecimentos com impacto na Guiné - Março/Abril de 1970

domingo, 8 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6837: Blogpoesia (79): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (6) (Manuel Maia)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), com data de  6 de Agosto de 2010:

Caro Carlos,
Com um abraço amigo, envio mais umas oito sextilhas que reflectem o meu estado de espírito depois de um sonho bom.
Se entenderes por bem, edita na segunda-feira ou até domingo (sei que estás a juntar o dinheiro das horas extras deste trabalho (onde ganhas que te fartas...) para comprares um avião que nos leve a todos de volta à Guiné.
Em duas viagens, iremos todos.
Manuel Maia


QUISERA EU... (6)

Um dia, tive um sonho emocionante,
cerrando breve os olhos, curto instante,
qual flash fotográfico a reter...
Vi silos, vi tractores, placas solares,
artesianos furos, luz nos lares,
e muitas outras coisas a saber...


Vi pratos, vi talheres, toalhas, pão,
panelas cozinhando num fogão,
vi camas, vi colchões, casas de banho...
Vi redes, aparelhos, anzóis, corda,
vi barcos com motores fora de borda,
vi peixe já na fase do amanho...

Vi arcas frigoríficas, conserva,
vi peixe ser guardado p`ra reserva,
vi caça, dìgual modo ser tratada...
Vi hortas tão bonitas de viçosas,
vi gentes radiantes e formosas,
vi fácies de alegria bem estampada...

Vi feiras, armazéns, lojas do povo,
de artigos recheadas, como um ovo,
vi gentes a comprar e a vender...
Vi roupas e calçado em profusão,
nos corpos e nos pés do nosso irmão,
Guinéu, já tão cansado de sofrer...

Vi risos de criança rumo à escola,
os livros e a bola na sacola,
às costas pela alça pendurada...
Cantina para todos é paragem,
crescidos e também a miudagem,
que ali faz refeição equilibrada...

Vi gente trabalhando em suas terras,
liberta dos terrores, medos das guerras,
na usina ensaiando ocupação...
Vi braços já treinados em mesteres,
ignotos para homens e mulheres,
até servirem como ganha pão...

Vi olhos curiosos, perscrutantes,
de saber ansiosos, indagantes,
à cata do que é novo, que absorvem...
Vi gente mãos vazias, resignada,
com pressa de ver dias de abalada
no seu livro da vida, caos, desordem...

Quem espera desespera, diz ditado,
e o tempo dessa espera está esgotado,
sei bem, na afirmação nada é já novo...
Insensatez, supera o razoável,
estupidez opera o impensável,
nas lutas p`lo poder, quem perde é o povo...
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6819: Blogpoesia (78): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (5) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6836: Memórias de Um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (4): Casado em 1956, vereador em 1957, em Bolama, regressa a Bissau em Novembro de 1960, como convicto nacionalista


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que me chegou às mãos, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

II Parte > Excertos (pp. 1-5)

"1. Casei-me a 8 de Setembro de 1956, viajei para Dakar, a 12 de Setembro de 1956, de ambulância, de Lulula para Zinguinchor. Era condutor um amigo e colega de infância José Bapote, que ainda vive. 

De Zinguinchor segui para Dakar, onde passei um mês na companhia da esposa e do Djack, Jacinto Gomes, meu sobrinho que eduquei desde os dois anos e meio, após a morte da mãe.

"2. A primeira reunião que decidiu a fundação do PAIGC, realizou-se na Rua Severino Gomes de Pina, a 19 de Setembro de 1956, com as presenças de Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Inácio Júlio Semedo e Elisée Turpin.

“O documento elaborado é de oito artigos. O Art 3º diz que o Partido trabalha no sentido de unir todos os africanos, de todas as etnias e de todas as camadas sociais. Consta da primeira edição do Jornal Nô Pintcha, artigo esse que mandei publicar. Citei o artigo mencionado para esclarecer que tinha ligações com o PAIGC, quando Luís Cabral tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a independência.

“Esta declaração provocou o interesse do Dr. Vasco Cabral, que não me largou até o fornecer e ao camarada Nino Vieira. Refiro-me ao texto completo que me foi fornecido após o meu regresso de Dakar em 1956.

"3. Após o meu casamento, em 1957 fui eleito vereador da Câmara Municipal de Bolama, palco dos meus primeiros confrontos com o poder colonial, que marcaram bem a minha vida de luta e experiência.

“Foi onde comecei a interessar-me pela interpretação da leis, por que a luta era árdua, de confrontos de interesse do município e dos colonialistas. Era secretário Abeilard Vieira, presidente Camilo Monte Negro (administrador), Olívio Pinto Pereira, funcionário administrativo, testemunho válido das lutas travadas que as actas assinalam.

"4. Não completei o mandato, porque começou a repressão colonial, após a fundação do PAIGC a 19/9/1956 e os acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no Cais do Pinjiguiti. Tive que viajar para Portugal em Junho de 1960, porque corria enorme risco de ser preso. As actividades atrás citadas – visitas de excursões de rapazes de Bissau a Bolama – geraram uma situação que abalou totalmente a confiança que levou os Portugueses a convidar-me para a Câmara Municipal de Bolama como vereador.

"5. Regressei de férias em Novembro de 1960, directamente para me instalar em Bissau, dadas as notícias que recebia das prisões e mortes de presos em Tite.

“Depois de me instalar em Bissau, transferi os stocks de Bolama para Bissau, a seguir às operações de Fulacunda, Junqueira, cessando a minha actividade em Bolama e zonas de Tite, porque eram perigosas.

"6. Antes de partir de férias, os meus contactos eram muito notórios. Aos fins de tarde, reuníamo-nos habitualmente na marginal, mesmo em frente aos Armazéns da Alfândega e o chamado Porto das Canoas, eu, Carlos Domigos Gomes, com os amigos Aristides Pereira, Alcebias Tolentino, Adelino Gomes, Barcelos de Lima e Alfredo Fortes, nomes já mencionados na primeira parte deste trabalho.

Aristides Pereira deixou Bolama, a pretexto de concorrer a um concurso nos Estados Unidos, afinal [seguiu] para as fileiras do PAIGC. (…).


Estas ligações eram tidas como suspeitas. No livro do Aristides Pereira, Guiné-Bissau e Cabo Verde,uma luta, um partido, dois países, na página nº 79, ele refere a nossa amizade e faz uma observação em relação à minha pessoa como nacionalista convicto, já na altura, no decurso dos nossos contactos.

“Voltei a encontrar o camarada Aristides Pereira em Madina do Boé. Foi na altura do 1º Aniversário da nossa Independência Nacional. Conduzi uma delegação de Bissau até Gabú. Era comandante da zona o sr. Honório Chantre que nos recebeu à chegada a Gabú. Após se inteirar da nossa intenção de irmos assistir às comemorações do 1º Aniversário da nossa Independência, mandou-nos procurar alojamento e aguardar a resposta à comunicação que ia mandar para a base.

“No dia seguinte, logo pela manhã, mandou-me chamar a mima e aos companheiros a fim de dar a resposta prometida. Da autorização recebida, só eu podia entrar para a base, escolhendo uma pessoa para me acompanhar. A delegação era composta por 14 nacionais e um português, de nome António Augusto Esteves, ex-comerciante bem conhecido, já falecido, radicado há dezenas de anos na Guiné-Bissau. Posso testemunhar a sua dedicação, bem coberta a causa da Independência (como o testemunham os bens implantados).

Foi ele então a pessoa escolhida para me acompanhar. Foi deslocado um helicóptero da base de Madina Boé a Gabu para nos transportar. A minha escolha causou mal estar na caravana que teve de regressar a Bissau.

A chegada à base que acolheu a manifestação, fomos recebidos pelo então Comissário do Comércio, o camarada Armando Ramos, que a seguir às manifestações, recebeu ordens para nos conduzir a uma sessão especial, onde encontrámos, reunido, todo o elenco dirigente do Partido, entre eles com a toda a surpresa o camarada Aristides Pereira que me acolheu de braços abertos, com uma abertura desconhecida no seu semblante, sempre fechado. Disparou-me a seguinte pergunta:
- E as nossas conversas em Bolama ?

Respondi comovido, só descobri os fundamentos dos nossos encontros após a sua partida dita para os Estados Unidos.

Fecho solenemente este episódio com uma declaração: nunca mais esqueci o abraço deste encontro, para testemunhar que os efeitos de Aristides Pereira, em prol dos trabalhos de mobilização, merecem muito mais do que o silêncio do seu n ome que nos tem chegado. Aproveito esta oportunidade para agradecer a menção do meu nome no seu livro atrás citado.

[ Revisão / fixação de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

(Continua)

________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

30 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6807: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (1): Encarregado de uma empresa francesa, em Bissau e depois Bolama (1946-1951)

2 de Agosto de 2010 > 
Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense nos anos 50


5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6828: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (3): Estabelecido por conta própria em 1955

Guiné 63/74 - P6835: (Ex)citações (89): As elites e a formação dos movimentos nacionalistas (António Rosinha)



Angola > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, furriel miliciano, aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X... Depois de ter o CSM, em Nova Lisboa, foi chamado de novo às fileiras do exército, para combater os "terroristas" da UPA no norte de Angola...  Repare-se no tipo de armamento das NT: pistola-metralhadora FBP, para os graduados; espingarda Mauser, para as praças...Farda: caqui amarelo... Capacete de aço...

Foto: Foto: © António Rosinha (2006). Direitos reservados


1. Comentário de António Rosinha, com data de 2 do corrente,o Poste P6815

Como habitualmente, quando lemos as poucas coisas que escrevem os participantes da formação dos movimentos nacionalistas nas várias ex-colónias, aparecem sempre em número reduzido.

Refiro-me ao que seria o PAIGC, FRELIMO e MPLA, ou seja, aqueles movimentos com gente mais preparada.

Se na Guiné haveria pouca gente mais preparada, mas creio que todos os guineenses e lusodescendentes (mestiços) tinham ideias nacionalistas, no caso de Angola eram muitos e em grandes cidades.

Com muitos fiz o curso de sargentos milicianos (CSM) em Nova Lisboa. E o primeiro classificado do meu pelotão, luandense, gente boa, com ideias iguais às dos outros, já foi vítima das catanas da UPA.

Quando fui reconvocado como furriel para combater "os terroristas", fomos contar quantos éramos e faltava esse jovem, Patricio de seu nome.

Eu fiz esta guerra, julgando que lutava do lado certo,  pensando que era o mal menor para toda a gente, principalmente para esses angolanos mais preparados.

Exatamente, porque estive sempre acompanhado, por um grande número desses angolanos... e caboverdeanos. Eles viam aquela guerra duma maneira mais abrangente que nós,  tugas. Eles tinham mais consciência, apesar de jovens, o que representavam internacionalmente as riquezas africanas, "que o Salazar queria esconder".

Alguns desses nacionalistas não quiseram tomar parte nas guerras que se seguiram nas ex-colónias e vieram para Portugal e Brasil.

Dizia mais tarde um desss nacionalistas revoltado: «Agora alguns ficaram com uma ferida na Tchetchénia».

Esse nacionalista era Raul Indipo,  do Duo Ouro Negro.

Antº Rosinha (*)

_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 6 de Agosto de 2010  > Guiné 63/74 - P6831: (Ex)citações (71): Futebol e nacionalismo nos anos 50/60 (Nelson Herbert)

Guiné 63/74 - P6834: Parabéns a você (137): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Editores)

1. No dia 8 de Agosto de 1950, nasceu Henrique Martins de Castro que em Dezembro de 1971,  aos 21 anos, partiu para a Guiné onde se manteve até Março de 1974.

O nosso camarada que foi Condutor Auto na CART 3521 e que se apresentou na nossa Tabanca em Junho de 2008, comemora hoje o seu 60.º aniversário que lhe dá direito a entrar no requintado grupo dos SEXAS.

Bem-vindo companheiro, junta-te a nós nesta luta diária a caminho do degrau acima, os SEPTA, onde, para além do respeito, somamos a experiência de vida adquirida, os filhos já com algum cabelo branco e os netos maiores do que nós. Nessa altura já ninguém se vai acreditar que fomos novos como os demais, mas aí ficam as fotos para o comprovar.

A ti camarada e amigo, queremos deixar-te os nossos melhores votos de que tenhas, já que é domingo, toda a família junto de ti, assim como aqueles amigos que mais consideras.

São também nossos votos para ti, uma longa vida, plena de saúde e alegria, testemunhado por aqueles que mais amas e te amam.

Por perto terás este numeroso grupo de camaradas e amigos da tertúlia, atentos à tua felicidade.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6823: Parabéns a você (136): Coronel Reformado Rui Alexandrino Ferreira (Editores / Miguel Pessoa)