terça-feira, 16 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6000: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (1): Por onde andaram e com quem estiveram?

Os Marados de Gadamael
e os dias da
Batalha de Guidaje

Parte I


Daniel de Matos*

Unir as Pontas da Memória


(À laia de introdução)

É estranho e deveras angustiante participarmos em cerimónias fúnebres de camaradas que morreram ao nosso lado, coladinhos ao nosso corpo, no mesmo buraco, mas há… 36 anos e meio! Ainda por cima quando além de camaradas de armas eram já amigos do peito e quando, devido a circunstâncias que demoram a explicar, tivemos de os enterrar algures no mato, sem a convicção absoluta de que os depositávamos nas suas últimas moradas, tendo todas as incertezas do Mundo quanto ao destino que poderiam levar os respectivos corpos.

O regresso e a devolução às respectivas famílias dos corpos do furriel Machado, do primeiro-cabo Telo e do soldado Geraldes, as honrarias militares a que tiveram direito junto ao “Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar”, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém/Lisboa, e as homenagens que lhes foram rendidas nos funerais efectuados nas respectivas terras natais, – em Valpaços, no Paul do Mar/Madeira e no Vimioso – vieram reactivar memórias que repousavam no arquivo dos tempos idos. Já antes, durante a bem organizada campanha para a exumação e trasladação de alguns dos outros corpos sepultados em Guidaje, e quando os três pára-quedistas da CPP 121 regressaram a Portugal e às suas famílias, algo voltou a agitar as nossas consciências e nos fez recuar no tempo e no espaço. É que, vistas desta maneira, afinal as coisas não decorreram assim há tanto tempo, foram ontem, estão mesmo a acontecer, agora.

Existem múltiplos relatos dos acontecimentos de Maio de 1973 em Guidaje – livros, depoimentos diversos, testemunhos, documentos na internet, – e, no entanto, que eu conheça, em lado nenhum figuram referências à CCaç 3518. Excepto… nas campas! E isso tem conduzido muita gente a perguntar por que raio estaria nesses dias tanto pessoal de Os Marados de Gadamael em… Guidaje? O que fazia, como foi lá parar? Quem foram Os Marados e, se o nome próprio refere outro local, o que os levou a Guidaje numa altura tão crítica como a que por lá se viveu durante esse mês?

Eu próprio, em conversa (por e-mail) com um grande e velho amigo, – o coronel A. Marques Lopes, agora na reserva, – ao informá-lo que tinha estado em Guidaje e fora “utente” do infausto abrigo de que muitos hoje falam, mas de que (felizmente para os próprios) poucos lhe conheceram os horrores, recebi dele a seguinte resposta: “o coronel Ayala Botto, que foi adjunto do Spínola, e foi com ele a Guidaje em 1973, põe em dúvida que a tua companhia estivesse em Guidaje na altura do cerco. Diz mais coisas. Ou escreve para o Blogue!!! A. Marques Lopes” (o blogue a que se refere é o conhecidíssimo, e de grande mérito, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que contém uma quantidade apreciável de textos, fotografias e testemunhos, muitos dos quais de relevância e interesse históricos).

A verdade é que estão inventariadas em inúmeros textos as unidades que participaram na batalha de Guidaje, sendo omissas referências à nossa companhia. Bem, mas se para alguns é duvidosa e difícil de explicar a presença d’Os Marados de Gadamael tão em cima da fronteira norte com o Senegal, pior se tornará se tentarem explicar como raio é que no cemitério improvisado de Guidaje ficaram enterrados três dos mortos que ali sofremos!...

O reavivar do assunto, devido ao processo de trasladação das ossadas em 2009, e esperando que este hiato de tempo tenha esfriado a sensibilidade dos familiares para que hoje em dia já se possam confrontar melhor com a realidade dos acontecimentos – que, confirmou-se durante as recentes exéquias, até então desconheciam, – leva-me a redigir estas linhas que serão um misto das memórias desse tempo, – sempre falíveis graças à “PDI” (toda a gente de geração mais avançada sabe o que isso é). Mas por recear as traições dessa mesma memória, houve que ligar algumas pontas, que a misturar com o resultado a consultas diversas e com o cruzamento de informações que por aí circulam, disponíveis na comunicação social, em livros e na web.

Porém, que fique claro que esta nem é a História d’Os Marados, longe disso, muito menos a dos acontecimentos de Guidaje, embora espere que possa contribuir com alguns dados para historiadores que saibam da poda e queiram um dia pegar neste assunto. Não sendo um especialista, certamente serei perdoado por eventuais imprecisões (espero que não as tenha em demasia). Do mesmo modo, este texto não advém de um diário (que nunca escrevi), não visa enaltecer nem as nossas aventuras nem as desventuras, muito menos acicatar a rivalidade imbecil entre unidades daqui e dacolá. Até porque, – valha-nos isso! – integrámos uma companhia do exército (“tropa macaca”), que tal como todas as outras (de todas as armas) foi composta por gente normalíssima, sem a mania das grandezas, mas com a sorte de não contar no seu seio com gabarolices de heróis de pacotilha nem com falsos protagonistas, em resumo, uma companhia sem “rambos” nem “schwarzeneegers” obtusos.

Com estas linhas pretendo, tão-só, escrevinhar alguns apontamentos que, na minha óptica, respondam às dúvidas que muitos camaradas colocam amiúde sobre o que realmente se passou em Maio de 1973 naquela região e, já agora, explicar como apareceram Os Marados de Gadamael nesta crise…

Provavelmente não acrescentarei nada de novo ao que já é conhecido. Mas se este trabalho contribuir para que alguns ex-combatentes nele se revejam e dele se sirvam para contar aos netos o que nos custou aquilo tudo, terá valido a pena e dar-me-ei por satisfeito. Também nunca foi meu hábito escrever na primeira pessoa do singular. Só que, para se contar esta história, forçosamente tem de haver um narrador. Por isso, aqui vai…


Por onde andaram e com quem estiveram Os Marados?

“Os Marados de Gadamael” foi a divisa – não muito abonatória, é certo, – escolhida para e pelo pessoal da Companhia de Caçadores Independente nº 3518, formada no Funchal (no Batalhão Independente de Infantaria nº 19/BII 19) durante o segundo semestre de 1971 (formalmente, a 15 de Novembro, “destinada a combater no Ultramar nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei º 49107, de 7 de Julho de 1969”).

Como companhia “madeirense” (de onde são naturais os soldados atiradores e o capitão miliciano Manuel Nunes de Sousa, – que as praças especialistas e os graduados vieram do Continente), receberia o guião das mãos do presidente da Câmara Municipal de Santana, a 16 de Novembro de 1971.

Houve também entre os “Marados” dois açorianos e dois guineenses: o furriel miliciano Nuno Álvares Brasil Pessoa, – que faleceu depois do regresso à ilha natal de S. Jorge; vindo em rendição individual, em 27 de Julho de 1972, o soldado atirador António Henrique Paiva Valente, de Santa Maria, então como hoje, distinto locutor do Clube Asas do Atlântico, em Vila do Porto; o guineense, de ascendência cabo-verdiana, Florentino José Lopes de Almeida, (para os amigos, o Fontino), furriel miliciano de operações especiais; e ainda o soldado Malan Seidi, – veio transferido da CCaç 3.

Com destino à Guiné Portuguesa, a companhia embarcou na cidade do Funchal no dia 20 de Dezembro desse ano, às 3 da madrugada (!), tendo chegado a Bissau no dia 24 seguinte (embora já estivéssemos ao largo do rio Geba desde as 23 horas do dia 23, quem poderá esquecer-se de tão bela consoada?). No mesmo paquete, – o Angra do Heroísmo, – e com igual proveniência, viajaram a CCaç 3519 (que iria parar a Barro) e a CCaç 3520 (cujo destino foi Cacine), mais o BCaç 3872, que já embarcara em Lisboa e que viria a instalar-se em Galomaro. Pisámos terras da Guiné a partir das 15 horas.

Passámos o dia de Natal a desfazer malas e no dia 26 registou-se a cerimónia de boas-vindas, presidida pelo comandante-chefe, – General António de Spínola, figura grada entre os soldados, ou não fosse também ele um madeirense e, ainda por cima, um líder –perante quem desfilámos e que em seguida nos passou revista. A 22 de Janeiro de 1972 terminámos o IAO (Instrução e Aproveitamento Operacional) no CMI (Centro Militar de Instrução), situado no Cumeré. No dia seguinte, a bordo de uma LDG, às 19 horas, abalámos do porto de Bissau – ao lado do histórico cais de Pindjiguiti, – para Gadamael Porto.



Foto 6> Cumeré - 26 de Dezembro de 1971 > O General António de Spínola passando revista ao 2º pelotão da CCaç 3518, no Cumeré.

Após o transbordo em Cacine para uma LDM, (aí se despedindo dos camaradas da irmã gémea CCaç 3520 – “Estrelas do Sul”), e em duas levas de dois pelotões cada, a primeira alcançou o pequeno desembarcadouro de Gadamael, no rio Sapo (afluente do Cacine), pelas 15 horas do dia 24 de Janeiro, onde a companhia ficou uma temporada em sobreposição com a unidade que foi render (a CCaç 2796, que depois marcharia para Quinhamel), integrada no dispositivo de manobra do BCaç 2930, depois do BCaç 4510/72 e, depois ainda, do COP 5 (Guileje).



Foto 12 > O autor, junto às águas do Rio Sapo (afluente do Cacine, que banhava Gadamael Porto).

Juntamente com Os Marados, estiveram em Gadamael os homens do Pelotão de Reconhecimento Fox nº 2260,  “Unidos Venceremos” (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria Alexandre Costa Gomes e pelos furriéis milicianos Manuel Vitoriano, José Soares, Joaquim Manso, José António Barreiros e António Rio). A 28 de Abril de 1972, após cerimónia de despedida, presidida in loco pelo governador e comandante-chefe Spínola, o pelotão marcha para Bissau, a fim de aguardar aí transporte de regresso à metrópole.

O Pel Rec Fox 2260 foi substituído oito dias antes (21 de Abril) pelo Pelotão de Reconhecimento Fox 3115/Rec.8 (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria José Manuel da Costa Mouzinho e pelos furriéis Sérgio Luís Moinhos da Costa, Alfredo João Matias da Silva, José de Jesus Garcia e Fernando Manuel Ramos Custódio).

Também em Gadamael, estiveram adidos à companhia o 23º Pelotão de Artilharia, (comandado pelo alferes miliciano de artilharia José Augusto de Oliveira Trindade e pelos furriéis milicianos Armando Figueiredo Carvalheda, António Luís Lopes de Oliveira (este, logo substituído pelo furriel miliciano João Manuel Duarte Costa), e ainda os Pelotões de Milícias 235 e 236. O comandante de pelotão 235 era Mamadú Embaló e os comandantes de secção, Camisa Conté, Abdulai Baldé e Mamadú Biai; o comandante de pelotão 236 era Jam Samba Camará e os comandantes de secção, Satalá Colubali, Amadú Bari e Mussa Colubali. O Camisa Conté, – quanto a mim a mais bem preparada de todas as milícias, de grande inteligência, disponibilidade constante e invulgar simpatia, – morrerá na célebre “batalha” de Guileje, diz-se que num “acidente com arma de fogo”, (ouvimos em Bissau alguém contar que foi a tentar desmontar uma mina) a 12 de Maio de 1973. Por outro lado, o Jam Samba viria a morrer em combate, dias mais tarde, também em Guileje, a 18 de Maio de 1973.

Foto 9 > Dois dos melhores soldados milícias que nos acompanharam em Gadamael. O da direita, Camisa Conté, viria a falecer em 1973 quando das batralhas de Guileje e Gadamael.

Nas acções de guerrilha que em Maio e Junho de 1973 viriam a culminar no abandono de Guileje e na tentativa de cerco de Gadamael Porto, morreriam igualmente em combate os soldados milícias do pelotão 235, Corca Djaló, Abdulai Silá e Malan Sambú e, do pelotão 236, o Braima Cassamá. Enquanto estivemos no sul, todos eles acompanharam os pelotões da CCaç 3518 nas patrulhas e demais operações efectuadas. Desses, recordo com maior saudade o Braima Cassamá, que foi meu aluno nas aulas do Posto Escolar Militar nº 23 que funcionou em Gadamael. Eu e o soldado africano Ricardo Lima da Costa e, mais tarde, com os também monitores escolares, primeiro-cabo Manuel Nuno de Sousa e o soldado António Henrique Paiva Valente, fomos os professores diurnos de perto de quarenta crianças da população. À noite, nas noites em que não estávamos de prevenção ou naquelas em que não teríamos de sair para o mato na madrugada seguinte, demos aulas a uma dúzia de voluntários adultos, praticamente todos da milícia. E como era difícil explicar matérias a quem mal entendia o português! Isto, sem falar noutros assuntos que constavam no programa de ensino, – mas que obviamente não respeitávamos, como o fazer os africanos empinarem as linhas ferroviárias, (ninguém sabia sequer o que era um comboio), ou as cordilheiras da metrópole (aquelas crianças nem um monte viram ao longo das suas curtas vidas na Guiné)! Na prática, o que todos queriam era aprender a ler e escrever em português (alguns já o faziam em árabe, quanto mais não fosse para lerem a “Tábua de Moisés”). O Braima, excelente rapaz, era dos mais interessados e não me lembro que alguma vez tenha faltado a uma aula. Em separado, devido à compreensão da língua, dei aulas aos soldados. Tínhamos mais de trinta praças da companhia que não possuíam a 4ª classe quando foram incorporados, algumas eram mesmo analfabetas. No final da comissão quase todas fariam o exame e seriam aprovadas (já na escola primária de Bafatá), o que se revelou vital para os seus futuros (muitos soldados pretendiam emigrar para a Venezuela e África do Sul mal se vissem livres da tropa) ou, quanto mais não fosse, para poderem tirar a carta de condução.

Foto 8 > Imagem exterior do PEM (Posto Escolar Militar) n.º 23, Gadamael, que ficava ao lado da pista de aviação nova, junto à tabanca.






No Posto Escolar Militar nº 23 (PEM-23, Gadamael) frequentaram as aulas da instrução primária algumas dezenas de jovens alunos (também alguns adultos da população).Não era fácil dar aulas a muitos que não falavam português (nem em crioulo se exprimiam), mas registaram-se muitos casos de bom aproveitamento, concluindo a 4ª classe.

Enquanto em Gadamael, o território operacional e os locais de minagem, patrulhamento e montagem de emboscadas foram essencialmente os seguintes: antigas tabancas de Viana, Ganturé, Bendugo, Gadamael Fronteira, Missirá, Madina, Bricama Nova, Bricama Velha, Tambambofa, Jabicunda, Campreno Nalú, Campreno Beafada, Mejo, Tarcuré, Sangonhá, Caúr e Cacoca.

A zona fronteiriça com a Guiné-Conacry e a picada para Guileje (estrada que outrora ligava a Aldeia Formosa e ao Saltinho) foram os locais com mais frequente número de operações.

Todo o abastecimento por via terrestre às unidades e população instaladas em Guileje se efectuava, durante a estação seca, através de colunas efectuadas a partir de Gadamael Porto, sendo o nosso pessoal responsável não só pelas viaturas que transportavam para Guileje os géneros que os batelões descarregavam em Gadamael, mas também pela segurança de metade do percurso. Por diversas vezes, pelotões da companhia, o pelotão Fox e os pelotões da milícia passaram temporadas em reforço das unidades locais (como, por exemplo, da CCaç 3477, “Os Gringos de Guileje”, até Dezembro de 1972, e a CCav 8530, na parte final da nossa estada no sul).

Ao recordar aqui quem connosco palmilhou longas distâncias em patrulhamentos, montou emboscadas e alinhou em segurança a colunas no sul da “província ultramarina”, seria injusto não mencionar os guias (suponho que havia dois), mas muito especialmente o Queba Mané, expoente máximo em simpatia e disponibilidade fosse para o que fosse, e de grande resistência física, pois num africano os cabelos brancos denunciam muitas vezes a avançada idade e nunca dei por que se sentisse fatigado. Uma ou outra vez o capitão enviou-o sozinho ao outro lado da fronteira, com a missão de recolher informes sobre a presença, guarnição e movimentações IN. Contornava sem dificuldade as armadilhas que eu e o Ângelo Silva tínhamos sempre montadas no caminho (algumas dezenas em toda a zona operacional).

Outros homens importantes foram os caçadores nativos, à conta dos quais nos deliciámos inúmeras vezes com peças de caça, especialmente os bifes de gazela de tão boa memória. Um deles era o experiente nº 4/65, Aliú Jaló; o outro, Ussumane (Baldé?), que viria a distrair-se e a pisar uma mina antipessoal já perto do cruzamento de Ganturé (debaixo de um velho e já meio ressequido limoeiro bravo). Certa altura, ao cair da noite, ouvimos um rebentamento que logo identificámos como proveniente de um desses engenhos.

Aconteceu muitas vezes sentirmos rebentamentos originados pela passagem de animais (os de maior porte) que pisavam minas ou accionavam armadilhas e morriam. Por exemplo, uma hiena – em vão, ainda tentámos alimentar durante uns dias, com leite em pó, um dos filhotes que sobreviveu ao rebentamento; um leopardo, – infelizmente para o Lopes Silva, que bem tentou “baratinar” o Camisa Conté a retirar-lhe a pele para mandar curtir e enviar à namorada, mas já tinham passado três ou quatro dias quando lá fomos e naquele estado de decomposição o persuadido negou-se; houve pintadas (galinhas-do-mato) que arrastaram fios-de-tropeçar, e, num belo dia, ao fundo da pista velha, um lindíssimo e corpulento gorila sucumbiria aos ferimentos duma mina AUPS.

Na manhã seguinte, bem cedinho, a família de Ussumane (tinha várias mulheres) entrou pelo aquartelamento dentro a reclamar que o fôssemos buscar a Ganturé, pois de certeza teria sido ele, saído na caça, quem accionara a mina. Lá me levantei da cama, mobilizei uma secção do 2º pelotão e fui a esfregar os olhos picada adiante, com as mulheres a algaraviar atrás de nós (infrutíferas as tentativas para que se calassem ou nos ficassem a aguardar pelo caminho). No local não encontrei corpo algum, só um monte cintilante de formigas negras e luzidias. Depois de as vergastarmos com arbustos e ramos de árvore é que começou a aparecer o corpo do caçador. Tinha um pé amputado e devia ter perdido muito sangue durante a noite. Porém, a expressão com que se finou sugeria que a causa da morte devia ter sido a asfixia, devido aos milhões de formigas que se apoderaram do corpo ainda vivo mas imobilizado no chão, cobrindo-o literalmente.

Há muito esperados, chegaram em três lanchas os homens da rendição, era o dia 8 de Fevereiro do ano da graça de 1973! Os periquitos ficaram connosco durante um período de sobreposição. Assim, fomos rendidos no subsector de Gadamael pela CCaç 4743/72, de origem açoriana, comandada pelo capitão miliciano de infantaria, Manuel Bernardino Maia Rodrigues, Seguimos para Bissau no dia 4 de Março, a partir das 7 horas (a bordo de uma LDG), onde efectuámos também um período de sobreposição e rendemos a CCaç 3373. Os Marados de Gadamael passaram a efectuar a protecção e segurança das instalações e populações da área e a colaborar em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim. Uma dessas colunas, envolvendo dois pelotões nossos, “estendeu-se” a Binta e a Guidaje, aí permanecendo sitiada durante quinze dias.

É a memória testemunhal, e também opinativa, desses longos dias, que vou tentar transcrever nas páginas seguintes. Tentarei integrá-la no contexto histórico que se vivia na Guiné no já longínquo mês de Maio de 1973, embora a generalidade das explicações se destine, como é óbvio, sobretudo àqueles que por lá não passaram e nunca tiveram qualquer familiaridade com a Guiné nem as causas e efeitos da tão dura quanto injusta e desnecessária guerra que ali se travou.

Algumas das unidades (ou partes delas) com quem os dois pelotões da CCaç 3518 estiveram, ou com quem se cruzaram durante tão malfadado período: Companhia de Caçadores 19 (africana, sediada em Guidaje, criada em Dezembro de 1971), Companhias de Caçadores nº 3, nº 14 (também africanas), Companhia de Comandos nº 38, Pelotão de Artilharia nº 24, Companhia de Caçadores Pára-quedistas nº 121, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 7, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 1, Pelotão de Morteiros nº 4247, Batalhão de Caçadores 4512, Companhia de Cavalaria 3420, Companhia de Caçadores sediada em Cuntima, Batalhão de Comandos Africanos e Grupo Especial do Centro de Operações Especiais do alferes Marcelino da Mata (entretanto, coronel na reserva).

A companhia viria a ser substituída a 5 de Julho de 1973 no subsector de Brá (COMBIS) pela CCaç 3414, tendo sido transferida para Bafatá na semana seguinte (dia 11) a fim de substituir a CCav 3463. A 13 de Julho de 1973 (dia do meu 23º aniversário em que exagerei nos festejos, estando de sargento de dia, e em que ia sendo preso, mas isso é outra história!) a companhia assumiu a responsabilidade do subsector de Bafatá e, cumulativamente, a função de intervenção e reserva do BCaç 3884, tendo ainda actuado em reforço de outros sectores da Zona Leste, por períodos curtos. Os quatro pelotões da companhia estiveram frequentemente deslocados e reforçaram temporariamente unidades das regiões vizinhas (missões de serviço com as companhias do BCaç 3884, CCaç 3549, BArt 6523/73, CCaç 3548, CAOP 2, etc., mantendo actividade operacional nomeadamente em locais como Contuboel, Geba, Sonaco, Sare Banda, Xime, Xitole, Alimo, Canquelifá, Sare Bacar, Ponta Guerra, Porto Gole, Bambadinca Tabanca, Cheque, Cantauda, Bigine/Colufe, Maum de Meta, Cheual, Bajocunda, Sincha Bakar, Enxalé, Ponta Luís…

Entre 15 e 22 de Dezembro de 1973 os quatro pelotões participaram nas grandes operações “Dragão Feroz” e “Tudo Verde”. Na primeira, estivemos com o BArt 3873, CArt 3493 (então, em Fá Mandinga), CCaç 12, CCaç 21 (de Bambadinca, na altura comandada pelo tenente Jamanca), 20º e 27º pelotões de artilharia (10,5 e 14) e os Gemil’s 309 e 310; na segunda, todas com quatro grupos de combate, participaram ao nosso lado a CArt 3494, mais uma vez as CArt 3493 e CCaç 21, bem como o 27º pelotão de artilharia (14 mm), instalado em Ganjuará.

Nestes dias de emboscadas, golpes-de-mão e combates causaram-se baixas ao IN (um morto e vários feridos confirmados e, a julgar pelos rastos de sangue abundantes, mais mortes não confirmadas) e capturou-se algum material (por exemplo, uma espingarda semi-automática Simonov). Houve dois feridos graves das NT, evacuados de helicóptero, que não pertenciam à nossa companhia.

No percurso Mansambo/Jombocari/Mina, vários soldados foram vítimas de intoxicação alimentar, e vários deles desmaiaram, devido à má qualidade da ração de combate (nº 20) que lhes tinha sido distribuída. O principal objectivo da segunda operação seria destruir um suposto hospital IN que, diziam as informações, estaria a funcionar em Fiofioli (de facto, antiga base guerrilheira, ainda nos anos sessenta). Todavia, quando após várias peripécias chegámos ao destino, nada se confirmou, nem sequer havia quaisquer vestígios IN no local.

Estas informações, geralmente não se obtinham através dos serviços especializados do exército, era a PIDE/DGS que dizia obtê-las através de informadores próprios. A polícia política praticamente determinava as operações que as forças armadas deveriam efectuar. À excepção do chefe Allas, – que há quem diga ter sido tecnicamente competente nesse domínio (por se comportar mais como militar do que como polícia), – pelo menos na região de Bafatá, enquanto lá estivemos, as informações vindas daquelas bandas revelaram-se na esmagadora maioria das vezes uma grande treta, falsas ou ineficazes, criadas provavelmente só para mostrar serviço. O certo é que bastava qualquer agente “botar faladura” no comando operacional que esta, em vez de mandar confirmar as tais fontes, fazia a vontade à corporação e lá íamos nós feitos otários à pesca de cubanos e gajos loiros no mato, à cata de “armazéns do povo” e hospitais, como quem vai aos “gambuzinos”…

Também dizem os especialistas que a polícia política teve, durante determinados períodos, alguns informadores e agentes infiltrados nas fileiras do PAIGC, inclusive em contacto ou com acesso aos mais altos responsáveis do partido, (e isso viria a confirmar-se a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacry), mas nós ficámos sempre com a ideia de que os informadores a um nível mais baixo deveriam ser muito fraquinhos.

Na Guiné, a PIDE tinha uma delegação em Bissau, sub-delegações em Bafatá, Mansoa, Bissorã, Bula, Teixeira Pinto, Cacheu, Farim, Cuntima, Cambaju, Sare Bacar, Pirada e Nova Lamego, e ainda postos em São Domingos, Ilha Caravela e Cacine. Os quadros nem eram muitos (entre 75 e 85 no ano de 1973): cinco inspectores e inspector adjunto, dois subinspectores, sete chefes de brigada, dezoito agentes de primeira classe, vinte e oito de segunda e estagiários, quatro motoristas e três guardas prisionais. Possuía ainda meia dúzia de funcionários técnicos (rádio-montadores e rádio-telegrafistas), outros tantos contínuos e serventes, além de quatro escriturários para as folhas de caixa e processamento de salários, subsídios extraordinários e ajudas de custo. Depois, é claro, havia uma rede de informadores e, para sua vergonha, os comandos militares tinham instruções rigorosas de como proceder com eles (na Guiné, instruções dimanadas da Directiva 63/68.SECRETO.AM).

Em suma, “autóctone que se apresente para prestar informações exclusivamente à PIDE/DGS deve ser considerado informador secreto, canalizado para o agente local ou, não existindo, deve-se providenciar o transporte para Bissau e entregá-lo na delegação desta polícia”. É expressamente proibido fazer interrogatórios a estes informadores! Ao arrepio dos interesses e da estratégia militar, a PIDE chegou a ser considerada responsável por provocações sangrentas com o objectivo de criar ondas de terror e responsabilizar o PAIGC.

Em Novembro de 1965, em Farim, teria mandado lançar uma bomba para o meio de uma festa popular, provocando a morte de uma centena de pessoas, para colocar a culpa nos “terroristas” e revoltar os cidadãos locais. A propaganda, ou notícia de choque sobre a “explosão terrorista”, chegou à opinião pública internacional, mormente através das páginas do New York Times…

Os serviços de “Informações e Operações de Infantaria” revelaram-se muito mais eficientes na observação dos movimentos IN, enviando às “zonas libertadas” ou aos outros lados das fronteiras, milícias, caçadores nativos, guias, etc., até a pretexto de irem visitar familiares e, no regresso, ficávamos a conhecer, por exemplo, o número de efectivos, as deslocações havidas, o armamento recebido. Aliás, o PAIGC fazia rigorosamente o mesmo, no sentido contrário.

Nos dias seguintes (23 a 31 de Dezembro de 1973) a companhia executou o plano “Bafatá Impenetrável”, do BCaç 3884, que contou com diversas operações, e, já em 1974, na mesma zona de acção, as operações “Garota Nua”, “Madeirense Teimoso”, “Zorro Galante”, “Indomáveis Patifes” e “Leme Seguro” (cito apenas as operações em que participámos lado a lado com outras unidades e não todas as que efectuámos ao longo da prolongada comissão de mais de 27 meses).

Embora terminando a comissão em Outubro de 1973, após diversas datas prováveis para o regresso ao Funchal, (sempre com a frustração do desmentido posterior), a 15 de Fevereiro de 1974 fomos rendidos pela CArt 6252/72, recolhendo ao Cumeré para aguardar o regresso. A CCaç 3518 embarcaria no paquete Niassa a 28 de Março, com destino à Madeira, onde desembarcou a maior parte das praças e o capitão, tendo o pessoal do Continente alcançado a Rocha do Conde d’Óbidos (Lisboa) a 3 de Abril de 1974.
__________

Notas de CV:

(*) Daniel Matos foi Fur Mil da CCaç 3518 (1972/74) que esteve em Gadamael

Vd. poste de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5981: Tabanca Grande (208): Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)

Guiné 63/74 - P5999: Grupo dos Amigos da Capela de Guiledje (12): Doação de imagem de Nª Sra. de Fátima, pelo António Camilio e o Luís Branquinho Crespo



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > A última doação à Capela de Guileje, uma imagem de N. Sra. de Fátima, trazida de Portugal por António Camilo e Luís Branquinho Crespo.

Foto: ©  AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Direitos reservados




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) >  A capelinha construída no tempo do Zé Neto (1929-2007)... Havia três imagens da N. Sra. de Fátima, de diversos tamanhos...

Foto: © Zé Neto / AD - Acção para o Desenvolvimento. (2007). Direitos reservados.


1. Os nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento, na pessoa do Pepito, seu director executivo,  nosso amigo e membro da nossa Tabanca Grande, acaba de mandar-nos a seguinte mensagem:

Assunto: Amigos da Capela de Guiledje

Luís

Mais uma importante contribuição dos nossos amigos da Capela de Guiledje, o António Camilo e o Dr. Luis Branquinho Crespo (na foto), que fizeram questão de se deslocarem a Guiledje para doarem a imagem da Nossa Senhora de Fátima à Capela.

Este gesto, tão bonito, foi acompanhado pelos votos de que esta oferta ajude a Guiné-Bissau a encontrar rapidamente os caminhos da Paz.

Abraço
pepito
 
 


2. Comentário de L.G.:

O Manuel Reis [,  foto à direita, ] nosso prezado camarada, professor do ensino secundário em Ílhavo, reformado, residente em Aveiro,  ex-Alf Mil da CCAV 8350, a última unidade de quadrícula de Guileje (1972/73), enviou-nos a lista actualizada dos donativos recolhidos até agora, no âmbito da campanha do nosso blogue a favor da reconstrução e manutenção da capela de Guileje (*).

O dinheiro, que tem sido depositado numa conta da Caixa Geral de Depósitos, Agência de Ílhavo, em nome do Manuel Reis, será oportunamente transferido para a AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, a ONG que liderou este projecto.

À anterior lista do Grupo dos Amigos da Capela de Guiledje junta-se agora, além do Luís Branquinho Crespo (que, segundo presumo,  é um conhecido advogado, mas cuja ligação a Guileje ou à Guiné-Bissau desconheço), os nomes dos nossos camaradas Eduardo Campos, Henrique Martins e Vasco da Gama. (**)

 A campanha de angariação de fundos vai-se manter, apesar da capela já ter sido  inaugurada em 20 de Janeiro último (***), de modo a permitir ainda,  a todos os nossos leitores,  dar a sua (e aumentar a nossa) contribuição (material e simbólica) para esta causa.

Recorde-se aqui, mais uma vez,  a história e o significado da capela de Guileje, erigida no tempo da CART 1613 (do Cap Art Corvalho e do 2º Srgt Zé Neto, 1967/68)... Grande impulsionador da construção da capela de Guileje,  o Zé Neto (com o posto de Cap Ref) foi, infelizmente,  o primeiro membro da nossa Tabanca Grande a deixar-nos... A morte levou-o aos 78 anos... Morreu em 2007. Tinha nascido, em Leiria, em 1927. Júlia Neto é a viúva, que nos honra com a sua presença no nosso blogue.

Guileje é hoje um ponto de paz, de ecumenismo e de (re)encontro de homens que no passado se bateram, de armas na mão, sob bandeiras diferentes, e esperemos que seja também, no futuro,  um polo de desenvolvimento.  A própria ideia da constituição de um Grupo de Amigos da Capela de Guileje tem, por certo,  algum simbolismo.

Pagamento por multibanco: NIB: 003503720000835570006

Pagamento por transferência Bancária: Conta nº: 0372008355700 da Caixa Geral de Depósitos de Ílhavo, em nome de Manuel Augusto Ferreira Reis.

A todos os nossos camaradas, contribuintes (em géneros e/ou em espécie), independentemente da sua ligação efectiva (e afectiva) a Guileje, o nosso muito obrigado (Luís Graça / Manuel Reis).

____________

Notas de L.G.:

(*) 10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5797: Grupo dos Amigos da Capela de Guileje (11): A recolha de fundos vai continuar... Saldo: 430 € (Manuel Reis / Luís Graça)

Vd. ainda poste de 6 de Junho de 2009 > Guiné 64/74 - P4469: Grupo dos Amigos da Capela de Guileje (1): Já temos três: Patrício Ribeiro, António Cunha e Manuel Reis

(**) Grupo dos Amigos da Capela de Guileje (contribuições em espécie e em género), porordem alfabética:

Amílcar Ventura
António Camilo
António Graça de Abreu
António Cunha (****)
Coutinho e Lima
Domingos Fonseca (AD)
Eduardo Campos
Hélder Sousa
Henrique Martins
João Seabra
Júlia Neto
Luís Branquinho Crespo
 Luís Graça
Manuel Reis
Patrício Ribeiro (Impar Lda)
Paulo Santiago Pepito (AD)
Vasco da Gama

(Espero não ter omitido ninguém... De qualquer modo, é uma lista aberta, que esperemos venha rapidamente a ser alargada...)

(***) Vd. poste de 29 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5726: Núcleo Museológico Memória de Guiledje (10): A inauguração da capela, em 20 de Janeiro, na presença do embaixador de Portugal (Pepito)

(****)  O António Cunha, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CART 1613, Guileje, 1967/68, membro da nossa Tabanca Grande desde Dezembro de 2008 (mas de quem ainda não temos nenhuma foto, nem antiga nem actual), ficou de dar conhecimento desta iniciativa aos seus antigos camaradas de companhia, que se reunem anualmente.

Aqui ficam os seus contactos: António Cunha (O Malhado), CART 1613 “Os Lenços Verdes” / BART 1896,   Guiné 1966/1968 >  Morada: Rua João Braga, 47 Nogueira 4715-198 Braga.  Telefone/Fax: 30991200 Telemóvel: 982503954

segunda-feira, 15 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5998: Parabéns a você (87): Uma salva de palmas, de homenagem, para o António Baptista, que faz hoje 60 anos, teve uma vida sofrida e conheceu o inferno na terra (Os Editores)




O regresso do "morto-vivo" do Quirafo, conforme notícia do Comércio do Porto, de 18/9/1974. Hoje o António da Silva Baptista faz 60 anos!... Outro jornal do Porto, o Jornal de Notícias, acompanhou-o também na visita à sua própria campa, no cemitério da sua freguesia, no concelho da Maia...

 Fonte:
29 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4262: Recortes de imprensa (16): O Morto-vivo no Jornal de Notícias e em O Comércio do Porto (Mário Migueis)

1. Comentário do Manuel Reis (*):

Caros amigos:

A tragédia, em si, constitui um acontecimento tão traumatizante, que todos preferem não falar dele.
É espantoso que não surja alguém, com ligações aos intervenientes na tragédia [, de Fajonquito,] e que, presencialmente, tivessem detectado algum mal estar entre eles.

As testemunhas, que não o são, contradizem-se. Soube pelo Blogue deste acontecimento, que constitui um autêntico enigma.

Um abraço amigo.
Manuel Reis

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Manuel Reis:

Não é caso virgem, este silêncio quase tumular à volta da tragédia desencadeada pelo Sold Almeida, em Fajonquito, na Páscoa Sangrenta de 1972 ... Não temos ninguém da CART 2742 (comandada pelo Cap Figueiredo), como não temos ninguém da CCAÇ 1790 (comandada pelo Cap Aparício) que sofreu quase três dezenas de mortos no desastre no Cheche, na travessia do Rio Corubal, em 6 de Fevereiro de 1969, depois da retirada de Madina do Boé...

Parece haver um grande pudor em falar destas tragédias... Os nossos camaradas fizeram o luto patológico, de tal modo que ao fim destes anos há uma espécie de pacto de silêncio à volta deste "pathos"... Acontece nas famílias, nas comunidades, nos povos... A hístória está cheia destes silêncios, individuais e colectivos...


Temos aí outras tragédias, já evocadas no blogue: estou-me a lembrar, por exemplo, da terrível emboscada do Quirafo..



Tirando o pobre do António Baptista [, foto à esquerda], não tenho ideia de ter aparecido alguém da CCAÇ 3490 (comandada pelo Cap Lourenço), unidade de quadrícula do Saltinho, que pertencia ao BCAÇ 3872 (Galomaro, 1972/74), a falar deste brutal massacre... Os próprios militantes do PAIGC sempre tiveram (e continuam a ter, aqueles que ainda estão vivos), dificuldade em verbalizar as suas emoções ou desfiar as suas memórias face a tragédias como a morte dos "três majores portugueses", íntimos de Spínola, no Chão Manjaco, ou a luta fatricida que levou ao miserável assassinato de Amílcar Cabral.


E a propósito, lembrei-me, agora, de repente, que o nosso "morto-vivo do Quirafo" faz hoje anos, 60 anos!!! Eu sei que ele não nos lê, mas através do administrador do blogue da Tabanca de Matosinhos, o Álvaro Basto que tem sido para ele mais do que camarada e amigo, um pai e um irmão... daqui vai uma salva de palmas para o Baptista que teve uma vida sofrida e conheceu o inferno na terra....Ele é bem merecedor de todo o nosso carinho e solidariedade.
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5997: Controvérsias (67): A Páscoa Sangrenta de Fajonquito, em 2 de Abril de 1972 (António Costa)

Guiné 63/74 - P5997: Controvérsias (67): A Páscoa Sangrenta de Fajonquito, em 2 de Abril de 1972 (António Costa)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada (e amigo) António José Pereira da Costa,  António Costa, tout court (Cor Art na reserva, na efectividade de serviço), que esteve na Guiné entre 1972 e 1974:

 Assunto: Páscoa Sangrenta

Camarada:

Sobre a situação de Fajonquito (*) gostava de alinhar umas considerações, que me parecem construtivas:

(i) Não era contra o RDM ficar na PU [ Província Ultramarina,] onde se estava, a trabalhar após a passagem à disponibilidade. O país era só um - é bom que se recorde - e após as "obrigações militares" até era possível ir para o estrangeiro sem ser "a salto".

As Ordens de Serviço estão cheias das chamadas autorizações de ausências definitiva para o estrangeiros, passadas pelas unidades onde os desmobilizados tinham ficado colocados para efeitos de recrutamento. Por isso, tenho dificuldade em entender o início do diferendo entre e o capitão e o soldado, por esta razão. Não haveria outras?

(ii) Depois, tenho dificuldade em imaginar que um homem sózinho tenha conseguido descavilhar duas granadas defensivas que transportava, obviamente, uma em cada mão.

Imagina como é que o farias. Será que teve o auxílio de alguém? Claro que não! Peço desculpa, mas tenho dúvidas de que tenha sido assim.

(iii) A causa determinante terá sido a distribuição das amêndoas. Penso que o soldado ter-se-á sentido ferido (muito) na sua auto-estima e, principalmente, desamparado e abandonado.

A sua atitude terá sido um expor da sua situação de solidão, uma espécie de pedido de ajuda, semelhante aos dos suicidas. Na verdade, ele provavelmente nem sequer entendia porque estava ali a fazer aquilo (a Guerra) que não aceitava, mas não tinha saída ou remédio senão fazê-lo (não podia desertar nem fugir). Por isso, pelo menos, tinha que estar. Será que ele sentia estar a defender a Pátria ou as populações que estavam junto das NT? Ouvi dizer que era Básico, o que quer dizer que era dos psicotecnicamente menos aptos no Exército.

(iv) Por mim, creio que algumas situações de insubordinação e desobediência têm origem numa espécie de descarregar de ira e revolta contra o sistema e a situção. Não é possível que aqueles contra quem foram cometidas - na sua maioria tão milicianos como os insubordinados - fossem uns tiranetes e injustos e que merecessem a insubordinação.

(v) Creio mesmo que algumas delas terão origem numa situação de revolta profunda que não tinha por onde se expandir. Estas situações terminavam normalmente mal para os insubordinados e não creio que os quadros ficassem satisfeitos com o sucedido, como muitas vezes se diz. Para mim, estas situações serão o indício técnico de que o enquadramento é insuficiente e a mentalização é má.

Embora nunca tivéssemos tido uma recusa ao embarque, não creio que a defesa da Pátria nos fornecesse elementos para aceitarmos a ida para lá Tive ocasião de verificar que as unidades que embarcavam iam cada vez menos "mentalizadas" para as tarefas a realizar.

Farás com este mail o que quiseres, mas sugiro que testes a coerência da história tão dramática, e procures uma interpretação sociológica e psicológica para o sucedido e para a actuação dos dois principais intervenientes.

Um Ab do António Costa

2. Comentário de L.G.:

António:

Aprecio a sagacidade do teu raciocínio, a oportunidade do teu comentário e a gentileza do teu gesto, honrando a memória dos nossos mortos.

Seguramente que faltam outras versões. As duas que temos (, a do José Cortes e do José Bebiano, ambos furriéis em Fajonquito, em 1972), não são suficientes.  O José Bebiano é contemporâneo dos acontecimentos, privou por exemplo com o Fur Alcino, uma das vítimas mortais dos acontecimentos, mas no dia 2 de Abril de 1972 não estava em Fajonquito, estava antes na Metrópole, em gozo de licença de férias.

 Por sua vez, o José Cortes (da companhia que veio render a CART 2742, a CCAÇ 3549),  tinha partido para a Guiné erm 26 de Março de 1972 e,  antes de seguir para Fajonquito, ficou  a tirar a IAO, no Cumeré, possivelmente durante um mês e meio... A versão dele só pode ser em segunda mão...Ouviu contar "in loco", um a dois meses depois do ocorrido... E contou-ma agora, 38 anos depois, ao telefone, ele em Coimbra, eu em Lisboa. (Em rigor, é a versão dele, oral, telefónica, reconstituída por mim).

 Há pormenores, nas duas versões, que se contradizem: o José Cortes falou-me, ao telefone, em duas granadas, descavilhadas, uma em cada mão. O José Bebiano fala apenas numa... O Soldado Almeida seria um básico, segundo li na lista dos mortos da guerra do Ultramar... O José Bebiano dizer que ele era um ex-comando... Esperemos que ainda apareça alguém, da CART 2742, que nos dê uma versão mais detalhada, exacta e contextualizada desta tragédia ocorrida num domingo de Páscoa, numa festa que era suposto ser de despedida e de alegria... É a isto que se chama a triangulação das fontes.

Em suma, partilho, contigo, da mesma dúvida céptica: um soldado, não operacional, não tinha acesso fácil a granadas de mão defensivas (que estavam, em princípio,  à guarda do cabo quarteleiro, tal como as granadas de morteiro e de bazuca); depois, não tinha habilidade nem sangue frio para pegar logo em duas, arrancar-lhe as cavilhas (com os dentes ?) e segurá-las, uma em cada mão, atravessar a parada e dirigir-se (calmamente ?) à secretaria... Fosse ex-comando, talvez tivesse treino para isso... Será que, entretanto,  algum dos graduados o tentou desarmar ? Refiro-me ao Cap Figueiredo, ao Alf Félix e ao Fur Alcino...Aparentemente não há testemunhas desta cena fatal, passada na secretaria...

É bem possível que o Sold Almeida apenas tenha querido chamar a atenção para o seu caso, ou simplesmente protestar, julgando-se vítima duma clamorosa injustiça... A história das amêndoas bem pode ter sido a gota de água que fez transbordar o copo...

Também descarto a hipótese de suicídio (bem como de homicídio deliberado)... Na tomada de decisão de um suicída, há vários factores (antecedentes e mediatos) a ponderar... Nunca há uma causa única, há um feixe de causas ou determinantes... Ninguém toma uma decisão repentina destas, mesmo quando sob o efeito de álcool ou drogas (o que até podia ser o caso)... E a haver suicídio, ele foi também um triplo homicídio...Aparentemente, o Sold Almeida não tinha nenhum conflito com os dois milicianos que morreram, juntamente com o Capitão... O mais provável é que tenha havido uma tentativa de neutralizar o infeliz Almeida que, de resto, tinha todas as razões para viver, não para morrer: o conflito com Capitão era porque ele querir ficar na Guiné, depois da peluda...

A alegada incompatibilidade dessa manifestação de vontade com o RDM é uma interpretação (indevida) minha... Eu pensei que a comissão militar só acabava com o regresso à Metrópole e a consequente passagem à disponibilidade...

Quanto ao pedido que me fazes, para arriscar "uma interpretação psicológica  e sociológica para o sucedido" (sic), agradeço-te mas sai fora da minha competência como editor deste blogue. Não sou psicólogo, sou sociólogo e, em princípio, só gosto de falar do que estudo, investigo ou leio... O suicídio enquanto fenómeno social interessa-me. O suicídio, as tentativas de suicídio, outras formas de auto-mutilação (tiros no pé, no dedo indicador direito, etc.), o homicídio e outras formas de violência nos quartéis (ou no mato) merecem ser descritas, divulgadas, analisadas, contextualizadas, interpretradas no nosso blogue... Mas nesse caso ainda não temos informação suficiente para tentar uma interpretação que não seja baseada em ideias de senso comum (o que é de todo contra-indicado a um sociólogo)... Façamos votos para que apareçam mais camaradas com informação (inédita e válida) sobre o caso da "Páscoa Sangrenta de Fajonquito"...
Deixo-te aqui apenas uma dica sobre o suicídio, e que fui buscar à página da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (Vd. Questões frequentes):

(...) Normalmente o suicídio é equacionado como forma de acabar com uma dor emocional insuportável causada por variadíssimos problemas. É frequentemente considerado como um grito de pedido de ajuda. Alguém que tenta o suicídio está tão aflito que é incapaz de ver que tem outras opções: podemos ajudar prevenindo uma tragédia se tentarmos entender como essa pessoa se sente e ajudá-la na procura de outras opções e soluções. Os suicidas sentem-se com frequência terrivelmente isolados; devido à sua angústia, não conseguem pensar em alguém que os ajude a ultrapassar este isolamento.

Na maioria dos casos quem tenta o suicídio escolheria outra forma de solucionar os seus problemas se não se encontrasse numa tal angústia que o incapacita de avaliar as suas opções objectivamente. A maioria das pessoas que opta pelo suicídio dá sinais de esperança de serem salvas, porque a sua intenção é parar a sua dor e não por termo à sua vida. A este facto dá-se o nome de ambivalência. (...)

Os modelos, mais propriamente sociológicos, avançados para a compreensão e a explicação do suicídio, tendem a chamar a atenção para o facto de, em contexto de guerra, poder haver menos factores de risco de suicídio (a não ser em casos de derrota ou de aprisionamento, por questões de honra, etc.). O combatente, integrado num grupo de combate, terá menos hipótese de suicídio, de acordo com a teoria de Durkheim: O aumento, real ou percebido, da ameaça sobre o grupo, vinda de fora - neste caso, do inimigo - leva a uma maior integração do indivíduo no grupo, e o consequente decréscimo do risco de suicídio...

No caso do Almeida, a questão de se saber se ele realmente era um soldado básico (e, portanto, menos apto, do ponto de vista "psicoténico") não é de somenos importância... LG
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)

[Versão de José Cortes, recolhida ao telefone por Luís Graça:]

(...) (i) Havia um, soldado da CART 2742 que, uma vez terminada a comissão, queria ficar na Guiné como civil;


(ii) Ao que parece o Cap Art Carlos Borges Figueiredo manifestou, desde logo, a sua oposição à ideia,  contrária a todo o bom senso e sobretudo ao RDM;

(iii) Ter-se-á aberto um contencioso entre o soldado e o seu comandante, e envolvendo também o primeiro sargento;

(iv) A mulher do capitão havia mandado, da Metrópole, "dez quilos de amêndoas" para distribuir pelo pessoal da companhia; a distribuição foi feita pelo próprio comandante, no refeitório, no domingo de Páscoa, 2 de Abril de 1972;

(v) Quando chegou a vez do soldado em questão, o capitão terá passado à frente, num acto que aquele interpretou como de intolerável discriminação;

(vi) O soldado levantou-se, sem pedir a licença a ninguém, e saiu do refeitório. Foi ao abrigo (ou à sua caserna) e veio para a parada com "duas granadas já descavilhadas", em cada mão. Dirigiu-se à secretaria. O primeiro sargento ter-se-á apercebido, a tempo, das intenções do soldado, e não se aproximou da secretaria (ou fugiu, não sei);~

(vii) Dentro da secretaria, estava o Capitão, um alferes e um furriel. Ninguém sabe o que se passou lá dentro. O soldado deixou cair as duas granadas. O tecto da secretaria foi pelos ares. Lá dentro ficaram 4 cadáveres

Mortos, em 2/4/1972, todos do Exército, por acidente (sic), constam os seguintes nomes, na lista dos Mortos do Ultramar da Liga dos Combatentes:

- Alcino Franco Jorge da Silva, Fur
- Carlos Borges de Figueiredo, Cap
- José Fernando Rodrigues Félix, Alf
- Pedro José Aleixo de Almeida, Sold (...)


7 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5946: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (2): Evocando o Sold Almeida e o Fur Alcino, da CART 2742, que morreram, mais o Cap Figueiredo e o Alf Félix, na tragédia do domingo de Páscoa de 1972


[Versão do José Bebiano:]

 (...) José Cortes: O tempo passa e a tua imagem passou? Pouco tempo estive convosco [ CCAÇ 3549]. Lembro-me bem do Cap Patrocínio.

A história do soldado Almeida, ex-comando, e que com uma granada na mão matou-se e matou 1 cap + 1 alferes + 1 furriel... Eu, na altura do acidente estava em Lisboa.

Qual a razão para tal atitude? Pelo que me disseram, queria permanecer na Guiné e com uma granada na mão foi pedir para que não o enviassem para a Metrópole (?!)... Passou-se completamente.

Vou enviar uma foto com o falecido Alcino e com o Bebiano. A foto foi tirada em 26 Out 1971. Ainda por lá fiquei mais um ano.

Cumprimentos

P.S. - Estou reformado/aposentado desde 30 de Novembro. Ex-professor de Educação Física em Moura. (...)

Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 5 de Março de 2010:

Caros camaradas Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Boa tarde e bom fim-de-semana. É com gosto, que envio esta história, não apócrifa, onde exponho alguns dos meus pulsares e acontecimentos, do dia-a-dia em Canjadude, Guiné. Quanto à publicação da mesma, assim como à inclusão das fotos (embora referencie) coloquem no local que entendam, deixo ao vosso critério.
Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (6)

Canjadude, PÂNICO NO ABRIGO NORTE


Estarei certo se afirmar que,  nos dois anos e tal que passei na Guiné, na CCAÇ 5, em Canjadude, em situações normais, (excluindo doença ou descanso por trabalho nocturno) não me deitei na cama meia dúzia de vezes no período entre as 12.00h e as 15.00h, o chamado “almoço e dormir a sesta”, é um hábito que nunca consegui adquirir e nunca senti falta dele.

Nesse período do dia, (considerado de descanso) eu, se o tempo o permitisse, após o almoço era frequente ir até às rochas de Canjadude, que me ajudava a suavizar o desconforto da tensão do passar dos dias, alentando-me a escrever uns aerogramas, cartas, ou outras escritas que para mim eram essenciais. Era neste local de inspiração, expansão e tranquilidade, que eu amenizava a minha paz interior.

Foto n.º 1 > Corceiro numa das rochas do Aquartelamento de Canjadude.

Foto n.º 2 > Corceiro rocha do Aquartelamento de Canjadude. Posto de sentinela.

Foto n.º 3 > Rocha de Canjadude com posto de sentinela Norte/Nascente

Também, neste intervalo de tempo, apreciava sentar-me a ler um livro em cima do abrigo dos graduados, à sombra do embondeiro grande, onde se sentia o fluir duma brisa suave acariciadora e tonificante, que me reconfortava a animosidade para suportar a luta desta “puta” de vida, que aqui levava; por vezes, sentia um sopro denso, abafado e húmido, sufocante; outras vezes uma atmosfera carregada exalando um bafo áspero e cálido, que era peganhoso e melaço, grudava-se ao meu corpo e teimava em não se deixar limpar, mas a obrigação impunha-se e o meu dever era continuar e avançar.

Foto n.º 4 > Corceiro a ler livro em cima do abrigo de graduados

Encontrava amenidade ao ir até à Tabanca, ilusão de porta aberta que me deixava partir para a descoberta da terra da fantasia que eu sonhava, onde alguém por mim esperava. Envolvia-me com o seu povo, a tentar compreender e analisar os seus costumes, vivências e necessidades, que despertavam no meu íntimo, sentimentos consistentes de amizade e solidariedade. Compadecia-me ver aquelas criancinhas desnutridas, calmas e afectuosas, muito “barrigudinhas”, consequência do insuficiente e desapropriado padrão alimentar, associado à escassez de alimentos e à muita fome que por ali abundava, dava bem para compreender a luta pela sobrevivência destes meninos tão ”ventrudozinhos”.

Foto n.º 5 > Corceiro na Tabanca

Foto n.º 6 > Criança “Ventrudozinha” de Canjadude

Apresava-me, se o tempo estivesse nublado, logo de feição, para tirar alguma foto, porque nesta hora com o Sol a incidir na perpendicular e os raios UV na sua maior convergência, não era propício a fotos. (Atender, que estava equipado para auto-foto, pois tinha tripé, máquinas com disparador automático, o enquadramento e focagem fazia por estimativa).

Deleitava-me, nesta hora, ir até à bolanha para ter contacto de proximidade com as lavadeiras, apreciar a destreza e desembaraço com que amanhavam a roupa. Neste local, podia dar rédeas ao impulso de atracção e fascínio, que despertavam em mim aquelas humildes criaturas, com a sua postura e conduta despudorada, livre, sem preconceitos ou inquietude, face à indumentária usada, por vezes completamente nuas, sem manifestar grande inibição, estranheza ou retracção, provocados pela presença de estranhos. (A bolanha ficava a Nascente do Aquartelamento, fora do arame farpado, aí a uns 200m a 300m de distância.)


Foto n.º 7 > Azáfama na Bolanha de Canjadude

Na Bolanha, soltava e dava asas à minha imaginação e sentia-me como ave livre a esboçar, observando o pulsar da natureza a metamorfosear o milagre do seu ciclo de renovação de vida, cujo rejuvenescimento é consequência da concomitância dos factores, luz, calor, ar e enxurradas de água, que jorram de todas as nascentes a fertilizar e inundar os solos, que outrora estiveram ressequidos e encarquilhados, tornando-se agora manancial e fonte de criação, excitando o explodir e desabrochar espectacular, de tudo o que seja Biodiversidade (todos seres vivos e suas características genéticas).

É, a matização natural do equilíbrio da essência dinâmica, em transformação na Natureza!

Eu sentia-me escudado, rodeado de toda esta substância (formas de vida) que testemunhava o esplendor da vida, com toda a sua pujança e imperturbabilidade sinfónica, onde tudo se entrelaçava para criar e recitar uma ode à Mãe Natureza, e, tudo em conjugação, louvar a harmonia do Universo. Neste ambiente eu encontrava forças para me alicerçar e continuar na minha senda, para não me deixar arrastar para a trilha do desalento e do desânimo. Foi, escorando-me nestas observações, que o meu pensamento, depois de muito analisar pode vir a confirmar, que a incógnita que permanecia em mim, sobre os peixes da bolanha, não era um caso contra natura nem capricho de Deus Mitológico mas sim a consonância perfeita neste ecossistema (interacções entre seres vivos e o meio que habitam). Começou por ser para mim, um enigma, à luz dos conhecimentos que possuía, porque não conseguia encontrar justificação plausível que elucidasse esta minha cisma. Assim, a minha indagação persistia:

Como era possível o ciclo de vida do peixe da bolanha ter continuidade, neste nicho ecológico? (condições de habitat alimentação e comportamento)

Foto n.º 8 >Corceiro em Assimilação ao ver que na Bolanha resta um “charcozinho” de água.

Se ao chegar a época das secas, a água extingue-se na totalidade, na bolanha, deixando os leitos todos gretados e sôfregos de sede, coexistente, assiste-se ao definhar e desaparecimento de todo e qualquer peixe. Como entender, que ao chegar o ciclo das chuvas, que inundam de água o leito desidratado na Bolanha, a fogosidade volta e o peixe às molhadas aparece?! Até esclarecer, o que para mim foi mistério, e, deslindar tão natural questão, pois o âmago de toda a elucidação, estava na simplicidade de descobrir e perceber, que os ovos dos peixes, já fecundados, ficavam enterrados na terra, que servia de ventre na época da seca! Quando vinham as chuvas, a água era como o veículo do suporte fertilizante, que desencadeava a eclosão e desabrochar dos peixes na Bolanha no seu ecossistema, e ei-los a progredir para novo ciclo!

Foto n.º 9 > Corceiro em cima do abrigo de transmissões à volta com os seus enigmas.

O dia 8 de Novembro de 1969, vá lá o diabo saber porquê, o meu relógio biológico, neste dia, não me despertou para após o almoço ir para as rochas, Tabanca, ou Bolanha e fiquei no abrigo Norte, o meu hotel de 5 estrelas, todo refastelado no 1.º andar do beliche, esparramado na minha cama, descontraído e absorto a ler o livro – A Selva, do Ferreira de Castro -. Era perto das 13.30h, os alojados do abrigo estavam quase todos nas suas camas deitados, cada um a ruminar o seu abrolho, uns a cabecear, a sonhar, a ninar, a ressonar, a rosnar, outros a sonhar acordados, praticamente silêncio nocturno!

Eis senão, quando no meio deste sossego, agitando toda a tranquilidade, ouve-se uma voz aflita e horrorizada, dar um grito de alerta e perigo:
- Éi!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!!!…..

Tudo alarmado olha e fica apavorado, pois toda a minha gente vê um crocodilo dentro do abrigo!!!!!.. Entra tudo em pânico, cria-se ali colossal agitação e sobressalto, com a inesperada visão do arrojado e assustador visitante, ouvem-se gritos de alvoroço por todo o lado. Num abrir e fechar de olhos transforma-se o abrigo em abrupta balbúrdia, que mais parece uma capoeira, cujos galináceos se excitam e aterrorizam com a entrada duma raposa matreira, no poleiro. Os aquartelados das camas do rés-do-chão, do beliche, quais macacos trapezistas começam a trepar emaranhados, para as camas do andar de cima, para encontrar protecção e afastar-se do perigo de tão ameaçador intruso. Outros, pegam na G3, posição em riste, dedo no gatilho, enquanto outros, de granada numa das mãos e a outra orientada para argola da cavilha, preparam-se para o assalto final ao temível e tímido bicho. Este, por sua vez, tentava descobrir refúgio e ocultação, procurando alguma toca debaixo das camas onde se pudesse abrigar e aninhar. Eu, curioso e incrédulo, observo com olhar mais atento e vejo parte do bicho, pois era descomunal, certifico-me que já em tempos tivera, nas rochas, contacto com um irmão deste, em tudo igual, ainda que de tamanho inferior. Daí, o meu grito sedativo:
- Eih!!!… rapaziada, tenham calma, que o réptil é da família das Iguanas, é um lagarto,  não faz mal a ninguém…!

Mas, o meu alerta de apelação para amainar o rebuliço, não surtiu efeito nenhum, palavras caídas em saco roto, estavam todos tão apavorados que só viam ameaças e perigo de vida, causada pelo indefeso animal.
O espaço no abrigo era acanhadíssimo, pois havia beliches de duas camas dum lado e do outro, um corredor estreitíssimo ao centro. A falta de espaço, aliada ao desalinho e confusão no abrigo, provocaram uma desarrumação caótica, devido às deslocações das camas e ao desorganizar objectos que se apoiavam nestas. O bicho encurralado movimentava-se naquela anarquia sem que ninguém o conseguisse imobilizar.

Eu, ao ver que os meus apelos lenitivos entravam por uma orelha a 5km/h e saiam pela outra a 100km/h e ao constatar que ninguém conseguia infundir um pouco de calma naqueles desgovernados militares, fiquei receoso e inseguro, pois temia que a todo o momento rebenta-se ali uma granada, que estavam distribuídas e colocadas nos locais menos apropriados, ou que algum mais distraído, sentindo-se ameaçado começasse a dar tiro de rajada de G3. Ao ver-me envolvido em tamanha patacoada,  esgueirei-me dali, fui dar uma volta à Tabanca. Regressei passado meia hora, encontro o abrigo numa barafunda assustadora, até havia dificuldade para entrar, e, deparo-me com os meus haveres em displicência total, muitos deles caídos e espalhados pelo chão e o desgraçado do bicho já tinha sido sacrificado.

Logo depois de arrumar os meus objectos, que estavam num desmazelo de inspirar piedade, fui tentar investigar como chegou o “lagartão” ao abrigo. Consegui descobrir os últimos passos do atormentado animal, antes de se enfiar no corredor que o conduziu ao cadafalso.

Foto n.º 10 > Abrigo Norte pequena ideia como estavam as granadas acondicionadas objecto que caísse de cima podia “descavilhá-la”

Foto n.º 11 > Desarrumação de alguns dos meus pertences, na minha cama, devido à agitação com o “lagartão”.

Foto n.º 12 > Foto do lagarto que procurou refúgio no abrigo Norte. Tinha cerca de 2m de comprido a foto devido a ter sido tirada de longe não dá a real corpulência do animal. Lado direito é visível as pegadas do bicho.

Os répteis foram os primeiros vertebrados a libertar-se do meio aquático. São quanto à temperatura do corpo, devido ao seu sistema circulatório, ectotérmicos (calor vem de fora) isto quer dizer o seguinte: são animais que para regular (subir ou baixar) a temperatura do corpo, procuram ambiente adequado para equilibrá-la. Se têm o corpo muito quente, intuitivamente, acção de sensores, procuram sombra, se tem o corpo frio, procuram Sol, fonte de calor. Esta particularidade está definida no seu código genético e têm sensores que determinam o agir comportamental, mediante a temperatura do organismo.

O nosso “lagartão”, da ordem dos sáurios (esquamates), deve ter-se empanturrado de calor em cima de alguma rocha, (as rochas são concentradoras de calor e os répteis procuram-nas para se aquecer) às tantas, porque aqueceu excessivamente, teve necessidade de encontrar sombra para se refrescar, vai daí, deixou-se cair para dentro de uma das valas, (trincheira) que ia desde as rochas à porta do abrigo Norte. Sendo assim, entrou no corredor que o conduziu, sem pedir licença, à porta da forca. Foi uma aventura sem retorno para o nosso animal ectotérmico.

Na foto do lagarto, que tinha quase dois metros de comprido, à frente do lado direito, são visíveis as pegadas do lagarto que confirmam os passos até cair na vala. Depois de cair nesta, não tinha capacidade de sair pelos próprios meios, pois a vala tinha mais dum metro de profundidade e era estreita de paredes na vertical. (Esta foto, não dá a real corpulência do animal porque foi tirada de muito longe, para grande enquadramento e agora teve que ser reduzida)

A todos os tertulianos, um abraço.
José Corceiro
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5978: Mais casos de insubordinação no teatro de guerra: CCAÇ 5, Canjadude, 25 de Novembro de 1969 (José Corceiro)

Vd. último poste da série de > 28 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5906: José Corceiro na CCAÇ 5 (5): Primeiro ataque a Canjadude, o meu baptismo de fogo

Guiné 63/74 - P5995: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (12): Galinhas bem temperadas

1. Mais uma nota solta do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em mensagem do dia 8 de Março de 2010.



NOTAS SOLTAS DA CART 643 (12)

GALINHAS BEM LUBRIFICADAS


A Cart 643 tinha pouco mais de um mês de Guiné e como já contei numa nota anterior, os homens estavam "instalados" num armazém junto ao cais em condições mais que precárias. Era sábado de Páscoa e o Comandante de Companhia, Cap Silveira, ordenou-me que com alguns voluntários, fosse para fora de Bissau às tabancas da periferia, desencantar pelo menos 70 galinhas, que seria meia para cada homem para o Domingo de Páscoa.

De manhã bem cedo lá estava eu com os galináceos, bem nos custou essa tarefa porque os nativos não as queriam vender, mas com a ajuda de um guia lá iamos conseguindo, duas ou três de cada sitio.

Para a matança e depenagem foi fácil conseguir mão de obra, o pessoal estava eufórico porque iria haver Rancho Melhorado em substituição da velha cavala, atum com "ciclistas", dobradinha Armur com feijão branco, ou pior.

A cozinha era ao ar livre, equipada com um caldeiro de ferro aquecido a lenha, galinha para dentro, tempero para cima e lá para o meio dia já cheirava, estando o pessoal já em fila de espera.

Começou a distribuição, notando nós que a soldadagem torcia um pouco o nariz. Havia um sabor esquisito que ninguém conseguia decifrar, estava intragável. O Sílvio Pereira, Ajudante de Cozinheiro, perguntou ao Adérito que era o Cabo do Rancho:

- Eh pá, temperaste as galinhas com que garrafão?

- Com este aqui ao lado.

No garrafão estava escrito: ÓLEO DE LIMPEZA N.º 1
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5976: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (11): Pilão, a visita obrigatória

Guiné 63/74 - P5994: Estórias avulsas (28): A minha viagem à Guiné-Bissau (José Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350)

1. O nosso Camarada José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350 - 1972/74 -, e dos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11) - Gadamael, Guileje, Nhacra, Paúnca, enviou-nos a seguinte mensagem:
A minha viagem à Guiné-Bissau
Camaradas,
Vou regressar…
Àquele lugar místico.
Àquele lugar que de certa forma mudou a minha vida.
Sim! Pois é, foi, e será um tema sempre presente em todos (ou quase) os meus convívios (militares ou não).
Àquela terra que tanto me deu, e tanto me tirou, está enraizada na minha alma e no meu íntimo.
Nunca na minha vida me preparei tanto para uma viagem.
Não quero falhar em nada.
Não pode faltar o "rolo fotográfico".
Não podem faltar as baterias, as máquinas de filmar/fotografar, enfim tudo o que possa registar o meu regresso ao "CTIG" agora noutra perspectiva, numa perspectiva de conhecimento, reconhecimento e abraçar outra vez aquele povo.
Vou regressar…
Àqueles lugares que não me saem da cabeça, no bom e mau sentido, embora dê preferência aos melhores, claro…
Vou regressar…
Aos jubis, ás bajudas, aos homens e mulheres grandes, aos régulos, aos cipaios, aos fulas, futa-fulas, balantas, papéis, mandingas, manjacos, felupes, etc. etc…
Vou regressar…
Às mangas, aos ananases, ao caju, ao camarão, às ostras, às "picadas" (sem picar?), aos macacos (que queridos), aos camaleões, etc. etc…
Vou regressar…
Aos mosquitos, às más recordações, ao calor, ao suor, à sede (talvez), à nostalgia das noites de batuque em Guileje, às jibóias de Colibuia, às recordações do "volei" com o Vasco da Gama e os seus "Tigres", etc. etc…
Vou regressar…
E tentar não pensar em não voltar.
Vou pensar que se aquele povo gostar de mim como eu gosto dele, vão correr lágrimas, muitas lágrimas, talvez parecidas com as que me correm tremidas pela face abaixo e que me molham o teclado do computador, pois eu sou assim, tão guerreiro e tão lamechas.
Vou regressar… Povo da Guiné…
Vou regressar...


Um abraço,
José Carvalho
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350
(Cumeré, Gadamael, Guileje, Gadamael, Cacine, Prábis, Colibuia, Cumbijã, Nhala e Paúnca)
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

domingo, 14 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5993: Blogues que nos citam (3): Divagando - O Povo Português Vai Morrendo, de José Grave

1. Por sugestão do nosso camarada José Martins, e com a devida autorização de José Grave, Editor do Blogue Divagando, transcrevemos o seu poste de 29 de Janeiro de 2010 com o sugestivo título "O povo português vai morrendo".




O POVO PORTUGUÊS VAI MORRENDO

E já há muito tempo. De um blog muito interessante, dos ex-combatentes na Guiné, que os mais novos deveriam consultar para aprenderem, aqui, tirei a seguinte transcrição:

Não trouxeram o corpo do Viegas para Mansoa, meteram-no na urna e seguiu de barco para Bissau. Tenho sido eu a tratar das coisas dele, fui-lhe mexer na mala e fazer o espólio de todos os seus pertences para enviar à família. Possuía tão pouco, algumas quinquilharias e uma roupita tão pobre! O povo português vai morrendo, o nosso David foi apenas mais um.

Os ex-combatentes não foram bem ouvidos pelo país. E o país está hoje a pagar por isso. Claro que os políticos, jovens e ambiciosos, sem escrúpulos e sem convicções, não gostam dos ex-combatentes nem do que eles dizem. Nem querem saber do que eles sentem. Não percebem que os ex-combatentes sentem Portugal. Os soldados sempre lutaram para dar tempo e espaço à política, a fim de resolver os problemas.

Infelizmente os políticos, ou por incompetência ou por má-fé, ou ainda por estupidez, não resolvem. Sobretudo sempre tem faltado aos políticos, em Portugal e não só, a visão estratégica e geoestratégica para as boas decisões pacíficas e de desenvolvimento. Que tem de ser global. Até lá, até se atingir esse patamar, continuará a haver guerras, má distribuição da riqueza e muito sofrimento para muitas populações. Melhores políticos necessitam-se para este planeta. E novos modelos. Este modelo de democracia que se quer impor e dinamizar por todo o lado já provou que, facilmente, fica nas mãos de corruptos e vigaristas. Que depois manipulam as regras da democracia a seu belo prazer e impunidade. É um bug deste modelo de democracia, que permite a falha da segurança das regras e, como consequência, a minagem a partir do seu âmago.

Do excelente blog dedicado a António Quadros com link aí ao lado, remato com esta citação, de lá extraída, do post de 26/1/2010 :

Só o futuro tem realidade atêntica (sic), porque lhe fazemos face constantemente.


Comentário de CV:

Caros camaradas, imaginem aonde nos leva o link "aqui" do início do texto. Exactamente ao nosso Blogue e ao poste 3826* de António Graça de Abreu. Até a citação é retirada do seu livro "Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura" inserta no mesmo poste.
O camarada José Grave desenvolve a partir dali a sua ideia quanto ao tratamento dado aos ex-combatentes da guerra colonial, seguindo-se uns considerandos de ordem política.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3826: FAP (3): A entrada em acção dos Strella, vista do CAOP1, Mansoa, Março-Maio de 1973 (António Graça de Abreu)

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1789: Blogues que nos citam (2): Amante da Rosa ou a Geração das Flores da Revolução de Bissau