segunda-feira, 27 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

Guiné > Zona Leste > Fajonquito > 1964 > Um poilão centenário... Na foto, o irmão do nosso camarada Tino Neves, Sérgio Neves, Fur Mil Mec Auto, que pertenceu à CCAÇ 674 (1964/66) (*) ... Esta subunidade terá sido a primeira passar por Fajonquito (**)... Estranhamente, temos pouca documentação fotográfica sobre Fajonquito... Por outro lado, não têm aparecido no nosso blogue camaradas pertentes a subunidades que tenham passado por Fajonquito, entre 1970 e 1974. Uma delas é CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884 (1972/74). Esperemos que o nosso Chico encontre malta do seu tempo, nomeadamente de Fajonqito, 1970/74...

Foto: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.

1. Mais um texto do Cherno Baldé, membro da nossa Tabanca Grande, autor da série Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (aqui na foto, à esquerda).

Nascido em Fajonquito c. 1960, viu em 1965, em Cambaju, os primeiros homens brancos; aprendeu as primeiras letras, em português, com os militares portugueses. Depois de 1975, foi para Bissau, licenciou-se na Ucrânica em Planificação e Gestão Económica, tendo feito no inícios os anos 9o uma pós-graduação em gestão, em Lisboa, no ISCTE; vive em Bissau, onde trabalha no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau, onde é director do gabinete de estudos e planeamento

É casado desde 1992 com a Geralda Santos Rocha, natural de Bissau.(**)


2. Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (8) > FAJONQUITO (1970 – 1975)

No início dos anos 70, Fajonquito é quase um burgo com muitos milhares de almas. Aqui estavam misturadas várias comunidades. Diferentes subgrupos da comunidade fula (Fulas-pretos, Fulas-forros, Futa-fulas), Mandingas (ou do que restava desta comunidade em consequência da guerra), algumas famílias Balantas, Saracolés, Manjacas e mesmo Bijagós que o comércio do amendoím e a guerra tinham trazido consigo.

O número de Fulas-pretos era maioritário em Fajonquito e seus arredores. A convivência era pacífica mas tensa com muita desconfiança e medo à mistura. A garantir esta convivência de circunstância estavam as autoridades tradicionais, as milícias cujos chefes saiam entre pessoas de confiança ou famílias dos chefes tradicionais e uma companhia de tropas portuguesas comandadas por um Capitão, que de resto, a bem dizer, pouco se metia na vida civil da aldeia.

O ambiente era tão diferenciado quão diferente era o tamanho da aldeia, o número de tropas e o mosaico étnico, social e cultural. O estado de alerta era permanente mas num nível fraco e muito dependente dos postos mais avançados situados nos quatro pontos cardeais: Sare-Wali, Cambaju, Sare-Djamaram, Suna, Cantacunda.

Aqui os acontecimentos da guerra estavam mais relacionados com as deslocações (minas e emboscadas nas estradas), particularmente a estrada para Cambaju, ou ainda as grandes operações para o Oio (Kola-Carresse) que mobilizavam tropas de outros ramos vindas de Bissau, Bafatá ou Bambadinca. Nessas ocasiões nós acompanhávamos tudo até a saída do último soldado. Via-se pelo semblante que o estado de espírito dos que iam para a frente não era muito alegre, salvo raras excepções. Os da retaguarda, invariavelmente, carregavam obuses ou as granadas das bazucas, levando a sua arma nas costas. Na nossa opinião de crianças, isto era das coisas que um soldado não devia fazer.

Entretanto, no meio da população civil e sobretudo a malta jovem, a descontracção era visível e reinava um ambiente de festa e paródia nos fins-de-semana com futebol à tarde e baile de gira-discos à noite. A festa era sobretudo afro, como diziam na época, mas nunca faltava a presença de soldados portugueses, vestidos à paisana ou mesmo fardados à procura de diversão ou à cata de bajudas.

A presença das milícias locais era cada vez menos suportável entre os homens adultos. Eles roubavam as mulheres mais jovens e as bajudas da aldeia, roncando com suas fardas apertadas ao corpo como faziam os comandos africanos e com o dinheiro da cola aos pais que os outros jovens não tinham, com excepção dos professores, claro. O conflito arrastava-se em surdina mas as autoridades, de forma geral, controlavam a situação. De vez em quando transferiam os mais recalcitrantes.


O quartel de Fajonquito: um autêntico fortim

Em Fajonquito, foi difícil conseguir entrar no quartel. Comparado com Cambaju isto aqui era um autentico fortim, com sentinelas nas duas portas de entrada e arame farpado de todos os lados, confeccionado tão meticulosamente que mesmo um gato não conseguia penetrar. Notava-se que o número de tropas era muito maior mas pareciam menos amistosos.

Algumas crianças entravam e saíam mas eram sobretudo mulheres solteiras e meninas que o faziam. Eram lavadeiras ou lava-tudo, como as más-línguas lhes chamavam. O movimento de viaturas junto à saída era permanente e havia de todos os tipos, desde o pequeno Jeep do Capitão ao imponente Berliet Tramagal que esmagava as minas nas picadas, como diziam as crianças. Também havia o Unimog e o Wheels [?]. Este último, era o nome dado pelos populares, ao tipo de veículo pequeno, parecido com o Unimog. Normalmente as pessoas civis detestavam este tipo de veículo devido aos solavancos que dava nas estradas. [, Wheels era um jipe, o Cherno deve querer referir-se o burrinho, o Unimog 411].

Na primeira tentativa de entrar pela porta de armas levei com um pontapé do sentinela. O primeiro que, por sinal, seria seguido de muitos outros. Este primeiro doera a valer tendo batido com a cara no chão, pois ainda não tinha aprendido a técnica de os receber ou esquivar. Mais tarde, o desafio seria de não só saber esquivar-se mas ser capaz de identificar o perigo de longe.

A maior ameaça dentro do quartel eram os pontapés que podiam vir de todos os lados. As melhores surpresas eram os pedaços de pão com marmelada ou melhor ainda com chouriço. Quando tinha a sorte de conseguir aqueles chouriços vermelhos, tirava o pedaço dentro do pão e metia-o dentro do bolso assim, para o comer aos pedacinhos durante muito tempo, longe dos olhares dos outros, com aqueles arrotos saborosos.

Um dia a minha avó, que era intrometida e gostava de controlar a vida dos outros, disse a minha mãe:
- Olha, filha, toma cuidado com o Cherno Abdulai, pois ele anda metido há tanto tempo no meio desses descrentes que já cheira a carne de porco.

Era esperta a minha avó que, certamente, teria encontrado um daqueles pedacinhos de chouriço nos meus bolsos. Quando a queria provocar, trazia do quartel, a massa de esparguete. Na opinião dos mais velhos, os esparguetes eram bichos (germes) da raça das minhocas que os brancos secavam e quando as metia dentro da boca todos fechavam os olhos horrorizados e fugiam para não ver a insuportável cena. Por motivos religiosos o meu pai proibia a entrada da sopa dentro da casa. As únicas coisas que admitia eram as latas de sardinha ou a Coca-Cola.



O único fula-forro no meio do grupo

Passei os primeiros meses a familiarizar-me com os colegas. Por força do meu talento com a bola consegui entrar facilmente no grupo de elite da aldeia, com Sambaro Djau à testa, o chefe mais tirânico que conheci em toda a minha vida. Se acontecia a equipa perder com outra, ele embirrava com toda a gente e maltratava os mais fracos como era o meu caso. Se acontecia a equipa ganhar ai, em vez de satisfação, ele era cometido de uma raiva doentia e sempre inventava um outro desafio desta vez de boxe ou coisa parecida, entre os elementos da equipa, para nos arreliar até às últimas. Nós o detestávamos mas ele continuava a ser o chefe e ditava as regras no grupo.

Eu era o único fula-forro do grupo por isso sofria de uma dupla opressão. Era odiado por ser fula-forro, a classe dominante no regulado mas também por ser filho de um logeiro, logo de uma família que não conhecia as dificuldades comuns de uma existência bastante dura na época.

Alheio a esta adversidade de que não tinha consciência, lutava diariamente para merecer respeito e conquistar um lugar entre aqueles que no seu subconsciente detestavam tudo o que eu representava. Tinha um irmão mais velho (o Carlos) com quem partilhava as aventuras desde sempre mas que, sendo mais cuidadoso que eu, nunca se tinha metido no meio desses grupos de aldeia.

Mais tarde juntou-se ao nosso grupo o Camões. O seu nome era Suleimane mas logo passou a ser o nosso Camões pois por qualquer motivo quando olhava para alguém, fechava ligeiramente um dos olhos. Foi o Magalhães, um condutor, que lhe deu o nome, e nós pegamos porque era mesmo divertido. No incio ele detestava mas com o passar do tempo e a insistência dos colegas não tinha outro jeito. No nosso entender, todos os zarolhos eram Camões, porque o próprio o era, nada mais normal na cabeça de uma criança da época.


A hierarquia dos tugas, segundo o Camões

O Camões era muito bom observador, e ele ajudou-nos a dar os primeiros passos na vida de rafeiro que era a nossa no quartel. Ele nos ensinou com mestria as técnicas de identificar as ameaças e oportunidades e de fazer frente aos perigos. A lição começava na identificação do perigo latente a partir do simples ambiente do momento, a fisionomia dos soldados ou a sua maneira de andar. Mas, o grande problema é que ele via perigo em quase tudo, o que tornava impossível apreender e aplicar todas as técnicas do seu manual de rafeiro.

Entre os maus e mais perigosos, segundo a tabela de Camões, figuravam: Os soldados altos e esguios, os baixinhos e magros, os cabelos ruivos, os de andar apressado, os olhos de gato, os solitários, os alcoólatras, os melancólicos, os excessivamente asseados e aprumados, os bigodatos, enfim, quase todos. Nesta sua classificação, os bons (melhores) eram sempre os atletas (não muito altos, não muito baixos, não muito magros, nem gordos, sem bigodes ou bigodes curtos, os morenos etc.). Nesse grupo entravam os futebolistas e os vagabundos (inofensivos sem uma característica especifica) que passavam a maior parte do tempo metidos aldeia adentro ou a caçar pássaros na orla da bolanha com um bando de crianças.

Nas especialidades, ele preferia os homens das equipas de apoio ou da logística, como sejam os vagomestres, cozinheiros, condutores, mecânicos, pessoal dos combustíveis, dos correios, das transmissões etc. Aconselhava a todos que o quisessem ouvir, ficar longe dos operacionais ou dos tigres, como ele os chamava.
- Esses são assassinos, fujam deles!... - dizia o Camões, tentando fixar-nos com aquele seu olho esmiuçado.

Os oficiais não entravam nesta tabela classificatória. Na verdade, eles constituam uma classe a parte a que as crianças tinham pouco acesso, da mesma forma que não tínhamos acesso, nas nossas sociedades, ao mundo dos adultos, situação que não nos atrapalhava em nada. Em contrapartida e apesar da fachada que os cobria de importância sabíamos que eram os campeões de fodas com as bajudas e, sobretudo, as mulheres lava-tudo pois, no lixo, por detrás da caserna onde dormiam alguns oficiais da segunda linha, se assim se pode dizer (Furriéis e alguns Sargentos), encontrávamos todos os dias, uma boa quantidade de preservativos com o líquido cor púrpura a brilhar lá dentro.

Oficialmente malandros, também eram os mais politizados, senão os únicos. Apesar dessa eficiência sexual, eram discretos, bons conhecedores do meio envolvente e com excelente domínio de si pelo que raramente se metiam em problemas com os nativos.

Tinha criado o hábito de passar por esta caserna de oficiais, regularmente, por duas razões: Primeiro, porque reciclava o lixo que era de melhor qualidade comparativamente as outras casernas mas também, porque junto de uma das janelas, um dos seus ocupantes gostava de coleccionar latas de conserva que não consumia e eu, passando por ali ia fazendo as contas e verificar se o produto continuava lá no intuito de um dia conseguir aproveitar-se dele. Entre mim e as latas estava uma ténue rede de mosquitos e o perigo de ser surpreendido no acto. Quando finalmente as conseguimos roubar, depois de meses de rondas e de cálculos, tivemos uma grande decepção, pois da dezena de latas surripiadas, mais de metade continha carne de chocos ou lulas que, acto contínuo, deitámos fora pois, a mentalidade comunitária da época, bastante arcaica, atribuía este tipo de carnes a diferentes tipos de bichos que os brancos comiam na sua terra (insectos e répteis) que entre nós criavam horror. Infelizmente não podia devolvê-las ao(s) dono(s) pois, durante a operação resgate tinha rasgado a rede da janela do oficial de alto a baixo com uma enorme faca de mato daquelas que os soldados levavam a cintura.

Bissau, Julho de 2009.
Cherno A. Baldé

[Revisão /fixação de texto / bold a cores / subtítulos: L. G. ]
_________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

24 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2127: Estórias de vida (5): Sérgio Neves, meu irmão, um homem bom (Tino Neves)

Vd. também: 6 de Julho de 2007 >Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)



(**) Vd. postes de 3 de Abril de 2009 >Guiné 63/74 - P4136: As Unidades que passaram por Fajonquito (José Martins)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2266: Quem conhece o Inácio Maria Góis, autor de O meu diário, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66) ? (René Pélissier)

30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4111: Em busca de... (68): Furs Mils Andrade e Cabrita Martins que estiveram em Fajonquito entre 1971 e 1973 (Maria Filomena Correia)

3 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4135: Em busca de... (70): Fur Mil Andrade e Cabrita Martins que estiveram em Fajonquito entre 1971/73 (Afonso Sousa)

6 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4145: Tabanca Grande (131): José Cortes, ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito (1972/74)

17 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLV: Notícias do BCAÇ 3884 (Bafatá, Contuboel, Geba e Fajonquito, 1972/74) (Manuel Oliveira Pereira)


(***) Vd. postes anteriores da série Memórias do Chico, menino e moço:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

Vd. também:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)

20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P4745: Tabanca Grande (166): Carlos Farinha, ex-Alf Mil da CART 6250/72, Mampatá e Aldeia Formosa, 1972/74

1. Mensagem de Carlos Farinha, ex-Alf Mil da CART 6250/72, Mampatá e Aldeia Formosa, 1972/74, com data de 24 de Julho de 2009:

Luís, Amigos e camaradas

Já há algum tempo que, por mero acaso numa pesquisa na internet pela palavra Guiné, descobri o vosso blogue. Confesso que fiquei surpreendido por haver tanta gente com histórias e textos tão bem escritos em que se pormenoriza e se datam acontecimentos vividos. Fui até um pouco crítico quanto à bondade do relembrar, do reavivar certas memórias que a todos, duma forma mais ou menos intensa, nos marcaram. Hoje, visito o blogue com alguma frequência e, confesso que, quer pela leitura de vivências doutros camaradas, quer pela quantidade de testemunhos descritos, já consigo ir relembrando a minha experiência e falar dela como algo que pertence ao nosso passado individual e que não nos envergonha.

Nesta lenta transição do país para uma vivência democrática plena, decorridos que são mais de 35 anos após a queda do regime que tanto nos maltratou, parece que nós os que decidimos não desertar, embora a vontade de fugir não faltasse, cometemos algum crime de que tenhamos de nos envergonhar. Como bem sabem, depois de termos sido usados e deitados fora, nunca mais nenhum organismo oficial se preocupou connosco, se precisávamos de algum apoio, assistência, nem um simples questionário! Houve até um tempo, em que falar do nosso passado não era politicamente correcto. Desculpem-me por este desabafo, mas é o que sinto.

Venho pedir que me aceitem na vossa Tabanca Grande e, embora do meu passado guineense não me lembre de histórias pormenorizadas com datas e lugares ou tenha grande jeito para as contar, prometo que alguma coisa se há-de arranjar.

As apresentações:

Sou Carlos Farinha, pertenci à CART 6250 sediada em Mampatá (Aldeia Formosa, hoje Quebo), era Alf Mil e comandava o 1.º Grupo de Combate. Fiz o serviço militar de Julho de 1971 a Outubro de 1974. Fui mobilizado para a Guiné em Junho de 1972, tendo regressado à Metrópole em meados de Outubro de 1974. Hoje, moro em Coimbra.


Fotografias que quero partilhar:

Foto 1 > Saída para o mato em Mampatá

Foto 2 > Centro da aldeia e quartel de Mampatá

Foto 3 > 1.º GComb em farda de descanso

Foto 4 > Uma das luxuosas casernas

Foto 5 > Frente de trabalhos da estrada Mampatá/Nhacobá em construção

Foto 6 > Uma caserna do nosso Destacamento em Colibuia

Foto 7 > Uma caserna do nosso Destacamento em Colibuia

Foto 8 > Mampatá, JUN74 > Encontro com elementos do PAIGC

Foto 9 > Mampatá, JUN74 > Encontro com elementos do PAIGC

Foto 10 > Mampatá, JUN74 > Encontro com elementos do PAIGC

Foto 11 > Mampatá, JUN74 > Encontro com elementos do PAIGC


Foto 12 > Mampatá, JUN74 > Encontro com elementos do PAIGC

Fotos e legendas: © Carlos Farinha (2009). Direitos reservados.


Despeço-me com amizade
Carlos Farinha

************

2. Comentário de CV

Caro camarada Carlos Faria
Bem-vindo à nossa Tabanca virtual, onde, se bem lembro, tens já três camaradas, Furs Mil José Manuel Lopes e António Carvalho e, o Cap Mil Luís Marcelino, entrado recentemente para a Tertúlia.

Cada camarada que chega até nós e confessa que lendo o nosso Blogue ganha forças para lembrar e falar do seu passado de combatente, assumindo-o sem complexos ou sentido de culpa, é um bálsamo para continuarmos este trabalho a que nos propusemos.

Não precisas de pedir desculpa por estares a desabafar connosco. O fim do nosso blogue é precisamente que se conte as boas e más experiências da nossa passagem pela guerra da Guiné, servido as mesmas como repositório de uma história que queremos deixar, contada na primeira pessoa, e que ao mesmo tempo sirva de catarse a quem as narre.

Consulta por favor o lado esquerdo da nossa página onde te poderás inteirar dos nossos princípios, aquilo que (não) somos e as nossas normas de conduta.

Pretendemos discutir tudo o que se relacione com a guerra da Guiné, tão abertamente quanto possível e com a maior lisura, respeitando sempre as opiniões contrárias à nossa.

Recebe caro Carlos um abraço de boas-vindas de toda a tertúlia.
Carlos Vinhal
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4742: Tabanca Grande (165): António Dâmaso da CCP 123/BCP 12, Guiné, 1969/71

Guiné 63/74 - P4744: Estórias do Juvenal Amado (18): Romão, o único prejudicado

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 25 de Julho de 2009:

Caros Luís, Carlos, Virginio, Magalhães e restante camaradas da Tabanca Grande

Esta é mais uma estória que envolve alguma solidariedade, que se praticava e como se tentava proteger quem achavamos mais limitado fisicamente.

Quanto ao tenente Raposo quero deixar bem claro que era um homem bondoso que nunca aplicou um castigo a ninguém. Quando nos juntamos nos nossos almoços o seu nome é sempre falado com amizade.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O ÚNICO PREJUDICADO FOI O ROMÃO

O Romão pertencia ao Pel Rec, mas era dado assente que ele nunca aguentaria fisicamente o esforço, que lhe seria exigido durante a comissão.
De fraca figura magro, era quase considerado a mascote e todos o ajudavam a superar as dificuldades, que a sua especialidade impunha.

O seu estado físico piorava a olhos vistos, urgia pois arranjar uma solução que o tirasse do mato.
Assim pediu-se ao Furriel Castro, responsável pela cantina dos praças que intercedesse de forma que o Romãozinho passasse para cantineiro acabando assim com as preocupações, que os camaradas dele tinham quando iam para as operações.

Assim foi, o Romão passou a vender cervejas, coca-colas, etc. Esqueceu a G3 bem como as picadas e as caminhadas ao sol abrasador.

Nem sempre facilitava a vida a quem tanto se preocupou com ele é bem verdade, havendo por vezes comentários ácidos em relação à abertura e fecho da respectiva cantina.

Lá foi fazendo a sua vida da forma mais calma que podia, até que um dia o impensável aconteceu. O valor resultante do dia de vendas desapareceu. Não me lembro dos valores em causa, mas era muito dinheiro para o Romão conseguir repor.

É afastado de imediato das funções e substituído por outro soldado do Pel Rec que se fez operar às unhas encravadas e por último ao prepúcio que muito o incomodava segundo ele dizia.

Tudo isto não fez aparecer o patacão, e a solução passou pelo aumento dos produtos que nós consumíamos, até perfazer o valor em falta.
Assim foi cada cerveja mais X, cada coca-cola mais Y, durante bastante tempo à boa lógica dos governos quando impõem impostos.
Lá fomos pagando, mas a coisa tendia a eternizar-se. Os camaradas das outras companhias, quando nos visitavam, queixavam-se e nós também.

Nós condutores constatávamos pelas diversas cantinas da zona Leste que a nossa era de longe a mais cara. Começou o falatório como era de esperar.
Numa bela manhã, na formatura do primeiro almoço onde normalmente duas dúzias de camaradas respondiam pela Companhia toda fazendo ginástica com a vós, de forma a que cada um respondia por vários, o tenente Raposo fez a costumeira pergunta - “alguém tem alguma coisa a dizer”?

Normalmente teria como única resposta entre dentes - “adeus ou vai-te embora”. Mas desta vez foi diferente - ”ó meu tenente porque razão nós continuamos a pagar muito mais caro os produtos da nossa cantina do que nos outros destacamentos

O homem mudou de cor - ”queres ver que levas já uma chapada nas trombas meu bandalho?” “Queres tu dizer que sou eu que fico com o dinheiro para mim?”. “Malvada a hora em que me meti com esta tropa fandanga” - lastimou-se.

Sendo ele oriundo da Guarda Fiscal onde era 1.º Sargento, habituado a lidar com homens de certa idade, convivia mal com a nossa pouca idade e as nossas maluqueiras.
E lá continuou agora já de papel na mão, “dá cá o teu número ó bardamerda”.
O resultado desta cena foi os preços terem baixado aos consumidores.

Muito mais tarde, o dinheiro desaparecido apareceu dentro de uma caixa inexplicavelmente, como inexplicável foi o seu desaparecimento.

E como o nosso povo muito bem diz, “uma mão lava a outra” os produtos da nossa cantina baixaram, para nos ser reposto os meses que pagamos a mais.

Só ao Romão não foi reposto o que lhe tiraram.

Juvenal Amado
25.08.009

Visita do General Bettencourt Rodrigues a Galomaro

Tenente Raposo

Passos, Ivo, Catroga, Setã, Alfredo, Silva, Ferreira, Romão e Viseu

Fotos e legendas: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4509: Estórias do Juvenal Amado (17): Ataque a Campata

domingo, 26 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4743: Estórias avulsas (13): O dia em que o Pinto piou (Vasco Joaquim)

1. Mensagem de Vasco Joaquim (*), ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72, com data de 23 de Julho de 2009:

Caros amigos, Luís, Vinhal, Briote, Eduardo e toda a Tabanca Grande

Esta é mais uma estória passada em Galomaro no ano de 1971, provavelmente Maio/Junho, acerca de um levantamento de rancho, na CCS/BCaç 2912, iniciado pelo Pinto, salvo erro do Pel Rec, no qual participei juntamente com o condutor Brito e terminou em todas as praças.


O dia em que o Pinto piou

Pois bem - comia-se mal em Galomaro - não passávamos da bianda com estilhaços (arroz com naquitos de carne) num dia, para no dia seguinte a ementa apresentar esparguete com fiambre ou salsichas, (enfim... a dieta constante).

Sempre o mesmo tipo de sopa branca (sopa dos enfermos). Bife? - Só quando o rei fazia anos... e o maroto nunca se lembrava do aniversário ou pelo menos, poucas vezes o fazia.

Fruta metropolitana - em toda a comissão, coube a cada um de nós meia maçã. Claro que tínhamos o ananás, o mango, a banana, a papaia, mas essas, tínhamos de ser nós a fazer pela vida.

Enfim... passávamos fome, e só não a passava quem tinha um resto de patacão, para uma vez ou outra, se dirigir ao mini-restaurante do Regala, e procurar esquecer a ementa servida no Restaurante Morte Lenta da CCS.

Certo dia o Pinto, já referido, ao aproximar-se a hora do almoço saíu-se da casca e piou. Na formatura combinámos que ninguém comeria a bianda que iria ser servida.

Como me encontrava de Cabo de Dia, fui incumbido pelos camaradas de avisar as mesas, onde o condutor Brito colaborou. Claro que ninguém tocou nas terrinas. Nesse dia o almoço foi ração de combate.

O certo é que no dia seguinte estávamos a comer que nem lordes (o pianço deu resultado) e no decorrer do almoço tivemos a honra de ser visitados pelo Homem Grande de Bissau (Spínola) que mandou chamar o condutor Brito, tendo uma conversa com ele. Ficámos a saber que o Brito, tinha grandes conhecimentos em Bissau, a ponto de ser visitado pelo Comandante Chefe no mato, pois ele já tinha alertado alguém para os problemas de alimentação que tínhamos em Galomaro. Foi isto que constou.

A partir daí passámos a ser melhor alimentados e partilhávamos por vezes com os camaradas páras (havia sido colocada uma companhia de páras em Galomaro, por motivo de haver conhecimento de movimento de guerrilheiros na zona), retribuindo o que eles antes nos faziam a nós quando passámos pela amargura alimentar...

Ainda bem que o Pinto piou e o Brito ajudou, pois se assim não fosse, a comissão teria sido mais penosa, já que ainda faltavam 9 meses para o fim.

É destas pequena estórias, que embora com humor, vamos contando verdades e nos vão aliviando de pensamentos que teimosamente fazem parte da nossa vida.

Um abraço para toda a Tabanca

Vasco Joaquim
Ex-1.º Cabo Escriturário
CCS/BCAÇ 2912
Galomaro
1970/72
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4729: Tabanca Grande (163): Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72

Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4720: Estórias avulsas (45): Uma estranha emboscada, CCAÇ 462, 1963/65 (José Marques Ferreira)

Guiné 63/74 - P4742: Tabanca Grande (165): António Dâmaso, CCP 123/BCP 12, 1969/71

1. Primeira mensagem de António Dâmaso com data de 15 de Junho de 2009:

Caro camarada Luís Graça.

Apresenta-se o periquito António Dâmaso, de Odemira, pedindo a inscrição no almoço do dia 20 em Ortigosa só para mim.

Informo que fui pára-quedista, e era na altura o comandante do grupo de combate a que pertenciam os três páras que ficaram sepultados em Guidage e que vieram no ano passado.

Oportunamente darei a minha versão sobre esses acontecimentos.

Junto envio as duas fotos exigidas.

Um abraço do camarada
Dâmaso



2. Em 30 de Junho foi enviada mensagem ao nosso novo camarada:

Caro António Dâmaso:

Enquanto não te apresentas formalmente à Tertúlia, diz-me por favor o teu antigo posto nos Páras, Companhia e datas de chegada e saída da Guiné.

Se quiseres manda já um pequeno resumo da tua actividade na Guiné e apresento-te definitivamente.

Depois podes ir mandando coisas que aches importantes para o Blogue. Fotografias legendadas, textos, etc.

Convivi um pouco com os Pára-quedistas durante a sua permanência em Mansabá, por volta de 1970/71 e tenho de vós as melhores impressões.

Fico a aguardar as tuas notícias.
Até lá, recebe um abraço
Vinhal


3. Mensagem de António Dâmaso, com data de 20 de Julho de 2009:

Caro camarada Luís Graça e Co-Editores:

Aqui vai o relato da minha segunda comissão na Guiné.

Bissalanca, 1969

Em 20 de Julho de 1969 estava em Bafatá

Hoje o meu pensamento vai para o soldado desconhecido, digo eu, refiro-me àquele militar, com ou sem patente, que estava lá, contribuía com o seu esforço para o conjunto, como formiga obreira, mas que, por não ter cunhas, não ser engraçado nem engraxador, via as benesses passar-lhe ao lado, não havia prémios do Governador da Província, nem promoções a cabo, nem férias, em resumo nada de nada, no entanto lá ia procurando manter-se vivo, com a agravante de passar uma comissão a viver em buracos sem as mínimas condições.

As minhas palavras valem o que valem, sabemos que dois observadores colocados no mesmo ponto, cada um tem a sua visão dos acontecimentos e depois na narração, cada qual compõe o ramalhete à sua maneira.

Por outro lado, a sensibilidade para suportar a dor e outras situações traumáticas, varia de indivíduo para indivíduo, daí que apareçam alguns armados em valentes, que dizem que não foram stressados, apanhados pelo clima e até marados, mas pior ainda, são os que foram tudo isto e não são capazes de o admitir.


Vou falar da minha segunda comissão na Guiné e dos motivos que me levaram a ir para lá segunda vez:

Quando regressei da primeira comissão, depois das férias, apanhei a escala de serviço, com cinco fins-de-semana seguidos com começo à sexta ao render da parada e fim na segunda à mesma hora.

Depois foi uma instrução de Combate, seguidamente uma recruta, com três instruções nocturnas por semana que me impediam de ir a casa embora só morasse a cerca de 10 Km, depois foi a informação de que estava à bica para ser nomeado para Moçambique, isto levou a que me oferecesse novamente para a Guiné, por já conhecer e estar convencido de serem só 18 meses.

Cheguei à Guiné, ao BCP 12, em 20 de Março de 19699, ia a contar ir para uma companhia operacional, mas devido à minha especialidade, mecânico desempanador auto, fui aumentado ao efectivo da CMI, (Companhia de Material e Infra-estruturas) passando a desempenhar as funções de chefe de movimento no pelotão de transportes auto.

Como não ia para o mato, mandei ir a família, estava tudo a correr bem, até que um dia escalei umas viaturas para irem transportar uma companhia que regressava do mato, os militares saíram da viatura e de imediato colocaram-se uns à frente e outros atrás e procederam à acção de desarmar, o material de guerra, o condutor buzinou para que o deixassem passar.

Veio de lá o tenente, comandante do pelotão, sacou o condutor do lugar e deu-lhe uma valente sova a que eu assisti.

O militar que estava debaixo das minhas ordens directas, chegou junto de mim a chorar de raiva, como não gosto de abusos desta natureza, disse-lhe que lhe assistia o direito de queixa, mas que tinha de dar conhecimento ao superior.

Redigi-lhe a queixa e lá foi ele dar conhecimento ao tenente que se ia queixar, este deu a volta ao rapaz, que não apresentou queixa nenhuma e eu, passados três ou quatro dias sem que ninguém me tivesse dito nada, fui transferido para a CCP 122 e com a G3 nas unhas e mochila às costas colocado no pelotão do citado senhor oficial isto a 29 de Maio de 1969.

Em 30 marchei para Mansabá onde estava a Companhia, sem que eu o soubesse, começou aqui uma perseguição que me deu cabo da vida militar para sempre com graves reflexos para a vida privada e familiar, só vim a saber em 1975, pelo facto do mesmo se ter gabado do feito, com alguns ouvintes que depois me deram conhecimento, até aí foi-me acontecendo de tudo, sem eu saber de onde vinha o mal.

A missão da Companhia na altura era fazer segurança à estrada que estava a ser construída entre Mansabá e Farim, dar protecção às colunas auto efectuadas entre Mansabá-Mansoa e vice-versa, para descansar íamos fazendo uns Heli-assaltos.

Foi assim que tomei parte na Operação Orféu, juntamente com a 15ª Companhia de Comandos, na zona de Bula no dia 13 de Junho de 1969, onde se fizeram alguns mortos, prisioneiros e se apanhou muito material de guerra, nesta operação fui colocado na segunda vaga, no outro extremo da mata, tendo como missão a limpeza e destruição.

No dia 20 de Junho de 1969 tomei parte na operação Nestor também na zona de Bula, Choquemone, mais uma vez na 2.ª vaga, destruição e limpeza, mais prisioneiros, mais material, vi coisas que me chocaram entre elas, o cavalheiro Tenente estar a dar um tratamento a um prisioneiro, tendo este as mãos atadas atrás das costas, pelos vistos, gostava de malhar nos mais fracos.


Rumo à CCP 123, com escala em Teixeira Pinto

No início de Julho fui com a CCP 122 para Teixeira Pinto, via auto e os cicerones lá iam informando o periquito que era eu, dos locais onde tinham havido emboscadas às nossas tropas, confesso que aquela mata metia respeito.

Depois de três dias em Teixeira Pinto, a caçar umas perdizes junto à pista, pombos verdes nas mangueiras, apanhar algum marisco, estava a ambientar-me, até que, no dia de Julho de 1969, enfiaram-me numa DO 27 rumo a Bissalanca.

Chegado ao BCP 12, estava lá uma CCP(-) que passaram a chamar de CCP 123. Esta Companhia tinha sido formada em Tancos com destino a Angola, mas à última hora, foi parar à Guiné como reforço, alguns dos graduados intervenientes não gostam do nome CCP 123 e preferem chamar-lhe grupo expedicionário, mas nos relatórios de operações consta CCP 123.

Recebi ordens para integrar a mesma, o Comandante já o conhecia da primeira comissão, tinha lá estado como Alferes, alguns dos Sargentos também lá tinham estado, até aí tudo bem.

De armas e bagagens, embarcámos no Cais de Bissau numa LDM, ou LDG, não me lembro qual delas, lá navegámos Geba acima até Bambadinca, passámos por um estreito em que o rio era como que feito por medida para a Lancha passar, se não estou em erro, chegados a Bambadinca, viaturas até Bafatá e ficámos aboletados no Esquadrão de Cavalaria FOX.

No dia 11 de Julho de 1969 embarcámos nas viaturas com destino a Galomaro e aí tomámos os helis para a operação Sátiro que durou dois dias na zona de Padada-Jábia, além da CCP 123, participou a CCAÇ 5. No dia 12, fomos recuperados de Heli para um Acampamento e deste para Nova Lamego, de onde seguimos via auto para Bafatá.

Quando estávamos a chegar vimos os Helis a aterrar pela ordem de aproximação e o Heli-canhão a dar mais uma volta tendo tocado com a ponta da Hélice numa das antenas rádio, enrolou vindo a despenhar-se no solo. Como se incendiou, as munições do canhão começaram a rebentar em todas as direcções sem que nada se pudesse fazer para os tirar daquele inferno de chamas. Aquela cena lancinante, causou-nos a todos grande consternação e pesar, ali ficaram mais duas vidas a do piloto e do apontador do canhão.

Bafatá, 1969

Nos dias 17 a 19JUL69, outra vez na zona de Padada concretizámos a operação Marduque , desta vez só com a CCP 123.

De 24 a 30 de Julho de 1969, operação Atena, zona de Duas Fontes e Padada, com a participação de 3 GComb da CCP 123, 1 GComb da CCP 121 e a CCAÇ 2446.

Depois apareceu a minha grande dor de cabeça, que era a Guerra de quadrícula, sempre tive o entendimento de que as tropas especiais, eram para intervenções rápidas, ou não, também para servirem de reserva, mas pelos vistos, a situação não estava para brincadeiras.

Comecei a operação Nereu 1.ª fase que foi de 31 de Julho a 31 de Agosto de 1969 nas zonas de Madina do Boé, Dulombi, Bilonco e Madina Xaquili. Actuaram connosco, além da CCP 123, a CCAÇ 2405 e CCAÇ 2446.

Lembro-me que numa das operações de dois dias, tivemos de atravessar o mesmo rio, quatro vezes seguidas, para não andarmos mais quilómetros a contorná-lo. Chegámos a Galomaro já depois do meio-dia, mas tínhamos à nossa espera uns franguinhos de churrasco. A fome era tanta, que nunca mais comi frangos que me soubessem tão bem.

No decorrer deste período, ou não, julgo que a 24 de Julho de 1969, não posso precisar a data, um dia à tarde chegámos a Dulombi, na altura era uma tabanca com algumas palhotas com abrigos, valas e arame farpado à volta, com uma espécie de portão de entrada na estrada de Galomaro a poente, e a sul outro portão que dava para a mata, íamos passar lá a noite, e de futuro serviria de acampamento base.

Sempre tive um acordar estremunhado quando estava no primeiro sono, mas naquela noite, quando estava no primeiro sono, fui acordado com um festival de fogo-de–artifício, rebentamentos por todo o lado, balas tracejantes cruzavam o céu, o meu acordar foi igual a outros, mas notei que o meu maxilar inferior, teimosamente batia ritmadamente no maxilar superior, durou alguns segundos até me aperceber do que se estava passar, rapidamente cerrei o os dentes e analisei a situação e vi que o ataque não era do nosso lado, mandei cessar o fogo que estava a ser efectuado para o lado do portão sul.

A minha secção estava na parte sul, onde existia o tal portão. As balas tracejantes passavam por cima de nós, apesar de muitos rebentamentos à nossa volta, ninguém foi atingido. Liguei o rádio, chamei, como não obtive resposta, desliguei. Quando estava a preparar-me para dormir novamente, apareceu-me um camarada a saber se estava tudo bem, escandalizado por eu não ter mantido o rádio ligado. Nessa altura fiquei a saber que o ataque foi efectuado do arame farpado, à esquerda da entrada e que havia a lamentar uma baixa da CCAÇ 2446, que foi recuperada no dia seguinte por elementos do ESQ FOX. Começara aqui o meu baptismo de fogo em ataques nocturnos.

Também estivemos em Bivaque, em tendas de campanha junto do aquartelamento de Galomaro, depois iniciou-se a operação Nereu 2.ª fase de 1 de Setembro a 11 de Outubro de 1969, novamente em conjunto com as duas companhias já citadas e nas zonas de Duas Fontes, Cansissé, Contabane e Padada.

Durante a minha permanência no Gabu, fui duas vezes a Bissau à boleia, uma vez de Heli e outra de Cessna (?) dos TAGCV, para tentar resolver problemas de saúde familiar, regressei ambas as vezes em DC 3 Dakota, com o nosso saudoso camarada Fur Vitorino, meu vizinho na altura. Depois da guerra veio a ser vítima de acidente aéreo na Ilha Terceira com um aviocar.

Problemas familiares e transferência para a CCP 121

A minha mulher contraiu malária e teve de ser internada no Hospital Civil em Bissau. Depois de curada ficou com os nervos em franja, enfrascava-se em comprimidos e tinham de ser as vizinhas a tomar conta da minha filha de 18 meses, situação que me levou a requerer a passagem ao SG da FAP, tendo a mesma sido indeferida posteriormente.

Findos os três meses, os oficiais e sargentos seguiram rumo a Angola e as praças foram integradas nas Companhias existentes no BCP 12, eu fui transferido para a CMI.

Coincidência ou não, baixei a guarda e como resultado, em 14 de Abril fui punido com 5 dias de prisão e em vez de iniciar o cumprimento da pena, fui de imediato transferido para a CCP 121 de que o citado oficial era comandante.

No dia 16 fui a caminho do Guileje que já na altura estava a ferro e fogo, não havia nada para comer a não ser feijão com chouriço, eu andava de diarreia, nem os ataques com morteiros 120 me tiravam das latrinas, quando saía para o mato levava o tempo de calças na mão.

A fome era de tal ordem que os cães na tabanca começaram a desaparecer. Uma hiena que caiu numa armadilha foi comida e até os abutres, diziam os rapazes, que de vinho e alhos eram um pitéu. Quem lá esteve nesta data sabe que isto não é invenção.

Neste período tomei parte nas seguintes operações:

Operação Lobo Verde de 20 a 30 de Abril de 1970 na zona de Guileje e Gadamael Porto. Também tomaram parte a CCAÇ 2617 e CART (?

Operação Lacrau Verde, 29 de Abril de 1970, no Corredor do Guileje, juntamente com uma equipa de sapadores do BART 2866. Nesta operação fomos ao local onde o IN tinha ido com uma viatura carregada de granadas que despejou sobre o aquartelamento, seguidamente fomos ao Corredor colocar minas anti-carro.

Operação Leão Verde , 30 de Abril de 1970, no Cantanhês, fomos até Gadamael Porto de viaturas e depois de Heli-assalto, não houve contacto, destruímos acampamentos.

Muito tempo depois, vim a saber que aquela minha ida repentina para o Guileje tinha sido um teste, porque a vontade de alguém era correr comigo para o Exército, destino que muitos camaradas tiveram.

Recordo que no decorrer da operação de 11 e 12 de Julho, no local do heli-assalto, estava um burro que os guerrilheiros deixaram ficar, foi o único burro de 4 patas que vi em toda a Guiné.

No dia 12, fomos heli-trasportados para um acampamento do Exército, onde circulava o boato que um alferes tinha sido evacuado por ter sofrido de doença súbita de Priapismo. Trata-se nada mais, nada menos de uma erecção dolorosa e prolongada por mais de seis horas.

Depois disto gostava que alguém desse notícias do Senhor Viagra.

Não inventei datas, as mesmas constam dos relatórios de operações, embora a CCP 123 tivesse actuado isolada as outras forças estavam no terreno.

Saliento que fui muito bem recebido pelos camaradas do Exército, que estavam em Galomaro e do ESQ FOX de Bafatá.

Saudações para todos os camaradas

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > Da direita para a esquerda: O António Graça de Abreu (CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), mais dois camaradas da FAP: o António Martins de Matos, ex-Ten Pilav (BA 12, Bissalanca, 1972/74), e o António Dâmaso, ex-páraquedista (BCAP 12, BA 12, Bissalanca, 1972/74).

António Dâmaso do prestigiado Batalhão de Caçadores Pára-quedistas, BCP 12 participou no IV Encontro da Tertúlia.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4735: Tabanca Grande (164): Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil da CART 2519, Buba, Mampatá e Aldeia Formosa, 1969/71

Guiné 63/74 - P4741: Convívios (155): Pessoal dos BCAÇ 237/599, PEL MORT 912 e PEL AM DAIMLER 807 - Como/Cufar/Tite 1964/66 - (Santos Oliveira)


1. Mensagem do nosso camarada Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, esteve no Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66:


CONVÍVIO

BCAÇ 237/599, PEL MORT 912 e PEL AM DAIMLER 807

ORDEM DE OPERAÇÕES - 05SET09

Por ordem do Comando de Sector de TITE, são convocados todos os Veteranos, que pertenceram a estes Batalhões e Pelotões Independentes, para um GOLPE DE MÃO a levar a cabo no Restaurante FLOR DO PARAÍSO (Estrada Nacional 109 5087-Tel.227 531), em Arcozelo - V.N. de Gaia.

A hora de início da Acção, será conforme a seguinte ORDEM DE OPERAÇÕES.

Concentração das Forças junto á Santa Maria Adelaide, Arcozelo, Vila Nova de Gaia.

NOME DE CÓDIGO:

CONVÍVIO/2009

EQUIPAMENTO:

- Cantil (atestado de boa disposição);
- Armas (braços para apertar os velhos Camaradas);
- Mão firme (para segurar o Talher);
- Histórias para serem contadas ou recontadas.

INÍCIO DA ACÇÃO:

- 11h00 – Concentração na Santa Maria Adelaide;
- 12h30 – Saída com destino ao OBJECTIVO;
- 13h00 – Início do GOLPE DE MÃO;
- hh/mm – Final da ACÇÃO até ao ano de 2010.

CUSTO DA OPERAÇÃO:

- 25€/Militar ou Acompanhante Adulto e 15 € / Criança.

INSCRIÇÕES:

- até ao dia 25 de Agosto de 2009.

CONTACTOS:

- Manuel Paiva (Pedreiras) - tel.: 220808693 / tlm.: 938526228
- José Oliveira (Sinqueiral) - Tel.227823806 / Tlm.: 918180724
- Santos Oliveira – Tel.: 227112117, ou, santosoliveira912@gmail.com
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


Guiné 63/74 - P4740: Estórias do Amílcar Ventura (1): O meu eterno Amigo Mulai Baldé...


1. Mensagem de Amílcar Ventura, ex-Fur Mil Mec da 1ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74, com data de 26 de Julho de 2009:

O meu eterno Amigo Mulai Baldé

Camaradas,

Hoje venho-vos falar do meu Grande Amigo Mulai Baldé.

Tive muitos amigos na Guiné, mas um foi diferente de todos os outros, muito especial e jamais, em dias da minha vida, esquecerei.

Quando cheguei a Bajocunda constatei que na nossa messe de Sargentos, haviam dois putos que nos serviam há mesa.

Ainda andavam na escola mas à hora dos almoços e jantares lá estavam eles a servir-nos.

Foram os meus primeiros amiguinhos, pois no fim de cada mês eu dava-lhes um “xis” pela sua ajuda “faxineira”, só que esse meu “xis” era o dobro do dos outros e acabei por cair nas boas graças dos putos.

O Mulai é o que está à direita.

Enquanto os “malandrecos” dos meus camaradas da companhia só queriam Bajudas, para lavadeiras, eu travei muita amizade com uma já mais “velhota”, que era mãe do meu Amigo Mulai, não olhando ao “aspecto” da “figura” humana pois eu sempre tive, como tenho agora, um grande respeito por toda a gente que me rodeia, especialmente o ser: “Mulher”.

Como eu era mecânico, essa minha lavadeira estava-me sempre a pedir petróleo para as suas lamparinas, que eram a única forma de iluminação naquelas bandas.A minha missão decorria normalmente, até que um dia acabei por descobrir que o comerciante local, que vendia o petróleo aos civis, chamado Silva, explorava a população na sua venda.

Não vou perder o meu, e o vosso rico tempo, a falar deste “comerciante” natural de Braga, pois teria muita coisa a dizer, até porque segundo sei ele já faleceu.Dizia eu, que dei então comigo a dar petróleo a toda a tabanca ao ponto de, em alguns finais de meses, me ter visto aflito para fazer os mapas das existências em armazém.

Sempre me senti bem com esta minha faceta que, por um lado foi muito bom para mim, pois caí nas boas graças da população, não me faltando nada sem eu pedir, dando-me ovos, galinhas, carne de gazela, de cabrito, etc. Mas o mais valioso, para mim, foi o carinho com que fui tratado por toda a população, e jamais esquecerei os seus generosos e amáveis convites, para ir comer hás suas tabancas.

Conforme vim a constatar, eu que era o único branco que frequentava os seus bailes e podia andar, há noite, livre e sossegadamente pela tabanca sem ter qualquer problema, enquanto alguns dos meus camaradas (por actos que desconheço) chegaram a ser apedrejados.

Num dos meus dias de rotina descobri, surpreendentemente, que um Grande Amigo meu da tabanca, era guerrilheiro do PAIGC. Como uma das minhas assumidas qualidades é: “Amigo não traí Amigo”, guardei penosamente este segredo apenas para mim.

Mal eu sonhava, que se ainda hoje estou cá neste mundo é graças a ele, porque antes de um ataque que viemos a sofrer ao quartel, eu fui informado, por intermédio da minha lavadeira e do Mulai, que ele ia acontecer, com muito perigo para nós, pois seria executado muito perto da cerca de arame.

“Amigo não traí Amigo”, pensei eu, muito menos os meus camaradas-de-armas, pelo que meti-me numa Berliet e dei comigo a andar à volta dos nossos abrigos, a avisar o pessoal de que íamos ser atacados. A certo momento, quando complementava essa volta, um guerrilheiro do PAIGC, apontou-me um lança-granadas RPG7 e estava prestes a atingir-me com uma das suas mortíferas granadas. A minha sorte foi esse meu Amigo, que viu quem estava dentro da Berliet, e não permitiu que o seu camarada lançasse a terrível granada, cujo disparo esteve eminente, pois vi bem a orientação do tubo e o seu dedo sobre o gatilho da sua arma.

O guerrilheiro do PAIGC (carregador de granadas RPG7), ao qual eu devo a vida “in extremis”, no ataque ao quartel, na situação que acabei de descrever.

Meus amigos, aqui é que vi, senti e jamais ESQUECEREI o que é o verdadeiro valor da palavra AMIZADE.

Voltando ao meu Amigo Mulai quando me vim embora chorei, por não o puder trazer comigo. Senti que tinha ali um daqueles Amigos que, rara ou indefinidamente, se encontram no decurso da nossa vida. Ainda não era casado, não sabia como seria a minha situação cá, mas tinha uma certeza é que ele teria todo o apoio da minha namorada e família, senão fosse por mais motivo nenhum, sê-lo-ia por me ter avisado atempadamente naquele inesquecível dia.

Quando abalei deixei-lhe a minha direcção para, se no futuro que se seguiu houvesse uma oportunidade, eu trá-lo-ia para Portugal.

Durante alguns anos trocamos correspondência até que as minhas cartas deixaram de ter resposta.Nem é preciso dizer-vos o quanto fiquei triste e abalado, ainda por cima sem saber o que poderia ter acontecido ao meu bom Amigo Mulai.

Mais tarde, estava eu na minha loja de fotografia, o telefone tocou e lá fui atender. Que grande e maravilhosa surpresa eu tive, pois ouvi a voz inconfundível do meu Grande Amigo Mulai, que me estava a telefonar do Patação - uma pequena localidade ao pé de Faro, a 45Kms da minha casa. A chorar de alegria disse-lhe para ele não sair de onde estava, pois ia ter com ele de imediato.

Foram os trinta e cinco minutos mais angustiantes da minha vida, enquanto não cheguei ao pé dele. Quando eu, a minha mulher e ele nos juntamos parecíamos três crianças a chorar abraçados. O tamanho da minha alegria só foi comparável ao do nascimento de mais um filho.

Daí para a frente, até à um ano atrás, nunca mais nos perdemos um do outro e, com a colaboração do meu contabilista, o Mulai ficou logo legalizado, tendo-o também ajudado a formar uma pequena empresa de construção civil em Lisboa, onde tem vários trabalhadores. Depois ele acabou por mandar vir a sua família para o nosso país.

Agora estou novamente triste e amargurado, pois vai para um ano que não sei nada dele. Já contactei a Embaixada da Guiné, em Portugal, e ainda não tive nenhuma resposta. Só espero que não lhe tenha acontecido nada de mal, visto que ele me dizia muitas vezes que queria voltar à Guiné-Bissau, para ajudar o seu país a progredir e desenvolver-se.

Estou deveras preocupado pois quando perdi o seu contacto, da primeira vez, soube que ele estudava em Bafatá, onde ele e os demais estudantes, de então, participaram numa manifestação por melhores condições de ensino e foram todos presos a mando do Nino Vieira.

Agora com o estado de instabilidade política que a Guiné atravessou, e as mortes que se sucederam nos últimos tempos, estou um bocado aflito… sem notícias dele...

Bom, a conversa já vai longa, pelo que vou-me ficar por aqui.

Deixo um abraço a todos os camaradas da Tabanca Grande e Amigos do nosso blogue,
Amílcar Ventura
Fur Mil Mec

Fotos: © Amílcar Ventura (2009). Direitos reservados.

____________

Nota de M.R.:

Este poste é o primeiro dcca série "Estórias do Amílcar Ventura".

Guiné 63/74 - P4739: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (11): Interrogatórios

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 22 de Julho de 2009:

Caro Carlos:

Mais uma vez estou sem computador, daí o atraso. Em anexo aí vai a XI estória
para a série "A Guerra Vista de Bafatá".

Um abraço.
Fernando Gouveia




A GUERRA VISTA DE BAFATÁ



Bafatá. 1969. Grande parte da tabanca da Rocha com a mesquita.


11 – Interrogatórios.

Já anteriormente referi que a minha principal função, como Oficial de Informações do Comando de Agrupamento, era tratar as notícias que iam chegando, quer respeitante ao IN, quer às NT. No entanto, também tinha sido instruído para fazer interrogatórios.

Na minha comissão de dois anos só tive que fazer dois interrogatórios, pois a grande maioria era feita nos Comandos de Batalhão ou de Companhia onde havia (caso dos Batalhões) um Capitão com essas funções específicas.

Abrindo aqui um parênteses referirei que, em combate e debaixo de fogo, de tudo seria capaz para salvar os meus camaradas e a minha própria pele, no entanto a frio e à sombra de um quartel seria de todo incapaz de torturar, física ou psicologicamente, qualquer elemento IN, como aliás aconteceu em vários casos que tive conhecimento. Recordo até que um dia, em Bambadinca, quando se estava a proceder a um interrogatório com alguma violência à mistura, vem ter comigo um alferes vangloriando-se de lá ter ido molhar a sopa. Episódio triste, tanto mais que esse alferes nada tinha a ver com o interrogatório.

Dos dois interrogatórios que fiz, um não deu em nada, dando até a impressão que o homem nunca pertencera ao IN e o que queria era ficar com as NT, onde tinha comida e dormida. Recordo que me pediu para lhe arranjar tabaco e eu próprio lhe comprei no mercado, às minhas custas, umas folhas de tabaco.

O outro foi a um elemento da população afecta ao IN, capturado numa operação. Idoso e com lepra em estado não conseguiu fugir. O interrogatório foi feito com o sujeito deitado numa maca e com a ajuda de um intérprete.

Com o mapa da zona à minha frente e com as sucessivas respostas que o homem foi dando, cheguei à localização, para mim exacta, do tal refúgio IN.

A informação que assim obtive destinava-se a concretizar uma operação, logo ao amanhecer do dia seguinte, primeiro um bombardeamento pelos Fiats ao local por mim assinalado e, em seguida, um golpe de mão pelos Páras, que nessa altura estavam em Bafatá.

Como na manhã do dia D o tecto (núvens) estava baixo, os Fiats não puderam actuar tendo-se feito a operação só com os Páras, helitransportados.

Mais uma vez, na guerra de retaguarda, não fui directamente responsável por mortes na Guiné pois se os Fiats tivessem actuado, tinham acertado em cheio: A cruz que tinha desenhado no mapa veio a verificar-se ser o local exacto do acampamento IN.

O resultado da operação resumiu -se à recolha de inúmero material, mais civil que militar: panos, amuletos, medicamentos (muitos pacotinhos de aspirina), apetrechos de limpeza de armas e muitos livros escolares. O pessoal IN conseguiu fugir todo.

O Ten Pára-quedista Gomes (meu antigo colega do liceu) que comandou a operação, acabou por me dar muito desse material, algum do qual ainda hoje conservo, como uma cartucheira que utilizo na caça.


Capa de um dos livros apreendidos

Uma página do livro anteriormente referido

Página de um outro livro com toda a certeza de origem nórdica (repare-se nas figuras). Tal como os nossos livros pretendiam ensinar aos guineenses as serras e os rios da metrópole, também estes referiam vivências, como patinagem, possivelmente no gelo, etc.

Última página de outro livro, já muito usado.

Duas páginas de outro livro, este para aprendizagem de algo relacionado com o árabe ou o Alcorão

Amuletos respectivamente para a cinta e para o pescoço (um feito com um chifre de cabra), também capturados. No seu interior eram introduzidos pequenos papeis com as preces pretendidas escritas em árabe.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


Na próxima estória irei mostrar por dentro e por fora o Mercado de Bafatá, que na altura era o ex-libris da cidade.

Até para a semana camaradas.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4707: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (10): Mina bailarina