sexta-feira, 17 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P61: Antigos combatentes do PAIGC, procuram-se!

Vários camaradas têm escrito que as nossas estórias (em rigor não pretendemos fazer a História com H grande, mas apenas contar estórias...) estão necessariamente incompletas: de facto, falta-nos o ponto de vista do guerrilheiro do PAIGC, do combatente que, de kalash ou de costureirinha nas mãos, ou de RPG ao ombro, combateu contra os tugas, do outro lado do capim, do arame farpado, da picada, da bolanha ou do rio...

1. O tom (e o desafio) já tinha sido dado pelo Sousa de Castro que, em 23 de Março de 2005, mandou a seguinte mensagem ao webmaster do Portal Guine-Bissau.com

"Antes de mais, uma abraço para todos os Guineenses e o desejo de uma Páscoa Feliz. Estive na guerra colonial, de Janeiro de 1972 a Abril de 1974, na zona leste, mais precisamente no Xime, conhecem? Interesso-me pelo bem estar de todo povo da Guiné, peço-vos para que façam um esforço para conquistar a paz definitivamente. Bem hajam".


2. A resposta veio no dia a seguir (26 de Março de 2005):

Amigo Sousa: Muito agradecidos pela sua visita ao nosso site.

"Agradecemos as suas palavras e desejamos o melhor para você e a sua família e muita prosperidade para o estimado Portugal que, apesar dessa maldita guerra, segue latindo nos corações de todos os guineenses. Segue vivo através dos idiomas português e crioulo e segue crescendo como um laço entre todos os que temos o idioma luso por oficial.

"Aproveito a ocasião para informar-lhe que estamos empenhados na reconstrução da história daqueles anos. Se você decidir escrever as suas memórias sejam quais sejam as suas críticas, pensamentos... e por muito crus que eles sejam, nós estaríamos imensamente honrados de receber essas memórias. Se, por outra parte, você nunca pensou em escrevê-las talvez seja o momento. Seria o seu contributo ao nosso povo.

"Se, pelo contrário, o senhor conhece pessoas que tenham memórias desses anos, estaríamos muito agradecidos pela informação. Os nossos cumprimentos".

O webmaster do Portal Guine-Bissau.com

3. O Castro pegou na ideia e vem desafiar-nos (16 de Junho de 2005):

"Caros amigos. Como podem verificar, também os nossos amigos da Guiné estão empenhados em reconstruir a história referente aos anos de guerra. Pode ser que também apareçam ex-combatentes do PAIGC interessados em nos contar histórias relacionadas com a guerrilha. O Luis Graça, numa das suas mensagens, referiu isto mesmo. Seria muito interessante!... Que é que acham? O Graça como é um expert em matéria de informática, pode dar andamento a este projecto. Grande abraço para todos incluindo também, todos os Guineenses. Sousa de Castro".

4. O Afonso de Sousa veio logo concordar:

"Como interessante seria se, ao contarmos esta ou aquela estória em que nos confrontámos com o IN (em situação de ataque ou de defesa), ouvissemos, sobre esses mesmos confrontos, o relato do nosso opositor. Seria quase inédito!

"Isso mais valorizaria este trabalho, estas memórias de guerra".

5. Já hoje (17 de Junho de 2005) eu, Luís Graça, tinha mandado a seguinte mensagem à malta da nossa tertúlia:

"Amigos e camaradas: Este repto do Castro, secundado pelo Afonso, é mesmo para levar a sério...Toca a descobrir os ex-combatentes do outro lado. O Marques Lopes já o fez: em 1998, quando voltou à Guiné, teve oportunidade de conhecer o Comandante Gazela e de falar com ele…Pessoalmente, também vou tentar localizar antigos combatentes do Sector L1 / Zona Leste da Guiné (Região do Xitole, para o PAIGC)... A tarefa não é fácil e o tempo está contra nós. Um abraço. Luís".

6. Acabo entretanto de receber ideias e sugestões do nosso operacional do Geba e de Barro, A. Marques Lopes:

"Estou completamente de acordo com esta ideia de os ex-combatentes do outro lado também nos dizerem da sua experiência, das sua vivências, das suas história dos confrontos que tivemos. Seria um elemento importantíssimo para a nossa própria compreensão daquilo em que andámos metidos (em que nos meteram).

"Não são nossos inimigos, já não são o IN...fomos actores de uma mesma tragédia (ou opera buffa?...). Eu, pessoalmente, estou muito interessado em ouvir o que me dizem os combatentes do PAIGC de Sinchã Jobel sobre aquelas operações de que vos dei relatório. A visão de quem fez os relatórios é uma, a deles pode ser diferente ou acrescentar mais alguma coisa. Isto em termos de pesquisa da verdade. Mas o principal é conseguir que aqueles que não estão contra agora se encontrem para delinearem mutuamente a explicação daquilo que os fez estar contra outrora.

"Já falei com o Comandante Gazela, mas em circunstâncias um bocado apressadas e não deu para muita conversa. Mas estou a pensar voltar à Guiné, talvez em Janeiro do próximo ano, e falar mais calmamente com o Gazela e com o Lúcio Soares, os homens de Sinchã Jobel.

"Tenho também outro projecto: um dia destes vou até ao bairro da Cova da Moura, nos arredores de Lisboa, onde sei já que há alguns elementos da CCAÇ3 e, eventualmente, outros elementos que foram do PAIGC durante a guerra (o bairro é problemático, como o é o do Cerco do Porto, por exemplo, mas não é tal e qual como a comunicação social faz levar a pensar... já lá estive uma vez, e sei que há bons e maus como em todo o lado).

"Para quem tem, além das recordações da guerra que não pode esquecer, um grande amor pela Guiné, como é o meu caso e o vosso, não tenho dúvidas que isso seria uma forma de fortalecer essa ligação com uma terra e um povo que não nos saiem do coração. Nunca mais esquecerei a forma amiga e a simpatia com que fui recebido em 1998, quando lá estive, e visitei várias tabancas por onde tinha andado também nos tempos da guerra, apesar daquilo que nela fiz (ou fizeram que eu fizesse). O povo da Guiné é um povo amigo, merecedor do nosso respeito e de todo o esforço, que estiver ao nosso alcance, claro, para que seja feliz e seja aceite por todos.
Abraços. Marques Lopes.

6. O Guimarães também acaba de opinar sobre o assunto. Espero que toda esta conversa seja frutífera. Venham lá os depoimentos e os documentos (fotos, etc.) dos nossos amigos, ex-combatentes do PAIGC.

"Esta ideia é genial e aconselhável - assim a guerra seria contada na íntegra. Não nos interessa as razões políticas em si e porque se desenrolou, mas sim a forma como se desenrolou...

"O povo da Guiné, sou testemunha disso, é encantador. Em Bambadinca, em 2001 um homem grande pedia-nos: "Voltem para cá". Por onde passei eu, e os meus companheiros de viagem, toda a gente nos abraçava...

"Vi nos CD da visita daqueles camaradas, em 2000 à Guiné, o comandante de Bambadinca; em 2001, quando lá estive, tinha mudado.... Mas ele mesmo o fez questão em nos facilitar a visita ao aquartelamento...

"Boa ideia essa, teremos contudo que encontrar esses ex-combatentes em Portugal. Pena que um deles regressou agora mesmo à Guiné: o Nino Vieira, que vivia em [Vila Nova de ]Gaia... Ele era comandante de sector e actuou muito na zona L1. Aliás ele mesmo confirmou isso ao Capitão Miliciano que comandou a CART 2716.

"Marques Lopes, quem me dera voltar lá já contigo, era óptimo. Procura ir em Novembro pois que ainda apanharás a luxuriante paisagem verdejante. Terei que lá voltar também, como e quando não sei ... Abraços. Guimarães".

7. O Castro foi mais longe e quis dar o exemplo. Acaba de mandar esta mensagem ao seu amigo desconhecido do Portal Guine-Bissau.com:

"Amigos e camaradas da Guiné-Bissau, desejo de todo coração que as vossas eleições sejam livres e transparentes e faço votos para que a vossa (nossa) terra progrida livremente. Um dia irei visitar vosso País. Abram o nosso Blogue-fora-nada e têm aí algum material relacionado com a guerra colonial. Aguardamos também histórias vossas sobre a guerra colonial; seria muito interessante compararmos as nossas e as vossas histórias. Grande abraço para todos. Bem hajam. Sousa de Castro".

8. Sigam o exemplo do Sousa de Castro e de mim próprio, mandando mensagens para o Livro de visitas do portal Guine-Bissau.com. Assunto: Antigos combatentes do PAIGC, procuram-se!

quinta-feira, 16 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P60: Cabral ka mori? (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bafatá > 2001: Busto do fundador do PAIGC, Engº. Amílcar Cabral (Bafatá, 1924 - Conacri, 1973). A velha cidade colonial de Bafatá está muita degradada. © David J. Guimarães.

1. "África, 30 anos depois" é um excelente documento, publicado pela revista semanal Visão, que acompanha a sua edição de 16 de Junho (240 pp, 14.9 euros). O pretexto é o de revisitar as ex-colónias portuguesas (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe), trinta anos depois da sua independência. A não perder.

2. No que diz respeito à Guiné-Bissau, há várias (excelentes) reportagens assinadas por Pedro Rosa Mendes: (i) Guiné-Bissau: Cabral morreu (pp. 146-153); (ii) Guiné-Bissau: 'um país de traições' (pp. 154-155); e (iii) Guiné-Bissau: Braima, o menino de Amílcar (pp. 156-159). A introduação e a cronografia é de Luís Almeida Martins e a fotografia de Luís Barra.

É um olhar extremamente lúcido, cruel e quiçá desesperado sobre a herança de Cabral. A conclusão (brutal) é que Cabral morreu, contrariamente ao slogan repetido até à exaustão, pela propaganda oficial e pelos ex-combatentes e militanets do PAIGC, de que Cabral ka mori (Cabral não morreu).

A conclusão do jornalista e escritor é que Cabral definitivamente. Morreu duas vezes: fisicamente (assassinado em 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, às mãos de jagunços do próprio PAIGC); e depois politica, ideologica e espiritualmente, ao longo destes trinta e tal anos de independência em que o próprio PAIGC e a elite guineense entraram num processo de autofagia. A sua cidade-natal e a sua casa estão votadas ao abandono.

Há, no entanto, algum branqueamento das razões profundas por que a Guiné-Bissau não conseguiu erigir-se em verdadeiro Estado moderno e sobretudo na Nação com que sonhou Amílcar Cabral. A nossa quota-parte de responsabilidade (histórica) é posta entre parêntesis. A nossa, de portugueses e de ocidentais.

De qualquer modo o propósito do balanço era outro: o que fizeram os africanos, e neste caso concreto, os guinéus, com o poder que conquistaram, duramente, heroicamente ? Há sempre o risco de etnocentrismo neste tipo de jornalismo de investigação, pese embora a superior qualidade da observação, da efabulação e da escrita de Pedro Rosa Mendes, o talentoso escritor de A Baía dos Tigres (Lisboa: D. Quixote, 1999), romance já traduzido em mais de duas dezenas de línguas.

Recorde-se que o livro de estreia do jovem Pedro Rosa Mendes, então com 31 anos, é uma mistura de livro de viagens e de ficção. Em 4 meses, o autor fez 10 mil quilómetros, viajando por terra, de Angola à Contracosta, e seguindo o mesmo percurso encetado há mais de um século por Roberto Ivens e Brito Capelo. O livro obteve o Prémio Pen Club 2000.

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Fonte: Visão.online.pt (16.06.2005)

Guiné 63/74 - P59: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)


Excertos do Diário de um Tuga. L.G.

Bambadinca,13.2.1971

Esquecer a Guiné

Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe (1).
As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios africanos
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
Uma a um,
Às tantas da madrugada.
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
Chamei-lhe a Operação
Da Noite das Facas Longas.

Esquecer a Guiné... por uma noite!
A matilha de bulldogs (ou cães grandes) (2)
Gozando as delícias do sistema
No ar condicionado de Bissau.
O pobre do Pastilhas (3)
Que, à hora do lusco-fusco,
Se torna um animal acossado pelo medo,
Rondando os abrigos subterrâneos.
Os olhos de gazela morta
Dos putos
Que andam à cata de comida
Nos bidões do lixo da tropa.
A bela futa-fula (4)
Fugida do harém
Do cornudo comandante de milícias.
Os milhões de unidades de penicilina
Que um gajo paga
Em troca do corpo quente de uma bajuda (5)
Que fode com um batalhão inteiro.
Os páras (6)
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impates,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres do IN.
A histeria do Major Eléctrico (7):
"Ah, se sto fosse uma fábrica,
Seus sacanas!...
Eu despedia-vos a todos,
Cambada de malandros!"...
(Referia-se ao meu grupo de nharros
Que abriam trincheiras
No perímetro do aquartelamento de Bambadinca.
De tronco nu.
Com cinquenta graus ao sol
E 100% de humidade!...
Para o filho da puta
Poder dormir descansado,
À noite, na cama,
Sem o pesadelo de um turra
A entrar-lhe pelo quarto adentro,
Armado de Kalashnikov!).

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas(8).
O terror das crianças balantas (9),
Nascidas no mato (10),
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das GMC (11).
O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher (12).
A Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.
O médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados (13)
E aspirina
Para os pretos.
As lâminas de aço dos rockets (14),
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.
O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm no cardápio
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa,
E coisa boa,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Vítima da hepatite!

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.
Mas aos catorze anos
Tu já sabias desta guerra;
Aos dezasseis, que não havia escapatória;
E, aos dezoito,
Que já estavas apanhado na rede
Como um cão...
Tudo somado vais fazer
Trinta e três meses (!)
De vida militar
(Vinte e dois na Guiné!),
Se é que chegas são e salvo
Ao próximo mês de Março
De mil novecentos
E setenta e um.
E que até lá chega finalmente,
O teu salvador,
O teu periquito (15),
O desgraçado que te vem render.

Esquece a Guiné, meu tuga.
A guerra.
A aprendizagem da morte.
A inocência
Que se perde para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem,
Ao nosso lado.
E a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
Os restos dos cadáveres humanos.
Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Oito de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioterios
E a bandeira verde-rubra
Dos tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.
Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva.

Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses (16) batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte...

O capim.
O capim alto.
A seara da savana arbustiva.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue
Na mata.
Os panfletos de acção psicológica
Que não chegaram ao seu destinatário.
Espalhados pelo pânico de uma emboscada.
Um velho recorte de jornal,
Encontrado num acampamento do IN,
Com a fotografia de Che Guevara
Na Guiné em 1965.
A propaganda revolucionária.
Multiplicar as Guinés e os Vietnames.
Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador (17),
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão (18)
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro.

Esquecer a Guiné... por umas horas!
O jogo da roleta russa de ir e voltar,
De Bambandica ao Xime.
Numa lata de uma autometralhadora Daimler.
Só tu e o condutor.
Desenfiados.
Mais o Tchombé,
A mascote da companhia, o puto.
Sem escolta nem picagem.
Sem conhecimento de ninguém.
Só para ires beber uma cerveja.
Só para matares o tédio.
Só para desafiares o medo.
Ou para exorcizares os teus fantasmas.
Por pura estupidez.
Ou por simples bravata.

Esquecer a Guiné...
O Básico (19)
Que tem alucinações
E vê elefantes à noite
Junto ao arame farpado.
A história que te contaram,
Do tipo de Guileje (20)
Que deu em doido,
A pescar peixes dentro de uma tina.
O proxeneta do Vermelhinha (21)
Que comprou uma bajuda
E pô-la a render.
As alfaces que crescem, viçosas,
No antigo cemitério (22) de Bambadinca.
O furriel felupe (23), caçador de cabeças.
O Uloma, coma s trinta e tal cabeças,
Conservadas em frascos de álcool.
O negócio que o nosso barbeiro e fotógrafo fez
Com a horrível foto de uma cabeça,
Cortada à catana.
A cabeça de um pobre camponês
Que lavrava a sua lala.
No sítio errado, à hora errada.
A derradeira salada de atum, cebola e tomate
E o derradeiro copo de vinho verde
Que se partilha com um camarada e um amigo.
Um homem que vai morrer.
À hor marcada.
Dentro de três ou quatro horas.
Em vinte e seis de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Qualquer um de nós,
Que está aqui à volta da mesa,
Pode vir a morrer
Na próxima hora.
Na próxima operação.
Por que há sempre uma hora
Para morrer.
De um tiro no coração,
De um roquetada,
De uma mina antipessoal,
Da explosão de uma granada de morteiro...
O jovem capitão de artilharia,
Vinte e quatro anos,
Acabado de sair da Academia Militar,
Que se recusa a sair com os seus homens
Para a Ponta do Inglês (24),
[Depois do desastre
De 26 de Novembro de 1970] (25).
O filho da puta do segundo comandante
Que lhe manda dizer, alto e som:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
Nem que seja a reboque de uma GMC!"...

Meu Deus,
Que pedaço de inferno foi este
Que me coube em vida, na terra ?
__________

Notas (L.G. / Lisboa. 25 de Abril de 2005):

(1) Sinchã Jobel, Zona de intervenção do Comandante-Chefe, a norte do Rio Geba, sob controlo da guerrilha (ou IN, abreviatura de inimigo)
(2) Designação depreciativa do pessoal militar afecto ao Comandante-Chefe, em Bissau.
(3) Referência à figura do enfermeiro militar.
(4) Uma das etnias da Guiné, aparentada com os fulas. Em geral, as mulheres futa-fulas eram de uma grande beleza.
(5) Rapariga, mulher solteira (por oposição a mulher grande, casada).
(6) Diminuitivo de tropas paraquedistas
(7) Alcunha de um célebre major, segundo comandante do Batalhão sedeado em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70) (se a memória me não falha).
(8) Garrafa de cerveja de litro. A sua forma cónica na parte superior sugeria uma granada de RPG (bazuca).
(9) Uma das principais etnias da Guiné de onde eram recrutados muitos dos combatentes do PAIGC.
(10) Em linguagem de caserna, mato significava território fora do controlo das NT (nossas tropas). Também possou a quer dizer "muito", "bué"...
(11) Viaturas de transporte militar, de fabrico norte-americano (General Motors Company), de grande potência e de elevado consumo de combustível.
(12) Enfermeira paraquedista.
(13) Vítimas do stresse de guerra. Também conhecidos por "cacimbados" "apanhados do clima". O termo stresse ainda não fazia parte, na época, do nosso vocabulário (e muito menos a expressão stresse pós-traumático de guerra).
(14) Granadas-foguetes. Os RPG (rocket-propelled grenades), de fabrico russo ou chinês, eram uma das armas mais timídas pelas NT, em situações de combate como as emboscadas.
(15) Alusão à farda, novinha em folha, dos novatos que nos vinham render (A generalidade dos quadros da CCAÇ 12 eram de origem metropolitana e de rendição individual).
(16) Fogo de artilharia lançado a partir dos aquartelamentos das NT (ou unidades de quadrícula). Em geral os obuses eram de calibre 105 mm (de 140 mm, os de maior alcance).
(17) O picador tinha a difícil tarefa de detectar minas (antipessoais ou anticarro) nos trilhos e nos caminhos utilizados pelas NT. Não havia detectores de minas com sensores electrónicos. Apenas um pau com um prego de ferro aguçado na extremidade. Os picadores, tal como os guias, pertenciam, em geral, às milícias africanas. A sua taxa de mortalidade era altíssima.
(18) Muito (manga) dinheiro (patacão).
(19) Soldado afecto apenas às actividades de apoio logístico (por ex., cozinha, faxina), por oposição ao operacional (soldado-atirador).
(20) Tristemente famoso aquartelamento no sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, que acabaria por ser evacuado e abandonado pelas NT, tal como Gadamael, em meados de 1973. Já no meu tempo estes dois nomes eram míticos, a par de Madina do Boé, entretanto abandonada.
(21) Soldado que era especialista em jogar à vermelhinha (jogo de azar, com três cartas).
(22) Alusão a uma vala comum do cemitério do posto administrativo de Bambadinca onde terá havido muitas execuções sumárias, de balantas, beafadas e outros, no início da guerra (1963/64, segundo relatos dos mais velhos dos meus insuspeitos soldados fulas).
(23) Felupe, uma das muitas etnias da Guiné, da zona de Constava-se, no meu tempo, que os felupes ainda praticavam a necrofagia, uma forma de canibalismo ritual. Este tristemente famoso furriel (Uloma, de seu nome, se a memória me não falha) pertencia à 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(24) Local sito na confluência dos Rios Geba e Corubal, na região do Xime.
(25) Referência ao Capitão da CART 2714 (unidade de quadrícula do Xime, envolvida na trágica Op Abencerragem Candente).


Post scriptum

Amigos e camaradas:

Já tinha publicado isto em 25 de Abril último… Mas agora republico-o, com alterações. Há dados novos, como por exemplo, a chegada do nosso camarada A. Marques Lopes… Como vêem, a famigerada Sinchã Jobel do Alferes Lopes (CART 1690, Geba, 1967) era terra de ninguém no nosso tempo... Três anos depois de ele ter passado uma noite, perdido, na toca do lobo (Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967).

Alguns de vocês vão-se reconhecer neste texto, escrito já quase no final da minha/nossa comissão, em Fevereiro de 1971... O Humberto Reis e o Tony Levezinho vão, decerto, rever-se nesta espécie de poema e reconhecer tipos e lugares... A começar pela Op Noite das Facas Longas cuja missão era abater todos os cães de Bambadinca até o desgraçado do nosso animal de estimação (esqueci-me do nome do bicho)... Embora eu não tenha dado um tiro, confesso que ia no jipe com os executantes do massacre... Os malditos cães, esfomeados, não nos deixavam dormir... Como vêem, o stresse físico e psíquico era muito e desta vez deu-nos para isto...

Mas podia ter acontecido um outro Wiriamu (o massacre perpretado pelas NT, em Moçambique, em 1973, contra a população da aldeia de Wiriamu), é assim muitas vezes que acontecem estas coisas no teatro de operações...

Felizmente que sempre fomos militares correctos e ponderados (refiro-me aos quadros e soldados das CCAÇ 12, no período de 1969/71). Tirando este gesto de crueldade para com os pobres dos animais, julgo que nenhum de nós tem a consciência pesada, como tuga, como homem, como militar...

O Humberto e o Tony vão de certo reconhecer o Vemelhinha, o Fotógrafo, o Básico, o Pastilhas, o Cabo Faleiro, o Escriturário do acordeão e das tatuagens, o Iero Jaló (o nosso primeiro morto, se bem que eu não refira o apontador do dilagrama que o matou e que era um dos nossos...), o jovem Capitão do Xime, o 2º comandante (esse mesmo de outras merdas grossas, como a do macaréu, em que morreram três camaradas no Geba, referidas pelo Sousa de Castro e pelo Luís Carvalhido…).. Mas havia outras figuras que ainda hoje figuram no meu museu dos horrores e da comédia humana: o Major Eléctrico, o Furriel Felupe Uloma, e outras personagens trágico-cómicas que eu refiro no texto...

De qualquer modo, façam como eu: esqueçam a Guiné...por uma noite!

quarta-feira, 15 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P58: Homenagem a três homens excepcionais que partiram (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968):

Caros amigos:

Permitam-me que deixe aqui, perante vós, a minha homenagem, consideração e admiração, bem como a saudade, sentidas por três homens excepcionais que partiram: Vasco Gonçalves, Eugénio de Andrade e Álvaro Cunhal.

Conheci os três em circunstâncias diferentes, mas guardo de todos a melhor recordação. Tive o privilégio de conhecer Eugénio de Andrade quando tive, mais de uma vez, de me deslocar a sua casa para com ele tratar de livros (fui um dos fundadores da editora portuense Campo das Letras); foi um homem de grande simpatia e amabilidade e um poeta dos maiores.

Conheci Vasco Gonçalves nos idos tempos da revolução, dei o seu nome ao meu filho, que nasceu em Junho de 1975, e ele deu-me a honra de o receber em sua casa; foi um revolucionário convicto, um homem sincero e honesto com um coração bom onde todos cabiam.

Conheci Álvaro Cunhal em certas situações durante o período revolucionário; uma inteligência excepcional, de uma objectividade e coerência como poucos, um revolucionário convicto e amigo do povo português.

Três perdas grandes, que quero lembrar, no dia em que o último foi a enterrar. A memória deles ficará, com toda a certeza, ligada àquilo que somos, ao país que queremos construir.

Grande abraço.
Marques Lopes

Guiné 63/74 - P57: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga. L.G.


Bambadinca. 1 de Dezembro de 1969

Registam-se agora as temperaturas mais baixas do ano nestas paragens tropicais. Eu próprio não imaginaria que iria tiritar de frio nesta terra, emboscado, à noite, com os meus homens, sob um temperatura de 15º.

À noite, os africanos acendem fogueiras à porta ou no interior das suas pobres tabancas de colmo. A chuva dá lugar ao cacimbo. É o início da estação seca.

Entretanto, os negros islamizados (fulas, futa-fulas, mandingas, beafadas...) acabaram de celebrar o Ramadã. Um mês de jejum e oração culmina na grande festa colectiva em que o batque é a expressão viva do ritmo interior, da alegria física e do sentido lúdico do homem africano. Reconheço que não foi um mês fácil para os meus soldados.

Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970

O Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.

0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).

Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.

Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!

Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.

Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!

Post scriptum

Lisboa, 16 de Junho de 2005

Amigos e camaradas:

Nunca fui a Aldeia Formosa (aliás, Quebo, para os guinéus). No nosso tempo não dava para fazer ecoturismo, como vocês muito bem sabem... Mesmo assim cheguei a conhecer o famoso Cherno Rachid, de acordo com os papéis que desenterrei do baú…

Falei pelo telefone com o José Carlos Mussá Biai… Tem estado fora, a fazer trabalho de campo. Ele trabalha em cartografia, no Instituto Geográfico Português. Teve irmãos na tropa em Farim. Vai mandar-nos documentação para a nossa página. Já falou com o seu professor do Xime, o Carvalhido da Ponte. Mas nunca mais teve notícias dos outros professores que vieram a seguir, o furriel Osório da CCAÇ 12 (que estava no Xime em 1973) e da esposa. Alguém tem notícias desta malta ?

O José Carlos, o djubi do Xime (como lhe chama carinhosamente o Sousa de Castro), e que é mandinga pelo lado do pai, diz-me que cherno em fula quer dizer tio… Eu tinha ideia que cherno era o termo usado para designar um chefe religioso muçulmano… Mas a verdade é que há nomes próprios, fulas, que começam por Cherno: nós próprios, na CCAÇ 12 (1969/71), tínhamos dois soldados de nome Cherno Baldé…

Em conclusão, o Cherno Rachid, de Quebo (que já deve ter morrido, pela ordem natural das coisas,não me tendo constado que tivesse tido problemas com as novas autoridades saídas da independência, apesar de não gozar das simpatias do PAIGC), não era mais do que o Tio Rachid...

Guiné 63/74 - P56: Notícias da CCAÇ 12 (Xime, 1973/74)

1. Pergunta o Luís Carvalhido (CCS/BART 3873, Bambadinca, 1972/74):

9 de Junho de 2005:

" (...) uma vez que temos aqui gente da CCAÇ 12, será que alguém se lembra do Furriel Alfredo Guerreiro e do Furriel Domingos? O baixinho e o lavrador respectivamente? Um Vianense e outro (como se chama um natural de Leiria?) Leiriense?

Um dia conto um episódio que passei com o Domingos, quando descemos o Geba de zebro, numa operação de busca, que passou pelo Mato Cão, até que fomos apanhados pelo macaréu. [Este episódio já foi evocado pelo Sousa de Castro, em 22 de Abril de 2005].

2. Responde o Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71):

14 de Junho de 2005:

Luís Carvalhido: No tempo em que estive na CCAÇ 12, até Março de 1971, não existia lá nenhum furriel miliciano com esses nomes, Alfredo Guerreiro ou Domingos. Havia da zona de Leiria, mais propriamente dos Pousos, um Fur Mil Arlindo Teixeira Roda, que agora vive em Setúbal, onde é, ou foi, professor numa das escolas secundárias. É o que posso ajudar, em relação a esse tempo.

3. Nova pergunta do Luís Carvalhido:

15 de Junho de 2005:

Caro Humberto Reis: Estiveste lá no tempo daquele capitão que andava sempre com um pingalim e a quem, creio, chamavam de Salta-me a Tampa? Penso que se chamava Bordalo e esteve a liderar o processo pós-25 de Abril no BC 9 em Viana do Castelo.

Quanto ao Furriel Guerreiro, era um homem muito baixinho de quem os africanos (lembras-te do Suleimane Baldé, aquele fula magrinho, todo gingão ?) diziam que em combate nunca se aninhava porque as balas passavam por cima.

Quanto ao Domingos, apenas me lembro que comandou uma operação de má memória (fomos apanhados pelo Macaréu) e na qual eu participei. Lembra-me que lhe passei o rádio para ele falar com o major de operações, que estava muito preocupado em saber se tínhamos metido o motor do zebro dentro de bordo e que nem sequer perguntou se tínhamos alguma baixa. A resposta do Domingos (se calhar ele já nem se lembra dela, eu nunca mais a esqueci) não a vou publicitar porque faria corar o mais desavergonhado de todos nós.

4. Resposta do Humberto Reis:

Luís Carvalhido, Bom Dia!

O capitão da CCAÇ 12, no meu tempo, Maio de 69 a Março 71, era o Carlos Alberto Machado de Brito, que em Janeiro de 71 foi promovido a major.

Esses dois furriéis, Guerreiro e Domingos, já não são do meu tempo.

Os únicos capitães que conheci antes e depois do 25 de Abril foram o Delgado da Fonseca que era o comandante da companhia de instrução de Rangers no CIOE de Lamego, em Outubro de 68 e, mais tarde, o Vasco Lourenço, nas Caldas, enquanto dei lá uma recruta ao CSM, de Janeiro a Março de 69, e que não acabei pois fui mobilizado pelo RI 2 e apresentei-me em Santa Margarida. Em 24 de Maio marchei para Lisboa onde embarquei num Cruzeiro de Luxo a bordo do Niassa para uma férias em regime de TI + (quer dizer Tudo Incluído + Porrada) num destino paradisíaco conhecido como Guiné.

Enfim, Recordar É Viver!

Um abraço.
Humberto Reis

segunda-feira, 13 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P55: Notícias do Cacheu (1)

1. Tertúlia de ex-combatentes da Guiné, que até agora só inclui malta de 1967 a 1974... Mas a guerra começou bem antes: Janeiro de 1963, oficialmente. De qualquer modo, actualizem, por favor, a vossa base de dados:


Afonso M.F. Sousa (Maceda, Ovar)

- Ex-furriel miliciano, de transmissões, da CART 2412 (Agosto de 1968 / Maio de 1970);
- Esteve em Bigene, Binta, Guidage e Barro.

Um pelotão da CCAÇ 3 (onde também esteve, em 1968, o nosso camarada A. Marques Lopes) reforçou a CART 2412, quando esta se instalou em Guidage. Esse pelotão era comandado pelo Alferes Gonçalves.

Esta CART 2412 integrava-se no COP3 (comando do Major Correia de Campos, em Bigene).

O COP 3 constituia uma quadrícula militar de vários agrupamentos a norte do rio Cacheu, entre Barro, a Oeste, e Guidage (Farim), a Nordeste. Comportava unidades do Exército e da Marinha, estas estabelecidas na base fluvial de Ganturé (Fuzileiros navais, sob o comando de Alpoim Calvão), junto ao Rio Cacheu, cujo ancoradouro dá saída para Bigene (2,8 Km, para Norte).

O COP 3 tinha por missão fundamental a eliminação ou amputação dos corredores entre a faixa fronteiriça do Senegal e as densas (e quase impenetráveis) matas do Óio, em cujo coração se situava a base do PAIGC, de Morés.

Afonso M. F. Sousa

2. Correspondência entre o Afonso M.F. Soua e o A. Marques Lopes:

8 de Junho de 2005:

Caríssimo Coronel A Marques Lopes: Foi por uma lista na Net que localizei o Alferes Gonçalves. Como se referia à CCAÇ 3, contactei-o telefonicamente, para lhe perguntar se conhecia Guidage.

Surpreendentemente a resposta dele foi esta: acompanhei a vossa companhia (CART 2412) no trajecto Binta-Guidage, quando vocês se deslocaram para lá pela primeira vez. Comandava um pelotão da CCAÇ3 que ficou em Guidage como reforço da vossa CART.

Eu (talvez pelos 37 anos que decorreram ?!) não estou a ver a cara dele, mas o facto é que ele e eu estivemos na mesma coluna, rumo a Guidage (1968). Ainda fomos surpreendidos a pouco mais do meio do trajecto, no sítio do Cufeu, por tiros sentidos na floresta de uma e da outra banda do caminho.

Ele sabe da história da perda do nosso comandante (o Capitão Miliciano António Dias Lopes), logo nos primeiros dias, naquela terra de fronteira com o Senegal. Logo no início aterrou lá de surpresa o Spínola. Depois da rápida formatura na exígua parada, saíram-lhe estas palavras dirigidas ao capitão: "O senhor é indigno de estar à frente destes militares...o senhor prepare-se e vai já comigo para Bissau"

Viria a ser castigado com despromoção (tenente) e eventualmente com outras consequências que não conheci. Isto resultou do envio, por um soldado, de um aerograma para o General Spínola, queixando-se que estavam a passar fome, visto que o capitão se esquecera de solicitar o reabastecimento. O que valia eram as minúsculas galinhas que comprávamos na tabanca.

Por acaso ainda me lembro que, após o destroçar, de forma menos formal o General Spínola me perguntou:
- Meu militar, precisa alguma coisa para transmissões ?
Ao que eu lhe respondi:
- Precisamos de substituir a antena, meu General.
Passados uns dias essa antena lá apareceu.

2. Resposta do A. Marques Lopes, na mesmam data:

Amigo Afonso Sousa: Já deve ser a não sei quantas vezes que digo isto, mas vou voltar a repetir: é mesmo muito pequenino este nosso mundo (e há-de ser mais pequeno cada vez que um de nós morrer).

Através do contacto que me deste, falei com o Alferes Gonçalves e conheci-lhe logo a voz: é mesmo esse que esteve comigo em Barro. Contou-me que o General Spinola, em certa altura, decidiu que os metropolitanos deveriam estar dois anos na CCAÇ 3, como nas outras companhias. Foi o que sucedeu com ele, que tinha vindo da metrópole directamente para lá.

Diz que vem frequentemente ao Porto e combinámos já um encontro. Falou-me de outros que eu também lá conheci e que tinham feito um encontro no dia 28 de Maio passado!!... Cheguei à conclusão que tenho de ver os programas de chacha da televisão: é que deram notícia num deles, em rodapé, da realização desse encontro.

Falou-me [também] do furriel Folha, que eu bem conheci, e que mora em Matosinhos, afinal perto de mim. Vou-me encontrar com ele na segunda-feira próxima. E o Folha disse-me que há vários soldados da CCAÇ 3 que estão em Portugal! Fantástico!!! Obrigado, grande amigo, por me encontrares esta ponta que já tinha perdido!

Quanto a Barro, é como dizes: há todos esses edifícios, mas uns destruídos e outros abandonados. Só de um deles saíu um indivíduo vestido à ocidental e que se juntou a mim e ao meu acompanhante, quando lá estive em 1998. Era um funcionário governamental. Deu-me ideia que esse foi aproveitado, creio que era o da secretaria, os outros não só não tinham sido aproveitados como a população de Barro continuava nas suas moranças, deles afastada.

Infelizmente, caro amigo, constatei com pesar que a população de Barro vivia muito pior do que quando lá estava a CCAÇ 3. Retrocesso, portanto. Se calhar, fizeram manga de ronco quando o Ansumane Mané se rebelou... E agora? Estarão diferentes? Continuo a pensar que não, infelizmente.

Quanto ao Cacuto , a conversa era simples:
- Cacuto, com qual vais dormir esta noite?... Então e as outras, como é que é?...

Tu e os outros camaradas acabem com o coronel. Óscar Kilo? Não faz sentido.
Um abraço. A. Marques Lopes

4. Nova mensagem do Afonso Sousa, a quem agradeço por nos trazer mais um amigo e camarada para a nossa tertúlia, o ex- Alferes Miliciano Gonçalves, da CCAÇ 3 (telefone nº 259 326 426, telemóvel > 914 200 318):

9 de Junho de 2005:

Caro amigo António M. Lopes: O Alferes Gonçalves não tem ligação por e-mail, mas ficou de me ligar para nos fornecer o endereço de e-mail de um sobrinho, que nos servirá transitoriamente.

Podemos servir-nos da sua frescura de memória para recolhermos alguns relatos e testemunhos da sua permanência naquelas paragens difíceis de Guidage (tabanca isolada, no risco de fronteira com o Senegal).

Guiné 63/74 - P54: Cacuto Seidi, chefe da tabanca de Barro (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), hoje coronel (DFA) na situação de reforma:

O Cacuto Seidi era o chefe da tabanca de Barro em 1968. Era um espectáculo vê-lo andar de bicicleta só com uma perna... houve um dia em que foi mordido por uma cobra de palmeira e tiveram que lhe cortar a perna.

Muitas vezes fui até à sua porta para falar com ele. Por duas razões: a primeira é que suspeitávamos que ele estava feito com o PAIGC e eu tentava colher alguma informação de interesse, mas ele tinha esperto no cabeça e nunca se descoseu, até porque sabia que eu suspeitava dele; a segunda é que era quem tinha influência sobre as bajudas, além de que tinha cinco mulheres, e essas conversas foram sempre muito úteis... e proveitosas.

Em 1998 fui a Barro. Assim que me viu abriu a boca e disse admirado:
-Alfero Lopes!- Ao fim de 30 anos lembrou-se logo de mim, apesar de estarmos os dois mais velhos, de tal modo que quem me acompanhava ficou com a boca aberta de espanto. É que foi, de facto, muito tempo de convívio e de conversa.

Perguntei-lhe pelo Braima, um caçador da tabanca de Barro, muito conhecedor de toda aquela zona e que foi o meu guia em 1968, porque conhecia todos os trilhos e buracos quer na mata quer no tarrafe das margens do Cacheu. O Cacuto ficou atrapalhado e respondeu:
- O Braima mataram.
- Ah! - disse-lhe eu - mas tu continuas a ser o chefe da tabanca! Então, eu tinha razão... -. Acabou por se rir, é claro.

Barro não é nada do que era. A pista da Dornier não existe, está de tal modo cheia de mato alto que ninguém diria que alguma vez houve ali uma pista. As instalações da companhia estão completamente destruídas e também cobertas de mato. A única lembrança de alguma actividade militar era uma granada de morteiro detonada, do PAIGC com certeza. Foi tanta a miséria que vi que deixei ao Cacuto 20 CFA (moeda actual da Guiné-Bissau) para ele distribuir pelas famílias da tabanca.

A. Marques Lopes

quinta-feira, 9 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P53: Notícias da CART 2339 ('Os Viriatos', Fá e Mansambo, 1968/69)

1. Telefonou-me o António dos Santos Almeida, natural de Lisboa e residente na região do Ribatejo (Samora Correia, se não me engano), a dizer que se sentia muito feliz por encontrar malta do tempo dele, da Guiné.

Esteve na Zona Leste, no Sector L1, em Fá Mandinga e depois em Mansambo, de Janeiro de 1968 a Dezembro de 1969 (Pediu-me para corrigir esta informação que vem na página referente a Mansambo, o que vou fazer em breve).

A sua companhia, de artilharia, a CART 2339, era também conhecida como "Os Viriatos". Hoje ele é advogado, trabalhou no sector dos seguros, está na situação de pré-reforma e gostaria de encontrar companheiros de viagem para voltar à Guiné. Deu-me o seu número de telemóvel (962601138) e o seu endereço de e-mail: asarute1@sapo.pt.

Recordou-me que um dos seus camaradas (ele disse-me o nome, mas não consegui fixar) foi apanhado, à unha, pelo PAIGC na famosa e perigosa fonte que abastecia de água o aquartelamento de Mansambo.

O pessoal da CART 2339 não se tem encontrado. Ou pelo menos o Almeida não tem tido notícias dessa malta. Prometi-lhe incluí-lo na nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné, de modo em ficar em rede e em contacto connosco...

2. O Almeida era, na altura, soldado de artilharia. Tinha habilitações literárias superiores à 4ª classe mas chumbou no curso de milicianos (sargentos ou oficiais, não sei ao certo).

Recorda-se de também haver em Bambadinca um médico que estava na mesma situação, como soldado raso, e com quem ele convivia, quando lá ia à sede de batalhão (BCAÇ 2852).

Lembra-se de ir beber, de vez em quando, um copo, acompanhado da boa mancarra, na esplanada do bar de um dos dois comerciantes brancos que havia em Bambadinca, com vista para o rio. Esse mesmo que era suspeito, no nosso tempo, de estar feito com os turras. Eu e malta da CCAÇ 12 íamos lá sempre que o homem arranjava uns camarões tigres, do Rio Geba, pescados em zona de risco... Fazia-nos pagá-los a preço de ouro (50 pesos o quilo, se a memória me não falha; o equivalente ao que te pedia uma "bajuda de mama firme" para "partir catota" contigo...).

Além disso, o Almeida deu aulas à população de Fá Mandinga. Recorde-se da estação agronómica onde trabalhou o Amílcar Cabral. O seu capitão, o da CART 2339, porém, nunca lhe facilitou muito a vida - a ele, Almeida -, mesmo sabendo que ele podia ser melhor aproveitado, graças às suas habilitações literárias.

Esse capitão era o tal, pequenino de estatura, que eu dia vi dar um enxerto de porrada a um gajo de transmissões, no regresso ao quartel, depois de uma operação na região... O Almeida disse-me o nome. Não o vou aqui mencionar, por razões óbvias. Não estamos aqui para julgar ninguém, e muitos os comportamentos no tempo de guerra.

Mas o ex-capitão da CART 2339, será bem vindo à nossa tertúlia, se um dia destes nos descobrir e tiver vontade de nos rever e partir mantenha. Se não me engano, ele era miliciano, como nós. Ou não ?

Aqui fica, no essencial, a conversa que tivemos ao telefone, eu e o Almeida. Ele decobriu-nos através do Castro (não sei se do Sousa, se do Manuel, ambos são Castro de apelido, trabalham nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e pertencem ao nosso grupo, à nossa tertúlia).

quarta-feira, 8 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P52: Antologia (2): A fábula do jagudi e do falcão (Luís Graça)

1. É uma fábula guineense que merece ser objecto de leitura, de reflexão e de divulgação. É uma jóia da sabedoria humana, com uma mensagem universal, que cala fundo. Como todas as estórias de animais, encerra uma lição, neste caso uma grande lição (filosófica, política e ética) em relação ao exercício do poder, aos detentores do poder, aos que são arrogantes e aos que não têm pejo em oprimir, desprezar ou marginalizar os mais fracos, os mais pequenos, os socialmente menos qualificados...

O jagudi (abutre) não é ágil, elegante, superior, altivo, nobre, aristocrático e guerreiro como o falcão, mas nem por isso deixa de ter o seu lugar na criação e de desempenhar o seu papel na natureza. É certo que ele é pouco ou nada considerado tanto pelos humanos como pelos outros animais. É feio, é repelente, é necrófago...

Que o diga, aliás, o provérbio crioulo-guineense: (i) Kal dia ku sancu fala jugude manteña si ka pa rispitu di kacur; ou, noutra variante, (ii) Kal dia ku sancu fala Sakala manteña si i ka na disgustu di kacur (= o macaco só conhece ou cumprimenta o abutre no velório do cachorro).

Mas também há um outro provérbio que, de certo modo, vem em defesa do jagudi: (iii)Jugude ka bai fanadu, ma i kunsi uju (= o abutre não foi à circuncisão, não passou pelo ritual do fanado, mas consegue ver as coisas, ou seja, não é parvo de todo...).

Em suma, uma estória que vem a propósito da História (com H grande) dos nossos dois países, Portugal e a sua ex-colónia da Guiné que, hoje, trinta anos depois da independência, ainda está longe de ter encontrado os caminhos seguros da paz, da construção da unidade nacional, da liberdade, da democracia e do desenvolvimento sustentado. Que a elite dirigente da Guiné-Bissau saiba, com humildade, ouvir, aprender e aplicar a grande sabedoria do seu povo e do seu pai-fundador, Amílcar Cabral...E que os resultados das eleições presidenciais do próximo dia 19 de Junho sejam um sinal de esperança para todos, para o povo guinéu e para os seus amigos, como nós.


2. A fábula do Jagudi e do Falcão

À sombra duma árvore, um alto poilão secular, descansa tranquilo um jagudi (abutre). No mesmo ramo em que ele se empoleira, caiado de branco devido aos dejectos de tantos outros jagudis que por ali passaram, veio pousar um altivo falcão.

Depois de trocarem um breve e seco cumprimento, o falcão, sempre palrador, fanfarrão e irrequieto, começou a insultar o jagudi, chamando-o de desprezível, de cobarde, de preguiçoso, de oportunista e de muitos outros termos insultuosos e pejorativos que lhe vieram à cabeça, à sua cabeça, tonta e leviana. Acusou-o, repetidamente, de ser a mais miserável e feia das criaturas de Deus.

O jagudi ouviu tudo, sem nunca ter tido o mais pequenino gesto de impaciência, protesto ou de indignacão. Nisto, passa entre os dois, a grande velocidade, uma linda ave, de penas multicores.

Logo o falcão se lançou em perseguição da pobre vítima. Mas fê-lo de maneira tão desenfreada que por azar foi bater, em cheio, com o peito, de encontro a um tronco robusto de uma árvore da floresta que se lhe atravessara no caminho. Louco, cheio de dor, lançando pios lancinantes, caiu ao chão, mortalmente ferido, sobre o tapete de folhas secas que cobria o trilho da mata.

Nesse preciso momento, o abutre levanta voo, com o seu ar pesado e pachorrento, e toma o seu lugar, imperturbável, à cabeceira do moribundo. O falcão, no estertor da agonia, ainda teve tempo de descortinar, horrorizado, a silhueta tenebrosa e agoirenta do jagudi, o seu bico afiado como aço e o seu pescoço descarnado.. E, trémulo, perguntou-lhe:
— Que vens aqui fazer, jagudi?
Ao que o abutre respondeu, impávido e sereno:
— Aguardo o teu fim, meu amigo.

Fonte: Adapt. de Nóbrega, Álvaro (2003) - A luta pelo poder na Guiné-Bissau. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS). Universidade Técnica de Lisboa (UTL). 2003.23.

Guiné 63/74 - P51: Mesa-redonda: Afinal, a guerra não estava (quase) ganha ?


7 de Junho de 2005

1. Amigos e camaradas:
Quando leio os relatos do A. Marques Lopes que andou meses a fio, com os seus bravos de Geba, para conquistar Sinchã Jobel, em meados de 1967, e venho a descobrir que, dois anos depois, eu andei candidamente por aquelas paragens (Sare Gana, aldeia em autodefesa do subsector de Geba…), chego à conclusão, que tínhamos andado para trás como o caranguejo… Sinchã Jobel e a mata do Óio eram um mito no meu tempo, sendo impensável lá voltarmos, a penantes, como no tempo do Lopes… É engraçado podermos comparar e justapor as situações em épocas diferentes…

No meu tempo, com a CCAÇ 12 tentámos ir, numa grande operação, a nível de batalhão, a Madina/Belel, que ficava mais a oeste, a norte do Cuor... O chefe da orquestra foi um tal alferes miliciano que tinha muito ascendente sobre o comando de Bambadinca, e que chegou a ter a cabeça a prémio por parte do PAIGC… A operação foi uma das mais dramáticas que fizemos no meu tempo… Mas no relatório os gajos gabaram-se, como sempre, de obter muitos roncos… Hei-de contar-vos essa estória…

Luís Graça


8 de Junho de 2005

2. Caro Luís Graça, restantes membros da Tertúlia da Campanha Africana.
Quando li o titulo que deste a este texto e que eu propositadamente deixei ficar, pensei que as guerras perdem-se ou ganham-se em função do objectivo que nós definimos, para aquilo que para nós é ganhar ou perder. Poderia fazer aqui uma série de alocuções, referindo que, para mim, a guerra estava ganha a partir do momento em que durante um certo espaço de tempo fui capaz de me relacionar com extraordinária facilidade, na convivência directa e exclusiva com os Africanos de Fá Mandinga e com todos os comandos negros que lá faziam a sua recruta.

Podia dizer-te que, para este país e para os Senhores da Guerra, ela estava perdida, a partir do momento e de muitos outros momentos como aquele descrito no texto que tinha como título Duas Orelhas Como Troféu [texto de Afonso Sousa, enviado apenas ao grupo, não publicado no blogue]. Para exemplificar doutra maneira vou falar doutras experiências que, não sendo passadas em solo africano, dizem respeito ao tempo de campanha colonial.

Durante muitos anos lutei pela defesa dos direitos dos Veteranos de Guerra. De cidadão anónimo, até primeiro delegado da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (APVG), foi um caminho difícil e lento, mas altamente enriquecedor. Experiências de vários tipos, sucediam-se a outras experiências. No entanto e quanto mais me aproximava e interagia com os Órgãos Sociais responsáveis pela Associação, mais me apercebia que erros e hábitos do passado ainda estavam dentro da cabeça destes responsáveis. Isto não seria tão preocupante se estas pessoas não estivessem a defender pessoas que deram o seu melhor pelo país que éramos, por isso tornei-me um contestatário sério do sistema instituído.

Devido ao meu inconformismo, sou convidado a fazer uma lista que outros opositores como eu resolveram organizar, com o fim expresso de melhorar a organização da Associação, com a subsequente ideia que talvez se conseguisse fazer mais por todos aqueles que fazem parte do enorme património histórico da guerra colonial, ou seja: pretendíamos fazer mais por todos os soldados deste país.

Ao fim de uma série de acções e lutas eleitorais, acabamos por assumir os destinos da APVG, ocupando eu, na hierarquia, o lugar de Vice-Presidente, lugar sempre difícil de ocupar porque, embora as instituições se orientem pelo princípio do voto, a verdade é que, como todos sabem, a partir de certa altura interesses, acordos e outras coisas mais desvirtuam este princípio, o que demonstra alguns erros da democracia.

Dizia eu que ser Vice-Presidente é um lugar muito complicado numa lista de executivos, porque das duas uma, ou o Vice baixa a cabeça como aquele animalzinho muito simpático e tudo corre bem, ou acabamos por ser agredidos física e moralmente. Mas esta é outra história que não fica a dever nada às muitas que todos passámos na Guiné e que eu não vou contar, pelo menos por agora.

Passados que foram alguns tempos, assumi o lugar de Director do Jornal “O Veterano de Guerra", ao qual pretendi imprimir uma concepção interventiva diferente. A ideia, sempre a mesma ideia, era que as páginas da revista ou do jornal deveriam conter, ou contar, as histórias de todos os Associados, fossem eles Soldados ou Generais, e não servirem apenas os interesses de meia dúzia.

Naturalmente que o poder tem muita força; naturalmente que os interesses instituídos têm muita força; naturalmente que em democracia também se compram votos (os oficiais também se vendem) e eu acabei por ser exonerado do cargo depois de ter editado três jornais de 42.000 exemplares cada.

Embora o projecto que desenhei e as alterações metodológicas que queria introduzir neste, me exigissem muito mais tempo para a concretização dos meus objectivos, acredito ter melhorado muito a linha orientadora do jornal. Pela primeira vez, todos os Associados, sem discriminação, começaram a ter voz. O preço a pagar foi grande, porque não tive ao meu lado gente suficientemente interessada na mudança; no entanto, sinto-me satisfeito pelo facto de ter acordado alguns companheiros que, por simplicidade, boa fé, ou desconhecimento, continuam a acreditar em tudo e em todos.

Fiz este pequeno relato para que todos aqueles que fazem parte deste grupo [Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Coloniual > Guiné], percebam que a guerra não acabou no dia da independência dos países africanos. Ela continua viva dentro de nós, motivadora de milhares e milhares de questões.

Perder ou ganhar? Uns pensam que eu perdi, porque os opositores eram muito fortes e eu não consegui derrubar a muralha de hábitos e outras coisas muito mais graves instituídas. Eu penso que ganhei, porque fui capaz de abalar a estrutura e fiz perceber a muitas delegações e delegados deste país que as pessoas que gerem as suas justas perspectivas de direitos não são eficazes, isentas e sérias nos propósitos assumidos no passado. A inépcia de cada um e a modorra a que a maior parte de cada um de nós está habituado, já não sou eu que tenho que alterar.

Uns pensam que perdi porque vim embora, eu penso que ganhei, porque esteja onde estiver, serei fiel aos princípios que desde 1997 defendo. Por isso, meu caro Luís, na minha modesta opinião, a guerra estava perdida ou ganha, conforme a barricada esteja colocada a norte ou a sul. Para terminar apenas quero dizer-vos que o Luís Graça e este grupo são um dos múltiplos exemplos de como a guerra, vista doutro ângulo, está ganha.

Um abraço a todos, mas deixem-me dar um abraço especial ao meu amigo Castro e ao A. Marques Lopes (Banjara) que nunca mais vi depois do dia das eleições em Braga.
Luís Carvalhido


3. É um ponto de vista muito curioso - parabéns pelo que pensa e faz e sobretudo pela convicção com que o executa.

Creio que estamos a fazer não uma análise de guerra, mas a contar uma guerra pelos seus actores principais, nós todos, os soldados de então. E vivemos de recordações, umas boas, poucas, e outras muitas más, como é evidente. Outra coisa nos une e isso tenho a certeza: a solidariedade de quem perdeu a juventude e se tornou adulto de repente. Hoje, independentemente daquilo que somos ou fazemos, algo afinal nos une - será o amor fraternal - deixe passar o termo, acaba por ser isso mesmo

Um abraço,
David Guimarães.


4. Meu Caro David J. Guimarães:
São palavras destas que fazem que os mais pequenos do pelotão aguentem a agonia da picada.Um abraço
Luís Carvalhido

5. Amigo Luís Carvalhido:
Eu vi logo que devia ter havido qualquer coisa... pois deixaste de "aparecer" (nos nossos contactos). No início, depois das eleições, ainda trocámos aquelas mensagens de quebra-gelos. Mas, depois, palpitou-me que algo correria menos bem.
Mas, meu amigo, como dizes, a guerra não acabou. E a luta continua!!!
Abraços.
A. Marques Lopes


6. Uma simples e primeira nota: nas entrelinhas deste texto muito se vislumbra. A abrangência é de um lato mas muito nítido horizonte.

Que lucidez de raciocínio e fluência de expressão !... Parabéns "grande" Luis Carvalhido.
Afonso Sousa

7. Muito obrigado, Luís, pelo facto de me incluir no seu Blogue. Penso que finalmente estamos a dar início a um processo que, do meu ponto de vista, vai transformar ideias e conceitos que, ao longo das ultimas três décadas, foram incutidos nos Portugueses. Os livros, o cinema e visões de alguns que não estavam cá (lá) na altura, porque tinham fugido e ainda por culpa de outros que viviam da matança, fizeram o comum dos mortais pensar que fomos os causadores do conflito, por inerência, culpados. Finalmente ao sermos confrontados com a ideia que a Pátria e o Hino não são servidos, a não ser pelo dinheiro que os profissionais da guerra exigem, eu tenho a certeza que as páginas desta história ainda vão ter outra cor.

Um abraço.
Luís Carvalhido

terça-feira, 7 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P50: Mancarra, a semente do diabo... (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga. L.G.

8 de Março de 1970

Sansancuta.

É interessante notar que na mitologia fula a mancarra (amendoím) esteja associada ao Diabo em pessoa (Iblissa).

O cherno Umaru que dirige uma pequena escola nesta tabanca e que se prepara, como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj, contou-me, por intermédio do [José Carlos Suleimane  [Baldé] (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário – é um dos nossos poucos soldados que sabe ler e escrever português, daí ser soldado arvorado e em breve 1º cabo), contou- me ele a seguinte estória:

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ?

Recordo que Amílcar Cabral, na Estação Agronómica de Fá-Mandinga, fez estudos sobre vários tipos de semente de amendoím. E já então ele denunciava o perigo que representava, para o desenvolvimento da agricultura na Guiné, a monocultura desta oleaginosa, um típico produto  imposto pelo colonialismo aos guinéus.

Guiné 63/74 - P49: Samba Culo II (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1968) e actualmente coronel (DFA) na situação de reforma:

Na Op Inquietar II conseguiu-se o objectivo: a base de Samba Culo foi mesmo destruída... Mas há coisas que não vêm relatadas: diz o relator que "junto à base de patrulhas pelas 14H20, um grupo IN que seguia em coluna por um, detectou as NT abrindo fogo e tendo ferido um Soldado, pondo-se em fuga pela reacção das NT. Pelas 14H45 saiu um grupo de combate em patrulhamento ao longo do R Canjambari e regressou sem contacto".

Não foi assim. O que sucedeu foi o seguinte: o IN encostou-nos ao Rio Camjambari, não podendo nós cambá-lo, porque era muito fundo, nem podendo dali sair porque estávamos cercados. O comandante da operação disse-me:

- Ó Lopes, a minha companhia já está aqui instalada, por isso, você, que tem um grupo autónomo, vá ver se consegue furar o cerco. 

E lá fui, não só uma mas duas vezes, sem sucesso. Na segunda vez, fiquei sob fogo cruzado do PAIGC e da companhia do comandante, tendo um soldado meu levado um tiro nas costas, dado pelos dos nossos.

Quando o comandante me disse, pela terceira vez, para tentar furar o cerco, disse-lhe que não ia. Que chamasse os T6, o que ele acabou por fazer, e foi assim que dali saímos. Mas o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.

E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. 

Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida.

«6. Op Inquietar II. 4 a 7 de Julho de 1967"

"Situação particular:

Há notícias que o IN tem un acampamento em Canjambari, além de outros espalhados pela mata do Óio. Tem-se revelado durante operações realizadas e implantado engenhos explosivos nos itinerários.

"Missão:
Executar uma acção em força sobre o acampanento IN de Canjambari em coordenação com forças do AGRP 1976.

"Força executante:

Dest A - CCAÇ 1685; 1 Gr Comb CART 1690; 1 Secção CMIL 3

Desat B - CART 1689: 1PEL.(-) /CMIL 3

Dest C - 1 PEL EREC 1578.

"Desenrolara da acção:
04JUL67

Concentração das forças em Banjara pelas 17H00.

05JUL67
Pelas 00H00 iniciaram o movimento em direcção a Samba Culo (050.0p.) seguindo o itinerário Banjara-Gendo-Tambicó-Samba Culo. Pelas 07H00 atingiram Gendo. Um pouco à frente desta antiga tabanca, pelas 08H00 foi detectado um grupo IN o qual tentaram cercar e capturar, só não o conseguindo por alguns elementos da Milícia na testa da coluna, que não entenderam a manobra, terem aberto fogo, pondo-os em fuga.

Entretanto foram avistadas 2 casas de mato (010 OP), que foram destruídas bem como diversos utensílios domésticos. Retomado a progressão e cerca das 11HOO foi detectado um núcleo de 10 casas de mato (050 OP), incluindo uma escola com vinte carteiras, tendo sido totalmente destruídas pelo fogo. Retomado a progressão e ainda perto deste último acampamento, as NT emboscaram um grupo IN não estimado, do qual foi capturado um elemento portador de uma faca de mato.

Reiniciado a progressão, Tambicó (Base de patrulhas) foi atingida às 14H00. Junto a base de patrulhas pelas 14H20, um grupo IN que seguia em coluna por um, detectou as NT abrindo fogo e tendo ferido um Soldado, pondo-se em fuga pela reacção das NT.

Pelas 14H45 saiu um grupo de combate em patrulhamento ao longo do R Canjambari e regressou sem contacto. Pelas 15H20 um grupo IN estimado em 30 a 40 elementos atacou a base de patrulhas com mort 60, LGF, PM e Armas Automáticas, durante 15 minutos sem consequências.

Os T6 que nessa altura sobrevoavam a base de patrulhas para protegerem o heli na evacuação do ferido, fizeram umas rajadas sobre o grupo IN. Nessa altura foi evacuado em HELI para o HM 241 o soldado ferido na acção IN anterior.

Pelas 17H00 saiu um outro grupo de combate para fazer o reconhecimento do itinerário Tambico - Samba Culos. Percorridas apenas algumas dezenas de metros, foi emboscado por um grupo IN de cerca de 60 elementos armados de mort 60, LGF, PM e Armas Automáticas, tendo ferido 2 soldados, evacuados mais tarde para o HM 241, por heli.

Juntamente com a emboscada o IN flagelou a base de patrulhas com 2 granadas de mort 60. Perante a reacção das NT o IN furtou-se ao contacto com baixas prováveis.

06JUL67

Cerca das 11H20, orientado pelo PCV iniciou-se a progressão em direcção ao acampamento de Samba Culo (050.OP.), tendo atingido pelas 15H20. O IN, que estava instalado do lado Sul do acampamento e que tinha reagido fortemente impedindo o Dest B de entrar no acampamento, reagiu à manobra de envolvimento e assalto ao acampamento com Mort 60 e PM, tendo ferido dois soldados, evacuados posteriormente para o HM 241 por heli.

O IN, apercebendo-se do cerco que se preparava, furtou-se ao contacto tendo as NT assaltado e destruído o acampamento composto por 30 casas de mato, sendo algumas cobertas a zinco. Foram destruídos também alguns utensílios domésticos.

Já no regresso o guia conduziu as NT a uma arrecadação de material, que o Dest B conquistou tendo capturado todo o armamento lá existente. Capturado o material foi destruída a arrecadação ouvindo-se então fortes rebentamentos de cartuchos e granadas que se prolongaram por 50 minutos.

Retomado a progressão de regresso para Banjara as NT por alturas de Farim 8H8-44, accionaram uma armadilha tendo ficado ferido um elemento do Dest B.

07JUL67

As NT atingiram Banjara pelas 05H00 após o que regressaram a quartéis. A operação terminou às l6H530.

"Resultados obtidos:

-Foi capturado armamento IN;
-Foram mortos, feridos e feitos prisioneiros elementos IN;
-Foi destruído diverso material e utensílios donéstico;
-Foram destruídos cerca de 10.000 munições e diverso material explosivo algum do qual se supõe encontrar-se enterrado, dado a violência das detonações".

Guiné 63/74 - P48: Samba Culo I (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1968), actualmente coronel (DFA) na situação de reforma:

Samba Culo era outra base conhecida do PAIGC na zona da CART 1690. Não vem nos mapas existentes agora, talvez porque não haja lá população. Além dessa base, havia várias casas de mato nessa região, elementos de apoio importantes para dormida e descanso dos guerrilheiros.

Sobre a Operação Inquietar I: foi um fracasso, pois não conseguiu o objectivo, que era a destruição da base, tendo sido destruídas, no entanto, várias casas de mato; a história do ferido mencionado é que se tratou de um soldado da CCAÇ 1689, que levou um tiro no bolso onde tinha uma granada de fumos, provocando o rebentamento desta; tentando apagar o fogo que se ateou nas calças do camuflado com as mãos, ficou com estas totalmente queimadas (os ossos dos dedos ficaram à vista). Com a única coisa que eu tinha - manteiga das rações - tentei minorar-lhe o sofrimento. Gritava pela mãezinha e dizia:
- O meu alferes é tão bom!... Enfim, só visto. Sei que ficou bom, embora com cicatrizes, e vive no Porto.

Sucedeu-me aqui uma coisa que eu nunca pensei que fosse possível: na noite de 10 para 11 de Junho de 1967 consegui dormir debaixo da chuva torrencial de um tornado, numa clareira completamente a descoberto. O cansaço já era muito. A retirada está exemplificada na fotografia que também envio em anexo: é pessoal do meu grupo de combate, que teve de se apoiar uns aos outros, tal era o cansaço, e porque o PAIGC vinha atrás de nós...

4. Op Inquietar I. 9 a 15 de Junho de 1967.
“Situação particular:
"Há notícias de que o IN tem um acampamento em Canjambari, além de outros espalhados pela mata do Óio. O IN tem-se revelado durante operações realizadas e implantado engenhos explosivos nos itinerários.

"Missão:

Executar uma acção em força sobre o acampamento IN de Canjambari em coordenação com as forças do Agrupamento 1976.

"Força executante:

Dest A - CCAÇ 1685 ; 1 Gr Comb CART 1690; 1 PEL MIL/CMIL 3

Dest B - CCAÇ 1689; 1 Sec. (+) CMIL3

Dest C - CCAÇ 1501 - (1 Gr Comb); CCAÇ 1499 (1 Gr Comb); 2 Secções CMIL 2; 1 Secção CMIL 4

"Desenrolar da acção:

9JUN67

Os destacamentos A e B deslocaram-se em meios auto de Fá para Banjara. À alta da viaturas militares para os transportar houve necessidade de recorrer a requisição de viaturas civis, utilizadas apenas no troço Fá - Sare Banda. A concentração das forças em Banjara foi morosa, pois teve que se fazer por escalões. Iniciada pelas 07H00 terminou pelas l6H00.

10JUN67
Pelas 02H00 os destacamentos A e B iniciaram juntos o movimento para Casa Nova que atingiram pelas 06H00. Pelas 06H50 as NT abriram fogo sobre 2 elementos desarmados tendo abatido l e ferido outro num braço, quando tentavama fuga. Interrogado este revelou a existência de una tabanca nas proximidades, localizado depois em Banjara 2A4. Pelas 13H50 atacaram este objectivo que o IN abandonou precipitadamente. As NT destruíram 10 casas de mato, depois de terem passado revista e capturado uma longa, roupas e utensílios domésticos.

Pelas 12H30 as NT atingiram Gendo, utilizando o prisioneiro como guia, onde pararam para comer. Em exploração das declarações prestadas pelo guia os Cmdts dos Dest A e B que estavam juntos decidiram seguir a corta nato para Samba Culo, durante a noite, se até iniciarem a progressão não fossem detectadas. Pelas 13H00 ouviram um tiro isolado do lado NW, que lhes pareceu de reconhecimento. Pelas 14H40 um Gr IN estimado em 15 a 20 elementos flagelou durante cerca de 20 minutos com armas automáticas, PM, LGF, e Mort 60, a po sição onde as NT se encontravam, mas sem consequências.

O Comandante do Dest B deidiu então, como medida de decepção desviar-se ara Banjara 5A5 e daqui progrediu durante a noite em direcção a Samba Culo.

Pelas 17H30 as NT já se encontravam em andamento quando ouviram o rebentamento de duas granadas de mort. 60 no local onde estacionaram. Cerca das 18H00 as NT avistaram 2 elementos dos que seguiam em direcção às NT. Ao detectá-los, internaram-se no mato. Momentos depois ouviu-se o lançamento de 1 granada de Mort., tendo as NT avançado imediatamente sobre a posição onde se supunha estar instalada a arma.

Assaltado o acampamento foram capturadas 2 longas, destruídos numerosos artigos e utensílios domésticos, roupas, alimentos, catanas, bicicletas e destruídas 50 casas de mato, acampamento de Cambaju, situado em Banjara 3CL.

O Cmdt Dest B decidiu então atravessar a bolanha do R Cambaju, para passar a noite em Banjara 3EL e progredir depois sobre Samba Culo.

11JUN67

Pelas 05H00, debaixo de chuva torrencial as NT progrediram ao longo do R Cambaju, seguindo o Dest B à frente. Pelas 08H00 o Dest B capturou l elemento IN, que explorado levou as NT a destruir outro acampamento. Cerca das 12H00 o PCV entrou em contacto com o Dest B, que lhe solicitou que sobrevoasas o Dest C que necessitava da sua presença e voltasse depois. Em vão
o PCV tentou contactar de novo com o Dest A e B. No resto da manhã e durante a tarde de 11JUN, pelo que não foi possível reabastecê-los como estava previsto, apesar de todos os esforços de ligação do PCV, dos T-6 e HELI.

Finalmente pelas 17H50 conseguiu o PCV contactar com o Dest B, que pedia a evacuação de um ido, evacuado momentos depois por um heli no seu regresso a Bissau. Depois de feito o reabastecimento do Dest C verificou-se que os Dest A e B se encontravam por região do ponto 38 (Banjara 2D4) e dado o estado precário do pessoal, pediu autorização para retirar o que
lhes foi negado.

12JUN67

Pelas 08H00, como o PCV não aparecesse e os Dest A e B não tivessem sido reabastecidos os Cmdt dos Destacamentos decidiram progredir para SW, tendo atingido Banjara pelas 09H00 altura em que surgiu o PCV e lhes comunicou que de Bafatá saíra uma coluna com os reabastecimentos e com as instruções a cumprir durante o dia 12 e na noite de 12/13JUN. O Dest A recebeu ordem de montar emboscadas sobre o itinerário Banjara-Mantida e o Dest B re-
cebeu ordem de montar emboscada por região de Bantajã, mas que não resultaram.

13JUN67

Iniciado o regresso, os Dest A e B chegaram a Fá pelas 12H50.»

segunda-feira, 6 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P47: O Alferes Lopes, com os balantas (CCAÇ 3, Barro, Cacheu)

Texto de A. Marques Lopes, alferes miliciano na CART 1690 (Geba, Zona Leste), onde foi ferido (1967), e depois na CCAÇ 3 (Barro, Cacheu, 1968), hoje coronel (DFA) na reforma e dirigente da Associação 25 de Abril (delegação Norte):

Barro fica a cerca de 3 kms da fronteira com o Senegal. Na altura em que lá estive, com a CCAÇ 3, o comandante era o capitão Carlos Abreu (depois do 25 de Abril foi adjunto do General Spínola). Conheci os pais dele, que tinham um restaurante na Calçada do Combro, em Lisboa. Antes dele esteve o capitão Ferreira, actualmente um quadro do PSD em Torres Vedras (como o é também o meu ex-camarada de armas da CART 1690, e amigo, o ex-alferes Moreira, actualmente em Torres Vedras, e o advogado que levou à minha reintegração no Exército).

Esclareço que todos os que conheci na guerra, e sobreviveram, têm cada um a sua ideologia política. Mas a amizade, cimentada em situações difíceis, sobrepõe-se às ideologias e somos todos muito amigos e o que faz com que nos encontremos com frequência. Discutimos sobre o agora e não estamos de acordo em muita coisa, mas abraçamo-nos e cimentamos a amizade com o que passámos em conjunto, no passado.

A missão da CCAÇ 3 em Barro (em Binta, não sei) era evitar a passagem dos guerrilheiros do PAIGC e das populações por ele controladas do Senegal para a mata do Óio. A missão deles era, sobretudo, fazer abastecimentos em géneros e em material bélico para os combatentes daquela zona. A nossa era evitar que isso sucedesse. Essas infiltrações vinham, nomeadamente, das tabancas Sano, Sonako e Samine, situadas no Senegal.

Além das emboscadas que montávamos, muitas armadilhas foram colocadas naquela zona para obviar a isso (quando ouvíamos bum!, íamos a correr pois devia ser uma vaca que caíu na armadilha). Às vezes, penso que duas vezes no meu caso (em Sambuiá e Senquerem), participávamos em operações do COP 3 de Bigene, comandado pelo tenente-coronel, na altura, Correia de Campos (não, não é o actual ministro da saúde), que foi um herói de Guidage em 1973, muito maltratado depois do 25 de Abril, em minha opinião.

Um dia, creio que em Junho de 1968, o General Spínola foi a Barro e perguntou:

- Vocês já foram ao Senegal? - Eu, e os outros, que não sabíamos o que ele queria, dissemos que não (já tínhamos ido várias vezes a Sano, Sonako e Samine para roubar vacas e queimar casas). E ele disse:

- Então, têm de pensar em ir lá -. E lá fomos mais à vontade. O roubar vacas era uma preocupação, pois era a nossa subsistência. Muito raramente, havia um abastecimento feito pelos fuzileiros através do rio Cacheu. Às vezes, vinha uma Dornier trazer o correio e os chamados frescos. A maior parte das vezes comíamos arroz e rações de combate, ou, então, uma dobrada hidratada que saltava da panela assim que aquecia. Só tínhamos carne quando havia vacas.

Na altura, o General Spínola deu indicação para se dividir a companhia em pelotões de acordo com as etnias (o tirar partido das rivalidades entre eles). Como eu era o alferes mais antigo, o comandante da companhia perguntou-me o que é que eu queria:
- Quero os balantas, disse eu. - E o meu grupo de combate foi quase todo de balantas (tinha um cabo fula, o Mamadu, e três furriéis brancos, além de mim). Ouviam a rádio do PAIGC mas demo-nos sempre bem. Porque eu sempre fiz por isso. Por exemplo: um dia, fui com um que estava doente através da mata até Bigene, porque em Barro não havia médico; emprestei dinheiro a todos, mas todos me pagaram quando me vim embora...

Foi sempre minha preocupação não matar população civil (o tal Alferes Gonçalves terá alguma coisa a dizer sobre isto... lembro-me de uma situação). Mas era difícil, pois a visão e a filosofia da vida deles era diferente. Um dia, por exemplo, foi apanhado no meio de um tiroteio um velho cego.
- Mata! - foi a reacção.
- Não, disse eu - Mas foi complicado.

Numa das tais operações do COP 3, não sei já qual, um guerrilheiro do PAIGC levou uma rajada no baixo ventre e ficou com os tomates pendurados. Disse para fazerem uma maca para o levarem. Fizeram a maca, mas não o quiseram levar:
- Alfero, deixa estar, vem jagudi [abutre] e come ele...
- Não!

Eu e um furriel pegámos na maca e começámos a atravessar uma bolanha com água pelo pescoço. A meio da bolanha, vieram dois e disseram:
-Alfero, a gente pega.

Chegámos à base de operações, onde estava o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira pára-quedista, e, azar, o homem do PAIGC morreu.

Em frente destes, formei o grupo de combate e, porque estava furioso, chamei-lhes todos os nomes. O tenente-coronel Correia de Campos estava de boca aberta. É evidente que nós, os ocidentais, temos uma maneira de ver as coisas, a vida e a morte, de uma forma diferente. Assim como outras, por exemplo, a democracia e a política.

Numa outra situação, houve um deles que ficou com a garganta aberta por um estilhaço de RPG2. Sucedeu mais ou menos a mesma coisa. Mas, com visões diferentes da nossas, era gente muito fixe, amigos. Tenho saudades deles e pena de não me poder encontrar com eles. Vou mandando fotografias e vou contado mais alguma coisas.


A. Marques Lopes

domingo, 5 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P46: Em memória dos bravos de Geba... (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967)...

A CART 1690 esteve na Guiné de Abril de 1967 a Março de 1969. O que vos contei desta companhia adquiri-o através dos dados da "História da Unidade", de alguma pesquisa pessoal e de alguns elementos em meu poder. Mas não terminou este meu trabalho e pode ser que, no futuro, outros elementos que, então, venha a possuir, cheguem ao vosso conhecimento.

Procurei não individualizar críticas, mas, sim, dar exemplos do que se passou e do que aqueles homens passaram e sofreram, tal como outros da nossa geração passaram e sofreram, eu sei. Houve mais operações e acções (como podem depreender pelo "resumo da actividade operacional"), mas aquelas de que vos dei conhecimento foram as mais exemplares desse sacrifício (como dele são exemplo as baixas sofridas, mesmo nos escalões mais elevados).

Sempre que possível, fiz-me acompanhar de um atirador-fotógrafo, que atirou algumas fotografias sempre que pôde. E pôde poucas vezes, é claro, como podem calcular. Algumas das fotografias não corresponderão, provavelmente, às operações relatadas, porque já não as consigo situar, mas servem de ilustração do que era normal em todas elas [vd. também Banjara e Cantacunda].

Era uma zona muito propícia a azares, como têm visto. Também me calhou a mim (não era mais que os outros, claro, apesar de ter estado 24 horas no campo do inimigo... "teve de ser assim", como disse o Comandante Gazela). Um dia, quando ia no caminho de Geba para Banjara, fui ferido (e sortudo, mais uma vez), assim como o soldado Lamine Turé, do meu grupo de combate ; na mesma altura morreu o comandante da CART 1690, que quis ir comigo nessa viagem, o capitão Manuel C.C. Guimarães (tinha 29 anos, era filho de um sargento-ajudante e sobrinho da Beatriz Costa), e morreu o soldado Domingos Gomes, também do meu grupo de combate.

Levei o corpo do capitão, porque me pareceu que estava ainda vivo, e o Lamine, directamente para Bafatá... porque em Geba não havia médico, vejam lá! Não levei o do Domingos Gomes, porque ficou aos bocados, não deu tempo nem tive condições para os recuperar. De Bafatá fui evacuado para o HM241 [em Bissau], primeiro, e para o Hospital Militar Principal,[em Lisboa], passada uma semana.

Lá se foi, pois, o régulo de Geba... (gostei desta, amigo Luís Graça!). Não há relatório desta situação, obviamente, uma vez que não ficou quem o pudesse fazer.

Falar-vos-ei, depois, da CCAÇ 3 [Barro, 1968], onde fui colocado depois da minha estadia no HMP, embora dela não tenha senão a minha lembrança e as fotografias que um outro atirador-fotógrafo teve oportunidade de atirar.

Estive quase uma semana no Arquivo Histórico Militar, em Santa Apolónia, mas nada consegui de documentos sobre ela. Era uma companhia de naturais da Guiné e é possível que, com a independência, muita coisa se perdesse (ou fosse destruída). Mas ainda não explorei o Arquivo Geral do Exército, nem para a CCAÇ 3 nem para a CART 1690, e pode ser que, quando o fizer, consiga mais alguma coisa, quer de uma quer de outra.

Só consigo falar destas experiências convosco e com os que estiveram comigo, porque sei que as compreendem, pois as tiveram como eu tive. Não com a família, não com os amigos que por elas não passaram. Sinto que para estes é um peso ou algo irreal, alguns pensam, até, que estou a pintar. Não, para estes custa-me falar disto, tenho procurado não o fazer. É com tristeza que sinto em alguns um certo desinteresse.

No entanto, e por isso, talvez, sinto também que deve ser feito um esforço para fazer ver a todos o que foi a guerra colonial para mais de um milhão de jovens que por ela passaram, naqueles que deveriam ter sido os melhores anos das suas vidas, mas onde, ao invés, 8.290 morreram; onde, ao invés, milhares ficaram feridos, 30.000 destes com deficiências físicas; e onde, ao invés, 140.000 ficaram afectados psiquicamente (dados do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra). E os pais, e os filhos, e as mulheres deles, que também foram afectados.

Esta juventude perdida estupidamente devia merecer mais atenção e consideração. Felizmente, por alturas das comemorações da revolução dos cravos, a Associação 25 de Abril costuma ser convidada por algumas escolas e fala sobre estas coisas. Por exemplo: no passado dia 30 de Maio, estivemos com os alunos da Escola Secundária do Padrão da Légua, em Matosinhos, num debate sobre a guerra colonial.

Com muita estima e consideração.
A. Marques Lopes

Anexo- Resumo da Actividade Operacional da CART 1690

Operações (com nome de código) ...................49
Operações (com nome de código) com PCV (*)........12
Patrulhamentos..................................1561
Emboscadas........................................36
Outras acções....................................442
Total de acções realizadas......................2100

(*) Posto de Comando Volante

Guiné 63/74 - P45: Sinchã Jobel VII (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes:


O Alferes Fernandes, referido no relatório que se segue, foi, mais tarde, substituído pelo Alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o Aznavour, por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda (ver relatório).

O soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate, ficou nesta operação. Mas a história toda foi-me contada pelo Comandante Gazela [do PAIGC ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês Dr. Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.

Depois desse tratamento foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o Comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC -, "posso voltar para casa".

Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra.

Depois desta operação, aquela zona foi considerada ZLIFA (Zona Livre de Intervenção da Força Aérea), isto é, só os T6 e os Fiat é que passaram a voar para lá para despejarem toneladas de bombas e napalm sobre a floresta que rodeava a clareira de Sinchã Jobel. Sem grande efeito prático, pois as bombas rebentavam no cimo das copas das árvores, deixando praticamente intactas as partes no solo. E a guerra continuou...

Em 1998, o Comandante Gazela confidenciou-me que, naquele dia 24 de Junho de 1967, eles não se aperceberam que eu tinha ficado na bolanha. Só o souberam dois dias depois, quando o Suleiman Baldé, chefe dos milícias de Sare Madina, lhes disse que me tinha emprestado uma bicicleta.

Este Suleiman Baldé, embora nas milícias, era do PAIGC e acabou por ser morto mais tarde pelas NT. Quando consegui sair de Sinchã Jobel, no dia 25, cheguei a essa tabanca de Sare Madina e foi, de facto, o Suleiman Baldé que me emprestou uma bicicleta. E foi de bicicleta que cheguei à sede da companhia, em Geba.

Fui chamado, depois, ao Comando do Agrupamento. Primeira preocupação dele: se eu tinha trazido a G3... e, não sei se a sério se a brincar, “há um problema, é que você passou 24 horas no campo do inimigo”… Não fiz boa cara, com certeza, pois o Comandante do Agrupamento teve de sorrir e disse-me: "Você, agora, tem aí história para contar num livro”. Não sei quando ele aparecerá, mas estou a trabalhar para isso.

Uma reflexão: na Guiné, e estas operações são prova disso, quem fez a maior parte da guerra dura e prolongada não foram as tropas especiais (sem pôr em causa o seu valor), mas sim o sacrificado Zé Soldado, isolado no mato, sem farras em Bissau, pau para toda a colher e, as mais das vezes, sacrificada carne para canhão.


“22. Op Invisível. 16 de Dezembro de 1967

“Situação particular:
Em face das acções realizadas sabe-se que o IN actua no regulado de Mansomine onde possui a base de Sinchã Jobel.

“Missão:
Executar uma batida nesta região tentando desalojar o IN.

“Força executante:

Dest A – CART 1742, a 2 Gr Comb.

DEst B - CART 1690 a 2 Gr Comb ref. c/ 1 PEL MIL 110 / C MIL 3


“Desenrolar da acção:
"Em 18 de Dezembro de 1967, às 22H00, as forças intervenientes saíram auto transportadas de Geba em direcção a Sare Gana, progredindo em seguida apeadamente em direcção a Ganhagina, que atingiram em 19 , às 04H00. Não se pôde efectuar a cambança da bolanha nessa altura, em virtude do guia não conhecer o caminho, para atingir a bolanha pelo que as forças intervenientes se instalaram, montando a devida segurança.

“Pelas 06H00 as forças intervenientes iniciaram novamente a progressão à bolanha, que atingiram pelas 07H50 hora a que se iniciou a cambança da mesma. Nesta altura foram avistados elementos IN em cima de árvores, pelo que se tomaram as devidas medidas de segurança para a travessia da mesma. A cambança terminou às 08H50, iniciando-se em seguida a progressão à base de patrulhas. Cerca das 11H50 fez-se um alto, devido novamente ao guia se ter perdido e precisar de se orientar. Foi destacada1 Secção reforçada para fazer a protecção ao guia, enquanto a restante força interveniente montava segurança no local de estacionamento.

“Às 12H45 iniciou-se novamente a progressão à base de patrulhas que foi atin- gida às 15H52. Nesta altura ouviram-se vozes de elementos IN, o que levou as forças intervenientes a supor que o IN se encontrava instalado naquele local. Devido a este facto a missão foi alterada e estabeleceu-se que o Dest B faria o assalto ao objectivo enquanto o Dest A faria a detenção do IN. Para o assalto ao acampamento IN o Dest B nomeou 1 Gr Comb, enquanto o 2º. Gr Comb faria a protecção ao 1.º e serviria de reserva.

“Estabeleceu-se também o ponto de reunião das forças intervenientes. Quando o 1º GR Comb progredia em direcção do acampamento IN, foi emboscado e surpreendido por um súbito desencadear de intenso e nutrido fogo IN. Tentou anular-se o mesmo reagindo as NT fortemente. Como o 1° Gr Comb fosse o que nessa altura se encontrasse mais submetido ao fogo IN, veio o2º Gr Comb em auxilio do primeiro, mas o mesmo foi atacado pela rectaguarda e, portanto, não pode proteger a retirada do primeiro.

“Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes. Verifiquei que nessa altura já o Dest B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º. Cabo Sousa da CART 1742 (que estava a fazer fogo com a ML MG-42), soldado metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos.

“Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda, e quando o puxava pêlos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante comprido (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal, tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar. Quando retirava em direcção ao ponto de reunião, encontrei uma secção da CART 1742, e 4 soldados da minha Companhia que me informaram ser impossível entrar em contacto com a CART 1742, enviei 5 soldados desta última Companhia afim de averiguar tal impossibilidade, enquanto se montava a segurança com os restantes elementos. Logo após esses 5 Soldados regressarem, fui informado que a CART 1742 já retirara. Devido a tal e uma vez que o IN já nos estava a envolver, iniciei a retirada em direcção à bolanha.

“Durante a retirada fomos constantemente perseguidos pelo IN que disparava incessantemente rajadas de armas automáticas ligeiras e metralhadora pesada, além de encontrarmos diversos elementos IN já instalados ao longo do caminho que conduzia à bolanha e que fez com que este grupo tivesse que atravessar a bolanha num local diferente do que inicialmente estava previsto, e que batiam o caminho por onde nos deslocávamos.

“Quando atravessámos a bolanha o IN bateu a mesma com granadas de morteiro 82 (algumas das granadas estavam equipadas com espoleta de tempos), rajadas de armas pesadas, ligeiras e roquetadas, tendo o mesmo entrado na bolanha em nossa perseguição, e ainda após concluída a travessia depararam-se-nos alguns elementos IN instalados deste lado da bolanha. Conseguimos, no entanto, fazer a travessia da mesma e iniciarmos a progressão em direcção a Sare Ganá, que atingimos às 21H00.

Chegados a Sare Ganá, verifiquei que a CART 1742 já aí se encontrava e que faltavam 16 elementos da minha Companhia e 1 elemento da CART 1742. [estes militares foram recuperados no dia 21 de Dezembro de 1967, durante a Op Invisível II, realizada com esse objectivo] .

“Resultados obtidos:


Baixas sofridas pelo IN: Mortos confirmados 14; numerosas baixas prováveis.»

Guiné 63/74 - P44: A estória da cabra do mato e do prémio Governador Geral (David Guimarães)

Uma estória do David J. Guimarães, passada no Xitole, nos primeiros tempos da comissão da CART 2716 (1970/1972).

Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:

- Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar

Os morteiros fixos lá fazem fogo de barragem. Novamente os experientes homens de armas pesadas. E que eficientes! Como eles faziam aqueles morteiros dispar tão amiúde e certeiro... Cessar fogo, tudo silêncio à volta, fora os abutres que logo foram ver o que acontecia.

- Que aconteceu? E agora... Estará alguém ferido ? O que aconteceu ? O que vamos fazer ?

Nenhum deles disse nada... mas voltaram depressa. E nós nem percebíamos ainda porque que é que eles voltaram assim tão rapidamente... Bem, lá regressa, da patrulha, o 1º Grupo de Combate. Ofegantes, e agora dentro do aquartelamento esboçando sorrisos, todos pretos... Que coisa, sempre que havias tiros ficava-se todo preto!

- Que aconteceu ???

Lá vem a explicação: o grupo estava a instalar-se, para um tempinho em posição de emboscada. Uma cabra de mato passa em frente... Um soldado diz para o Alferes muito baixinho:
- Alferes, cabra de mato!
- Atira-lhe, responde o Alferes… Há rico tiro, pum, pum!!!

E não é que o IN estava lá emboscado, do outro lado da cabra ? Seriam poucos, mas ao sentirem-se detectados deram uns tiros e fugiram, pois que entretanto também começaram a cair bem perto as granadas do morteiro do aquartelamento....

- Manga de cu pequenino…
Olha que sorte, a santa cabra do mato! ... Foi ela, afinal, o nosso anjo da guarda. O Correia voltou com o seu grupo de combate inteiro e o soldado que detectou a cabra... herói. Mais tarde foi-lhe proposto e concedido o prémio Governador Geral. Todos achámos muito bem, veio à metrópole. Se não fora assim, nunca iria lá de férias, porque não tinha dinheiro para isso...

Ninguém soube se a cabra morreu ou não, mas os homens, depois de contados, estavam todos... E os abutres também voltaram ao aquartelamento e continuaram a comer o que restava da vaca morta nesse dia...

A guerra tinha disto também, e ainda bem... Como entendê-la ? Só um combatente... Este era o nosso tempo de recreio de guerra dentro da guerra.

David J. Guimarães