quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1093: Programa da RTP1, hoje, às 21h, sobre as campas abandonadas dos nossos mortos (José Martins)


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram como foi o caso do Soldado Anastácio Vieira Domingos, nº 688/64, que pertencia à CCAÇ 727. Era muito provavelmente alentejano. A CCAÇ 727 teve como unidade mobilizadora o RI 16, de Évora. A comissão foi de Outubro de 1964 a Agosto de 1966. O Soldado Anastácio não chegou a conhecer a época das chuvas: morreu ao fim de dois meses de Guiné, mais exactamente a 13 de Dezembro de 1964. O seu nome consta do memorial aos mortos das guerras do ultramar, junto à torre de Belém (1). (LG).

Mensagem do camarada José Martins:

Caro Luis e Tertulianos:

O programa [Em Reportagem] acabou há momentos. Do que vi, retive:

(i) Ou foi muito curto para um tão grande tema;
(ii) ou eu liguei a TV, demasiado tarde.

Em minha opinião, vou pela primeira hipótese.

Opinião: A Liga dos Combatentes assinou um protocolo com o Ministério da Defesa para reabilitar os cemitérios em Africa e outros países, mas é um protocolo. Foi dito pelo Gen Chito Rodrigues que não aconselhava as autoridadesportuguesas a deslocarem-se a alguns cemitérios, porque não têm a dignidade mínima. E pelas imagens se viu que não.

Em Bambadinda já se encontra uma tabanca onde era o cemitério. Há muito que sabemos que tudo foi arrazado e, sobretudo, que, apesar dos acordos diplomáticos, muitos ainda não passaram do estado de choque por se verem com um país novo nas mãos, sem saberem o que fazer e, ainda por cima, com o inimigo enterrado às portas das cidades. As famílias - e vi/ouvi testemunhos de irmãos - querem ter os seus entes queridos ao pé de si, mesmo que sejam só as ossadas.

Portugal tem o dever de fazer como outros estados fizeram: se não trouxeram os militares mortos para casa, deixaram-nos no terreno de combate, mas em locais dignos. Em Portugal, isto também aconteceu na I Grande Guerra em que, cinco anos depois do armistício, já se tinha erigido um monumento aos combatentes, não só na Batalha, mas por tudo o que era terra de combatentes, de norte a sul.

Os próprios mortos foram transladados dos diversos cemitérios situados na Alemanha, Bélgica, França e Holanda, para o cemitério de Richebourg. Vale a pena ler o texto Os Nossos Mortos na revista Combatente, edição nº 329/330, de Jul/Dez-2004, da autoria do Coronel de Infantaria Nuno Santa Clara.

Esta é mais uma batalha que se nos apresenta. As diversas associações de combatentes não deixarão de dizer, tambem, PRESENTE! Temos que ir em frente. Vamos trazer os nossos camaradas para CASA.

José Martins
Ex- Fur Mil Trms Inf CCAÇ 5 - Canjadude

Guiné 63/74 - P1092: Programa da RTP1 de hoje faz-me recordar camarada morto no Rio Geba e enterrado em Bambadinca (Sousa de Castro, CART 3494)

Guiné > Bissau > 1966 > Cemitério onde ficaram sepultados os primeiros combatentes da guerra colonial. Há placas funerárias de militares de origem metropolitana que vão, pelo menos, até 1968. O estado de abandono do cemitério faz doer oc oração, diz-nos o Marques Lopes, que esteve lá recentemente, em Abril de 2006, com o Xico Allen (LG).

Foto: © Virgínio Briote (2005)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > O Sousa de Castro, 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74).

Foto:© Sousa de Castro (2005)

Mensagem acabada de enviar pelo nosso camarada de Viana do Castelo:

Foi com grande emoção que vi o programa minúsculo [Em Reportagem, de menos de 15 minutos], que a RTP1 apresentou hoje às 21,00 horas sobre os nossos mortos nas colónias, que por lá ficaram em cemitérios completamente abandonados.

Num dos cemitérios em Bambadinca, existe actualmente novas moranças, conforme disse o narrador, mas, num outro, apareceram vestígios de uma campa de um soldado da CART 3494 que aí ficou. Revi, como se fosse hoje, a situação pela qual passámos nesse período: foram dias de grande consternação, muito difíceis de superar. Veio-me as lágrimas aos olhos.

Junto em anexo um documento de como a estória se passou.


Situação de risco elevado provocado pelo Major de Operações

Xime, CART 3494 > 10-08-1972.

A companhia neste dia recebeu instruções para uma operação no Mato Cão, seguindo através do rio Geba em lanchas, e depois por terra à ao Mato Cão. O Major de Operações teimou em levar a cabo a operação, mesmo depois de ter sido avisado - por quem conhecia as marés naquele rio - que aquela hora não seria a mais indicada indicada para sair devido a que, dentro em pouco, passaria o Macaréu (*).

Mesmo assim, fazendo orelhas moucas, entendeu que ainda haveria tempo de passar o rio antes da chegada do Macaréu. Os pelotões envolvidos nesse patrulhamento não tiveram outra alternativa senão obedecer. Os soldados, pela experiência adquirida, sabiam que uma desgraça iria acontecer e dá-se aquilo que todos esperavam, não se pôde evitar, são apanhados pelo Macaréu.

A embarcação virou e então cada qual tenta desenrascar-se como pôde do perigo de morrerem afogados. Muitos não sabiam nadar, depois com todo peso de armamento que transportavam, para além da farda que envergavam, viram-se e desejaram para se safarem, mas nem todos o conseguiram. Assim, morreram afogados dois camaradas, sendo um da Póvoa de Varzim, casado e com uma filha, e outro de Famalicão, este solteiro.

Nesse mesmo dia todo pessoal da companhia desdobrou-se em esforços tentando encontrar os que desapareceram. Só apareceu o de Famalicão no dia seguinte, já com sinais de decomposição. Creio que este ficou enterrado em Bambadinca (1).

Sousa de Castro
____________

(*) Macaréu, Sm. Sublevação brusca das águas que se produz em certos estuários no momento da cheia e que progride rapidamente para as nascentes sob forma violenta, capaz de fazer estragos em pequenas embarcações.

Nota de L.G.:

(1)Vd., entre outros, o post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1091: Memórias de Mansabá (5): O terrível ataque ao aquartelamento em 12 de Novembro de 1970 (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Mansabá > Aquartelamento > Novembro de 1970 > Aspecto da enfermaria, destruída por canhão sem recuo.

Guiné > Região do Oio > Mansabá > Tabanca > Novembro de 1970 > Moranças destruídas na sequência do ataque do dia 12, que causou 14 mortos e 45 feridos à população.


Guiné > Região do Oio > Mansabá > Novembro de 1970 > A nova estrada (alcatroada) de Mansabá-Farim

Texto e fotos: © Carlos Vinhal (2006) (ex-furriel miliciano da CART 2732, Mansabá, 1970/72

Caro Luís e Camaradas:

O nosso camarada Vítor Junqueira veio avivar-me a memória, lembrando-me os conturbados tempos da construção do lanço da estrada Bironque-K3 (1). Foram tempos muito difíceis para todos os intervenientes, especialmente para a CART 2732 e CCAÇ 2753 que tinham a dupla função de forças de quadrícula e de intervenção.

Assim segue um trabalho sobre o ataque ao aquartelamento e povoação de Mansabá em 12 de Novembro de 1970.


Ataque a Mansabá em 12 de Novembro de 1970


Foi o terceiro ataque a Mansabá desde a nossa chegada (2). Foi ao escurecer apanhando toda a gente mais ou menos desprevenida.

O último tinha acontecido em 5 de Outubro, provocando a morte imediata a um milícia. No dia seguinte, no reconhecimento à zona envolvente da povoação e aquartelamento, morreu o alferes Couto, vítima do rebentamento de uma mina antipessoal quando a tentava neutralizar.

Desta feita, fomos atacados por um numeroso grupo IN, durante 45 longos minutos, que utilizou para bombardear Mansabá morteiro 60 e 82 e canhão sem recuo. Não faltaram as armas ligeiras (vulgo costureirinhas) para ajudar a desorientar.

As NT reagiram como puderam ao fogo, mas as forças do PAIGC não retiravam. A nossa artilharia começou a varrer a zona e nós, com armas ligeiras, bazucas e morteiro 60 e 81 tentávamos que eles não se aproximassem demasiado do arame farpado.

A determinada altura, e porque a situação ficou fora de controle, foi pedido apoio aéreo para Bissau. Na tabanca, também atingida pelo fogo IN, eram já visíveis vários focos de incêndio e a população, gritando, fugia desordenadamente.

Para sorte nossa o IN acabou por retirar e nós pudemos descansar um pouco, redistribuindo as poucas munições que sobraram e começando a recolher os mortos e feridos na tabanca. Ainda bem que não voltaram à carga, porque não tínhamos praticamente munições e resistiríamos pouco tempo. Se tivessem voltado bem podiam entrar pela porta de armas e apanhavam-nos à mão.

Falando de estragos: uma morteirada caiu junto dos quartos dos oficiais, outra junto à casa dos geradores, outra junto à Secretaria de Comando e outra junto ao bar dos sargentos. O bar dos praças foi mesmo atingido no telhado. A enfermaria foi atingida por canhão sem recuo provocando destruição parcial, seguida de incêndio. Tentou-se fazer corte ao fogo, mas mesmo assim os estragos foram elevados. Pelos alvos atingidos, é de supor que o IN tinha conhecimentos precisos do interior do aquartelamento.

Na tabanca havia muitas moranças a arder e os gritos dos populares eram horríveis. As nossas viaturas, num vaivém constante, recolhiam as vítimas, trazendo-as para o interior do quartel, onde eram tratados os feridos e posto de lado os mortos. Contabilizaram-se 14 mortos e 45 feridos só na população.

Felizmente que na altura tínhamos um médico na unidade e o nosso furriel enfermeiro Marques, que era enfermeiro na vida civil, tinha muita experiência. Havia também muitos militares da nossa CART a quem tinha sido dadas noções de primeiros socorros e enfermagem que se tornaram preciosos na colaboração que prestaram.

O apoio aéreo veio muito mais tarde e sobrevoou-nos muito lá por cima.

Este ataque fez parte de um programa do PAIGC para desestabilizar os trabalhos de construção do último troço que faltava para completar a estrada Mansabá-Farim que nessa altura ia só até ao Bironque. Neste mesmo dia tinha chegado a Mansabá muita gente vinda de outras tabancas com o fim de trabalhar na construção da referida estrada. Como na confusão do ataque muitos fugiram, foi preciso ir no dia seguinte, pelo mato fora, procurar e trazer de volta aqueles que por medo tinham partido.

No dia seguinte recebemos a visita do General Spínola que veio dar apoio moral às NT e fazer acção psicológica junto da população, para que eles não voltassem a fugir e convencê-los a colaborar na construção da estrada, que iria ser um factor de progresso e segurança na mobilidade de tropas e civis até Farim.

Há apenas dois dias, tinha sido reactivado o COP6 em Mansabá para coordenar as forças de protecção aos trabalhos (Operações Faixa Negra). No âmbito deste COP foram criados dois agrupamentos, um de Intervenção e outro de Trabalhos compostos por tropa especial como Companhias de Comandos, Companhias de Caçadores Paraquedistas, etc. A CART 2732 tinha como missão dar apoio logístico a todas as forças presentes, dispor de forças de intervenção e ainda participar na segurança próxima aos trabalhos.

Ao fim de muitos meses de sacrifício, contactos com o IN, accionamento de minas pelos trabalhadores civis, acidentes mortais, etc, esta estrada ficou pronta, passando-se a ir de Bissau ao K3 (na margem esquerda do rio Cacheu) em estrada alcatroada numa distância de mais de 120 Km. Para se chegar a Farim era só atravessar o rio de jangada. Valeu a pena, pois nós próprios ainda pudemos gozar deste conforto.

Carlos Vinhal
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Os Barões da açoreana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72) (Vitor Junqueira)

(2) Vd. posts de:

25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "Na manhã do dia [21 de Abril de 1970], [a CART 2732] seguiu para Mansabá [entre Mansoa e Farim, na região do Oio], onde chegou cerca das 13H00 para render a CCAÇ 2403. Neste mesmo dia, Mansabá foi flagelada pelo IN com morteiro 82 e armas ligeiras, causando 16 feridos na população. Assim estava consumado o baptismo de fogo".

8 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P857: 'Periquito vai no mato': de Bissau a Mansabá, passando por Safim, Mansoa, Nhacra, Cutia e Mamboncó (Carlos Vinhal, CART 2732)

Guiné 63/74 - P1090: Op Mar Verde: O cabo enfermeiro paraquedista que foi no Grupo Sierra, do Capitão Morais e do Tenente Januário (João Tunes)


Guiné > Região de Tombali > Cacine > 1970 > O Alf Mil Transmissões João Tunes . Legenda do fotógrafo: "Em Novembro de 1970, eu estava enfiado num quartel de uma aldeia do sul da Guiné, Catió, metido numa guerra sem vitória possível e ainda menos sentido que o de soprar contra a história" (...) (1)


Foto: © João Tunes (2006) (com a devida vénia, do blogue do João Tunes, Água Lisa (6) > post de 2 de Agosto de 2006 > Foi no stress, não foi ?)


Texto de João Tunes:

Caro Luís, tens razão na correcção que fizeste (1). Obrigado.

Calhou há dias encontrar-me com um velho amigo que participou na Operação Mar Verde (sem lhe darem margem para se negar a isso, pelo que a treta de que só participaram voluntários é mesmo treta) (2).

Ele era cabo enfermeiro paraquedista e foi mandado para os Bijagós, por ordem do seu comando e sem saber ao que ia. Lá metido, não teve forma de se baldar. Integrou a força comandada pelo Capitão Morais (julgo que este, posteriormente, morreu em combate em Moçambique) que tinha como missão destruir os Migs (que lá não estavam...) no Aeroporto de Conacri.

Na fila de assalto ele vinha imediatamente à frente da força africana comandada pelo Tenente Januário que desertou. A certa altura, quando olhou para trás para não perder a ligação, reparou que era o último da fila (os desertores, pelo visto, estavam já pré-combinados e não deram qualquer sinal do desenfianço) e disso deu conta ao Capitão Morais.

Depois, foi o que se sabe: os Migs não estavam lá, começaram a ouvir-se movimentações de viaturas militares do Exército de Conacri e foi dada ordem de retirada para as lanchas. No regresso a Bissau à sua unidade de Páras, foi-lhe dada ordem de absoluto segredo sobre a Operação em que participara. Isto quando lhe faltavam dois meses para ir para a peluda.

Como era dos poucos (se não o único) paraquedistas que participaram no Mar Verde, foi apertado com a curiosidade impaciente dos seus camaradas de unidade. Não resistiu e lá deu umas dicas a um Oficial Pára. Foi topado pelo comando e foi imediatamente enviado para o mato onde passou os últimos tempos da comissão. Na altura, havia que negar perante a comunidade nacional e internacional que Portugal tinha invadido um país estrangeiro e soberano.

Abraço.
João Tunes
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

(...)"22 de Novembro de 1970 e dias seguintes, foram especialmente tensos. A tempestade que carregava a rotina quarteleira era mais pesada que costume. O comando andava de sobrolho mais fechado. Tinha de haver bernarda grossa. Depois amainou. Para se voltar à rotina das morteiradas do Nino. Dia sim e dia não. E o dia 22 de Novembro de 1970 ficou-se como um dia em que até pouco se passou. Ali, em Catió. Porque não longe dali, muito se passara.

"Só mais tarde vim a saber um pouco do que se tinha passado nesse 22 de Novembro de 1970, tornado um dia particularmente tenso na rotina militar de Catió". (...)

(2) Vd. post de 9 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1089: Historiografia da presença portuguesa em África (4): Mitos e realidades (Beja Santos)

Guíné > Bissau > Catedral > Postal ilustardo do final dos anos 60. Gentilmente cedido por Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto do Beja Santos, com data de 13 de Setembro de 2006:

Caro Luís, como prometido, volto às minhas responsabilidades com a tertúlia.
Envio pelo correio três bilhetes postais:
(i) rapariga Papel tatuada, (ii) muçulmanos em oração e (iii) Cais do Pidjiguiti (vê se insistes para que toda a gente te envie estes valiosos elementos gráficos que fazem parte da nossa memória);
Envio também: (iv) fotografia que recebi do Pel Caç Nat 52 por altura do Natal de 70, quando a unidade já estava em Fá: à frente sei que estão o António da Silva Queiroz, o 81 (era ele que nas noites de fogo e com uma braçadeira suportava o morteiro 81, façanha que repetia nas operações, como se comentará oportunamente) e o Nélson Wahnon Reis; (v) uma pagela alusiva à morte de Carlos Sampaio, o meu maior amigo na juventude de que iremos falar quando chegarmos a Fevereiro de 1970; e (vi) uma ordem de serviço que encontrei com o meu primeiro louvor: trata-se de um documento que iremos analisar ao longo de 1969, quando o Hélio Felgas me aplicou dois dias de prisão simples invocando que eu não dava o máximo da minha competência na manuntenção do aquartelamento de Missirá e que me levou a querer recorrer junto do Conselho Superior de Disciplina Militar. Este oficial general procurou ressarcir-se concedendo-me um louvor pela minha actividade operacional. Esta história é exemplar: se eu vivesse a engonhar e não saísse do quartel não teria ganho as antipatias ou caído na alçada dos maus génios...

Durante a minha semana em Casal dos Matos decidi ler a História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936 , em 2 volumes (Editorial Estampa). Precisava e preciso de elementos mais consistentes sobre os mandingas no Geba, no Cuor e na luta contra os portugueses. Explico em texto destinado à tertúlia porque é que esta obra é de leitura obrigatória.


Afinal, o que era a Guiné Portuguesa?

Beja Santos

Quando cheguei à Guiné, ouvi repetidamente que a nossa presença datava do século XV e que tinha sido uma constante a partir de então. Interroguei-me porque é que a língua portuguesa era pouquissimamente usada, o animismo a tendência ético-religiosa mais difundida, o islamismo recente e cheio de tensões e o cristianismo quase nulo fora do reduto das missões católicas.

Contei com auxílio do então Comandante Avelino Teixeira da Mota, um dos vultos culturais proeminentes da Guiné e um dos maiores cartógrafos do mundo (a seu tempo, quando divulgar as cartas que me escreveu, falarei da nossa amizade e da forma dilacerada com que ele teve de abandonar a Guiné ao tempo do General Spínola), que me indicou uma série de leituras.

Confesso que fiquei sempre insatisfeito com aquela historiografia hagiográfica, louvando factos e eventos espúrios da presença portuguesa. A situação agravou-se quando estudei as campanhas de Teixeira Pinto e verifiquei que 60 anos antes do PAIGC a Guiné Portuguesa era pura ficção.

A leitura da "História da Guiné" de René Pélissier é recomendada a vários títulos:

(i) O mosaico étnico que aprendíamos em rigor nada tinha a ver com a história da Guiné. Os fulas do Império do Gabu tinham vindo do Futa-Djalon e a partir do século XIX modificaram radicalmente a relação de forças até então existente. Os comerciantes que viviam na Fortaleza de S. José de Bissau ou em Cacheu eram apoiados por escassas tropas portuguesas onde pontificavam os cabo-verdianos, os mestiços ou lusitanizados. Os fulas, ao entrarem em guerras fratrícidas, possibilitaram alianças entre o colonizador que jamais vivera no interior da Guiné. Os Papéis de Bissau foram sempre extremamente agressivos com o colonizador, como está altamente documentado.

(ii) O território onde combatemos a partir de 1963 era uma minúscula parcela da Senegâmbia ou a Guiné de Cabo Verde: só no fim dos anos 70 do século XIX é que se cria a colónia da Guiné independente das autoridades da praia. É preciso estudar a sério a presença cabo-verdiana para se perceber todo o rol de conflitos que se prendem com a história do PAIGC e o próprio golpe do Nino Vieira em 1980. A Guiné era negreira, os brancos na sua maioria presidiários e o comércio era constituído por escravos, amendoim, palmiste, cera, couros e borracha. Ainda no fim do século XIX, depois do Ultimatum britânico, ainda se pensou em entregar a Guiné à França, tal a indiferença que aquela região merecia às autoridades de Lisboa. O Alto Casamansa onde ainda hoje se fala crioulo português foi entregue à França e Bolama foi feitoria britânica (estamos a falar de história moderna, é claro).

(iii) As insurreições foram uma constante em toda a colónia ao longo do século XIX e do século XX: grumetes de Bissau, guerras na feitoria de Cacheu, intervenção dos franceses, britânicos e americanos, tudo aconteceu. Ninguém sabia qual a superfície da Guiné Portuguesa: em 1877 o número andava entre os 69 Km2e os 20 mil Km2.. os governadores eram negreiros, déspotas e o seu poder foi sempre brutal neste império de febres e doenças palustres. Quando a Guiné é desafectada de Cabo Verde sucedem-se os desastres militares e os contenciosos permanentes recorrendo as autoridades aos simulacros de tratados de paz com chefes tribais. Este período é fascinante pela organização das alianças do colono com uma parte dos colonizados, nos rios grandes de Geba ou de Buba. É também nessa altura que aparece a luta no Cuor, acima do antigo Forte de S. Belchior, em Sambel Nhanta, muito perto de Missirá. Sambel é historicamente referenciada e destruída pelas tropas portuguesas (entenda-se tropas portuguesas alguns brancos, muitos grumetes e mestiços, cabo-verdianos, angolanos, biafadas ou fula-forros...).

(iv) As guerras luso-mandingas datam do final do século XIX, foram sangrentas sobretudo na região do Oio. Foi Teixeira Pinto que ajustou contas com os rebeldes e "pacificou" mandingas e biafadas pondo termo brutal às diferentes rebeliões. Em 1936 a Guiné conhece a paz e assume-se a soberania portuguesa. Boncó Sanhá, régulo do Badora (porventura avô do Tenente Mamadu Sanhá que muitos de nós vimos em Bambadinca) foi promovido a Capitão de segunda linha, o mesmo acontecendo com outros régulos. Só duas gerações depois é que apareceram as Kalachinikov.

O que convém destacar é que a presença portuguesa não corresponde ao que propalou a literatura oficial. E quando se acaba de ler esta história da Guiné, nós, os que lá combatemos, somos levados a reflectir sobre a nossa ignorância e os fundamentos que legitimaram à luta pela independência. Mentimos todos , mesmo aqueles que prometiam uma visão idílica para a união entre a Guiné e Cabo Verde.

Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)


Fonte: Água Lisa (6), blogue do João Tunes > 12 de Setembro de 2006 > Da história da guerra colonial (com a devida vénia...).

Na imagem, uma mensagem enviada por um Capitão do Exército Colonial para o seu Posto de Comando, durante a famosa “Operação Mar Verde” (*), dando conta da deserção de uma companhia de comandos africanos (1).



(*) – Invasão da Guiné-Conacry em Novembro de 1970, arquitectada e comandada por Alpoím Calvão, com o patrocínio de Marcelo Caetano, Spínola e PIDE. A operação destinava-se a liquidar Amílcar Cabral e toda a direcção do PAIGC, assassinar o Presidente Sekou Touré, substituir o governo da Guiné-Conacry por um “governo amigo dos colonialistas portugueses” e libertar os prisioneiros militares portugueses das cadeias do PAIGC. Só o último objectivo foi alcançado.

Nas “baixas do lado português”, contabiliza-se, além de alguns mortos e feridos, a deserção de uma companhia (1) de comandos coloniais-africanos (que seriam, posteriormente, todos liquidados) e a condenação veemente e barulhenta da comunidade internacional que isolou ainda mais o colonialismo português.

Até ao presente momento, o Estado Português ainda não pediu desculpas ou sequer reconheceu a realização desta invasão de um país estrangeiro e soberano. Também sobra como curiosidade misteriosa desta Operação o facto de os milhares de kalashnikov que armaram os invasores terem sido compradas pela PIDE à União Soviética através do comerciante de armas e cavaleiro tauromático Zoio.

A “Operação Mar Verde” está excelentemente descrita e analisada num livro do jornalista António Luís Marinho (de onde copiámos a mensagem na imagem).

João Tunes
__________

Nota de L.G.

(1) Julgo haver aqui um lapso do João: trata-se de um grupo de combate, comandado pelo tenente graduado Januário, e não propriamente de uma companhia inteira. A equipa Sierra era comandada pelo capitão-parquedista Lopes Morais, e tinha como missão a destruição dos Migs russos, estaccionados no aeroporto de Conacri.

Vd. entre outros os seguintes posts:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde (Alpoím Galvão)

Guiné 63/74 - P1087: Rosa Gonçalves, o alentejano (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972) (Quim Pinheiro)


1. Texto e foto do Joaquim Pinheiro da Silva (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74):

Amigo Luís, boa tarde!

Fiquei muito sensibilizado com a mensagem da Sra. Maria Clarinda, esposa de um ex-militar CCAÇ 3566, infelizmente já falecido (1).

Peço o favor, se possvel, de publicar a foto anexa, onde aparece o Antonio Joaquim Rosa Gonçalves, mais conhecido pelo Rosa, o alentejano.

Esta foto esta tirada num patrulhamento rotineiro pelas matas de Empada, no ano de 1972: à direita, estou, o Joaquim Pinheiro, o brasileiro; e à esquerda, o Rosa, carinhosamente chamado de alentejano.

Antecipadamente agradeço com um abraço
Joaquim Pinheiro da Silva


2. Resposta da viúva do Rosa Gonçalves ao recente convite para integrar a nossa tertúlia:

Será para mim um prazer fazer parte do vosso blogue, mas de momento não me é
possível enviar fotos do meu marido (António Joaquim Rosa Gonçalves) para
que todos vocês se recordem melhor dele.

Tudo o que faço - podem crer - é porque tenho a certez de que se ele estivesse entre nós assim o faria! E mais uma vez lhes digo, o vosso colega (Rosa Gonçalves), deixou-me um gosto muito grande por todos vocês, os amigos da tropa como ele se referia a todos.

Sinto que o devo de fazer, os anos passam e as lembranças do tempo que passamos sem estarmos juntos porque o dever tinha de ser cumprido, é hoje recompensado com boas e más recordações... Sinto ao mesmo tempo alegria
envolta com muita tristeza junta... Mas algo me diz que em memória dele o devo fazer.

Bem hajam a todos OS METRALHAS
Maria Clarinda (Lina) e Venâncio Gonçalves
___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1086: Viva o Fernandes, o 'soldado desconhecido de Mansoa' (Beja Santos)

Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), sob o título Saudação à Vida:

Camarada Aires Ferreira, recebi com muita emoção o teu esclarecimento (1). A guerra não anda longe da vida: tudo pode acontecer, do mais insólito ao transcendente. Pouco antes de me deitar e de me encomendar a Deus, recordando todos aqueles que já partiram, faço um exercício de rememoração dos primeiros meses em Missirá, de modo a que a Operação Macaréu à Vista seja um folhetim documental digno da nossa tertúlia.

Acredita que o Fernandes veio mesmo por inspiração, já que nos acontecimentos de Missirá ele teve uma passagem fugaz. Creio que faríamos justiça enviando-lhe este texto, e tu farás o favor de lhe dizer que estou cheio de alegria sabendo que ele vive. Vê lá se consegues enviar ao Luís uma fotografia do nosso Atleta, para embelezar o album de memórias.

Aguardo na maior expectativa que nos expliques como é que o Fernandes foi apanhado à mão, como é que vocês reagiram ao seu desaparecimento e ao seu aparecimento, que versão deu ele dos acontecimentos...

Fico inteiramente ao teu dispor para o que der e vier,

Tigre [de Missirá].

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1075: O soldado desconhecido de Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686, BCAÇ 1912)

(...) "O soldado Fernandes pertenceu à minha Companhia, a CCAÇ 1686. Tinha a alcunha de Atleta e foi sem dúvida o soldado mais conhecido de Mansoa.

"Pelas suas características psíquicas, não devia ter sido apurado para todo o serviço militar e muito menos ter sido enviado para a Guiné integrado numa companhia de Caçadores. Mas foi. Era um homem muito estranho, afável, disciplinado e tinha inteligência embora não parecesse.

"Fez a guerra à sua maneira, ganhou um estatuto especial na hierarquia e teve sorte, muita sorte. Fez todas as Operações, fazia questão de ir sempre na frente e era bom a combater, um pouco temerário, por vezes.

"Nos almoços [de convívio do BCAÇ 1912] que fazemos todos os anos, o Atleta é sempre o primeiro a chegar, seja onde for o almoço, de bicicleta, a pé, à boleia, nunca falta.

"É hoje uma espécie de mascote do Batalhão e fazemos sempre uma colecta que rende algumas centenas de Euros que lhe são entregues, o que o faz muito feliz, pelo menos por uns dias" (...).

Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > A antiga piscina da antiga messe de oficiais do Quartel General (QC), entretanto transformado no Hotel 24 de Setembro. No tempo do Rui Felício (1968/70), a messe de oficiais do QG era conhecida como a Vala Comum... Quem ia passar uns dias a Bissau e tinha dinheiro, instalava-se no Grand Hotel...

Foto: © Humberto Reis (2005)


Guiné > Bissau > 1969 > O Paulo Raposo, alferes miliciano da CCAÇ 2405, camarada e amigo do Rui Felício, com o seu pai, de férias, no Grand Hotel.
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Mais uma estória de Dulombi, da autoria do Rui Felício, ex-Alf Mil, CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaroi e Dulombi, 1968/70)

Meu Caro Luis Graça,

Em primeiro lugar, mantém presente o dia 14/10 na Ameira!

Em segundo, peço-te, se tal for possivel, que no teu blogue alguém possa dizer algo sobre o paradeiro do Parrot, que andou por Mafra em 1967 e de quem perdi completamente o rasto.

Depois disso foi para a Guiné e depois nada mais soube àcerca do que foi a sua vida.

Insiro abaixo uma história passada com ele na Guiné que divulgarás se para isso lhe achares interesse.

Um abraço do
Rui Felicio


A PISCINA
( onde se aborda o grave problema de não existir fato de banho no espólio do fardamento militar ...)

No começo, em Mafra...

Já de si, o apelido originário da ascendência estrangeira da sua Família, o tornava notado.
A sua invulgar estatura de quase dois metros, os olhos salientes, o cabelo arruivado, a pele branca e sardenta e o corpo magro, longilíneo e desengonçado, completavam a estranha figura propicia ao sorriso e aos mais díspares comentários.

Falo do Parrot, que conheci em Mafra e que fez parte do meu pelotão do 1º Ciclo do COM da incorporação de Abril de 1967.

Não era fácil, porém, tirar o Parrot da sua fleumática postura de não te rales, por mais provocações que se lhe tentassem fazer. Ele era a calma personificada, e senhor de uma inteligência fora do comum.

Não eram portanto as piadas sem graça que alguns lhe dirigiam que o faziam reagir ou mostrar desagrado. Mostrava-se superior a essas coisas...

Era fácil perceber que colmatava os sacrifícios da vida militar, para a qual claramente não nascera, substituindo-os por insondáveis pensamentos que lhe davam o ar de quem pairava acima dos comesinhos problemas de quase todos nós.

Fez quase toda a recruta em Mafra de fato de treino e sapatilhas, porque só já muito perto do juramento de bandeira é que lhe foi conseguido fardamento adequado às suas medidas. Enquanto não teve fardamento, estava autorizado a sair do quartel à civil o que lhe proporcionou algumas vantagens em relação ao resto dos cerca de 800 cadetes que como ele ali recebiam instrução militar.

De facto, enquanto todos nós, para sairmos do quartel, tínhamos de nos sujeitar a formatura de saída e à revista, com os inerentes riscos de sermos chumbados nessa revista, o cadete Parrot saía calmamente à civil do quartel pela porta de armas, como se de um oficial se tratasse. Aliás, por mais de uma vez o sentinela da porta de armas, incapaz de conhecer todos os muitos oficiais que serviam no Regimento, tomava o Parrot como mais um e saudava-o com as honras militares que supunha lhe serem devidas!

Perdi completamente o rasto do Parrot desde que saí da tropa, o que lamento... Assim como já o havia perdido antes, quando depois da recruta ele foi fazer a especialidade não sei em que outra Escola Militar.

O reencontro, em Bissau...

Reencontrei-o uns dois anos mais tarde em Bissau, onde ambos pernoitávamos na Vala Comum do Quartel General.

A Vala Comum, para quem não se recorde, era uma espécie de caserna situada no QG, onde dormiam os oficiais milicianos que por algum motivo vinham do mato até Bissau, durante alguns dias.

Das poucas vezes que consegui pretexto para vir a Bissau, esquecendo por alguns dias a monotonia e os perigos do mato, fiquei quase sempre no Grand Hotel, a minhas expensas, mas desta vez em que reencontrei o Parrot, tinha decidido ficar na Vala Comum.

Não lhe perguntei o que fazia em Bissau, porque era óbvio que a razão oficial para ali estar não passaria de mero pretexto, tal como o meu, para fugir por uns dias à chatice do mato. E nem sequer lhe perguntei nada sobre o que tinha sido a sua vida militar desde que saiu de Mafra, porque quem conhecesse o Parrot sabia que ele não gostaria de falar disso. Preferia falar de coisas ligeiras, de preferência sem qualquer ligação à tropa.

Ao lado da Vala Comum, existia a piscina do Quartel General que o Parrot frequentava pelo meio da manhã, depois de acordar. Como não tinha calções de banho, enrolava uma camisa nº 3 da sua farda de trabalho, atava as mangas em volta da cintura e dirigia-se para a prancha de saltos mais alta da piscina, de onde se despenhava em mergulho desengonçado para a água da piscina. Repetia isto duas ou três vezes e regressava à Vala Comum, para tomar um duche, vestir-se e sair para dar uma volta pela cidade.

Acontece que as esposas dos oficiais do QG que viviam com os maridos nas instalações do quartel, como não tivessem nada que fazer, estacionavam ora no Bar de Oficiais ora na Piscina, tentando matar o tempo com conversas e mexericos. E, qual púdicas e ofendidas damas da falsa alta sociedade militar guineense, decidiram queixar-se ao Tenente Coronel que geria a Piscina, pelo comportamento, a seu ver incorrecto e imoral, do Sr. Alferes Parrot!

O motivo da queixa assentava no facto de o Parrot não só não se apresentar decentemente ataviado para frequentar a piscina, mas também e principalmente porque ao voar da prancha de saltos para a água, permitir que a camisa nº 3 que lhe servia de fato de banho esvoaçasse ao vento, deixando exposto aos olhares das senhoras o seu sexo pendurado e desnudo.

Na verdade, o Parrot achava que não valia a pena usar cuecas por baixo da camisa nº 3!
O Tenente Coronel, contra a sua vontade, mas pressionado pelas esposas dos seus camaradas, não teve outro remédio senão mandar chamar o Parrot.

Esclareço que os oficiais colocados no QG, na sua maioria, nunca tinham estado no mato e evitavam entrar em conflito com os alferes que de lá vinham esporadicamente a Bissau, porque receavam as reacções indisciplinadas de alguns que, apanhados do clima, achavam que já nada tinham a perder.

Por isso, o Tenente Coronel rodeou-se de todos os cuidados, mediu bem as palavras e abordou cautelosamente o Parrot, dizendo-lhe que as senhoras que frequentavam a piscina se sentiam incomodadas pelo facto dele usar a camisa nº 3 da farda de trabalho quando ia mergulhar.
Pedia-lhe por isso, para evitar problemas, que não a usasse quando quisesse ir para a piscina.
O Parrot, com o seu habitual ar desprendido acatou a sugestão do Tenente Coronel e sossegou-o, prometendo-lhe que tal não voltaria a suceder.

Parecia tudo resolvido. Mas não estava...

O Parrot, logo na manhã seguinte, voltou à piscina, com a camisa enrolada à cintura a fazer de fato de banho, subiu as escadas da prancha de saltos e mergulhou como habitualmente!
À semelhança dos dias anteriores, repetiu os saltos duas ou três vezes e regressou impávido e molhado à Vala Comum.

Comportamento atípico este! O Parrot era desprendido mas não era um provocador, e muito menos propositadamente indisciplinado! Posso garantir! Inexplicável portanto o seu comportamento!

O Tenente Coronel também sabia disso e não compreendia... Por isso, chamou de novo o Parrot e pediu-lhe que se justificasse, que lhe explicasse porque quebrara a promessa do dia anterior...
O Parrot, com ar cândido e aparentando grande admiração por ter sido de novo chamado ao Tenente Coronel, explicou:
- Oh meu Coronel, acho que houve aqui uma deficiência de comunicação. Quando o Senhor ontem me disse para eu não voltar a usar a camisa nº 3, entendi que a não considerava adequada por fazer parte do fardamento de trabalho...E acatei... Compreendi que queria que, em vez dessa, eu usasse antes a camisa do fardamento de saída, ou seja, a camisa nº 2, da farda de saída, atendendo a que se tratava de um local onde se justifica alguma etiqueta na apresentação... E foi o que fiz!!!! - culminou o Parrot, com o ar mais celestial do mundo - A camisa que hoje usei era uma camisa nº 2, meu Coronel!

Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. última estória: post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

Guiné > Zona leste > Gabu > Canjadude > 1974 > O Fur Mil Enf Carvalho, da CCAÇ 5, com um guerrilheiro do PAIGC, equipado a rigor e empunhando a mítica espingarda-metralhadora Kalash...

Foto: ©
João Carvalho (2006)

Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1).

Caro Luís Graça,

Entre o material que diariamente me chega via e-mail, o que mais aprecio é sem dúvida aquele que resulta da produção dos nossos camaradas tertulianos. Li com muito gosto aquela crónica do Beja Santos acerca do soldado desconhecido de Mansoa (2). Esta história teve o condão de limpar algumas teias de aranha de uma carunchosa prateleira da minha memória, onde havia um registo já velhinho de um episódio em que um soldado desconhecido, mas este do lado de lá, resolveu apresentar-se à minha companhia.

Estávamos para aí a meio da comissão e as coisas até corriam bem: praticamente sem baixas e, com uma razoável liberdade de movimentos numa zona em que os que nos antecederam, passaram o cabo das tormentas.

Com a notável excepção dos oficiais, sargentos e alguns especialistas ( transmissões, cozinheiros, mecânicos e pouco mais ), os homens da CCAÇ 2753 eram quase todos açoreanos, que se tinham oferecido como voluntários para servir naquela "sagrada parcela do Território Nacional" chamada Guiné. Que me perdoem os mais sensíveis, mas era assim que se dizia!

Diplomados pelo B.I.I.17 (3), então aquartelado na fortaleza de S. João Baptista no sopé do Monte Brasil, em Angra do Heroísmo com uma suadíssima recruta e temerária especialidade (*), os Barões rumam ao Continente, chegando a Lisboa mesmo a tempo de prestar as honras militares ao Dr. Botas que entretanto se aboletara numa câmara, dita ardente, no Mosteiro dos Jerónimos (4).

Nas redondezas da capital do Império (Serra da Carregueira, Amadora, Pragal), fazem-se mais uns cursos e ensaiam-se umas guerras da treta, à espera do dia do embarque que nunca mais chega.

É aqui que a companhia recebe um reforço de peso: o soldado Lima. Nortenho, vindo dos lados de V. N. Gaia, era baixote, gago e tinha o hábito de deixar descair a cabeça para o lado quando alguém o abordava (défice auditivo?). Alegre, simpático, sorria com facilidade. No olhar, um brilho entre o matreiro e o irónico.Típico rato de celeiro!

O nosso pronto Lima conseguiu uma proeza digna de registo: manteve-se em completo anonimato, a bem dizer incógnito, sem que ninguém desse por ele até ao momento em que a Companhia foi colocada em quadrícula. Claro que se sabia que ele estava lá, fazia parte da unidade e o seu nome até constava na papelada da secretaria ...

Mas ao certo ninguém sabia por onde é que andava o Lima, de que pelotão fazia parte, se estava escalado para algum serviço... nada! Até que um dia foi obrigado a dar à costa.

Tinha havido uma rebelião que opôs praças (manjacos) da CAÇ 17 aos seus alferes e furriéis. O general Spínola ordenou a imediata retirada desta companhia que se encontrava no Bironque, um ponto no mapa entre Mansabá e Farim, para Bula, sendo substituída no terreno pela CCAÇ 2753 que era a única força disponível naquele momento em Bissau.

Trasladados à pressa e sem aviso prévio, lá fomos malhar com os ossos num buraco no meio de uma belíssima mata, para as bandas do Oio deixando para trás aquela vidinha boa, com qualidade, quase requinte em Bissau. E aí tornou-se impossível ao Lima continuar a escapulir-se. Sorte malvada!

Para surpresa do maralhal, fica-se então a saber que o Lima é... Básico, funcionalmente falando. Passa portanto a desempenhar tarefas adequadas à sua simplicidade de cabeça: racha lenha, ajuda na cozinha e nas limpezas, faz recados e claro está, enquanto os espertos embrulham no mato, ele bate umas sornas.

Do Bironque seguimos umas semanas depois para Madina Fula e mais tarde atingimos o términus desta peregrinação em Saliquinhedim (K 3). Durante este período não tínhamos dado grandes motivos de regozijo ao nossos camaradas do PAIGC pelo que era mais do que natural que não tivessem grande apreço pela presença da Companhia dos Açoreanos na região.

É aqui que entronca a história deste outro soldado desconhecido. Estamos então no K 3 e são cerca das cinco da tarde. O cozinheiro aperta com o Lima, vocifera, pragueja, berra que nem um danado. O motivo é este: quer ultimar o jantar e o lume debaixo do caldeirão dos feijões está a ir-se abaixo por falta de combustível. O pessoal já tomou o seu banhito balanta e está a anoitecer. É preciso comer antes de se fazer escuro como mandam as normas, de maneira a que quando começar a chover a bernarda, já todos estejam nos seu postos. O aquartelamento é atravessado a meio, no sentido norte - sul, por uma estrada asfaltada acabada de construir.

Junto ao cavalo de frisa da entrada sul está um monte de lenha e o Básico tenta abnegadamente transformar aqueles cibos em cavacas.Transpira, resmunga, ofega, está exausto.Talvez para retomar o fôlego, levanta a cabeça e avista a cerca de uma centena de metros do arame farpado, caminhando calmamente em direcção a ele, um militar (usava camuflado e estava armado)! Era negro, portanto só podia ser do IN já que entre os nossos não havia nenhum africano. Além disso, o tipo de arma e a maneira como ele a trazia cruzada sobre o peito, desvaneceram-lhe quaisquer dúvidas.

A sua agilidade mental tomou-lhe conta dos gestos. Sem qualquer hesitação, empunha a ferramenta e corre na direcção do militar a quem ordena que levante os braços. O homem do PAIGC, com Kalashnikov carregada, bala na câmara, e quatro carregadores pendurados no cinturão obedece prontamente.

Entretanto alguém deu o alarme e, à parada até então quase deserta, começa a afluir o pessoal que se preparava para o tacho. A cena deixa-os estupefactos. De machado em riste apontado à cabeça do elemento capturado e caminhando à sua retaguarda, o soldado Lima trespassa aquela espécie de porta de armas com pose de general. Dirige-se ao comandante da companhia e diz-lhe sem gaguejar:
- Meu capitão, fiz este prisioneiro!

Entre o receoso e o incrédulo, o capitão mandou desarmar o prisioneiro e nomeou quem deveria ficar responsável pela sua vigilância. Com grandes dificuldades de comunicação, reais ou de conveniência, lá foi explicando que desencantado com a vida que levava no mato resolvera entregar-se à tropa portuguesa.

Seguiu um Sitrep para o estado Maior a contar o sucedido e, até ser evacuado uns dois dias depois, o recém chegado foi tratado como uma vedeta. Comeu e bebeu à la gardère, tabaqueou quanto quis e até mamou umas bujecas à pala do pagode. Recebeu palmadas de amizade nas costas, riu com as graçolas do tugas e passeou-se livremente por todo o perímetro interno do arame farpado, casernas, paióis e espaldões incluídos. Afinal ele agora era um dos nossos e portanto, merecedor de amizade e depositário da nossa confiança.

Algum tempo depois chegam notícias de Bissau. O nosso amigo está a colaborar bem nos interrogatórios e tem fornecido informações de grande interesse para as NT. Mais tarde: o elemento do IN que se entregou no K 3 foi transferido para a Psico para um período de reeducação e observação, após o que será restituído à liberdade.

Pouco depois, mais notícias: o prisioneiro fugiu! E finalmente, um mês ou dois mais tarde: o prisioneiro foi (re)capturado em combate na região do Morés. Afinal é capitão das tropas do lado de lá, terá recebido formação no exterior e foi designado para esta missão de pura espionagem, sendo essa a verdadeira razão pela qual se deixou capturar. Manga de ronco!

Tansos? Ingénuos? Que importa isso agora!? Siga a marinha.

Um abraço do Vitor Junqueira
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(*) Tivemos mais baixas na especialidade do que no TO [da Guiné]!
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Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, P1083, assinado também pelo Vitor Junqueira,

(2) Vd. post de 14 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

(3) Referência à morte do Dr. António de Oliveira Salazar, em 27 de Julho de 1970.

(4) Batalhão Independente de Infantaria 17

(5) Vd. primeiro poste da série Histórias de Vitor Junqueira de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)


Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), já aqui reproduzido em post de 4 de Agosto de 2005 (Na altura não tínhamos as cartas que temos hoje, em linha)(1). Actualmente o Vitor é médico e vive em Pombal.



(...) Estávamos nos primeiros dias do mês de Fevereiro de 1971. A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T, tendo-lhe sido atribuída a missão (transcrevo dos registos oficiais, que constam da História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):

"Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá - Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados.

"Na segurança dos trabalhos as forças adoptam o dispositivo com as seguintes
missões:

"- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída.

"-Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração.

"- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá - Farim".

(...) Há anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário, a partir de e para norte de Mansabá até ao K3. A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, que lhe permitiam uma ligação fácil e rápida entre as bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares).

As frequentes escaramuças consistiam em emboscadas e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre trabalhadores e danos nas máquinas. Após o pôr do Sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR [Canhão sem recuo], MORT 82 e RPG que, vindo da orla mata, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do aquartelamento.

Localizado num ponto do mapa, onde antes da guerra existia uma pequena povoação, o Destacamento Temporário do Bironque foi ocupado pela CCAÇ 2753 em 1 de Dezembro de 1970, que aí veio substituir a CCAÇ 17 (2).

Dias antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que, a terem levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão [cujo coração era Canchungo ou Teixeira Pinto]. O gen Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.

De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa- macaca. Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional e, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais batidas, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à própria custa. Certo é que provaram ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats, Noblessse Oblige [Nobreza Obriga]!

Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com armas e bagagens em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior, qualquer protecção contra balas ou estilhaços, pelo que toda a gente preferia pernoitar nos abrigos. Tratava-se em rigor de um acampamento que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:

(i) Sobre uma das faixas desmatadas de cerca de 100 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura, de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado;

(ii) No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens;

(iii) Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas que no final do dia de trabalho, recolhiam ao seu interior. Como vizinhança , muita força de mosquitos e matacanhas!

Logo nos primeiros passeios pela natureza, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de (e volto a citar dos registos) Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.

Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que antes tinham sido as bermas e valetas da estrada, as cápsulas de munições de armas ligeiras, apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que se chamavam (?) Panzerovkas.

Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas. Por ali confiscamos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens antigos, como obsoletos canhangulos, novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20 mm e os tripés das mesmas (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Espingardas M44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda (2) e Dreyses (1), por certo gamadas ao Exército Português. Também faziam parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o sêlo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?

O dia começava bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3º Gr Comb que iria emboscar em Farim 2 C6 97.

Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata, comiam mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que servia de refeitório, a parelha dos tachos aguardava impaciente (queriam voltar para o choco!) os homens que iam assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentavam-se praticamente em estado de prontidão. Devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6 cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico. GMD [granadas de mão defensivas] penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK.

Todo o material se encontrava limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, tinham desvelos amorosos, tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas!Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3 próprios e alheios a que pudessem deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consistia em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva. E não se disse ataviados, como impõe a gíria militar.

Porque fardas era coisa que já não existia havia tempo, tinham ido à vida. Mergulhos forçados nas bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, tinham decretado o seu desgaste precoce. Por esta altura, iam-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no coiro, umas já sem rasto, outras com ventiladores nas biqueiras, alternavam com as de lona a dar as últimas e chanatos adquiridos pelos próprios. Já então era a crise!

Vitor Junqueira

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXV: Informação & propaganda: de que lado estava a verdade ? (2)

(2) A história da unidade a que pertenceu o nosso camarada Carlos Vinhal, a madeirense CART 2732, cruza-se com a da CCAÇ 2753: ambas pertenceram ao COP 6 (Mansabá), quando estiveram a fazer segurança à construção da estratégica estrada Mansabá-Farim:

Vd. posts de

21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P890: Uma mina no Bironque (Carlos Vinhal)

(...) "Ao fim da tarde do dia 16 de Julho de 1971 o meu pelotão, que estava de piquete, ia fazer uma coluna auto ao K3 para levar correio à CCAÇ 2753. Aparentemente tratava-se de mais uma normalíssima coluna, que por se tratar de uma distância tão curta, se faria numa hora, ir e vir" (...)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "Em 11 de Novembro de 1970 a CART 2732 deixou de pertencer ao BCAÇ 2885, passando a estar integrada no Comando Operacional n.º 6, reactivado pela necessidade da construção da estrada Mansabá-Farim. O COP6 ficou instalado em Mansabá e a CART apoiou, fornecendo todos os meios logísticos necessários à sua operacionalidade.

(...) "No dia 8 de Fevereiro de 1972 começou a rendição pela CCAÇ 2753, pelo que 2 Gr Comb da CART 2732 partiram para Bissau.

domingo, 17 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)



O BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852 viajaram juntos, em finais de Julho de 1968, no Uíge, de Lisboa a Bissau.

N/M Uíge > Foto da excelente página Navios Mercantes Portugueses (com a devida vénia)...

1. Reproduzo aqui a correspondência trocada recentemente entre o nosso camarada Beja Santos e um novo elemento que pede para entrar na nossa tertúlia, o Raul Albino.

1.1. E-mail do Raul Albino, datado de 23 de Agosto:

Vejo que já voltaste de férias, espero que bem recuperado.

Aproveito para agradecer todo o esforço que dispendeste na organização do Almoço-Convívio de Figueiró dos Vinhos. Na minha opinião e na dos militares e seus familiares com quem falei, todos são unânimes em considerar este evento o mais interessante e bem conseguido de todos os que até agora foram organizados. Por isso os meus parabéns.

Tenho problemas nos caracteres especiais incluídos nos textos do blogue, que me dificultam a sua leitura completa. Sabes como posso ultrapassar este problema?

Outra ajuda, podes-me dar o endereço de email do Luís Graça? Para que alguma coisa venha a ser colocada no blogue, basta enviar-lhe correio pelo email ou tem de ser de outra forma qualquer?

Um abraço amigo,
Raul Albino

1.2. Resposta do Beja Santos:

Caro Raúl, obrigado pelas tuas notícias. Ainda bem que toda a gente ficou contente com o encontro de Figueiró. Por favor, evitem reuniões em quartéis e discursos do Vargas para não termos uma atmosfera excessivamente militar. No conhecimento tens os contactos do Luis Graça, que seguramente providenciará as informações que pedes. Tanto quanto me é dado ler no blogue, pouco se sabe sobre as companhias do nosso batalhão. Assume as tuas responsabilidades, entra no blogue, apela a que toda a gente da CCAÇ 2402 ofereça materiais, como fotografias, postais, etc.
Sempre ao teu dispor, Mário Beja Santos

1.3. Outro e-mail do Beja Santos, de 23 de Agosto:

Caro Albino, só para te desejar saúde e confirmar que continuo activo no blogue Luis Graça e Camaradas da Guiné. Tu tinhas obrigação de dar uma perninha, depois do livro que coordenaste e pôr outras pessoas a colaborar.

Esta história só vai interessar aos nossos netos mas temos obrigações morais de não fazer desaparecer estupidamente a nossa memória.

Recebe um abraço do Mário Beja Santos.


2. Em 27 de Agosto de 2006, recebi o pedido formal do Raul para entrar na nossa tertúlia:

Através do Mário Beja Santos tive conhecimento do vosso blogue e ele convenceu-me a participar nele.

Esta primeira mensagem tem a finalidade de testar o endereço electrónico e dar-lhe os parabéns pela iniciativa. (...)
Como apresentação ligeira, fui Alf Mil Inf na CCAÇ 2402 do BCAÇ 2851, na Guiné entre 1968 e 1970 (1). Como primeiro pedido gostaria de saber se é possível enviarem-me um mapa do tipo dos que o vosso blogue contém, das localidades de Có, Mansabá e Olossato, que não encontrei na vossa lista já bem extensa.

Agradecia também uma explicação geral do vosso projecto e a forma mais adequada de participar. Os textos e/ou fotos deverão ser enviados para este endereço? Ou existe outra rotina de contacto?

Ao vosso dispor,
Raul Albino

PS - Aproveito para lhe pôr um problema: - quando tento visualizar os textos do vosso blogue que o Beja Santos me enviou, os caracteres especiais (ç, ã, á, atc.) não são convertidos e eu tenho dificuldade em ler os artigos. Pode-me dar alguma dica para eu resolver o assunto?

3. Resposta do editor do blogue, em 17 de Setembro de 2006:

Caro Raul:

(i) És bem vindo: o tratamento por tu serve para quebrar barreiras e distâncias, é o tratamento adequado entre velhos camaradas;

(ii) As poucas regras que temos constam da página específica sobre a tertúlia.

(iii) Se quiseres e puderes, manda-me duas fotos tuas (digitalizadas, em formato.jpg), uma do tempo da tropa e outra mais actual... E conta-nos a tua estória... Aqui tens os meus contactos e endereços... Tudo passa por mim, por enquanto (...).

(iv) O Beja Santos já me falou em ti...

(v) O problema técnico que tens na visualização do nosso blogue, vou estudá-lo ou aconselhar-me... para dar uma resposta correcta. Em princípio, o teu PC não reconhece os caracteres portugueses... Também podes pedir a opinião de um algum informático teu amigo... Para já tenta isto:

Tools > Internet Options > General > Languages > (Acrescenta) Portuguese (Portugal) [pt]

(vi) Temos mais uns tantos mapas / cartas para inserir... O problema é o tempo... Tem paciência...

(vii) Desculpa só agora responder-te...

___________

Nota de L.G:

(1) O BCAÇ 2851 partou para a Guiné no N/M Uíge, no final de Julho de 1968, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70):

sábado, 16 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Finete > 2003 > "Bacari Soncó vestido a preceito, fotografia que ele mandou para o seu irmão Mário, único irmão que ele tem branco". É o actual o régulo do Cuor. É irmão do Malã e do Fodé Dahaba.


Lisboa > Hospital Militar Princiapal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba, "com um sorriso muito triste, tirada nos jardins do Hospital Militar Principal em Lisboa"... Elemento do Pel Caç Nat 52, foi gravemente ferido na Op Anda Cá (Fevereiro de 1969).
Texto e fotos : © Beja Santos (2006)
Continuação da publicação das memórias do Beja Santos >
Diário do Tigre de Missirá, na terceira semana de Agosto de 1968 (1)


Matar ou morrer?

Beja Santos


Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha?

Como estávamos rodeados de soldados, pedi-lhe para conversarmos depois do jantar e a sós. As nossas relações estavam tensas, habitualmente a seguir ao jantar eu pedia ao furriéis (nesta altura só estavam em Missirá o Saiegh, indiscutivelmente o sargento mais apto e prestigiado junto das tropas, e o Ferreira, que não escondia a expectativa de viver em paz as poucas semanas que o separavam da peluda) para prepararmos a agenda do dia seguinte constituída pela inevitável ida a Mato de Cão, um patrulhamento ou limpezas e gestão do aquartelamento e outras trivialidades.

O Saiegh ouvia as minhas propostas e gradualmente afundava-se no silêncio. Aquela já não era a sua guerra. É no decurso da segunda semana de Agosto que durante um patrulhamento acima de Finete, descendo entre Gã Joaquim, Gã Gémeos e Gambicilai que encontrámos vestígios pronunciados da passagem de guerrilheiros. Mais: no chão, descobrimos dois carregadores de PPSH e um de uma pistola (que mais tarde vim a saber que era uma Tokarev). Quando analisámos a situação a três, lembro-me de ter comentado que os guerrilheiros seguramente atravessavam ali o Geba (fazer a cambança) e deveriam abastecer-se em Mero, junto dos balantas.

Como se tivesse sido ferido na sua sensibilidade, Saiegh protestou dizendo que no passado patrulhara muitas vezes aquela área e não havia informações nesse sentido. Ora, a seguir a este patrulhamento, dias depois, encontrámos em Mato Madeira um novo trilho que passava o rio de Biassa até se internar no velho caminho que na carta vai na direcção de Quebá Jilã. Saiegh emergiu num mutismo absoluto, agravado com a conversa que tivemos em particular com Quebá, o irmão do régulo Malâ, e que era o nosso picador. Quebá foi muito claro:
- Inimigo vai buscar comida aos Balanta, mas também gente que vai para o mato. Se atacarmos ali o inimigo, guerra vai crescer.

E a guerra cresceu mesmo: a partir de finais de Agosto passámos a ter emboscadas diárias entre Malandi e Canturé, ou entre Canturé e Gã Gémeos, ou entre Boa Esperança e Gambicilai... fomos estreitando a vigilância na margem esquerda do Geba em torno de Mero e Fá Balanta. Inevitavelmente, as colunas foram detectadas, houve baixas, o contra-terror fora detonado. A 6 de Setembro, veio a primeira flagelação de Missirá, bem brutal por acaso. Seguir-se-ão as minas, as curtas flagelações , as mensagens na picada, as tentativas de rapto das populações civis em Finete.

Naquela noite, expliquei ao desmotivado Saiegh que Matar ou Morrer não era a minha insígnia: - Desculpar-me-à quanto aos seus propósitos, mas não estamos em guerra santa. Temos populações civis a defender e consciências a salvar. Isto não é nenhum maniqueísmo, estou-lhe a demonstrar que não fico à espera do inimigo dentro do arame farpado, esse inimigo tem populações civis que não vamos chacinar. Nada tenho que apoiar as insígnias que você criou e asseguro-lhe que não as vou proibir. Mas não me peça que adira entusiasticamente a uma fórmula que não obedece ao meu sentir.

E assim arrumámos o assunto... ainda que o Matar ou Morrer viesse a ser pintado na base do pau de bandeira. O projecto da escola iria começar em meados de Setembro, dois abrigos apodrecidos começaram a ser substituidos, negociei com o Teixeira das transmissões a cimentação do armazém da comida. Em Bambadinca, pedi ao antecessor do David Payne,[médico do BCAÇ 2852], que recebesse uma vez por semana a população civil, em horário a estipular. Iniciava-se assim as consultas a pedido da população ou por minha própria iniciativa.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 ou 1969 > Uma das raras fotos do furriel Saiegh, da época da sua passagem por Missirá: aqui na frente de uma viatura, na picada da bolanha de Finete, entre o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, de óculos escuros, e o condutor. O Saiegh, guineense de origem sírio-libanesa, sairá mais tarde desta unidade para ajudar a formar a 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegaria à posição de capitão, depois da morte de João Bacar Jaló. Foi fuzilado pelos homens do PAIGC, depois da independência (2) .
Foto: © Beja Santos (2006)


Eu sabia das febres e das pestes mas nunca vira uma elefantíase, um testículo até aos pés, um rosto comido por o que me parecia uma lepra. Havia igualmente o ritual da fome e que eu conhecia por vários processos escabrosos: por exemplo, sair do abrigo às 6h da manhã e uma mulher espremer-me diante dos meus olhos uma pele murcha que fora um seio e dizer-me: -Leite cá tem, minino muri....

Aí o Comandante da CCS perguntou-me se eu tinha enlouquecido:
-O quê, você quer dar Nestogeno a estes putos todos? Tenha juízo!

Criou-se então um fundo só para leite... O meu regime de sonos alterava-se: com a preocupação de acompanhar a vigilância nocturna, só adormecia entre as 2 e as 3h da manhã. Passei a escrever e a ler furiosamente. Simulava ser poeta, e guardo uns papéis amarelecidos com disparates como este, em homenagem a um grande poeta francês, Saint-John Perse, laureado com Nobel:

Ode a Saint-John Perse

Acreditar no vento como feto aborígene!
Ouvir nos caijueiros em flor as flotilhas de morcegos.
Desfolhar um livro nestas noites de emboscadas em que os campos de cana
Lembram terra de morangos.
Imaginar caçadores furtivos que se deslocam na bruma na pista dos búfalos.
Esperar que as águas tropicais nos apaziguem o sofrimento.
E enviar uma mensagem a quem me lembra e esquece:
Em Missirá há um homem que esgrime com uma catana mutilada, à espera de uma árvore [prometida.
O poeta pede um milagre: que as águas encham a vereda da estrada e que haja um permanente [batuque no céu.

Passando às coisas sérias, relia Alexandre O'Neill que descobrira pelos meus 20 anos (3). Dentro do baú tirei um livro da Ulisseia, As andorinhas não têm restaurante. E no ar pesado da noite comecei a ler o seu texto admirável O Cotovelo Trinchado. Ora oiçam:

"Você conhece esses restaurantes de traz-que-eu-engulo, de engole-vai-embora, esses esófagos da cidade que mal dão tempo para fazer glu? No calor da nalga recém-partida você assenta a sua própria nalga recém-chegada, mas o desgosto dura o tempo de fusão dos dois calores. Outra virá, meu filho, desgostar-se (breve) do calor da sua... É nessas estações da devoração que você se reabastece de azias, de opilações, de engulhos, de flatulências, de tonturas e ardências. É aí que você faz glu com um vinho que, bebido, lhe deixa no fundo da garrafinha uma inesperada linda frase: A CEPA O DEU, VOCÊ O BEBEU!".

O'Neill representava para mim a mudança mágica na literatura portuguesa, um pouco à semelhança do que já fizera José Cardoso Pires na novela e Herberto Heldér na poesia. Mal sabia eu nessa altura que viria a conhecer o O'Neill graças ao Ruy Cinatti (4) e até por razões profissionais iríamos mutias vezes falar de publicidade. Mal sabia eu que dentro em breve a Cristina me iria enviar a obra mais influente que li durante toda a guerra: O Delfim, do José Cardoso Pires. Como relíquia, guardo este livro como o único que não me ardeu no incêndio de Março de 69 e que ainda hoje releio com prazer inexcedível. Mais adiante falarei dele.

Esta tarde partirei para Finete. Levo rações de combate para não criar problemas a ninguém. Finete não resistirá ao fogo de dois obuses, durante meia hora. Há que abrir valas, fortalecer os abrigos, contagiar com entusiasmo o Pelotão de Milícias nº 102.

A grande surpresa é a amizade que vou fazer com Bacari Soncó, irmão de Malá e Fodé Dahaba. O primeiro é hoje o régulo do Cuor. Quando nos reencontramos em 1991 guardo na memória o seu esforço para conter a comoção. Adorava as suas qualidades humanas, percorremos as margens do Geba a falar de fauna e flora. Era e é um principe e na noite de 15 Outubro de 1969 (5) irá atirar-me com um balde de água à cara que provou que afinal não tinha perdido o olho esquerdo.

Fodé, um dos homens mais lindos que conheci, gargalhava a torto e a direito e vai ficar brutalmente mutilado na Anda Cá, a última operação que farei no Cuor, em Fevereiro de 1970 (6). Vale a pena falar seguidamente destas ternas amizades que perduram no meu coração.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post, de 15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.


(2) Vd. também post de 19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros:

(...) "Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento" (...).

(3) O Alexandre O'Neil é também um dos meus poetas preferidos e um dos poetas portugueses, do Séc. XX, homenageado no Parque dos Poetas, em Oeiras.
Alexandre O'Neil (1924-1986)
Foto: © Instituto Camões (2001) (com a devida vénia...)
Vd o meu post de 27 de Setembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (4): O Parque dos Poetas do Isaltino:

(...) Quem não viu nada,
Mas que riria
Até às lágrimas,
Se fosse vivo,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Da construção
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho,
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má catadura,
De má memória.

Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Genial,
Mas mais que morto
E enterrado,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um senhor autarca,
No seu feudo, no seu horto, no seu olival? (...).


(4) Vd. post de 10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti.

(5) Nesse fim de tarde, o autor sofreu uma violenta emboscada com mina anticarro, na estrada Finete-Missirá. Vd. posts relacionados com este episódio da mina com emboscada ao Beja Santos e ao seus homens:
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá'


(6) Lapso do Beja Santos. A Op Anda Cá realizou-se em 1969 e não 1970. Em 1970 foi a Op Tigre Vadio.

Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

Guiné 63/74 - P1080: Uma nota de tristeza, nostalgia, desencanto e revolta (Rogério Freire, CART 1525)

Foto: © Rogério Freire (2006)

O Rogério Freiree foi alferes miliciano, na CART 1525 (Os Falcões), esteve em Bissorã (1966/67) e vive hoje em Lisboa.

A propósito de um post sobre o futebol e a passagem, pelo Oio, do Gilberto Madail (ex-alf mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)(1), escreveu-nos ele, já há umas largas semanas, a seguinte nota por onde perpassa tristeza, nostalgia, desencanto e revolta:

Luís:

Sabes, quando no e-mail sobre o Madaíl caí em mim, com mais 40 anos me lembrei de que... O que é triste é que após 40 anos....

Na foto, da esquerda para a direita:

(i) Alferes Miliciano Rui Chouriço (já falecido) ;
(ii) Alferes Miliciano Rogério Freire (o escriba);
(iii) Capitão (posteriormente Coronel) Jorge Mourão (já falecido);
(iv) Alferes Miliciano Manuel Eduardo Oliveira ;
(v) Alferes Miliciano Germano Silva.

Em resumo, dois dos cinco oficiais da Companhia [, a CART 1525], já faleceram e já não vão ser mais uma encargo para a Nação Portuguesa ... Com este rácio realmente daqui a mais 20 anos já poderão passar a pagar as pensões.

É só um desabafo ... Não quero entrar em polémica, mas ... já no tempo da outra senhora se dizia que cada País tem o Governo que merece. Pergunto-me muitas vezes se será que nós ex-combatentes (eu incluído, claro está) temos o que merecemos ou será que, desde há muito, deveríamos ter feito [algo] e nunca fizemos nada ou quase nada?

Será que ainda podemos fazer?

Fui informado recentemente pelos jornais que alguns ditos antifascistas começaram a receber uma pensão mensal pela sua luta pela liberdade ... mormente membros do Partido Comunista que começaram a lutar pela Liberdade na Sibéria e em Cuba. É a vida!!!

De momento, aos meus netos só posso dizer que, se na vida deles vier a acontecer uma situação semelhante [à nossa], que fujam para o estrangeiro .... Pode ser depois que, depois de passada a borrasca, se tornem heróis sem nunca terem dado o corpo ao manifesto.

Vou também dizer-lhes que isso de Nação, de Governo, de Pátria, é tudo balela e que o bom mesmo é dar de frosques enquanto podem e de preferência para um País agradável.

Rogério Freire (2)
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail

(2) Vd. também post de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)

Guiné 63/74 - P1079: Almoço-convívio da CCS do BCAÇ 2927 (Bissorã, 1970/72) (Carlos Fonseca)


Guiné > Rehgião do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 - Os Leões Negros > 1971> O Fur Mil Fortunato, ao centro, junto de uma peça de artilharia pesada (obus 10,5 cm) que defendia Bissorã, sede do BCAÇ 2927 (1970/72).

Foto: © Carlos Fortunato (2005)


1. Amigo Luis Graça:

O meu nome é Carlos Fonseca, de Maceira, Leiria, telefone 962603713, ex-combatente da CCS do BCAÇ 2927, Guiné, Bissorã, 1970/72.

Admiro bastante o seu empenhamento na divulgação da nossa causa através do seu site.

Informo que a nossa companhia irá realizar um almoço-convívio no dia 7 de Outubro, em Fátima. Caso seja possivel, divulgue. Gostaria ter o seu endereço para lhe enviar um convite para estar presenta no nosso convívio, era um prazer.
Desde já os meus agradecimentos.

Um Abraço

Carlos Fonseca

2. Comentário de L.G.:

Carlos:

Este é o maior espaço na Internet sobre a experiência, única, dos ex-combatentes que estiveram na Guiné, no período da guerra colonial (1963/74). É naturalmente também o teu espaço e o espaço dos teus camaradas da CCS da 2927. Podes ver, nas nossas páginas mais informação sobre Bissorã. Será que chegaste a conhecer alguém da CCAÇ 13 - Os Leões Negros ?

Podes também consultar a carta de Mansoa (1/50.000) onde se inclui Bissorã.

O Carlos Fortunato é elemento da nossa tertúlia. Em breve, no próximo mês de Novembro de 2006, deverá revisitar Bissorã e outros sítios por onde andaram os Leões Negros.

Aqui fica a divulgação da data e local da vossa festa. É simpártico o teu convite, mas -como deves imaginar - não poderei estar convosco nessa data. No dia 14, também deveremos ter um encontro, a nível da nossa tertúlia, em Montemor-o-Novo.

De qualquer modo, ajuda também a divulgar o nosso blogue:

Luís Graça & Camaradas da Guiné > http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com

O meu endereço de e-mail é o seguinte > luis.graca@ensp.unl.pt

Também podes telefonar-me, nos dias úteis, directamente para: 21 751 21 38 (das 9 às 17h).

Guiné 63/74 - P1078: Estórias avulsas (2): Uma boleia 'by air' até Nova Lamego para uma noite de fados (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).


Texto de Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa) .


Caro Luís Graça:

Mais uma história, verdadeira, claro está (1).


A Visita Aérea às Companhias que não aconteceu.

Quando estava na Ponte de Udunduma com o Pel Caç Nat 52, fui chamado a Bambadinca, para reforçar a CCAÇ 12, numa qualquer operação de que não me lembro, mas na qual nada deve ter acontecido, pois senão até a minha fraca memória se lembraria.

A verdade é que ao fim da manhã (a operação começaria ao fim da tarde), quando já estava em Bambadinca a fim de combinar a coisa com o meu grande amigo Capitão Bordalo, comandante da CCAÇ 12, e os seus Alferes, aterra uma DO 27 na pista do quartel.

É sabido, pelo menos no meu tempo assim era, que os Comandantes de Batalhão (passo a crítica jocosa), se pelavam por uma voltinha de avião ou helicóptero, com a desculpa da visita às Companhias mais afastadas.

É curioso que as colunas de abastecimento, pelos vistos, não serviam tal propósito, vá-se lá saber porquê, o que pelo menos no caso do meu batalhão era uma realidade.

Mas, voltando aos factos, logo o Comandante do Batalhão [ BART 3873, Bambadinca, 1972/74] se deslocou à pista para tomar assento no avião e dar a sua volta aérea (1).

Foi então que o piloto, grande amigo meu de Monte Real, e que penso não se importa que aqui deixe o seu nome, Jaime Brandão, perguntou por mim, e convidou-me para ir com ele até Nova Lamego, pois iria acontecer uma noite da fados, e era muito importante a presença da minha voz. (Já perceberam que na altura eu cantava o fado e, segundo dizem, bastante bem).

Acrescentou ele que não havia problema, pois no outro dia voltava a Bissau e no caminho deixava-me em Bambadinca. (Era fácil, declaravam uma porta aberta e assim tinham de aterrar).

A cara do Comandante era indescritivel e eu disse ao Jaime que era impossível porque tinha aquela operação.

Voltamos para a messe e passadas uma hora ou duas ouve-se um helicóptero aterrar e aí o Comandante disse:
- Agora é que é!!!

Claro que fui também até à pista.

Do helicóptero sai o Pedro Melo Ribeiro, outro amigo de Lisboa, que não era piloto mas vinha a acompanhar, e me diz:
- É pá, vimos-te buscar porque esta noite há fados em Nova Lamego e o pessoal disse logo que tu eras imprescindivel!!!

A vossa imaginação está agora com certeza a ver a cara do Tenente-Coronel, com o espanto e sei lá mais o quê bem retratado na fisionomia.

Claro que dei a mesma resposta e retirei-me para a messe, sob os olhares gozões de uns e o olhar reprovador de outro, que não sabia bem o que fazer e até talvez meditando na importância da minha pessoa.

Por volta das 3 ou 4 horas da tarde, depois de uns uísques bebidos para animar as tropas, aterra outra DO 27, e o Comandante entre, incrédulo e ansioso, lá se dirigiu para a pista, comigo e já um número de camaradas a acompanhar.

Era novamente o Jaime Brandão, que com um sorriso dispara:
- Então vens ou não?

Escusado será dizer que a resposta foi a mesma e que o Comandante neste momento já não tinha cara, mas uma máscara de incredulidade, espanto, irritação, etc. etc.

Nos dias que se seguiram o gozo foi enorme, umas vezes mais descarado, outras mais disfarçado.

À noite lá fomos para a operação que, como digo acima, não teve nada de especial a reportar.

E assim aconteceu a visita aérea que... não aconteceu!!!!

Durante uns tempos foi lenitivo para as agruras e desconforto da guerra e só por isso já foi muito bom!!!

Abraço do
Joaquim Mexia Alves
____________

Nota de L.G. ;

(1) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)

(2) Tenente-coronel António Tiago, já falecido: vd. post de 17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)