terça-feira, 29 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P301: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > 2005 > No tchon balanta... região de Porto Gole.

Com a devida vénia e os nossos agradecimentos ao nosso amigo Jorge Neto.

Fonte: Africanidades > 21.11.05 > Tchon balanta (região balanta).

© Jorge Neto (2005)



Caros camaradas
Estamos já em época natalícia e vou dar-vos uma de prosa, para amenizar (será?...). Tem sido uma das ideias dos meus natais.

A. Marques Lopes



Nota de L.G.:

Amigos e camaradas, esta estória comoveu-me. É a coisa mais linda que eu podia ler neste Natal. Ela foi decididamente escrita com sangue e lágrimas. É sobretudo reveladora da grandeza de alma do nosso amigo e camarada A. Marques Lopes que, em 7 de Julho de 1967, estava no sítio errado, em Samba Culo. 

Ele era alferes miliciano da CART 1690, sediada em Geba. Não creio que o luto das nossas perdas se possa fazer de uma vez por todas. Escrever e partilhar a escrita ajudam a fazer o luto de tudo aquilo que perdemos quando tínhamos vinte anos e fazíamos a guerra na Guiné... Obrigado, António.


A professor de Samba Culo

Ali estava ela, jovem e bela como a conheci há trinta anos, mas agora com um olhar calmo e um sorriso nos lábios, vi-a na expectativa do meu abraço. E abracei-a... e chorei (...).

Professora, este jovem é o Cinco, que me trouxe de jeep até aqui, e este é o Blétch Intéte, filho da siguê (1) dos balantas de Barro. O outro teu patrício, homem-grande (2), é o Cacuto Seidi, chefe da tabanca (3) de Barro. Foi ele que me disse que o Blétch Intéte tem irã (4) e que só ele podia fazer com que eu te encontrasse. A minha chegada aqui, há trinta anos, foi muito diferente, como deves calcular, e não me refiro, evidentemente, às razões de cada uma das viagens. Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira (5), tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus. Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava. Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho (6). Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada. Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia (7), fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)

Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau. Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite. Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco? Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo. Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar. É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a kalash que tinhas pendurada no quadro da escola. Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza. Sei que foste uma boa professora. Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia. Vi os livros por onde aprendiam a ler, vi os cadernos de redacção e de cópias. Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país (...).



Uma escola do PAIGC, em "região libertada"...
Tal e qual como a que as forças da CART 1690 destruiram na Op Inquietar II (4 a 7 de Julho de 1967) e em que morreu a jovem professora, aqui evocada pelo autor.

© Agência de Notícias Xinhua (1972)

Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” (8) e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...) Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora. (...)

© A. Marques Lopes (2005)
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(1) Feiticeira tribal

(2) Homem idoso, respeitável, aceite como autoridade pelos mais novos da povoação.

(3) Povoação.

(4) Irã, entre os balantas, que são animistas, é qualquer ser da natureza, árvore ou animal, ou qualquer objecto a que é atribuído poder mágico. «Tem irã» significa ter poder sobrenatural que é preciso respeitar e temer.

(5) Aeroporto de Bissau, a que foi dado o nome de Osvaldo Vieira, herói do PAIGC, morto durante a guerra de libertação.

(6) vd. post de A. Marques Lopes, de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II :

" (...) o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida".

(7) Cinema popular na Rua dos Condes, em Lisboa.

(8) Está quieta aí!

Guiné 63/74 - P300: Tabanca Grande: Parece que foi ontem (CCAÇ 3327, 1971/73: Teixeira Pinto, Bissássema) (Rui Esteves)

Caro Luís Graça,

Chamo-me Rui Esteves, tenho 57 anos de idade, fui furriel miliciano enfermeiro. Pertenci à Companhia de Caçadores 3327, formada nos Açores,companhia denominada independente.
Chegámos a Bissau em Janeiro de 1971; regressámos em Janeiro de 1973.

Estivemos na zona de Teixeira Pinto / Cacheu ("acampámos"ao longo de meses ao longo da estrada que começou em Teixeira Pinto: a dormir no chão; sem água para banhos; sem qualquer construção que não fosse feita de folhas de palmeira).

Aqui morreu o único soldado da nossa companhia.

Quando começou a estação das chuvas, fomos distribuídos por vários aquartelamentos da zona.
Em Novembro fomos transferidos para a zona de Tite, para Bissássema (1), onde rendemos uma CCAÇ que estava muito desmoralizada e com muitas baixas quer em combate quer por motivos de saúde.

Encontrei aqui um rapaz que tinha feito a recruta comigo, nas Caldas da Raínha: falo do Pedro Alegre, que tinha um jeitão para a música e um azar do caneco em tudo o que se metia.

Os meses foram passando, escorrendo devagar... O tempo que eu passei a olhar para dentro, a sonhar com a vida aqui; os meus projectos para quando regressasse !

Em Janeiro de 1973, prestes a completar 24 meses de comissão, regressámos à Metrópole.
Tivemos sorte, as Companhias que se seguiram já fizeram 27, 28 meses de comissão...

Parece que foi ontem, e já estamos aqui quase a verificar na prática como será quando tiver 64 anos (lembram-se do When I'm Sixty-Four, do album Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band ?).

Voltarei a dar sinal.

Um abraço,
Rui Esteves

Os meus contactos:
Telemóvel (...)
E-mail: ruber@netcabo.pt
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(1) Em frente a Bissau, na margem esquerda do Rio Geba. Vd. Carta da Guiné.

Guiné 63/74 - P299: O Saltitão (CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72) (Manuel Melo)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2001:

O David J. Guimarães junto à ponte do Saltinho. Segundo o testemunho deste ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca (1970/72), o Saltinho era um aquartelamento que ficava a 20 Km de Xitole na estrada para Aldeia Formosa (hoje, Quebo).

Em 2001 revisitou, com um gurpo de amigos, os sítios por onde passou (Sector L1/Zona Leste). "É célebre o Saltinho pela sua localização junto ao Rio Corubal e pela sua linda ponte. Curiosamente como em Cussilinta o Rio aí também tem rápidos. A Guiné toda plana e com rápidos nos rios!... É estranho mesmo. Ao tempo estava lá uma Companhia que pertencia ao Batalhão com sede em Galomaro, e que eram portanto nossos vizinhos". Essa companhia era CCAÇ 2701 (1870/72)...

A importância estratégica desta ponte era óbvia: permitia a ligação rodoviária do resto da Guiné (norte, leste, oeste) com o sul...

© David J. Guimarães (2005)


1. Mensagem do Manuel Melo:

Fui militar da Companhia de Caçadores 2701, comandada pelo capitão Carlos Trindade Clemente, no sítio do Saltinho, Guiné-Bissau, no período de 1970/72 e navegando na NET, verifiquei que era feita, por si, alusão a uma publicação da dita Companhia, denominada o Saltitão, que gostaria de ter como recordação e que infelizmente não sei o modo como possa adquirir exemplares, pelo que solicito a sua ajuda.


2. Resposta de L.G.:

Amigo e camarada:

Vou pôr-te em contacto com os membros da nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné. Pode ser que alguém conheça a tua companhia (CCAÇ 2701) que esteve no Saltinho, no período de 1970/72 e te arranje cópia do jornal de caserna, O Saltitão.

Julgo que vai ser muito difícil. Talvez o A. Marques Lopes te possa dizer onde consultar um exemplar, talvez no Arquivo Histórico-Militar. Alguns de nós conheceram o Saltinho e fizeram operações com malta de lá. Se quiseres, junta-te a nós, manda uma foto tua (uma antiga e uma actual). E conta-nos algumas das tuas estórias. Pode ser?
Um abraço.


3. Mensagem do A. Marques Lopes:

O camarada Marques Lopes manda dizer que na Biblioteca do Exército (Rua Museu de Artilharia, 1149-065 Lisboa; telefone: 21 854 1025; e-mail: bibex@mail.exercito.pt) é possível consultar (e fotocopiar) O Saltitão, publicado em 1971 pela Companhia de Caçadores 2701, Saltinho – SPM 1268. Director:Cap. Inf. Carlos Trindade Clemente.


4. Nova mensagem do Manuel Melo:

Agradeço o seu contributo para a descoberta do Saltitão [...] Tenho fotos minhas antigas que enviarei logo que possível, juntamente com uma recente. No que diz respeito a estórias militares tenho feito o possível por esquecê-las, o que é difícil. Nunca esqueci nem esquecerei os camaradas que comigo viveram alguns períodos menos bons.

Em breve darei mais notícias minhas.

segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P298: Brá, SPM 0418 (1): as minhas memórias de Cuntima (Virgínio Briote)


Amigos & camaradas:

Temos notícias do VB, o nosso camarada dos comandos velhinhos de 1965/66... Ele diz-nos que "o Fora-Nada-Nada está imparável!"... e junta "algumas páginas das minhas memórias em Cuntima". Sempre com aquela discrição, serenidade e sabedoria dos homens que sabem tirar lições da sua experiência de vida...

O Virgínio Briote, em Biarritz (2002)

© Virgínio Briote (2005)

É um privilégio termos, na nossa tertúlia, gente como ele que tem talento literário, que sabe comunicar ideias, emoções, sentimentos, contar pequenas estórias, recriar ambientes onde nos reconhecemos, à distância de trinta e tal anos... Não só só ele, como o João Tunes (que é um conhecido blogador, com garra, crítico e mordaz), como o A. Marques Lopes (que belíssima peça a da bolanha de Sinchã Jobel!), o João Varanda, o David Guimarães, o Humberto Reis, o Vitor Junqueira ou o Afonso Sousa, só para citar alguns ex-camaradas de armas que trocaram a G-3 pela caneta ou pelo teclado do computador, ou que são os mais assíduos comunicadores da nossa tertúlia... Mas é do VB que hoje quero falar para dizer que ele é uma revelação: todas as vezes que vai ao baú (expedido de Brá , SPM 0418), saca de lá uma peça que é de antologia!

É destes presentes de Natal que a nossa tertúlia precisa. Esta prosa dá gozo publicar e ler... Grande Virgínio Briote! Que o teu exemplo inspire outros camaradas, menos afoitos às coisas das letras...

Há tempos nós publicámos aqui [vd post de 19 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIV: Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)] um belíssimo texto do VB, e ele respondeu-nos, com reconhecimento e humildade:

"Fiquei sensibilizado com a publicação do conto do Ansumane. Pareceu-me até que está muito melhor do que aquele que escrevi há anos. De resto, a minha prática de escrita em quase 40 anos de actividade profissional resumiu-se invariavelmente a relatórios comerciais, problemas, oportunidades, fraquezas, forças. Relatórios para multinacionais, sabes do que estou a falar, nada de margem para poesias"...

Eu sei (ou suspeito) que há para aí muito mais gente com jeito para a escrita... O que se passa é que alguns de nós somos mais envergonhados... Aproxima-se o Natal de 2005: a melhor prenda que a gente pode oferecer-se uns aos outros sãos as nossas estórias, mais curtas ou compridas, com mais pica ou menos pica, mais tristes ou mais alegres, mais poéticas ou mais divertidas, com mais ficção ou mais história... Vale tudo!... Deixem soltar o verbo!... E fico/ficamos à espera dessas prendas!

Luís Graça
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1. EM CUNTIMA

A festa não era para ele, aquela gente toda na pista de aterragem festejava a chegada da avioneta. Não demorou muito tempo a perceber aquele ar de agitação e da romaria em volta do piloto e da meia dúzia de caixas com uísque, cerveja e tabaco espalhados pelo chão. E os sacos do correio, todos à volta, a pressa de um daqueles militares, a fúria em tirar para fora dos sacos maços e maços de cartas, algumas pelo chão, outros a apanhá-las. Carlos Correia, Manuel Silva, ó Tomé, as mãos estendidas, pronto, meu sargento!

Gil Duarte? Olhe, seja bem-vindo a Cuntima! Um gajo de mão estendida, de calções e camisa de caqui, com um esboço de pêra e bigode, o comandante da companhia, capitão Galo. Estes são os seus camaradas, o alferes Adair, mais conhecido aqui por Didi, o alferes Ribeiro, aquele ali é o doutor Francisco Lourenço, um açoriano da Terceira. Adair, hoje já tem que fazer, trate de lhe mostrar o local onde vai ficar, os aposentos do hotel, a cidade, a casa de banho, mostre-lhe tudo!

Cuntima era uma rua, uma recta de 200 ou 300 metros, a estrada de terra a atravessá-la, entre a saída para Jumbembem e Farim e a entrada da fronteira com o Senegal. Casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima, casitas de adobe atrás, da população nativa.

No lado nascente, em frente ao antigo celeiro, que agora servia de camarata do pelotão do Gil, ficava a casa do comando, um quarto para o capitão, outro para a estação de rádio e uma saleta que servia de posto de socorros e de capela quando havia capelão, e uma arrumação com beliches, onde estacionavam três ou quatro soldados. Duas casas depois, a messe, em tempos mais calmos moradia de alguém importante na terra. Era aqui que se encontravam para as refeições os alferes da companhia, o capitão Galo, o médico e o 1º sargento. À entrada, à frente do bar, o Magrinho servia cerveja, uísque, leite condensado, água, por esta ordem conforme a existência, e a seguir, o que havia no frigorífico.

No primeiro jantar em Cuntima, ficou logo a conhecer a história deles e do batalhão. Do capitão não, que se retirou cedo.

O Adair era mais brasileiro que português, criança ainda fora com os pais para o Rio de Janeiro. Questões relacionadas com heranças forçaram-no a vir a Portugal, a Vila da Feira. Não havia forma de fugir, tinha que ser! E pronto, foi assim, acabou-se-me a Gávea, Copacabana, Ipanema, o Leblon, o Leme!

Ó Didi, estás em Cuntima, uma beleza de terra também, enfim, não tem praias, mas tem bolanhas, palmeiras, bajudas, calor, que queres mais, o Ribeiro, um tipo pequeno, olhos vivos, muito negros, com ar de indiano, à gargalhada.

Dali para a frente, as conversas entre eles eram sempre as mesmas, só umas pequenas variações, um acrescento aqui ou ali. Sempre à volta do mesmo, os meses que faltavam para o regresso. Fosse qual fosse o princípio, terminava sempre na Rocha Conde de Óbidos e no encontro com a namorada, mulher, filhos, os pais, os amigos, a rua, o quiosque…

Guiné Portuguesa? Deixa-me rir! Nem penses, esta é uma guerra perdida! Não tenhas ilusões, amigo, isto não é nosso, nunca foi, o Didi ansioso por passar a ideia. Quando vires a tralha a cair-te em cima, nessa altura sim, vais começar a pensar no buraco em que te meteram. E toma nota, os gajos em Lisboa continuam na vida deles, a engordarem com este negócio, a mercadoria somos nós! Daqui a uns tempos falamos, quando estiveres mais habituado a estes calores…

O Coronel insistia em ordens de saída para o mato, patrulhamentos, emboscadas, vigilância das picadas, capinagem, o diabo a sete. Saíam, é certo, mas via-se-lhes na cara a má vontade, as pernas contrariadas, a arrastarem-se em coluna por um, muito chegados uns aos outros, como se assim ficassem mais protegidos. Os alferes e os furriéis já não tinham ânimo nem vontade para imporem as regras de segurança. Já tinham passado por muito. O Como, pá, o Como! Os dois feridos que tivemos mal desembarcámos! E aquela história, lembras-te Ribeiro, e mais um episódio a sair aos bochechos. Ao fim de uns dias, o Gil era um veterano de guerra, esteve no Como aqueles dias todos, os turras a chateá-lo a toda a hora.

Ao jantar, à luz do petromax (1), a presença do capitão Galo impunha um pouco de ordem nas conversas à mesa. Era o único ali que tinha acesso aos relatórios da situação militar em toda a província. Com um ar confidencial, punha-os vagamente em dia com o que se passava nos outros pontos da Guiné, Oio, Morés, Tite, Cantanhez, Buba, Guilege, Gadamael, Cacine, Cameconde…Ataques, minas, baixas.

Numa daquelas noites, ao levantarem-se da mesa, Gil viu o capitão fazer-lhe um sinal. Venha daí, vamos dar uma volta até ao posto de rádio. Uma noite linda, não? Um espanto, estas noites de África!

Porta fechada, viu o capitão estender um mapa junto à luz do petromax. As referências bem assinaladas com marcadores grossos a tinta vermelha. A fronteira, Cuntima aqui, Jumbembem, Farim a seguir, aqui em baixo, está a ver? Emboscada aqui, entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, o dedo apontado para um ponto do mapa. Sim, sim, esta madrugada, neste trilho entre as 6 e as 6 e 30. Preste atenção, levante-a ao meio-dia, nem mais um minuto. Fale com o Furriel Poças, ele trata da logística. Boa noite.

A caminho do celeiro, Faquina Fula e Faquina Mandinga misturavam-se na cabeça com os restos da cerveja que bebera em Bissau. Pôs o Poças ao corrente da missão e pediu-lhe que fosse ele a comandar. Era a sua 1ª saída para o mato, até aí tinham sido só treinos em Santa Margarida e Mafra. Deixe estar, meu alferes, vai correr tudo bem, fique descansado.

Na cama, nada de leituras que a lanterna estava sem pilhas. Num rádio, muito baixo, Bécaud cantava Et maintenant, música árabe de outro, ressonava-se por ali fora. Faquina Fula, Faquina Mandinga, a cabeça sempre a rodar, até adormecer.

Quando se pôs a pé, a cabeça voltou a rodar, ao ritmo daqueles dias. Na rua, noite ainda escura, cheirava a café quente, tomava-se o pequeno-almoço, pão fresco com chouriço, marmelada.

Puseram-se a andar, ainda não eram cinco. Armas pousadas nos ombros, mãos a segurarem os canos, coronhas para trás, como quem leva um cajado. Parecia uma romaria a S. Bento da Porta Aberta, um restolho enorme, tanto barulho com os pés. Não se pode andar com menos barulho, Poças, o pessoal não pode fazer levantar os pés em vez de os arrastar? Os olhos pequeninos do furriel para ele, quê? Como? É, poder podem…

Tomava pela primeira vez contacto com a mata, as árvores, os ruídos, ansioso por dar atenção a tudo. Espevitou ainda mais com a floresta a acordar. São macacos-cães a ladrar, quando estivermos perto deles deixam de se ouvir. Falta pouco, é para aqueles lados, o caminho é depois daquela bolanha, ali em frente.

Aí para as 7, estavam deitados, G3 em posição, escondidos na mata, abrigados em arbustos dispersos pelo capim, à espera que os turras passassem.

Horas a passarem e turras nem vê-los, o silêncio cortado de vez em quando por um ou outro ronco de alguém a ressonar, o sol bem alto a queimar e moscas grandes, peludas, a pousarem neles, sem se ouvirem.

O Poças aproximou-se, apontou para o relógio, quase meio-dia. Podemos levantar a emboscada, já não aparecem, vamos? Curvado no trilho, percorreu-o com os olhos de uma ponta a outra. Viam-se sinais de sandálias de plástico e de rodas de bicicletas. Tinham passado aqui, não havia muito tempo, disse um milícia nativo.

Este é um caminho que utilizam para introduzirem armas, comida, sei lá que mais! Só que passam aqui a outras horas, claro. E se continuasse aqui até eles passarem? Agora não, que as ordens são outras.


2. PESSOAL AOS SEUS LUGARES

Dentro do celeiro, pelo meio dos beliches, orquestra a sono solto, madrugada ainda a meio. Portão semiaberto, o céu a brilhar de pontinhos. Noites como aqui, com tanta luz, parece dia! A casa do capitão Galo em frente, aí a uns 20 metros, os alfas rómios da casa do rádio a ouvirem-se, aroma a café a vir de lá. Uma novela no quarto de banho do capitão, Capricho ou parecida! Na volta, outra vez o céu, bocados de estrelas a caírem.

As matas em frente, escuras, misteriosas, quando se lembrarão eles de vir até cá? Se soubessem como era fácil, todos a dormir agora, nem precisavam de atacar de longe, bastava chegarem-se, sorrateiros, escondidos pelo matagal, espiar o movimento das sentinelas, evitar os petromaxes, colados ao chão, devagar a caminho do celeiro, a curta distância, 10 metros chegava. Dedos no gatilho, com vontade, entrar, uma chacina nos tugas (2). Se não tivessem medo também. Mas algum dia vão perdê-lo.

De novo na cama, a vontade de dormir a ir-se, as recordações a virem. O comboio da linha de Sintra, a chegada à Amadora nas horas de ponta, às centenas a saírem, todos com pressa, a desaparecerem nas ruas, depois nas casas, as luzes a acenderem-se, o vento a dar, as praias de Carcavelos, de Oeiras, a areia do Guincho pelo ar, por aí acima até ao Porto, à estação de S. Bento, o passeio das Cardosas, a Avenida dos Aliados, os Clérigos, o 6 (3) a subir para os Leões, o Hospital de S. António, a Aníbal Cunha, a Carvalhosa, o ardina a apregoar olhó Popular Diário, a subida da Oliveira Monteiro até ao Carvalhido, as ruas, os quiosques. A circunvalação, a via Norte, Mindelo, Modivas, sempre a subir até Vila do Conde, terra linda, a Póvoa do Varzim, os banhistas com os sacos ás costas, toalhas coloridas debaixo dos braços, a estrada para Viana, Aver-o-Mar, o cheiro da casa dos frangos, tão bons não havia, a Apúlia por fim. O sossego dos fins das tardes dos Setembros da praia dos sargaceiros, as marés-cheias por volta das 7, ondas enormes, certinhas como um compasso, os mergulhos com o André, o Eurico, o Beleza. O regresso a casa, bicicleta nos caminhos pelo meio das latadas das uvas americanas, a secar ao vento, a chegada a casa, o Sol a pôr-se, a mãe à espera, a estas horas só, o irmão pequeno em férias, a cozinha com os fumos da sopa.

Nem o mar se vê daqui, os jornais da metrópole, de há duas semanas, a rodarem entre todos, a Bola, o Eusébio, o Coluna, o José Augusto, o Pedroto, o Vicente, irmão do Matateu… O Costa Pereira a defender fora da área de cabeça, em mergulho, no estádio do Braga, nunca vira uma defesa daquelas! Os títulos a vermelho do Jornal de Notícias, o Comércio do Porto com o título a gótico.

Como é que ela vai reagir à minha carta? Que ideia a dele, pedir-lhe que o considerasse agora mais que um amigo, estivera com ela mais de duas horas da última vez, não lhe dissera nada, nem um sinal lhe dera! Tão longe, tanto tempo à frente, tão nova ainda, tanta vontade de ir aos bailaricos das festas da queima, em casa das amigas, nas festas familiares. Que absurdo! Que ousadia também! O amor a dar-lhe tão súbito, tão fulminante, talvez por estar longe, ou quem sabe, só uma correspondência que sempre lhe daria jeito, uma madrinha de guerra talvez, com notícias diferentes da metrópole.

Uma rajada comprida vinda de muito longe entrou-lhe pelos ouvidos dentro. Olhos mais que arregalados, o salto de gato da cama. Queria gritar outra coisa, saiu-lhe pessoal aos seus lugares, lembrou-se logo do cobrador das camionetas do Marinho (4) em Braga, nada que se parecesse com um grito de guerra. Se calhar, por isso ninguém saiu, só ele. Em voo pelo buraco aberto na parede das traseiras, a pancada na cabeça, um estrondo enorme, estrelas a brilhar mais que as do céu. Finalmente cá fora, a mão na cabeça, o sangue a escorrer, pronto, fui atingido, logo à primeira!

Um silêncio, ninguém cá fora para o socorrer, só a sentinela a chegar-se. Pareceu-me ver umas luzes suspeitas ali da mata, mandei para lá uma rajada! Alarme falso, afinal deviam ser pirilampos! Tem sangue na cabeça, deixe ver, o meu alferes deve ter batido com a cabeça na parede, ainda não está calhado com o buraco, é o que é.

Manhã cedo, nativos da zona e outros vindos do Senegal em bicha para a consulta, o médico, açoriano da Terceira, a atendê-los, cheio de paciência para um, ora abre a boca, diz aaah, outra vez, aaah, o enfermeiro mão no frasco enorme, comprimidos, drageias, cápsulas, todas as cores da paleta, dá-lhe duas dessas, outra dessa cor, amanhã se não estiveres melhor vai ao feiticeiro. O que foi isso na testa, Gil?


3. A ESTRADA PARA FARIM

Viaturas prontas, sacos de areia nos lugares da frente para o condutor e acompanhante se houvesse voluntário. Os militares, oito a dez, mais os nativos com paus, sacos aos ombros, galinhas, porcos, bidões vazios, tudo a monte nas caixas das Mercedes e GMC (4). A coluna tinha-se posto em marcha de Cuntima para Farim, com uma paragem em Jumbembem para cumprimentos e uma cerveja fresca. Cerca de 30 e tal quilómetros em pouco mais de 3 horas, com impedimentos menores.

À entrada de Farim, o furriel Poças descrevera os procedimentos habituais. Largar o pessoal nativo logo à entrada, arrancar para o centro da povoação, toda ela um grande quartel, casas civis rodeadas de instalações militares com arame farpado à volta, e depois como manda a cavalaria, dispor as viaturas em linha, militares dentro delas em sentido, bolsos apertados, apear-se, dirigir-se para o posto de comando, peito para fora, barriga para dentro.

Dá licença, meu Coronel, apresenta-se o alferes Gil Duarte com a coluna de reabastecimentos para Cuntima. Mande seguir aos seus destinos, encarregue o sargento mais antigo, o nosso alferes fica aqui, vai almoçar connosco. E como vão as coisas por Cuntima? Quando foi a última vez que saíram para o mato? Para onde? O que aconteceu? A que horas? Quanto tempo lá estiveram? Quando foi a última vez que o capitão saiu com vocês? Quando? Com quem? Nem dava tempo a engolir!

Apresentou-se aos alferes, capitães e majores, todos com cara de pouco amigos, 17 ou 18 meses de comissão nas trombas, deu as voltas todas, durante a tarde inteirou-se dos carregamentos, teria que ficar a noite, os combustíveis vindos de Bissau estavam ainda a ser descarregados e conferidos. Uma volta pela povoação, pouca coisa para ver, uma lata de anchovas e uma cerveja numa esplanada.

Fica no quarto do Ramiro Medalha, lá tem sempre vaga, dissera-lhe o capitão Risco. No meio do silêncio que já se sentia àquela hora, um chinfrim enorme, do quarto que lhe indicara o capitão. Dormir lá?

O Ramiro? Excesso, em tudo! Intelecto vigoroso, ironia cortante, discurso como um autoclismo, muita cerveja, todas as noites até cair para o lado, ele e quem tivesse o azar ou a sorte de estar nas proximidades. E suor, como se acabasse de sair do chuveiro. Tudo nota vinte, uma força da natureza, exclamavam os que com ele privavam.

Nascera com sorte, de boas famílias como então se dizia, latifúndio registado nos Alentejos, espigara rodeado de mimos, criadas para todas as dependências da casa e descontado o exagero, para muitos serviços também, excepto a Anica que o vira nascer e lhe dera a mama. Mal dera pela passagem pelo liceu, anos e cadeiras a jacto. Registada na caderneta escolar ficou a suspensão decretada pelo reitor, apesar do respeito reverencial pela família, sanção imposta pelo pai que, nessas coisas primava pelo exemplo. No decorrer de um campeonato que metia fita métrica, a jovem professora de inglês apanhou-o a medir o instrumento, numa cadeira lá para trás de uma turma com 31 rapazes. Corada até nos cabelos loiros, o Russo a contar, não sabia bem o que era aquilo que estava em cima da fita. Decidira suspender a aula e chamar o reitor, uma medida demasiado drástica no entender de muitos alunos e de alguns professores. E a aula de inglês daquele dia acabou mesmo ali. Parece ter sido este o facto mais marcante da passagem, aliás brilhante em termos de aproveitamento escolar, do Ramiro pelo liceu. O pai, advogado, da situação ainda a somar, despachou-o com uma criada, para uma casa que tinham em Lisboa, ali para os lados do Príncipe Real, naqueles anos ainda um sítio muito calmo. Nas recomendações iniciais que o pai lhe fizera, a importância em assistir às aulas dos profs dos direitos todos, sem esquecer claro, a brilhante cabeça do Professor M. Catano, uma inteligência de agora e do futuro, que ele, Ramiro, deveria ter em conta se quisesse encarreirar.

As aulas, como era de prever, passaram depressa, mal deu por elas, as necessárias para medir o pulso dos profs, pedidos de esclarecimento contínuos, tudo entendido até à próxima aula, daí a uns meses. Em cinco anos a licenciatura na mão que era o que o pai queria. A tropa, à espreita, mal acabou o curso, vestiu-lhe um fato zuarte (6), que ele, como outros, nunca vira nem em sonhos e despachou-o para a escola mais perto de casa, no caso a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde o Ramiro deu abundantes provas de como montar a sério.

No cais da Rocha Conde de Óbidos estavam todos, a mãe, as avós de preto, as criadas que couberam nos dois carros, todas com lenços nas mãos, as lágrimas a escorrerem, e o pai claro, comovido, uma oportunidade única na tua vida, a defesa da Pátria, os valores da civilização, disseram os que assistiram.

Acordou na Guiné sem se lembrar bem de todos os episódios da viagem, salvo uma conversa que fora obrigado a ter no barco, com o Coronel, conversa que não lhe correra lá muito bem. O Coronel, militar encarniçado, homem direito e competente, discursara-lhe na cara os valores da Pátria, do Exército, da Cavalaria, até a família nomeara!

Há três dias em Bissau, novo episódio, desta vez com a participação da Polícia Militar. O Coronel declarou-se incompetente para aquele caso particular, desistiu. Delegou na figura do major Amor, um major pequenino, magrinho, bigode fino, exemplar na bota alta, com falta de peso para todo o serviço militar quanto mais para meter nos eixos o alferes Ramiro! Que estivesse descansado o Coronel, o assunto ficaria bem entregue…

O Ramiro continuou o seu percurso, sempre ao lado do batalhão, cervejas até cair para o lado, ele e os compinchas, às vezes com as cadeiras, as mesas, as garrafas vazias, empregados, patrões, polícia militar, o que estivesse na frente. Assim, um oportunista daqueles que aparecem sempre nomeou-o Ramiro das medalhas, outro mais abrangente, Medalha com letra grande para abarcar todas. Dali em diante passou a apresentar-se Ramiro Medalha.

Os quatro alferes que partilhavam o enorme salão que lhes servia de quarto estavam a começar mais uma noitada, eram para aí 9 da noite, os dois frigoríficos a abarrotarem de líquidos, garrafas já vazias pelo chão, lençóis desalinhados, sumaúma a cair de pára-quedas, camisas desabotoadas até baixo, o Medalha só com umas cuecas, mas até ao joelho.

Sou o Gil de Cuntima, posso?

Mal tinha acabado de adormecer, acordou, a cama molhada, bêbado de cheiro a cerveja, o Medalha com sabão na cara, ó maçarico dum raio, a coluna está lá fora à tua espera! A coluna estava diferente, as viaturas atestadas de farinha, vinho do Cartaxo em garrafões, leite condensado e outros líquidos, cunhetes com munições, marmelada em caixotes, latões com chouriço e outros enchidos, novos pretos com outros sacos, outras galinhas, porcos diferentes, uma ninhada acabada de ser parida. Ainda não tinha percebido bem este movimento dos nativos, vêm uns para cá, vão outros para lá, mas adiante para o posto de comando, outra vez viaturas em linha, procedimentos idênticos aos da chegada.

Iam a andar bem, mais devagar, claro, até que atingiram a curva da morte, uma história que se contava em todos os lados ter-se-ia passado ali. De um momento para o outro sentiu-se empurrado para a berma da picada, uma fuzilaria tão grande que nem nos exercícios de tiro da Carregueira. Deu por ele deitado, a G3 em posição, com o dedo no gatilho. Olhou em frente, a bolanha (7) a perder de vista, saltou para o lado errado! Deixa lá ver, deve ser do outro lado, a fuzilaria em bom ritmo, pensou duas vezes, mais uma, aí foi, agachado, quase colado ao chão como lhe ensinaram nas matas de Mafra, um ziguezague até à outra margem da estrada, outra vez a G3 em posição, olhou em frente, tudo capinado, um tronco aqui, outro além, montículos de baga-baga (8) a nascer. Então, onde estão os turras?

Alguns soldados de pé, gargalhadas nervosas, o Furriel Poças, não é nada, alto ao fogo, não é nada, parem essa merda, porra!

O Quadradão na caixa da viatura da frente, atento a todos os movimentos, terá visto uma vara de javalis a atravessar a picada. Mas que grande reabastecimento, deve ter pensado, o dedo fácil no gatilho, as balas a bater nas rodas das viaturas lá de trás e a resposta concludente, como ainda se ouvia.

Quase tudo normalizado, rodas para substituir e o soldado Canário não ouvia nem via nada, nem queria, só a G3, as mãos no carregador encravado, a aflição na cara, não sai, encravou-se!

© Virgínio Briote (2005)
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(1) Candeeiro a petróleo
(2) Designação pejorativa das NT
(3) Eléctrico
(4) Empresa de Viação Auto-Motora
(5) Camiões militares da General Motors, da 2ª Guerra Guerra
(6) Fato-macaco, grosso, esverdeado, que era distribuído aos cadetes
(7) Ou bolenha: extensões de água, aproveitadas para cultivo de arroz
(8) Formigueiros erguidos em altura (da formiga Baga-Baga)

Guiné 63/74 - P297: Guidage, a CCAÇ 4150 e a CAV 3420 (Salgueiro Maia) (Albano Costa)

O Albano e restantes camaradas com antigos comandantes e guerrilheiros do PAIG em Quebo (Aldeia Formosa), em Novembro de 2000.

© Albano Costa (2005):

Texto do Albano Costa:

Amigo Luís Graça

Nem sempre pode ser como nós desejamos, mas eu estou sempre informado, quero agradecer a minha entrada neste magnífico blogue, e vou tentar divulgá-lo o mais possível pelos colegas.

Mas há uma pequena correcção a fazer, a minha companhia [CCAÇ 4150] não se chegou a encontrar com a CCAV 3420, do Salgueiro Maia. Foi pedido à sua CCAV para ir a Guidage (já no fim da comissão - eu julgo que não ficou registado nos anais militares esta passagem da CCAV 3420, e já agora se alguém souber que me informe), para reforçar as tropas lá existentes que se encontravam bastante cansadas, e depois é que foi para lá a nossa CCAÇ 4150. Estivemos lá até ao fim, mas eu vou enviar um artigo publicado no Público Magazine, de 5 de Novembro de 1975, que acho interessante, muita gente desconhece, e é bom lembrar.

Também quero informar que foi um prazer ter estado com o A. Marques Lopes. Tivemos uma amena conversa mais um colega que quero trazer para a tertúlia que se chama Allen. Iremos encontrar-nos mais vezes e quem sabe trazer mais colegas, também eles apaixonados pela Guiné.

Quanto ao trazer para a tertúlia elementos do PAIGC, isso era muito bom. Eu quando estive na Guiné há cinco anos - tenho registo do CD que emprestei ao A. Marques Lopes e muitos de vocês já o viram, para ele se deliciar a ver aquelas belas imagens -, tivemos lá contactos com elementos do PAIGC, mas confesso que na altura só queria era ver a Guiné.

Mesmo assim, deu para sentir que eles gostavam muito de trocar opiniões connosco. Lembro-me de um elemento que na altura da guerra era da zona sul e que disse que era o responsável do PAIGC, e um colega nossa logo diz «este era quem nos mandava atacar quando estavamos no Xime». Eu lembro-me foi um momento bonito, e depois também me lembro do discurso de um comandante de Buba (ao que sei, infelizmente já falecido), ainda novo, que dizia: "povo português, povo guineense, somos irmãos, mesmo sangue, diferentes só na cor, voltem sempre que serão bem recebidos"... Por isso o que é preciso encontrarmo-nos uns aos outros, que logo mais vêm outros a seguir. Tenho a certeza que vai ser muito enrequecedor para todos.
Vamos a isso, e vou tentar contactar alguém que possa informar sobre elementos do PAIGC na Guiné.

Um Abraço
Albano Costa

domingo, 27 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P296: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes

1. Alferes milicianos da CCS do BCAÇ 2884, com sede no Pelundo, em alegre e descontraído convívio, no dia 1 de Janeiro de 1970.

João Tunes, ex-alferes de transmissões, é o segundo da esquerda, de costas e de quico na cabeça, abraçando um camarada (talvez o médico ou o capelão) ...


A camaradagem e a cumplicidade entre milicianos foram fundamentais para a sua sobrevivência (física e mental) no teatro de operações da Guiné. Davam-lhes força para enfrentar oficiais fascistas e incompetentes como aquele que puniu o nosso camarada e amigo com um dia de prisão, agravada para três, por ordem do Com-Chefe.

© João Tunes (2005):

Texto do João Tunes:

Camarada João Varanda,

Parabéns pelo excelente texto sobre os "quatro oficiais" assassinados no Pelundo (1). Julgo até que adianta bastante nos dados históricos sobre a guerra na Guiné. Embora não concorde integralmente com o modo decisivo como dás como adquirido que, com o eventual sucesso no chão manjaco, a guerra podia estar ganha. 

Julgo que a norte, poderia haver uma mudança importante na correlação de forças, mas parece-me voluntarista demais dizer-se que o PAIGC, com a entrega de um bigrupo, ia cair como um baralho de cartas. E no sul e leste? Sobretudo no "reino do Nino" como se ia dar a volta? Evidentemente que a zona de penetração a partir do Senegal era a mais fácil de conter, pois Sengor sempre jogou com um pau de dois bicos. Mas por onde o PAIGC penetrava a partir da Guiné-Conacry, a música era e seria sempre bem diferente. Enfim, nestas coisas, impossível é haver unanimidade. Mas, repito, o teu texto é um documento valiosíssimo. Parabéns.

Obrigado por finalmente teres avivado a minha memória, lembrando-me o número do meu Batalhão do Pelundo. É isso, BCAÇ 2884, sob comando desse Tenente-Coronel de pacotilha Romão Loureiro (antes da Guiné, o tipo havia feito a maior parte da sua carreira "militar" na União Nacional, tendo chegado a Presidente da Câmara de Viseu... e foi fazer aquela comissão para poder ascender a Coronel, mas [...] sabia tanto de guerra como eu sei da cultura de alcagoitas)(2).

Abraços.
João Tunes
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de João Varanda, de 26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco

(2) Sobre este militar de opereta, vd. o retrato (de antologia!) que lhe faz o João Tunes no seu blogue Bota Acima > Abril 7, 2004 > Jogo de Cartas. É uma peça (fundamental) para se compreender a prepotência, a incompetência e a arrogância de alguns (não sei se muitos) oficiais superiores que conhecemos no teatro de operações da Guiné (eu conheci!) e que muito terão contribuído para precipitar o fim da guerra... De facto, o mérito não foi só do PAIGC!

sábado, 26 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P295: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (4): A acção psicossocial (João Varanda)


Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636, Có 1969/71).

© João Varanda (2005)

A CCAÇ 2636 vivia Có nas suas 24 horas (1). A moral da companhia era sempre muito elevada, os sucessos já tinham surgido de forma muito significativa, a autoconfiança era enorme e tudo apontava para a continuação da boa estrela que nos estava a acompanhar. A nossa entrega era total, assim fomos compreendendo que muito havia a fazer encaixando-nos no sistema para que tudo se tornasse mais fácil. Para a Companhia era certo que em tempo de guerra teríamos de ser pau para toda a obra, tínhamos muito trabalho pela frente, por isso era extremamente necessário pôr mãos a toda aquela obra.

Colocada a tropa no terreno, as nossas acções na área foram sempre muito objectivas. O inimigo não se furtava a um contacto decisivo, naquele sector eram as nossas forças que comandavam e, como o inimigo não se colocava a descoberto, era por isso importante trabalhar na vertente social da campanha.

Vou respigar de memória alguns episódios para enaltecer o valor da campanha de apoio social, moral e médico que demos, à margem dos combates, às populações e aos nossos próprios homens.

Como Có era uma pequena e exígua tabanca, a dureza do conflito sobrepunha-se à sua riqueza e importância territorial, sustentando-se mesmo assim uma economia de mercado que permitia, sem dificuldade, assegurar a sobrevivência de uma população de poucas exigências. Seguindo a orientação de Spínola, conseguimos construir uma pequena urbe, abrindo caminhos, desenvolvendo a economia, melhorando o nível de vida das gentes locais.

Sobre a vertente social da campanha deixamos umas breves notas do conjunto de actividades encetadas a vários níveis de actuação:

1 – A tenda de campanha a CCAÇ 2636 possuía posto de socorros permanente para efeitos operacionais, constituindo uma mais valia não só para as tropas que ali viviam em ambiente de combate intenso, como também para as populações africanas, que usufruíam dos seus serviços assistenciais.

A equipa, tulelada pelo Furriel Miliciano do Serviço de Saúde António Silva Pratas e três Cabos enfermeiros, compenetrados da sua missão e sempre animados do melhor espírito de colaboração, desempenharam sempre tais funções com muito mérito e dedicação.

Era gratificante presenciar esse quadro diário. Muito cedo pela manhã, a população acampava junto ao Posto de Socorros em filas permanentes de mulheres, homens e crianças com a orientação do chefe de tabanca ou a um seu delegado que, por vezes, servia ao mesmo tempo de intérprete quando tal se justificasse. A maioria da população necessitava de acompanhamento clínico, devido a doenças endógenas de foro tropical, com base no paludismo. A prescrição era na maior parte das vezes com base em comprimidos ou injecção, para os africanos a aceitação da injecção era melhor, sem pruridos de qualquer natureza, coxas e rabos eram mostrados à espera de penetração da agulha. Toda a medicação era fornecida gratuitamente pelas Forças Armadas.

Ainda na vertente da saúde, diariamente se visitavam várias tabancas em busca de casos e de situações mais complexas ou mais raras que necessitavam de observação, diagnóstico ou tratamento. Casos que existiam, esconsos, envergonhados, escondidos na sombra de alguma miséria profunda. Nestes e em todos os outros que se impusesse, era providenciada imediata evacuação para Bissau, por via terreste, com escolta, ou por via aérea, conforme a urgência e a gravidade da situação encontrada.

Sobre os cuidados de saúde ministrados às populações, algumas outras reflexões compete aqui traçar. A primeira, para revelar a grande competência e, fundamentalmente, a extrema dedicação de todos os que connosco trabalharam, com parcos meios à sua disposição, com pessoal desprovido de formação, com largas de dezenas de consultas e tratamentos diários, com situações clínicas invulgares em muitos casos para abordarem. Eles foram, no seu ofício, heróis assumidos desta guerra particular.

A segunda nota é para descrever, em poucas palavras, situações vividas no terreno para provar a nossa ligação sentimental e efectiva aquela gente, tão profunda que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que o imperativo da missão, era a solidariedade verdadeira que nos movia. Dos muitos exemplos, escolho o daquela bajuda que iria ser mãe pela primeira vez.

Cerca das 3 horas da manhã, o chefe da tabanca contacta com o quartel transmitindo a necessidade de apoio médico à dita bajuda que, com o passar das horas, não dava sossego nem tranquilidade na tabanca. De imediato um camarada de serviço de segurança ao quartel foi ao abrigo subterrâneo à procura do primeiro que estivesse à mão para dar apoio e resolver a situação. Escusado será dizer a azáfama do pessoal dos serviços de saúde perante aquele caso que nunca se nos tinha deparado.

Após uma mini-reunião prestou-se-lhe os primeiros socorros e tomou-se a medida adequada, que era evacuação para Bissau para o Hospital Civil. Assim, e de imediato, a bajuda foi colocada no primeiro veículo à mão (por acaso o jipe cedido pelo Capitão Medina e Matos) e lá foi na companhia de um enfermeiro, um homem de transmissões e um atirador de metralhadora.

Estrada fora, lá foram os nossos camaradas, com as luzes do veículo nos máximos, num acto de desprezo pelo adversário, a todo o gás, direitos a João Landim, com o homem das transmissões a contactar com os fuzas para nos proporcionarem àquela hora a disponibilidade da jangada para fazermos a travessia rumo a Bissau. Cerca das 5 horas da manhã, esta malta dava entrada com a bajuda no hospital e, enquanto no guichet de atendimento entregávamos a papelada para tratamento de dados, ela seria mãe de um rapagão a quem foi dado o nome Mamadú Baldé.

2 – As gentes africanas de Có e subúrbios eram inconfundíveis: de grande estatura e carisma, eram irmãos de sangue e de luta pela mesma causa. Enaltecer os seus predicados seria esgotar toda uma panóplia de adjectivos. Por muito que o tentasse nesta singela crónica, não teria palavras para o fazer.

Naturalmente simpáticos, empenhados, compreensivos e sensíveis a todos os nossos argumentos, entre eles e nós havia uma empatia total, uma identificação absoluta em torno de todo o tipo de problemas desde os operacionais até aos da vivência da tabanca. Tudo se processava entre nós num perfeito sincronismo e entendimento, franco, despido de preconceitos.
Era muito fácil conviver com esta gente. Isto para dizer que, após todas as prestações de consultas de primeiros socorros, a tenda da enfermaria mais parecia um aviário de frangos e galinhas ofertados pelos pacientes, permitindo-nos depois fazer fabulosos pitéus nos momentos mais condicionados pela fome e pelo cansaço. Recusar a oferta de galinha ao africano era ofensa impensável.

3 – No percurso operacional tivemos um comportamento modelar, na área do bem-estar e do apoio social tudo também fizemos para colmatar muitos problemas locais, quer das NT, quer da população em geral. Para o bem-estar do pessoal, ao fim de pouco tempo, construímos um novo conjunto de cozinha, refeitório e cantina/bar para as praças.

Construímos ainda um espaçoso e seguro paiol subterrâneo para as centenas de granadas que jaziam praticamente a céu aberto, um sistema de filtragem de águas para beber e para banhos, uma oficina auto com fossa para lavagem e lubrificação de viaturas, com água corrente, para os nossos Unimog - para os grandes Furriel Marques e Teodoro Simões ( Nanza) nos proporcionarem transporte seguro -, um heliporto para evacuação de feridos e doentes para a capital Bissau, um sugestivo e elegante monumento alusivo à nossa passagem pela aquela terra, evocando os nossos mortos brancos e africanos. O qual, mais de trinta anos depois, ainda se mantém incólume e erecto conforme me relatou o Capitão do PAIGC Eduardo Sanhá que veio, após o final de guerra colonial, cursar Direito na Universidade de Coimbra.

Capinámos os principais troços das estradas envolventes ao destacamento de Có, reparámos aquelas mais necessitadas, construímos ou melhorámos pontes e pontões. Em relação à população africana, dadas as condicionantes da guerra envolvente que limitavam, por razões de segurança, as áreas agrícolas aproveitáveis, disponibilizávamos meios pessoais e viaturas para os enquadrar nas suas safras diárias, permitindo assim uma actividade agrícola e pecuária razoavelmente normal e produtiva.

Para salvaguarda do bem-estar e equilíbrio emocional do pessoal, junto ao improvisado estaleiro de apoio da brigada de engenharia, para a feitura da estrada Có – Pelundo construímos um campo para a prática do futebol, fenómeno universal e abrangente, que servia às mil maravilhas para descomprimir, sendo a sua utilização diária. Largas e longas tardes dedicámos ao jogo da bola.

Ampliamos a tabanca de Có com habitações construídas com uma espécie de argamassa feita de barro e capim seco com cobertura a colmo de palmeira ou chapa de zinco, made in U.S.A., à porta das quais se plantaram duas bananeiras, sinal vivo de África.

Todos estes tipos de apoio às populações autóctones - que em guerra clássica de guerrilha como era aquela é absolutamente fundamental e constante em todos os manuais que tratam o assunto -, eram feitos por nós não só com esse intuito. A nossa ligação sentimental a essa gente era tão profunda, que nunca poderíamos regatear qualquer tipo de colaboração, partindo quase sempre essa iniciativa da nossa parte. Mais do que os imperativos da missão, era a solidariedade que nos movia.

(Continua)
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(1) vd posts anteriores do João Varanda:

15 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Cupilom...

16 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

Guiné 63/74 - P294: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (3): O espírito de grupo (João Varanda)

Guiné > Região do Cacheu > Có > 1969: As lavadeiras da tropa, na bolanha de Có.

© João Varanda (2005)

Texto do João Varanda (ex-furriel miliciano da CCAÇ 2636).

História da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) > 3ª parte.

Na Guiné, exceptuando o arquipélago de Bijagós (sem interesse militar), o terreno define duas zonas militarmente diferenciadas:

(i) O litoral – da costa até uma linha definida de norte para sul por Cuntima, Jumbembem, Porto Gole, Xime, Xitole eAldeia Formosa;

(ii) O interior – para leste da linha anterior até às fronteiras com o Senegal e a Guiné – Conacri.

Contudo, durante a guerra quer os comandos militares portugueses, quer o PAIGC dividiram o território em três zonas, separando o litoral em Norte e Sul do rio Geba.

A divisão da Guiné em zonas de operações obedeceu à compartimentação do terreno, mas teve em consideração as importantes clivagens étnicas e religiosas dos grupos humanos da Guiné e os apoios que os países vizinhos deram à luta militar.

Foram assim estabelecidas três zonas de Operações:

(i) Zona Norte: São Domingos (fronteira), Farim, Teixeira Pinto (Canchungo), Óio / Moirés, Bissau.

(ii) Zona Sul: Fulacunda (Quinara), Cubisseco, Catió / Cantanhez, Quitafine, fronteira.

(iii) Zona Leste: Bafatá, Gabu (Nova Lamego), Madina, fronteira norte (Pirada), fronteira leste (Buruntuma).

Assim, e perante este quadro, verifica-se o que foi a imensa saga do combate na Guiné – hoje historicamente reconhecida como “o Vietname Português” – no contexto da complexidade, diversidade e riqueza étnicas de uma comunidade como aquela.

Có – e conforme vimos pelo teatro das operações antes da nossa chegada para tampão de zona - foi terra fustigada; no terreno, travava-se então lutas que pareciam eternas, mas a moral da CCAÇ 2636 era muito elevada, já que com os nossos comandos, na pessoa do jovem Capitão Miliciano Manuel Medina Mato e do 2º. Sargento Cruz, em pleno mato, às portas do combate do dia a dia, sentimos sempre o prodígio do apoio dos escalões superiores, traduzido em todas as valências, com oportunidade e eficácia.

Tivemos o privilégio de servir na Guiné na CCAÇ 2636, no período de 28 de Outubro de 1969 a 6 de Setembro de 1971. Foi uma unidade de que guardamos as melhores recordações, a de ter cumprido as suas difíceis e diversificadas missões, com eficiência, dignidade, correcta postura no ambiente político-militar da época. Esse saetimento era partilhado por todos os seus efectivos, continentais, insulares (Açores) ou do recrutamento local.

Foi uma companhia bem comandada por um jovem capitão de infantaria no início da sua carreira, que revelou possuir uma generosidade e dedicação exemplares e uma capacidade de compreensão do conflito, não apenas na sua vertente militar, mas sobretudo nos seus aspectos político-sociais, humanos e psicológicos, aqueles que sem dúvida constituíam a componente nuclear da Guerra da Guiné e condicionaram os desenvolvimentos da situação, os sucessos e os insucessos da luta armada até ao desfecho que se conhece.

Os factos mais salientes revelam-se com a recordação e narrativa de pequenas histórias nas quais os traços militares não relegam para segundo plano os aspectos humanos, as emoções, as alegrias e tristezas, as frustações e os receios que todos os que serviram o País nas Guerras de África bem conhecem e compreendem em toda a profundidade e a quem a leitura destas crónicas reconfortará, lembrará bons e maus momentos e ajudará a uma melhor compreensão dos acontecimentos de que foram protagonistas.

Sublinho, para elogiar, a importância que para nós foi a acção de todo o colectivo militar e o recrutamento local (Milícias ) que formaram o todo da CCAÇ 2636. Alguns deram a sua vida para a paz no Chão Manjaco , chão esse que sentimos e defendemos com inegualável coragem e em plena liberdade de consciência. Sem constrangimentos, obsessões, cedências, estivemos sempre por inteiro com muito ânimo e vontade, mesmo que, a cada dia que passava, a guerra fosse ganhando contornos cada vez mais sérios e cenários que se estendiam cada vez mais no tempo e no espaço.

Com o passar do tempo as hipóteses de tudo ser transitório, passageiro, fácil de gerir, eram cada vez mais distantes e o conflito encaminhava-se para uma situação duradoira, de difícil solução, tanto a nível interno como a nível externo. Não cabe agora e aqui tecer comentários sobre os seus antecedentes, causas e razões que a motivaram, nem tão pouco comentar a sua legitimidade, sob qualquer das suas vertentes mais críticas. Hoje o assunto, por muito debatido e assumido, está fora de discussão.

Confrontados com estas duras realidades, houve que enfrentar os acontecimentos, preparar a guerra, fazer a guerra, com todas as suas incidências. E essa guerra era e foi uma guerra de verdade. Para que a história , a nossa, não o esqueça, deixo uma segunda e não menos relevante palavra de apreço e justificação para os homens da CCAÇ 2636. Não só por eles ou para eles.
Mas porque eles simbolizaram de forma admirável todo o espírito de sacrifício, dedicação e entrega a que toda uma Nação em armas se votou em torno desta guerra. Foram eles que permitiram colher todo este manancial de experiência viva e rica, protagonizando momentos de indescritível beleza, sofrimento, angústia e coragem física e moral, que só um ambiente desta natureza pode exprimir e permitir. Sem reivindicações, subterfúgios, queixumes. Ao nível de verdadeiros heróis, anónimos, simples descomplexados, humildes, mas muito verdadeiros e humanos. Do melhor que temos.

Formámos sempre e em todas as circunstâncias um conjunto sincronizado, harmónico, sinergético, de uma vontade única e de um só querer. O Capitão Manuel Medina Matos, o 2ºs. Sargentos António Cruz e José Rosa Coelho, os Alferes José Américo Martins Ferreira, Luís Mendes, João Manuel Magalhães, e o Baltazar Silva Dias Santos, os Furriéis António Agostinho Ramos, David Rosário Monteiro, Leonel Santos Sousa Morais, Alcides Carolino Trindade, Fernando António Oliveira , José Adalberto Esteves Teles Paiva, José Silva Rodrigues Alves, Francisco Joaquim Pais, Francisco José Salema, Manuel Costa Alves, António Silva Pratas, Manuel Marques, António Armando Teixeira, Diogo José Moura Proença e, eu próprio, João Varanda eram o exemplo que estimulava e convidava os nossos soldados à entrega, ao empenho e à vontade de ir mais longe, permitindo-se avançarmos, mais seguros e confiantes.

Era este o espírito de entrega, de verdadeira missão, que se estendia muito mais para além do soldado combatente. Todos os restantes, que não tinham sido escalados para esta tarefa sublime sentiam, tinham tanto como os outros o direito e a obrigação de tudo fazerem e conseguirem, na retaguarda competente, para apoiarem o sacrifício, solidarizando-se com os operacionais, trabalhando com eles e para eles, sofrendo por vezes as mesmas angústias, os mesmos temores.

Em redor de toda esta vivência, é justo sublinhar, e de forma acentuada, o labor desenvolvido por todos os que nos acompanharam nas incidências do mato, do combate. Eles não só nos acrescentaram experiência e saber às nossas arremetidas, mas constituíram também verdadeiros exemplos de abnegação e heroísmo.

Ainda no terreno concreto da luta umas breves palavras para enaltecer todos os que acreditaram na “Guiné Melhor” ao nosso lado: às Milícias que acreditam nos Portugueses, o comportamento das populações e autoridades que connosco partilharam as agruras da comissão, populações nativas e brancas porque estiveram sempre ao nosso lado, por razões eventualmente diversas, talvez, mas com o mesmo acolhimento e apoio.

Todos tinham também uma crença inabalável nos nossos feitos, nos destinos da guerra em curso, na conquista do bem – estar para todos. Sempre e em todas as circunstâncias manifestavam o seu júbilo pelas conquistas realizadas, o seu pesar pelos inêxitos, repartindo com todos nós momentos de grande satisfação e admiração. Construíram em nosso redor um ambiente de elevada estima, reconfortante e estimulante, permitindo-nos fazer esquecer as ansiedades próprias no contexto em que ali nos encontrávamos. Foram a nossa família afastada, neles encontrámos força e ânimo para prosseguir, teimar, lutar e mantermo-nos fieis ao compromisso histórico então travado.

As autoridades locais, com quem tivemos o ensejo de contactar e conviver, foram também exemplares na compreensão da sua e da nossa missão, contribuindo de modo muito significativo para um natural e necessário ambiente de bom entendimento. Sem constrangimentos de qualquer espécie, com ligações funcionais excelentes, o seu contributo para o êxito dos nossos propósitos foi decisivo.

Por isso, toda esta gente, nos seus sectores de actuação e de representação, não poderia deixar de ser citada com muito orgulho e estima da CCAÇ 2636.

Guiné 63/74 - P293: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco (João Varanda)


João Varanda, no destacamento de Tel, na zona de Có-Pelundo, em pleno chão manjaco, região do Cacheu, 1969.

A CCAÇ 2636, uma companhia açoreana, fez na primeira parte da sua comissão a segurança à construção da estrada Có- Pelundo - Teixeira Pinto.

A 14 de Novembro de 1969 um grupo de combate da CCAÇ 2636 foi destacado para Tel.

© João Varanda (2005)

Texto do João Varanda (ex-combatente da CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71)



Nota introdutória:

Temos de prestar homenagem a todos quantos combateram e perderam a vida na Guiné-Bissau, tanto da parte portuguesa com da parte do PAIGC. Todos foram heróis e neste escrito sincero acrescento também o Alferes Mosca, em termos que não deixam margem para dúvida. E, ao citá-lo, presto-lhe uma homenagem e faço-lhe a reparação de uma dívida histórica, porque foi esquecido, mesmo sendo um militar notável na companhia dos três Majores - Magalhães Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos - que não resistiram ao brutal assassinato feito pelo inimigo, o PAIGC, nas condições mais adversas, nas matas da zona de Pelundo – Teixeira Pinto (1).


MORTE DOS TRÊS MAJORES E UM ALFERES EM 20 DE ABRIL DE 1970 (2)

Em 20 de Abril de 1970, três Majores do Exército Português, acompanhados pelo Alferes Joaquim Palmeiro Mosca e seus acompanhantes, foram brutalmente assassinados na Região de Teixeira Pinto, mais precisamente em Jolmete [a norte do Pelundo, junto ao Rio Cacheu].

Os Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório e o Alferes Joaquim Palmeiro Mosca morreram no decorrer daquela que é sempre a mais arriscada e aliciante de todas as actividades de um militar: trazer o inimigo para o seu lado. Estes três oficiais (Majores), prestavam serviço no Comando de Agrupamento Operacional (CAOP), com sede em Teixeira Pinto [hoje, Canchungo] (3): o primeiro como chefe do Estado Maior, o segundo como oficial de operações e o terceiro como oficial de informações; o quarto miliar, o alferes Mosca, como operacional. Os três oficiais superiores portugueses tentavam realizar uma operação de aliciamento de comandantes e dirigentes do PAIGC na área.

A acção em que perderam a vida, mortos pelos elementos com os quais se iam encontrar, é exemplificativa do ambiente que se vivia naquele teatro de operações e do modo como ali se conduzia a guerra.

As expectativas criadas pelo General Spínola para a resolução política da guerra, com as conversações que estabeleceu com Senghor para, através dele, chegar a Amílcar Cabral, o convencimento de que a política da “Guiné Melhor” atrairia cada vez maior número de habitantes, incluindo combatentes do PAIGC, a análise que o Estado Maior de Spínola fazia das clivagens étnicas e a situação militar no terreno, ainda favorável às forças portuguesas, haviam criado o ambiente propício para acreditar que alguns elementos daquele partido poderiam abandonar as suas fileiras e aderir à nova política, o que seria um passo para mais tarde trazer Amílcar Cabral.

Estes oficiais acreditavam que isso era possível e montaram uma rede de informações para conseguir chegar até aos dirigentes do PAIGC. O Major Pereira da Silva, oficial de informações, efectuou dez reuniões com eles, o Major Passos Ramos esteve presente em seis, o Major Magalhães Osório em quatro. Os três estiveram na primeira realizada na região de Umpacaca e nas que se realizaram em Pigane, Capunga e Jolmete, onde foram mortos com o Alferes Mosca e seus acompanhantes.

O PAIGC entendeu esta operação como aquilo que ela era: uma tentativa de levar elementos seus à traição e a deserção. O PAIGC o reagiu matando os oficiais portugueses, que seguiam desarmados e sem escolta, mas o facto de os órgãos dirigentes do PAIGC terem decidido eliminá-los em vez de os fazerem prisioneiros, a fim de os apresentar como troféus, revela a insegurança em que as cúpulas do partido se sentiam perante a política conduzida por Spínola e as dúvidas sobre o seu grau de penetração, mesmo no mato com o nosso General Spínola. Ali se iniciou o diálogo mas, entretanto, mantendo nós a posição de força.

No teatro das operações, os vitoriosos da guerra éramos nós e não o PAIGC. A Op Chão Manjaco era vital para nós: era começar a puxar a ponta, contactar Senghor, os bigrupos, usar o prestígio do agrupamento operacional.

Eram quatro pedras basilares, três majores e um alferes, peças fundamentais: - um da intelligence, Perereira da Silva; um operacional, o homem que puxava os cordéis da guerra, o Major Osório; e um major de eleição, sonhador mas pragmático, o Passos Ramos; mais o operacional, o Alferes Mosca. Foram quatro homens, e peças fundamentais da política de abertura ao diálogo com o PAIGC.

De maneira nenhuma o PAIGC nos enganou na questão relativa à Op Chão Manjaco. Luís Cabral mente quando aborda esta questão. O chão manjaco foi completamente dominado por nós e a morte dos nossos três majores e do alferes uma barbaridade cometida pelo PAIGC que, reconheçamos, não tinha outra saída.

E afirmamos que ele mente porque ainda hoje não tem a coragem de dizer: “ Que não tinham outra saída senão decapitarem aqueles grandes Senhores da Guerra, que estavam a prejudicar o PAIGC “. Dizem que queriam prender o General Spínola e assassinaram quatro combatentes portugueses que foram ao encontro de chefes militares do PAIGC, completamente desarmados.

Luís Cabral, não só mente como não assume a responsabilidade do seu partido. Percebemos perfeitamente que o PAIGC, com a corda na garganta como estava, não tinha outra saída: ou decapitava o Comando do Agrupamento Operacional e dava cabo daquele, ou tinha os bigrupos do chão manjaco a combater connosco. O PAIGC foi encostado à parede e não tinha outra saída senão, que foi catastrófica para nós, porque no plano político perdemos a capacidade de diálogo com o PAIGC. O Estado Português, na pessoa do General Spínola, estava no mato em diálogo com o PAIGC. Sentados com uns três ou quatro, estiveram a conversar. As conversas eram na base de que os bigrupos do PAIGC no chão manjaco acreditavam na nossa boa fé. É de acreditar que, se tivéssemos conseguido êxito na Op Chão Manjaco, o PAIGC teria caído como um baralho de cartas.

Tal não aconteceu e, a partir do desaparecimento daquela equipa, tudo começou a correr mal para as nossas hostes.

Manuel dos Santos (Manecas), comandante de artilharia do PAIGC, diz - ainda sobre os três Majores e o Alferes Mosca portugueses - QUE quem no mato falava em nome dos bigrupos do PAIGC eram os Comandantes, André Gomes e o José Sanhé. Contudo ressalva que eles não estavam a negociar com os três Majores e o Alferes Mosca.

O que aconteceu foi que os Majores e o Alferes Mosca iniciaram uma acção, que é um tipo de acção corrente em qualquer guerra, que foi a de tentar aliciar os comandantes do PAIGC na área. Chegaram à fala com eles através das populações que circulavam por ali. É evidente que, tanto eles como nós portugueses, tínhamos agentes entre alguns dos seus quadros.

Veja-se a versão do General João Almeida Bruno, que é bastante elucidativa do que foi passado e vivido no tempo. Ele diz que podia na verdade dizer-se que estávamos empatados com o PAIGC.

A primeira coisa a fazer na Guiné – Bissau era ganhar a iniciativa e, por isso concentrar meios e dispositivos. Logo também nas primeiras directivas do General Spínola percebeu-se que ter liberdade de acção, ou seja capacidade de iniciativa, era um dado essencial na guerra. Não se podia jogar à defesa: a defesa era um estado preparatório para a ofensiva.

Com Spínola concentraram-se meios, ganhámos capacidade de acção e passámos ao ataque. Porque só a ofensiva conduzia à vitória. Aumentou-se a actividade operacional para dominarmos o teatro das operações pelas armas, para que pudéssemos dialogar com o PAIGC numa posição de força.

Isto não foi querer fazer a guerra pela guerra. Paralelamente foi desencadeada uma grande acção chamada "Guiné Melhor”, uma acção de natureza política que estava a ser ensaiada e concretizada no chão manjaco. E foi aqui que se abriu o diálogo com o PAIGC e que se deu o primeiro encontro entre o Governador e Comandante - Chefe das Forças Armadas e o comandante dos bigrupos do PAIGC que actuavam naquela área. Estiveram depois em várias reuniões, não eram agentes duplos, mas faziam a circulação de informações.

E chegaram à fala, houve vários encontros, mas desde o primeiro encontro que a direcção do PAIGC tinha sido advertida pelos comandantes locais de que havia essa tentativa, mas nunca puseram de parte a negociação com Portugal para chegarmos ao fim do conflito.

Consideraram o diálogo como uma acção clássica de antiguerrilha de corrupção ou de aliciamento de responsáveis da parte adversa ao PAIGC com gravadores, com dinheiro, com géneros alimentícios, com coisas. Os gravadores eram bens de consumo que qualquer indivíduo jovem – e nós éramos todos, jovens e todos os jovens gostavam de ter. Era uma tentativa de corrupção material e de aliciamento. Tínhamos lá umas centenas de guerrilheiros, mas aquilo era sobretudo para os responsáveis da guerrilha. Houve até ordem superior do PAIGC para terminar com isso, segundo se recorda (o Manuel dos Santos).

E no último encontro dos Majores e do Alferes Mosca, os combatentes doPAIGC tentaram capturá-los, e os nossos quatro homens tentaram defender-se. Para dar uma boa imagem diz ainda Manuel dos Santos (Manecas), que não é verdadeira a versão segundo o qual os Majores e o Alferes Mosca iam desarmados, e que Spínola ficou furioso, porque eram três oficiais com reputação de serem altamente capazes, de serem os melhores operacionais e os seus melhores adjuntos.

Já Luís Cabral é duro na análise sobre os quatro oficiais da Op Chão Manjaco e começa por dizer que Spínola não os conhecia e diz mais que o comandante da região, André Gomes, soube da situação que a tropa portuguesa queria negociar a rendição de tropas do PAIGC afirma esses oficiais acabaram por ser mortos, e que eles tiveram essa informação e souberam mobilizar os homens a leste, através de elementos da população que frequentavam os dois lados.

Eles começaram a fazer a aproximação, depois começaram a aceitar que lhes levassem coisas para lá e começaram eles a mandar também coisas para nós, então o comandante André Gomes resolveu fazer o jogo duplo, após ter sido posto ao corrente da situação. Aceitaram todas as prendas, todas as coisas, deram tudo, recebiam os homens desarmados e iam desarmados e combinaram o dia da rendição das tropas do PAIGC. Tudo ficou combinado e acertado na estrada do Cacheu – Teixeira Pinto, com o General Spínola.

Mas a traição foi grande. Luís Cabral nessa altura mandou para lá os seus principais responsáveis, Luís Correia (Responsável da Segurança Norte), Quintino Vieira (Responsável pela Segurança da Região) e André Gomes (Membro do Comité Executivo do Partido P.A.I.G.C.). Contudo já havia vários combatentes que não estavam a gostar daqueles contactos.

Quando o Luís Correia chegou lá, os interlocutores dos oficiais portugueses disseram: “ Nós temos que dizer a eles, que tu já chegaste, porque eles vão saber a certeza, portanto se não formos nós a dizer, vão pensar que há qualquer coisa nisto tudo “. E então era preciso ter mais cuidado, mais prudência, porque tinha chegado o Homem da Segurança Norte.

Quando se encontraram com o General Spínola, nessa estrada, disseram-lhe que esse Responsável da Segurança tinha vindo ali à região de Teixeira Pinto, para fazer uma cerimónia ali ao Deus da área, que é o Irã da Coboiana, o grande Deus da floresta. Mas ele para fazer essa cerimónia precisava de aguardente de cana.

Era preciso arranjar-lha o mais depressa possível que ele, fazendo a cerimónia, ia-se embora. Então, o General Spínola mandou comprar aguardente de cana e deu-a à malta para a cerimónia.

Havia um aspecto de desprezo pelos ideais do PAIGC, de tal maneira que pensavam ser possível com uma garrafa de uísque, até mesmo com uns brincos, desviar aqueles homens dos seus ideais de libertação e de independência. Os nossos oficiais acabaram por ser mortos porque foram lá para assistir à rendição das tropas do PAIGC. Foi feita uma emboscada e foram mortos.

O acontecido, segundo Luís Cabral, não estava nos planos do PAIGC. Afirma que o plano era prender o General Spínola, mas contudo a malta do PAIGC convenceu-se que o General Spínola não vinha ao acto. Como naquela área não tínhamos abastecimentos regulares, nem coisas para conservar esses oficiais, estavam quilhados, ou apanhavam o General Spínola ou então não saia ninguém dali.

Este depoimento foi datado de 13 de Janeiro de 1995, Luís Cabral vivia em Portugal, foi derrubado em 1979 por um golpe de Estado chefiado por Nino Vieira.

Veja-se o depoimento de Marcelino da Mata, alferes do quadro permanente do exército português, reformado, depoiimento feito em em Lisboa, em 21 de Julho de 1994. Marcelino da Mata fez denodadamente a guerra, partindo da noção de quem tinha medo morria depressa e movimentava-se à vontade no complexo território da Guiné – Bissau. Disse o Alferes Marcelino da Mata: os três Majores e o Alferes iam lá buscar o armamento e mais que todas as noites eles iam lá e os homens do PAIGC traziam armas e entregavam-nas ao nosso exército.

Naquele dia foram lá, estavam à espera de um grupo que vinha entregar material, mas em vez de material encontraram o grupo de André Gomes, que tinha vindo a Jolmete fazer patrulha e que, sem saberem o que é que se passava, mataram-no. Depois de o André Gomes matar os quatro oficiais, o exército português avançou com a guerra.

O Marcelino da Mata e o seu grupo operacional andou quatro dias a seguir as pegadas do André Gomes, acabou com o acampamento deles, mas não apanhou o André Gomes. Havia um rio, o Cacheu, e eles quando se viam apertados pegavam nas pirogas atracadas na orla da mata e fugiam.

Carlos Fabião diz que, entre as variadíssimas hipóteses para o caso dos Majores e do Alferes, ele disse a dele, o que não quer dizer que seja a verdadeira. Não estava na Guiné – Bissau quando foi o problema da morte dos nossos oficiais, mas entendia o que passou.

O PAIGC apercebeu-se de que precisava de tempo para se rearmar, reequipar conseguir arranjar-se no chão manjaco. Então começou a negociar a missão connosco. Penso que, desde o princípio, houve falsidade nos propósitos do PAIGC, porque eles só queriam ganhar tempo. Aquela reunião iria ser a última, em termos operacionais, porque eles já tinham prometido várias vezes a sua rendição e nunca se tinham rendido. Eles iam reunir-se com o PAIGC mas esses encontros eram vulgares. O General Spínola tinha estado em alguns.

O PAIGC ficava sempre em estudar as formas de rendição, mas no momento em que iam fazer a rendição falhava outra vez. Este grupo foi dizer-lhes que era a última conversa que iam ter. Pensa Carlos Fabião que era a última conversa que iam ter os homens do PAIGC. Assassinaram-nos nessa altura.

Em resumo, a propósito desta missão levada a cabo por este grupo restrito de oficiais, eles foram vitimas da sua generosidade e vontade de bem servir, acabaram por encontrar a morte na Guiné – Bissau, atraídos à vil emboscada, sob a direcção do Major Passos Ramos, talvez o oficial mais distinto e brilhante que a sua geração conheceu. Conseguiram estabelecer estreitos contactos com uma fracção muito importante dos combatentes do PAIGC, convencendo-os a abandonar a luta armada contra Portugal e serem integrados no seu exército. Foram brutalmente assassinados quando, completamente desarmados, se preparavam para a última reunião que antecedia a apresentação no Pelundo, das forças da região militar norte do PAIGC que estavam sob as ordens de Aliu Gomes.

Na estrada que liga aquela povoação ao Jolmete foram os seus corpos esquartejados e foram recolhidos pela Companhia de Caçadores nº 2586, do Batalhão de Caçadores nº 2884, comandado pelo Tenente - Coronel de Infantaria Romão Loureiro. Paz às almas destes valorosos filhos da Nação Portuguesa, cujos locais de sepultura se indicam a seguir:

- Major de Infantaria Nº. 50972511, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Alberto Fernão Magalhães Osório: Cemitério Paroquial do Baraçal, Celorico da Beira;

- Major de Artilharia Nº. 50692711, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Joaquim Pereira da Silva: Cemitério Paroquial de Galegos, Penafiel;

- Major de Artilharia com o C.E.M. Nº. 50275711, do Comando de Agrupamento Operacional / CTIG, Raul Ernesto Mesquita da Costa Passos Ramos: Cemitério Paroquial de Paranhos, Porto;

- Alferes Miliciano de Infantaria Nº. 19516168, do Pelotão de Caçadores Nativos Nº. 59 / CTIG, Joaquim João Palmeiro Mosca , Cemitério Municipal de Redondo, Redondo.

Deixo-lhes um fraterno abraço e um apelo a todos os ex-combatentes para que visitem estes cemitérios e coloquem nas suas campas um cravo vermelho de Abril.

João Varanda
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Notas de L.G.

(1) vd. post de 11 de Agosto > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) [Texto de João Tunes]

(2) Felicito o João Varanda por este texto sobre a morte dos três majores e do alferes do Pel Caç Nat 59, na sequência da Op Chão Manjaco, em que Spínola depositou tantas esperanças de inverter o curso dos acontecimentos... Presumo que ele tenha feitas várias pesquisas documentais sobre estas mortes que nos tocaram a todos naquele tempo. Ele, porém, não cita as fontes que consultou. Seria bom citar essas fontes, fornecendo uma pequena bibliografia... Muitos dos nossos amigos e camaradas de tertúlia sabem pouco ou nada sobre este assunto (já aqui abordado pelo João Tunes, num depoimento emocionado, já que ele era amigo dos três majores, que conheceu em Teixeira Pinto) (1).

(3) Vd. post de Afonso Sousa, de 25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P292: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

Quando comandou a Op Lança Afiada, algumas vezes a pé (já que o Spínola ou a Força Aérea não lhe dava um helicóptero em exclusivo para ele poder ter, a tempo inteiro, o seu PCV - Posto de Comando Voador), o coronel Hélio Felgas ia fazer 49 anos. Tinha a idade do meu pai. Talvez, por isso, é que eu fico com o coração mole, abstendo-me de fazer juízos de valor sobre o seu desempenho nesta mítica operação. Pelo relatório da operação que aqui publicámos não se fica saber quantas noites ele dormiu no mato, ao lado dos seus soldados, se é que dormiu alguma, no período que de decorreu entre 8 e 19 de Março de 1969.

Nunca fiz nenhum operação com ele, pelo que não me permito criticá-lo, como militar. Fiz uma operação com um tenente coronel, misturado com os nossos nharros, embora de um dia. Isso foi o suficiente para passarmos a ter-lhe respeito. Seu nome: Polidoro Monteiro.

Sei que alguns milicianos do nosso tempo (do meu e do Humberto) não apreciavam o então coronel Hélio Felgas, como pessoa e como militar. A mim só me interessa hoje o que ele escreveu, as suas ideias, o seu testemunho como combatente na Guiné que ele também foi, em duas comissões (1963/64 e 1968/69). O resto fica para os historiadores...

Por outro lado, como velho combatente da Guiné, ele merece o mesmo respeito que qualquer um... Ele estava num quadrante político-ideológico completamente oposto ao meu e, inclusive, defendeu ideias sobre a guerra total na Guiné que ainda hoje me horrorizam. Se algum dia ele tivesse chegado a Com-Chefe, seria tentado a "passar tudo a ferro"...

Em finais de 1968, ele estava em rota de colisão com Spínola. Como comandante da Op Lança Afiada é desautorizado e humilhado por Spínola: reveja-se o episódio das Lanchas de Desembarque no Rio Corubal... Em todo o caso deram-lhe a Torre e Espada, em 1970. Os seus amigos da ala dura do regime, pois claro. Ele faz questão de sublinhar que foi o Chefe de Estado, o Almirante Américo Thomaz, quem o condecorou no 10 de Junho de 1970.

Mas vamos ao que interessa. Eu e o Humberto Reis seleccionámos algumas partes do depoimento do nosso brigadeiro (e nosso comandante, enquanto coronel) sobre a guerra da Guiné... Recorde-se a fonte: o livro com o título "Os últimos guerreiros do império", editado pela Erasmo (Amadora, 1995). Hoje publicamos a segunda parte que é sobre as emboscadas (ele diz que sofreu 26 só na Guiné).


As emboscadas

As emboscadas eram feitas quer a colunas motorizadas quer a tropas que se deslocavam a pé Nas primeiras, a explosão de uma mina anticarro sinalizava o começo da cilada (1).

Tenho uma fotografia que mostra o que se passou logo após ter rebentado uma mina sob a roda de um Unimog dos grandes (2). A viatura ficou destruída e sofremos dois mortos e dezasseis feridos. Tirei a fotografia porque o meu jipe também passara por cima da mina sem a fazer rebentar. O lugar do condutor da primeira viatura de uma coluna motorizada era especialmente perigoso (3). Por isso, além dos sacos de terra que se amontoavam ao lado dos pedais e por baixo do assento, havia uma escala de condutores, também chamada «escala de condenados». Não raro vi o condutor de serviço a rezar, antes de a sua viatura começar a rodar à frente da coluna.

As emboscadas começavam sempre por uma rajada repentina de metralhadora. Seguia-se o característico «rasgar» das pistolas-metralhadoras, escondidas sabe-se lá onde; os tiros isolados das armas de repetição; as explosões das bazucas, dos morteiros ou das granadas de mão. Enfim, aquele inferno que poucas vezes durava mais do que uns minutos, mas parecia sempre durar horas.

Quando tudo se calava surgia a preocupação das baixas, transmitidas pelos postos-rádio dos pelotões: «Tínhamos tido baixas? Havia feridos?» . Se a contagem terminava sem novidades, nada se comparava ao optimismo dos nossos soldados, já então lançados na perseguição de fan-tasmas. Sim, porque só raramente se via quern causara toda aquela barulhenta confusão.

Mas, se alguém tivera azar, que raiva e que dor se podiam ler nos semblantes carregados dos companheiros. Não mais poderei esquecer a palidez mortal do portador do meu posto-rádio no dia da sua «estreia».

Por vezes, nas emboscadas tínhamos baixas que era necessário transportar em macas, durante quilómetros. Só quem passou por isso tem ideia do sofrimento e do cansaço que atingiam tanto as vítimas como os seus transportadores. E quando havia mortos, carregá-los às costas durante horas era um factor desmoralizante, que só acabou quando a Força Aérea passou a dispor de meios para os ir buscar (4). Os helicópteros salvaram muitas vidas devido a oportunidade da sua presença.
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Notas de L.G.

(1) Sobretudo nos primeiroa anos de guerra. No meu tempo (1969/71), ia um sempre um numerosa equipa de picadores, com um grupo de combate a protegê-los, a "abrir caminho"... Mesmo assim, havia minas que não eram detectadas... No tempo das chuvas, a detecção das minas tornava-se um pesadelo...

(2) Unimog 404, sendo o 411 o mais pequeno (conhecido por "burrinho").

(3) O lugar ao lado do condutor, ocupado em geral por um graduado, era também conhecido como o "lugar do morto". Era onde eu ía, em 13 de Janeiro de 1970, quando a nossa GMC deu um coice que terá durado uma eternidade (5)

(4) Nunca vi nenhum helicóptero a transportar os mortos do nosso lado.

(5) Vd. pots de 23 de Setebro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

Guiné 63/74 - P291: Pelundo: Número do batalhão? Não sei, não me lembro (João Tunes)

Pelundo > Dezembro de 1969 > O nosso artista ao volante do jipe MG-70-86. © João Tunes (2005).

1. Há tempos o João Tunes mandou-me umas fotos do tempo dele, no Pelundo e depois, da porrada que levou, no Catió e arredores...

Por outro laddo, apareceu-nos aí o João Varanda que esteve em Có e prometeu arranjar mais umas fotos... Daí estar a pensar em criar uma página sobre esta região Có - Pelundo - Teixeira Pinto...

Disse isso ao João, ao mesmo tempo que lhe perguntava, sem malícia, se já lhe tinha passado a branca na memória: ele que que esteve na CCS do Batalhão, sediado no Pelundo, não sabe ou quer lembrar-se do númerro do raio do batalhão... Ele lá tem as suas razões que a tertúlia respeita...

Perguntei-lhe também se o João Varanda, de Coimbra, já lhe tinha respondido. Eis aqui a mensagem do nosso querido, frontal e sempre bem-vindo João Tunes, autor do blogue Água Lisa (4). (cuja visita regular eu recomendo aos nossos amigos e camaradas de tertúlia).

2. Caro Luís:

É como dizes, não me lembro mesmo [não, a bold, como faz questão de frisar o autor, em 2ª via]. BCAÇ 2864? BCAÇ 2854? Por aí...

Pois, o João Varanda nada disse, mas pensando nos dados que ele deu, a sua Companhia açoriana não pertenceu ao meu Batalhão, foi sim em reforço à Companhia do meu Batalhão e que ele chama de velhinhos. O que não invalida, pelas datas, que não tenha estado em Có ao mesmo tempo que ele (eu, de tempos a tempos, pela minha missão, ia até lá).

Mas de Có, além de me lembrar bem do quartel, memorizei a estrada em construção (Có-Pelundo-Teixeira Pinto), com segurança especial, os copos (muitos copos bebi em Có, o que não admira, eu até bebi copos onde não havia copos, bebendo pelo gargalo) e o tal capitão miliciano, economista e antifascista, lá de Có (também não lembro o nome, mas estou a ver-lhe a cara) que era um compincha do caraças para cortar na casaca do Marcelo, do Caco e das putas que os pariram.

Já tenho pensado (pouco...) nesta coisa de não me lembrar no nº do meu Batalhão do Pelundo e nem sequer do outro, o de Catió. Acho que foi um filtro qualquer de rejeição que se me meteu na memória depois de lá voltar. Prefiro que assim seja, que esquecer-me dos gajos porreiros com que me cruzei naquela guerra de merda, obrigando-nos a sermos camaradas mais que irmãos.

Lembras-te? Um qualquer cabrão, daqueles gajos de merda, os mal paridos, os egoístas e das peneiras de merda, também os havia de quando em vez e um pouco por toda a parte, na Guiné tinham a vida toda fodida, um gajo na guerra se não consegue ser camarada está mesmo fodido de todo, não enturma e tem de aguentar solitariamente com os cornos solitários e, na guerra, um gajo tem de ser camarada senão não aguenta as solidões dos guerreiros a pensar na terra e nos seus.

E acho que a Guiné nos deu isso a todos, sermos fodidos com os pretos que lá nos queriam, amigos dos pretos amigos e camaradas para o maralhal. Um gajo no mato que trocasse os circuitos, querendo foder camarada, estava ele lixado porque entrava em curto-circuito. Hoje, julgo que nos resta essa humanização, camarada entre camaradas (e que a cada um nos tornou melhores como homens), aspecto positivo, e limparmos a alma do pior que fizemos ao estarmos ali - andarmos a foder pretos por defenderem terra sua. Se conservarmos o melhor e nos reconciliarmos no pior, interiorizando respeito por quem nos combateu e dando-lhes a razão que tinham, então somos mesmo, todos, uns gajos porreiros.

Pois o blogue está a ficar catita, mais malta, mais contributos, a coisa apura-se. E verdade seja dita, o blogue ganhou com a chegada de um talento literário e de uma enorme inteireza de alma recuperada - que grande Briote! Que limpeza de memória, que verticalidade e, sobretudo, que poder de escrita! Um espectáculo, como diria o meu filho mais novo. E o puzzle vai-se completando. Ou muito me engano, ou a procissão ainda vai no adro.

Só te posso agradecer e elogiar a tua obra que nos levou a tantos, levando a mais no futuro (estou certo), a sermos honestos com o nosso passado como forma única de não nos escondermos, sacudindo dos olhos a lama da bolanha para entendermos que estivemos ali, não devendo estar ali, mas estando ali, agora aqui sem esquecer termos estado ali.

Grande abraço para ti. Outros tantos para os restantes e estimados camaradas tertulianos.
João Tunes

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P290: O heli das nove às cinco, a 15 contos por hora!

Guiné > Zona Leste > Bambadinca > 1969 ou 1970: O heliporto. Havia também uma pista para outras aeronaves (Dornier, mais conhecida por D0). A guerra da Força Aérea era das nove às cinco...

© Humberto Reis (2005)



1. Mensagem de um antigo combatente da guerra colonial, no norte de Moçambique (1971/72), o Melo Silva, que nos pergunta:

Tenho lido o seu blogue sobre a Guiné. Estive em Moçambique. Gostava de lhe perguntar o seguinte:

1- É ou não verdade que os feridos transportados em DO [Dornier], por falta de espaço, tinham que ir encolhidos?

2- Na Guiné a FA também só funcionava até às 17H00, e os Helis não transportavam mortos?

Desculpe o atrevimento.

M.C.

2. Resposta de L.G.:

Caro amigo e camarada:

Obrigado pela sua pergunta. Na Guiné, as evacuações ditas Ypsilon (feridos muito graves) eram feitas de helicóptero, para o Hospital Militar de Bissau. As distâncias eram curtas, a Guiné é do tamanho do Alentejo.

Os nossos helicópteros não estavam, de facto, preparados para andar ao fim da tarde e, muito menos, à noite... No meu tempo (1969/71), e na zona leste, os helicópteros poisavam directamente numa clareira da mata, quando andávamos em operações; ou então a partir do heliporto do aquartelamento mais próximo, se o ferido não morresse até lá... No meu tempo, havia uma enfermeira a bordo...

Os nossos mortos nunca eram helitransportados, mas sim levados, penosamente, em macas improvisadas... O argumento: (i) o helicóptero custava 15 contos à hora (o ordenado mensal de dois alferes, na altura, ou seja, em 1969...); (ii) o serviço de saúde só cuidava dos vivos, não dos mortos.

Como sabe, na Guiné a nossa superioridade aérea acabou no dia em que foi utilizado, pelo PAIGC, o primeiro míssil terra-ar, no inícío do 2º trimestre de 1973... Aí acabou também a guerra da Guiné: o aquartelamento de Guileje é abandonada, em pânico, em Maio de 1973...

Junte-se à nossa tertúlia de ex-combatentes: temos um camarada, fuzileiro, que esteve em Moçambique, o Jorge Santos, autor da página A Guerra Colonial. Um abraço, Luís Graça


4. Resposta do Melo Silva:

Já agora, se o fuzo esteve no Niassa em 71/72, quase de certeza que o conheço.
Eu estava no Lunho, o do Cancioneiro [do Niassa].

Era uma porra, nunca havia a merda da verba para nada, excepto para a chularia em Nampula.

Vocês não tinham Dorniers [DO], aqueles aviãozinhos?
Um abraço.

5. Comentário do nosso tertuliano Manuel Castro:

É verdade, os Helis não voavam a partir do entardecer e também não faziam evacuações de zonas perigosas. Eu próprio fui transportado, em Outubro de 1973 do Olossato até Bissorá, deitado na carroçaria duma GMC. Esta picada, de cerca de 22 Km, foi percorrida em cerca de 5 horas, com os meus camaradas fazendo a picagem e protecção à coluna. Chegado a Bissorã (zona menos perigosa), fui recolhido pelo Heli e transportado para o hospital militar de Bissalanca. Algum tempo antes tinham sido abatidos os primeiros Fiats G-91 e a força aérea tinha deixado de voar para o Olossato. Felizmente estou vivo.

Em finais de Março de 1973, em cima da mesma GMC, tinha morrido o 1º cabo Guerrinha, por falta de evacuação. Sem uma perna, desfeita por uma mina antipessoal, esperou desesperadamente 7 longas e angustiantes horas que a evacuação, sucessivamente prometida, chegasse. Nunca chegou! Infelizmente o Guerrinha não está vivo.

Um abraço. M.Castro