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sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24587: Notas de leitura (1609): "A Guerra e a Literatura", por Rui de Azevedo Teixeira; Vega, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Os trabalhos de investigação assinados por Rui de Azevedo Teixeira sobre literatura e guerra colonial são hoje obras de referência a que podemos juntar aos trabalhos de Aniceto Afonso e Carlos Vale Ferraz e igualmente a João de Melo, cobrem essencialmente obras publicadas até à década de 1990. Infelizmente, depois destas obras atrás mencionadas, não há levantamentos a não ser parciais, nenhum trabalho de conjunto, estou em crer que mais nenhuma tese de doutoramento sobre seis décadas de literatura. Da minha banda, procurei fazer o levantamento da literatura da guerra da Guiné e fiquei-me em 2012, e tenho o pesar de constatar que poucos trabalhos grandiloquentes, referenciais, vieram depois, o que talvez signifique que a idade não perdoa e os trabalhos de investigação universitários andem longe de nós.

Um abraço do
Mário



A Guerra e a Literatura, por Rui de Azevedo Teixeira

Mário Beja Santos

A obra "A Guerra e a Literatura", por Rui de Azevedo Teixeira, Vega, 2001, vem na sequência de uma obra que ainda hoje é uma referência do estudo da literatura da guerra colonial, "A Guerra Colonial e o Romance Português". Desta vez o investigador envereda por novas temáticas e analisa obras de três escritores que vinte anos depois da publicação deste ensaio se mantêm ativíssimos e nalguns casos batendo ruidosamente à porta da guerra colonial, como é o caso de Carlos Vale Ferraz.

Ele vai destacar a violência associada à guerra, observando:
“Desde a Antiguidade, a guerra é vista, por um lado, como inevitável, como força nua que determina os destinos dos povos e como teste à dureza masculina; por outro lado, é considerada como perigo para a humanidade e atacada pela sua crueldade e poder de destruição".

Era inevitável citar o general prussiano Karl von Clausewitz:
"A guerra não é meramente um ato político, mas sim um autêntico instrumento político, uma continuação da atividade política, uma realização da mesma utilizando meios diferentes”.

E, portanto, a guerra é habitação obrigatória da literatura, na maior parte dos seus modos e géneros:
“O conflito armado de grandes proporções irrompe na narrativa, no drama, na lírica, instalando-se no conto, na novela, no diário, no poema, na peça de teatro e, com especial à vontade, na epopeia e no romance”.

E elenca títulos de diferentes épocas onde a guerra é prato de substância até chegarmos ao século XX, como ele diz o das maiores matanças militares, e o autor considera haver duas grandes atitudes literárias em relação à prática bélica: a mística da guerra e o ataque frontal ao fenómeno de guerreiro. Praticamente, os grandes escritores de âmbito universal estiveram sempre fortemente seduzidos pela temática bélica, ele alarga-se em exemplificações que vão desde a extrema-direita à esquerda francesa, lembra-nos Eric Maria Remarc, Ernest Hemingway, Norman Mailer, James Jones. Com a agonia da guerra clássica, diz ele, os romances de guerra tornam-se basicamente em azedos romances de antiguerra. O poder nuclear não tem heróis lendários, os seus criadores são cientistas que muitas vezes vêm deplorar as suas criações.

E temos agora propriamente a literatura da guerra colonial, e ele encontra três substantivos para a rotular: orgulho, culpa e nostalgia. Sintetiza o díptico contrastivo, entre esquerda e direita (à esquerda, Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre ou Álvaro Guerra) e os apoiantes do império (Couto Viana ou Alpoim Calvão). Fala também de passadistas como Reis Ventura, Couto Viana, Pedro Homem de Melo, o primeiro Manuel Barão da Cunha, Amândio César, Armor Pires Mota. Emerge uma literatura de protagonistas alferes, anticolonialista e muitas vezes pacifista e anota que a atitude desta literatura é exatamente contrária à que vai dominar na produção literária africanos lusófonos que tratam a guerra de libertação nacional.


Quem escreve? Um oficial comando como Carlos Vale Ferraz, fuzileiros como Alpoim Calvão e Modesto Navarro, Álvaro Guerra, ferido em combate, Manuel Alegre, combatente e desertor, os que não combateram diretamente como Assis Pacheco, Lobo Antunes ou João de Melo. Há os que não tendo estado em África como militares escreverão sobre a guerra, caso dos já não pertencentes à geração combatente: Fernando Namora, Sttau Monteiro, Cardoso Pires, Mário de Carvalho, José Manuel Mendes; os que estiveram em África mas que não usaram o camuflado: Reis Ventura, Amândio César, Couto Viana, António Quadros ou Rui Knopfli; e as mulheres como Olga Gonçalves, Maria Velho da Costa, Lídia Jorge, Wanda Ramos.

Destaca títulos: "O Capitão Nemo e Eu", de Álvaro Guerra; "Lugar de Massacre", de José Martins Garcia; "Os Cus de Judas", de Lobo Antunes; "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz; "A Costa dos Murmúrios", de Lídia Jorge; "Jornada de África", de Manuel Alegre.

O seu estudo centra-se em três autores: Lídia Jorge e A Costa dos Murmúrios; quatro livros de Carlos Vale Ferraz com destaque para "Nó Cego"; e João de Melo em "Autópsia do Mar de Ruínas".

Disseca o trabalho de Lídia Jorge para concluir que a guerra colonial não tem bode expiatório, o combatente tem uma mínima parcela de responsabilidade negativa, a trama do romance que se passa no Índico tem a ver com um império que morre. Destaca em "Nó Cego" um saber prático da máquina de guerra portuguesa e da arte da contraguerrilha, o escritor bateu-se em Angola, Moçambique e Guiné, participou em operações que fizeram história, a figura central é um capitão, formou uma equipa coesa, um conjunto de centuriões, homens disciplinados e dedicados. O autor, com as suas sucessivas comissões, começa a aperceber-se de que na guerra do Ultramar Portugal é o agressor que teima em não reconhecer que o Império vai contra o tempo. A companhia do capitão é uma unidade ofensiva que participará na Operação Nó Górdio, será ponta de lança no assalto à base Gungunhana, um comandante-chefe sonhou em envolver todos os seus efetivos para destruir a Frelimo e o que aconteceu é que a Frelimo deixou as bases vazias e imiscuiu-se em novos territórios, alastrou a guerra de contraguerrilha. Rui de Azevedo Teixeira fala de outros livros de Carlos Vale Ferraz para enfatizar que o que está em causa é o herói militar batido pela História.

Finalmente, João de Melo, "Autópsia do Mar de Ruínas". Estamos em Calambata, norte de Angola, há quartel e sanzala, por ali deambula o furriel-enfermeiro Pacheco, João de Melo por excelência, é ele o cronista do universo da sanzala de Calambata, onde várias vozes em interferência, lá aparecem heróis revolucionários, mas o que objetivamente assalta da crónica é que estamos a assistir a um mundo em decomposição:
“As personagem de autópsia articulam-se de forma limpa com os espaços do romance que, como qualquer espaço, tem os seus traidores e os seus heróis – e ambos traduzem o sentido final marxista e pró-independentista da narrativa, estamos no norte de Angola no dealbar da década de sessenta”.

A apreciação de Rui de Azevedo Teixeira ao conjunto da obra, onde se fala de uma guerra em que ao guerreiro invisível e virtuoso de opõe o militar visivelmente vicioso, é duríssima:
“Autópsia é um romance morto cujas rescritas-reanimações falharam e cuja autópsia mais não pode ser de que um mero exercício crítico de manutenção”.

Deixa uma observação curiosa no final do seu trabalho:
“Porquê esta imagem negativa do português e do seu esforço de guerra e de fomento? Porquê esta mudança radical de paradigma imagiológico em relação ao corpo literário anterior? Fico-me por razões essenciais. Em primeiro lugar, porque, desabada a ditadura, vem a desforra, o pêndulo viaja até ao outro extremo. Depois, porque é uma literatura que, sustentada numa base emocional de culpa, se autopune, faz autoflagelação, masoquismo. Em terceiro lugar, porque é fundamentalmente uma literatura de alferes e de furriéis – e de mulheres de alferes. Esta última razão merece alguma demora explicativa. Tendo sido alferes e furriéis milicianos a maioria dos que romancearam a guerra de África, é natural que sofressem de incultura militar – o miliciano é um amador, não é um profissional da guerra. A incultura militar desses milicianos impede-os de entenderem, em profundidade, a natureza da guerra de guerrilha em que participavam, estando-lhes vedada a compreensão das estratégias e contra-estratégias, das táticas, das guerrilhas e das éticas”.

Abre exceção para a obra "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz, pois que era um capitão do quadro permanente, um profissional.

Obra a juntar ao acervo de documentos que escalpelizam a literatura da guerra colonial.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24574: Notas de leitura (1608): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24549: Notas de leitura (1605): "O Elogio da Dureza", por Rui de Azevedo Teixeira; Gradiva Publicações, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se inegavelmente de uma surpresa, pelo assombro como desvela a intimidade, por descrições duríssimas, é muito difícil não acreditar que tudo isto que ali se escreve não vem da experiência vivida. Sabe-se que Rui de Azevedo Teixeira combateu em Angola, é doutor em Literatura Portuguesa, ensinou em universidades europeias e africanas e no seu currículo há obras de grande importância como A Guerra Colonial e o Romance Português: Agonia e Catarse ou O Fim do Império e a Novelística Feminina e também A Guerra de Angola: 1961-1974. Não custa crer que o autor entendeu que este legado de crueza e terror é importante para que as novas gerações recebam agora o que nos aconteceu há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário



O terror puro e duro para iluminar a noite interior

Mário Beja Santos

Rui de Azevedo Teixeira nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim. Combateu em Angola. É doutorado em Literatura Portuguesa e ensinou em universidades europeias e africanas. Organizou os congressos internacionais sobre a Guerra Colonial (Instituto de Defesa Nacional, 2000) e a Guerra do Ultramar (Fórum Cultural do Seixal, 2001). Sobre o conteúdo do livro, Rui de Azevedo Teixeira deixa no ar: “Será Vila Velha do Mar a Póvoa ficcionada? E qual é a aldeia? E as personagens da vila e da aldeia, transfigurados pela ficção, serão alguns dos professores e estudantes do Liceu do fim dos anos 60 ou princípios de 70? São reconhecíveis? O jogo literário de quem é quem puxa pelas memórias saudosas dos leitores”, explica.

É um romance singular no amplo contexto da literatura da guerra colonial este "O Elogio da Dureza", Gradiva Publicações, 2021. Paira a sombra da autobiografia, o rasgar da intimidade de alguém que descobre que é filho ilegítimo de pai incógnito. Sabemos que na juventude muito leu, autores de diferentes proveniências e que cedo começou a escrever um diário incerto, mau aluno até chegar ao fim do Liceu, aí desabrochou; os estudos em Coimbra não o mobilizaram, Paulo de Trava Lobo Ferreira oferece-se como voluntário, lega-nos páginas manuscritas onde fala do padrasto, gente com quem se relacionou, as obras que leu. Salta no tempo, já regressou da guerra em Angola, onde viveu o último capítulo.

“Vivia entre dois tempos e dois espaços, entre o recentíssimo passado angolano e o presente português. Um tempo misturado em que a componente angolana dominava. Mesmo com as obsessivas leituras, mesmo com o processo revolucionário em curso, ainda assim eram as recordações de Angola que mais lhe ocupavam a cabeça. Pensou até em voltar lá como mercenário, numa empresa de um almirante comunista, para lutar pelo MPLA. Um mercenário marxista leninista?! Baralhado, largou a ideia, substituindo-a por outra, por uma vida também dedicada à violência”.

Os problemas familiares acentuam-se, reencontra-se com gente dos Comandos, convém não esquecer que estamos perante um oficial Comando, com prestação assinalável na contraguerrilha. E de novo regressamos a Luanda, salto diacrónico, Paulo está a chegar à guerra, fala-nos do violentíssimo curso de Comandos, provas brutais, tudo minuciosamente contado para se perceber como se cria um militar disciplinado, uma máquina de combate. Nos momentos de ócio, desce até à cidade de Luanda, anota o seu fervilhar:
“Circulavam miúdas e miúdos pretos com olhos brilhantes como refletores e sorrisos imensos. A estragar a alegria do quadro, os pretos descalços e os pretos de calções e os pretos de roupa rota e os pretos servis e os pretos com medo. Mas havia também um ou outro preto bem vestido e integrado no sistema colonial. E tropa e mais tropa. Soldados da pacaça em grupos de três e quatro, sem aprumo, com mal ajangadas fardas número dois e até com camisas de camuflado. E, de vez em quando, passavam os raros e orgulhosos Comandos de farda número dois, com cinturão, crachá ao peito e dístico no ombro esquerdo, calças e camisa de manga curta bem passadas e as mãos atrás das costas”.

Fala-se de comezainas, de sexo, caminhamos para a vida operacional, já temos os Comandos formados. Volta-se inopinadamente ao processo revolucionário, sabe-se que Paulo detesta os comunistas e esquerdistas e dentro deste processo diacrónico voltamos ao Paulo operacional, e aqui o autor esmera-se, a partir do Luso entramos diretamente na Operação Empurra Tudo, vamos assistir a homicídios com faca, escalpes, chegou a hora do puro horror: “Meteu então a faca na barriga do velho e fê-la girar lá dentro como o corno do motor numa colhida. O velho gritou. Paulo e Ferro viraram-se e ainda o viram a ser degolado. O meio bóer deu um pontapé no cadáver fresco do velho, antes de se dirigir para a bicicleta. Enlouquecido de violência, esfaqueou o selim, os pneus e até o farol. Paulo viu, então, junto a uma árvore, sentado, imóvel, uma mulher com um bebé que mamava regaladamente. Ambos miraculosamente ilesos. Paulo ordenou a Ferro que acabasse com os feridos graves. Antes da saída do quartel, tinha visto o furriel a raspar a ponta das balas no chão de cimento à entrada da secretaria. Em segundos, três tiros. As balas atravessaram as cabeças aos trambolhões e saíram levando pedaços de cada uma. Miolos à mostra”.

A operação prossegue, dão-se mais tiros de misericórdia a moribundos, descobrimos que há uma ética: “Os Comandos não abandonavam inimigos feridos. Deixados vivos, ficariam a morrer aos poucos, gritando de dor, antes de serem comidos e passados a esqueleto e a fezes de animais”. Havia, pois, tiros de misericórdia. Entre as operações Paulo leva uma rica vida com a amante e a criada da amante, tudo isto na zona militar leste. Ficamos a saber que nas dez operações dos primeiros quatro meses o corpo de combate de Paulo e os vinte e cinco mortos confirmados. Por vezes as coisas correm para o torto, mas mata-se muito mais do que se sofre. Mas Paulo está a mudar. “Paulo começava a dividir-se, a cindir-se mesmo, entre o idealismo imperial e a justiça histórica. Amava criticamente a História de Portugal e o Império, mas os angolanos já eram crescidos, tinham todo o direito a sair de casa. Todo o direito a serem independentes”. Do Leste irá partir para outro local, o Mayombe, mas, entretanto, damos outro salto diacrónico, voltamos ao processo revolucionário em curso, virá o 25 de novembro, Paulo volta aos estudos, torna-se bacharel, percorrerá vários lugares a dar aulas.

"O Mayombe, floresta equatorial ainda mais impenetrável do que as florestas tropicais, era o absoluto oposto à que agora parecia a Paulo a simpática savana”. Numa operação descobre-se um depósito de armamento, Paulo não sentiu orgulho, apenas sorte, e depois vem o grande combate, o inimigo atacava, eram da FLEC. “Chamou a atenção de Paulo um carregador furado e um cadáver de barriga para baixo. Pegou no carregador e foi tirando as balas. Encontrou o que procurava – a bala furada por uma bala dos Comandos. A bala da G3 acertara em cheio fazendo um buraco perfeito no cartucho da bala de Kalashnikov. Paulo guardou a bala furada, passou a ser o seu talismã”.

Veio o 25 de Abril, o bacharel irá fazer mais estudos, o professor Paulo Lobo tem destino universitário. De novo saltamos para o fim da guerra, quando ele se encontrava especificamente em pré-desagregação, regressa à pátria. Toda esta noite interior parece chegar à irradiação da luz, conhece o amor, dá-se a doce domesticação de Paulo, é já assistente estagiário do porto e acaba por descobrir, graças à mulher, que era filho de sangue do capitão Antero Gomes Ferreira. Não fica contente com aqueles pais que nunca se interessaram pelo seu sofrimento. E decidiu nunca mais voltar a falar com os pais. É uma irradiação de luz feita de trevas. Romance singular, está comprovado, percebe-se este elogio da dureza, é memória que não se apaga, talvez por isso a catarse da escrita, de indiscutível qualidade.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23171: Notas de leitura (1437): "Os Forjanenses e a Guerra Colonial", organização de Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá; edição da Junta de Freguesia de Forjães, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
A saga destes forjanenses merece a nossa atenção. Não é a primeira vez que uma Junta de Freguesia estende a mão aos antigos combatentes. No caso vertente, o Coronel Coutinho de Almeida contou com um credenciado publicista, Carlos Gomes de Sá, e lançaram-se nesta empreitada na recolha dos testemunhos, o resultado é um sucesso, vem sempre ao de cima o sentido da identidade local, onde quer que o militar chegue pergunta se há gente de Esposende ou Viana, por exemplo. São testemunhos comedidos, nada de jactâncias, vaidadezinhas ou azedumes que ficaram para o resto da vida. Todos deploram ao que a Guiné chegou e à inutilidade daquela guerra. E é profundamente comovente ver estes velhos combatentes nalguns casos abraçados às mulheres e até às suas mães. Uma edição exemplar que todas as autarquias deviam conhecer.

Um abraço do
Mário



Memórias insuperáveis, a historiografia as saiba escutar (2)

Beja Santos

É um belíssimo, inolvidável, trabalho de recolha junto de antigos combatentes ligados à freguesia de Forjães (concelho de Esposende), a organização pertence a Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá, a edição é da Junta de Freguesia de Forjães, 2018. Não conheço nada de tão tocante, tal é o vigor do testemunho entre os vínculos locais e, em inúmeros casos, uma saudade guineense que não secou. Como é evidente, os testemunhos recolhidos são amplos, estes forjanenses e suas famílias falam da Índia, da guerra de África mas também de São Tomé e Príncipe, Timor e outras paragens. O que aqui se regista, obviamente, circunscreve-se à Guiné, mas desde já se adverte o leitor que se sentirá gratificado com a leitura de todos estes testemunhos, esta memória é aparentemente regional, não haja ilusões, mas estamos lá todos nós.

Temos agora o soldado Carlos Alberto Maciel Martins Gomes, fez a sua comissão na Guiné entre 1968 e 1970. Os vínculos locais afloram imediatamente, acaba de chegar a Bissau e logo se estabelece uma identificação com a terra de onde vem, aparece um soldado que lhe diz: “Ó Meira, também estás por aqui? Era o Sr. Manuel Neiva, o homem da Marta da Porcena. Era marinheiro. Nós seguíamos para cima, para Bambadinca. Também vi o Armindo da Gena”. Seguiram para Contuboel e Sare Bacar, confessa que os meses iniciais foram muito difíceis, refere o desastre da jangada no Cheche, no início de fevereiro de 1969. É comedido nas suas considerações, de como viveu e se adaptou. Adorava jogar futebol, apelidavam-no por “Pedro Gomes”, o defesa lateral direito do Sporting. Ajudava na horta. Regressou e procurou arranjar trabalho em França. Inserção difícil, teve pesadelos, sonhava que ainda estava na guerra.

Carlos Alberto Brochado de Almeida foi furriel miliciano entre 1967 e 1969, ficou adstrito à CART 1661, cujo primeiro-comandante foi o arquiteto Luís Vassalo Rosa. Desembarcou e foi colocado em Porto Gole, onde se encontrava o Pelotão de Caçadores Nativos N.º 54, a que pertencia. “Embora integrado numa Companhia de Artilharia, o meu grupo era um Pelotão de Soldados Nativos comandados por um Alferes teoricamente auxiliado por três Furriéis. O Pelotão de Soldados Nativos era um grupo heterogéneo formado por Balantas, Fulas, Futa-Fulas, Mandingas e Papéis. Cristãos eram alguns dos Papéis oriundos da ilha de Bissau. Apesar da sua heterogeneidade, o pelotão era um grupo coeso onde não havia fronteiras de relacionamento entre brancos e nativos. O segredo desta boa relação alicerçou-se, basicamente, no nosso respeito pela cultura de cada etnia e no tratamento de igualdade que havia entre todos os membros”. Não esquece uma flagelação ao quartel numa noite de abril de 1968, 45 minutos de fogo infernal. Ao fim de 18 meses, o furriel Almeida foi transferido para o Quartel-General, trabalho de secretaria. “Foi ali, durante seis meses, que vi a outra face da guerra: a dos papéis, a das cunhas, a das contrapartidas, mas também a das noites dormidas sem a arma à cabeceira da cama”.

O soldado José Boucinha da Cruz, condutor auto, esteve na Guiné entre 1970 e 1972, colocado na CCS do Batalhão de Bissorã e temos mais uma história de vínculos locais: “Fora, fazíamos segurança às colunas que traziam os géneros de Mansoa, onde os íamos esperar. Cada vez que lá ia perguntava sempre se havia por lá militares de Esposende, Barcelos ou Viana. Foi assim que encontrei o Carlos do Rogério, que me apresentou o Guilherme Pimentel e que viria a casar com a sua prima Lúcia Torres. Noutra ocasião em Bissau, encontrei o Couto dos Santos, que estava na Marinha e que andava a estudar. Encontrei também o Baltazar Costa, que estava de férias em Bissau. Por lá também me cruzei com o falecido Ascânio, de Antas (que foi guarda-redes do Forjães) e com o filho do moleiro da Azenha do Grilo, de S. Paio”. Não sendo operacional, escasseava-lhe o tempo livre, tinha de fazer a limpeza do Depósito de Géneros. É tocante o final do seu depoimento: “Quando cheguei a casa, o meu pai não estava. Tinha ido a Barroselas com o Zé Matos para me ir esperar. Estava só a minha mãe e que alegria que ela sentiu quando entrei em casa. Quando o meu pai chegou, mandou deitar uns foguetes. Eu estava à mesa a comer e, quando começaram a rebentar, mandei-me para debaixo da mesa, ainda com a ideia dos ataques. Casei em 9 de Dezembro e dali a uma semana fui com a minha mulher a Santa Maria Adelaide oferecer o vestido de casamento, como promessa de eu ter voltado vivo da guerra. Em termos de camaradagem, vimos lá momentos muito bons. Vou sempre aos encontros anuais do meu batalhão 2927. E, de há seis anos para cá, em Forjães, eu e o Albino do Firmino organizamos, anualmente, o encontro dos combatentes da Guiné. Há uma missa cantada, uma romagem ao cemitério para depor um ramo de flores pelos que já faleceram. E nunca nos esquecemos de ir a Aldreu, deixar também um ramo de flores na campa do António Amorim Torres, que faleceu na Guiné”.

José Carlos Ribeiro da Fonseca faz a sua comissão de 1970 a 1972, é furriel miliciano, vagomestre, pertenceu à Companhia de Caçadores Nativos 15. De Bissau segue para Bolama, para o Centro de Instrução Militar, logo se pôs à procura de alguém de Esposende ou Viana. Encontrou o Fernando Macedo (Ferreiro), bem como o seu chefe, um natural de Carvoeiro, seu colega na escola em Viana. Foi integrado na Companhia Balanta. Em 3 de março de 1970, partem para Mansoa, ficam junto do BCAÇ 2885. Numa coluna, em Safim, encontrou-se com o Jorge Gomes. Construiu um bom relacionamento com o Capitão Mário Tomé. Em 27 de março tem o seu batismo de fogo, um ataque a Mansoa com misseis terra-terra. No fim de maio chega-lhe a notícia do nascimento da filha. Vê chegar a Mansoa o Joaquim Luís e o Ascânio, seu amigo de S. Paio de Antas. Vêm de férias e no regresso apercebe-se do endurecimento da luta, o alcatroamento de Mansabá a Farim foi trabalhoso. Assiste à rendição do Batalhão 2885 pelo Batalhão 3832. Refere o ataque de 9 de junho de 1971 a Bissau e os muitos confrontos em patrulhamentos dentro da zona de ação. Regressou a 28 de janeiro de 1972, diz não ter experimentado perturbações de ordem psíquica ou física, o que gostou foi o frio do inverno. “Mas o meu tempo após o regresso foi muito difícil no âmbito familiar, porque a minha filha, já com vinte meses, não me conhecia de lado algum, fugia a qualquer contato comigo e, embora a mãe tudo fizesse para explicar quem eu era, só reconhecia o avô materno com quem conviveu desde o nascimento”.


O Coronel Luís Gonzaga Coutinho de Almeida entre o autarca da Murtosa e um elemento da GNR
Mário Leitão, escritor limiano, que se associou a este empreendimento
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23159: Notas de leitura (1436): "Os Forjanenses e a Guerra Colonial", organização de Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá; edição da Junta de Freguesia de Forjães, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23170: Humor de caserna (48): o major art José Joaquim Vilares Gaspar, o "Gasparinho", visto por Salgueiro Maia: loucura ou contestação do sistema?

1. Trancrição de um excerto do poste P3262 (*), da autoria do nosso saudoso amigo, Leopoldo Amado (1960-2021), historiador guineense,  vítima da pandemia de Covid-19:


(...) O exemplo mais sonante de loucura, traço muito comum à literatura de guerra colonial, é-nos dado por Salgueiro Maia, ao referir-se à caricata figura do major Gaspar, cuja irreverência abeirava-se da loucura, aliás, motivo pelo qual acabou ser hospitalizado:

(...) o major Gaspar vai comandar o CAOP 2 em Mansabá, onde, dando boa conta do recado, é solicitado para se deslocar a Bissau, à reunião semanal do Com-Chefe, onde deveria ser salientado o seu compor­tamento. Só que a coluna que, vinda de Farim, o devia transportar a Bissau nunca mais chegava. 

Farto de esperar, avança para Mansoa só com o condutor, percorrendo um itinerário onde eram frequentes as emboscadas, pois passava ao lado do Morés. À sua chegada a Mansoa, umas centenas de elementos da população agitam-se, pe­gando nas suas mercadorias com vista a ocupar lugar na coluna. Aí, o major Gaspar acha conveniente mandar parar o jipe. A população acerca-se e ele explica: 

«Meu povo, permaneçam mansos, porque a coluna ainda não vem aí, só vem o Gaspar.» 

Continua só em direcção a Bissau. Começa por visitar os seus amigos páras à entrada da cidade, depois o seu amigo director do Hospital Militar, os seus amigos comandos, etc. 

Entra em Bissau feliz e, desejando dar saída à sua alegria, descobre que o único sítio da Guiné onde havia uma peanha para um polícia dirigir o trânsito tinha um PSP guineense, que o major Gaspar considerou estar a fazer mal o seu trabalho. 

Fez parar o jipe ao lado da peanha e fez sair o polícia do sítio e, de pistola-metralhadora ao pescoço, o major Gaspar foi dirigir o trânsito. Lá, como noutros sítios, os condutores, apesar de na maioria serem militares, não eram obe­dientes, e assim o nosso amigo fartou-se de desobediências. Tanto, que atirou uma rajada por cima de uma camioneta da engenharia militar que não lhe obedeceu. 

Continuou em funções, mas surge mais uma camioneta, do Depósito de Adidos, que também não lhe obedece, e aí vai o resto do carregador. 

O Palácio do Governo, onde se encontrava o general Spínola, distava uns 400 m em linha recta, pelo que os disparos eram nítidos e originaram que a polícia do Exército fosse chamada ao local.

Postas perante a realidade, as entidades competentes determi­naram a baixa à neuropsiquiatria do major Gaspar. Mas alguns, suficientemente conhecedores da maneira de ser do «doente», con­seguiram autorização para o director do Hospital Militar conven­cer o major a descansar uns dias no Hospital, onde os amigos o visitaram com assiduidade, criando talvez o único período de ver­dadeiro descanso e convívio que este homem teve ao longo de vários anos de guerra e de guerras com o sistema. 

As histórias do major Gaspar foram para muitos combatentes o escape natural nas vicissitudes da vida em campanha; quem o conheceu guarda dele a imagem do lutador pela dignidade e pela justiça, a certeza de que a sua luta foi imortal (...) ”[19] )**)

[ Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Realce a amarelo, para  efeitos de publicação deste poste no blogue: LG]
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Nota do Leopoldo Amado:

[19] Maia, Salgueiro, O Acaso, In Capitão de Abril – Memórias da guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, pp. 56 e 57.
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Notas do editor:


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23159: Notas de leitura (1436): "Os Forjanenses e a Guerra Colonial", organização de Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá; edição da Junta de Freguesia de Forjães, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Para quem gosta de imprevistos, encontrar gente da nossa idade que recorda com quem andou na escola, que mantém intocáveis os vínculos do meio local, neste caso sempre com um sentimento forjanense, porque toda a obra é dedicada a militares desta vila do concelho de Esposende, e que nunca mais esqueceu a Guiné, vai ter aqui lauta leitura, elos de solidariedade que jamais se perderam. Testemunhos de oficiais, sargentos e praças, aqui se confirma a universalidade que reside na memória de gente de um terrunho que a todos toca no coração. Um livro que faz todo o sentido estar nas nossas estantes, lê-se e relê-se com imenso carinho, são registos autênticos da têmpera portuguesa.

Um abraço do
Mário



Memórias insuperáveis, a historiografia as saiba escutar (1)

Beja Santos

É um belíssimo, inolvidável, trabalho de recolha junto de antigos combatentes ligados à freguesia de Forjães (concelho de Esposende), a organização pertence a Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá, a edição é da Junta de Freguesia de Forjães, 2018. Não conheço nada de tão tocante, tal é o vigor do testemunho entre os vínculos locais e, em inúmeros casos, uma saudade guineense que não secou. Como é evidente, os testemunhos recolhidos são amplos, estes forjanenses e suas famílias falam da Índia, da guerra de África mas também de São Tomé e Príncipe, Timor e outras paragens. O que aqui se regista, obviamente, circunscreve-se à Guiné, mas desde já se adverte o leitor que se sentirá gratificado com a leitura de todos estes testemunhos, esta memória é aparentemente regional, não haja ilusões, mas estamos lá todos nós.

O soldado Alcino Alves Pereira esteve na Guiné entre 1959 e 1961. De imediato, vemos como os forjanenses falam uns dos outros. Ele está no BC 5 em Lisboa, já lá andavam o Albino do Hilário e o Avelino de Palme. Certamente em consequência do 3 de agosto de 1959, foi tropa de urgência na Guiné, não teve tempo para ir até casa, nem lhes deram licença de mobilização, “só tive tempo de ir à procura do Armando do Rio que trabalhava em Lisboa e que me emprestou 40 escudos, para eu não ir completamente teso para a Guiné”. Embarcaram no Manuel Alfredo, descreve a vida em Bissau, as atividades desportivas a que se dedicou, era ciclista exímio. Lembra que houve um ataque a S. Domingos, em 1961. Tem imensas saudades da Guiné, e critica o colonialismo que ele viu com os seus próprios olhos, havia duas companhias comerciais, A Gouveia e a Ultramarina. “Vendiam de tudo. Quando iam comprar arroz aos guineenses, aquilo funcionava assim: recebiam um saco com 50 kg, ao pesar diziam que só tinha 40 kg e ao fazer contas só pagavam 30 kg. Depois, davam-lhes uns farrapos coloridos para colocar nas costas, para transportar os rapazes e, no final, os guineenses ainda lhes ficavam a dever dinheiro. Exploravam ao máximo aquela gente desgraçada”. O Alcino estava integrado na Companhia Expedicionária 352.

O soldado José Albino Sousa Ribeiro fez parte da CCAÇ 152, esteve na Guiné de 1961 a 1963. Soube que ia para a guerra e foi chamado com o Torcato do Gidório, o Manuel Boucinha e o Álvaro da Isolina. Viaja de avião, desembarca em Bissalanca no fim de julho de 1961, seguiu para Buba. “Tínhamos pelotões destacados em Aldeia Formosa, Cacine e Catió. A sede do batalhão ficou em Tite”. Não esconde como a comissão o marcou indelevelmente: “Lembro-me muitas vezes da Guiné e tenho saudades. Lembro-me muito daquela camaradagem entre a tropa. O povo da Guiné era muito bom. Cheguei a ir muitas vezes com eles para o batuque. Eram um joguete nas nossas mãos e nas dos turras. A guerra não me afetou. Apanhei o paludismo em Bissau e estive internado duas semanas, mas nunca mais tive sintomas. Em Forjães, costumo organizar os convívios dos militares da Guiné, juntamente com o Zé Boucinha. Tenho muito orgulho nisso. Gostamos de nos reunir para conversar e recordar aqueles bons tempos. Agora já é mais um convívio familiar. À volta da Guiné há um sentimento que nos une”.

O 1.º Cabo Paraquedista Manuel da Cruz Dias, que pertenceu à 1.ª Companhia de Caçadores Paraquedistas, esteve na Guiné em 1965 e 1966. Foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra de 3.ª Classe. “O meu comandante de pelotão era o Alferes Ferreira da Silva e o comandante de companhia era o Capitão Pardal. Vim de férias a Portugal, na Páscoa de 1966, de regresso, levei duas encomendas: uma da Fernanda Lajes para o marido, António do Neiva; a outra para o nosso capitão, da parte do seu sogro, que tinha uma loja ali para os lados da estação de S. Bento, no Porto”. Ficou bem estilhaçado em Fulacunda, semanas depois regressou ao ativo. “De passagem por Xitole, encontrei e conversei durante uns minutos com o Tone do Mouco. Andámos juntos na escola. Coitado, viria a morrer na Guiné, já depois de eu de lá regressar. Em Catió, encontrei o Quim Maria. Era furriel. Nunca tive madrinha de guerra. Escrevia para casa e quem me respondia era a minha mãe. Fui condecorado no 10 de junho de 1967. No mesmo dia, também foi condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe e promovido ao posto de Major, a título póstumo, o meu Capitão Tinoco de Faria. Sinto muito orgulho nisso e ainda gosto de olhar e admirar a minha medalha. Um dia, um sujeito de Barroselas, que tinha ouvido falar de mim ao António Casal Martins, ligou-me a perguntar se eu recebia alguma coisa por causa da medalha. Respondi que não e ele disse-me o que é que eu deveria fazer para receber os meus direitos. Assim fiz e hoje recebo uma coisa pouca. A guerra tinha que acabar e ainda bem. Eles também tinham os seus direitos e direito a todas as independências que se deram”.

António de Amorim Torres pertenceu à CCAÇ 1547, esteve na Guiné de 1966 a 1967, faleceu em serviço em Bigene, em 7 de agosto, quem depõe é a viúva, Maria de Fátima Gonçalves de Sá. “Com 16 anos, fui servir para a casa do Sr. Manuel do Abreu, no Matinho, e foi lá que conheci o meu homem, que era lá vizinho. Havia uma fonte ao pé da casa dele. Eu ia para lá lavar e ele aparecia por aqui. Começámos a falar, depois a namorar, mas sempre às escondidas. Quando tinha 18 anos, vim embora para Aldreu, mas continuámos a namorar. Casei em abril, com 19 anos feitos, e fomos viver para casa dos meus pais. Ele foi trabalhar de trolha com os meus irmãos. Mas dali a pouco tempo chamaram-no para a tropa para Lisboa. Depois foi para a Guiné, embarcou no Uíge, seguiu para Bigene. Mandava-me aerogramas de lá. Um dia disse-me: ‘Estou num sítio muito mau. Aconteça o que me acontecer, uma coisa te peço, nunca dês padrasto à minha filha’.”

Imprevistamente, recebe um telegrama a comunicar a morte do António, por motivo de afogamento. “Já se passaram quase cinquenta anos e isso ainda me marca. Eu viúva, com 21 anos, com uma filha órfã, a viver com o meu pai e mais treze irmãos, sete deles abaixo de mim… Foi tudo muito duro!”. Depois de porfiadas diligências, passou a receber uma pensão de 600 escudos, começou a construir uma casinha, tomou conta de sobrinhos, recebia mais um dinheirinho. “O corpo dele demorou seis meses a vir da Guiné. Foram duas dores: a da notícia e do choque e, depois, a dor do funeral. Não acreditava que ele tinha morrido, sonhava que ele estava vivo. Passei muitos anos a sonhar que ele estava vivo. Ainda há dois anos sonhei que ele me apareceu por aí, todo contente, com a mesma roupa que levou ao nosso casamento. O meu pai foi a Lisboa para o reconhecer. Diz que o caixão tinha um vidro por cima e que se via metade do corpo. Diz que estava perfeitinho. No cemitério, os colegas dele fizeram uma fileira e dispararam umas rajadas para o ar. Foi uma marca que me ficou para sempre. Vou todos os anos à festa e ao almoço dos militares da Guiné, em Forjães. Eles convidam-me sempre, o Boucinha e o Albino taxista. Começa às 10 horas com a missa, depois eles vêm cá sempre ao cemitério de Aldreu colocar um ramo de flores na sepultura do meu falecido homem”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23152: Notas de leitura (1435): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (4) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23007: Notas de leitura (1421): “Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado; Guerra e Paz Editores, 2019 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Desde o trabalho jornalístico à investigação universitária, passando pelas páginas dos jornais e depoimentos televisivos, são variados os relatos dos antigos combatentes que a sociedade guarda num discreto anonimato. O que há de relevante neste levantamento de Vasco Luís Curado é que nunca se foi tão longe na versatilidade das citações, há prisioneiros na Índia, de primeiros-cabos atiradores, soldados-paraquedistas, alferes-sapadores, soldados-atiradores, condutores, oficiais de operações especiais, parece que o autor escolheu a dedo a representação dos estilhaços físicos e psicológicos, das manifestações mais díspares que vão da apatia à agressividade permanente. 

Como diz o autor, "O país, todos nós, não quis saber do combatente que, regressado a casa, dormiu um mês no bosque próximo com a faca-de-mato, ou daquele que, de vez em quando, acorda convicto de que, aos pés da cama, está um saco cheio de orelhas e dedos humanos (...) Há que continuar a ajudá-los num outro combate contra dois tipos de esquecimento: o que eles individualmente gostariam de fazer mas não podem, e o que o país lhes quer impor mas não devia".

Um abraço do
Mário



A voz de antigos combatentes que se mantêm em conflito, em carne viva

Beja Santos

“Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado, Guerra e Paz Editores, 2019, reúne relatos de antigos combatentes, um mostruário eloquente dos estilhaços físicos e psicológicos que a sociedade portuguesa finge esquecer, a guerra já está longe, estes stressados que se amanhem. 

Quem os recolheu é psicólogo clínico, trabalhou dez anos num hospital militar, acompanhou estes stressados, e visa um objetivo primordial com este livro: contribuir para um reconhecimento impedido por divisões profundas na sociedade portuguesa de homens que combateram e que se sentem votados ao esquecimento, muitos deles profundamente doentes ou levando uma vida familiar desgraçada. Como, explicitamente, observa:

“O país e o combatente individual são o duplo um do outro. Assim como o combatente se apazigua aceitando as marcas físicas ou mentais como parte indelével de si mesmo, o país amadurece recuperando o seu passado e aqueles que enviou para o combate. Foram necessários muitos anos para se caminhar em direção a algum equilíbrio na forma de interpretar a guerra e fazer face aos homens que ela mobilizou. Há que continuar a ajudá-los num outro combate contra dois tipos de esquecimento: o que eles individualmente gostariam de fazer mas não podem, e o que o país lhes quer impor mas não devia”.

Diga-se em abono da verdade que o tema está abundantemente versado, as livrarias oferecem muita leitura sobre vidas atormentadas destas experiências de combate sobretudo em terra mas também nos céus e nos rios, falam de jovens que queriam emigrar e que procuraram despachar o serviço militar, seguiram-se as comissões muito duras que tudo alteraram. O que distingue verdadeiramente estes relatos de Vasco Luís Curado do que até agora se escreveu é a versatilidade do caleidoscópio humano, fica-se com a impressão que o apanhado de testemunhos cobre o essencial dos estados daqueles para quem a guerra ainda não acabou, acompanhará muitos até à tumba. Veja-se o caso de quem acreditava no dever pátrio de ir para a guerra, ela mostrou-se tão cruenta que o crente desses valores se foi alterando, e assim testemunha, com uma franqueza que ronda a brutalidade:

“Os meus melhores amigos foram morrendo. Um deles foi atingido numa emboscada, em Cabo Delgado, por um tiro vindo da mata. Vi-o cair. Quando cheguei ao pé dele, estava morto. Quando fazíamos escolta a uma coluna de Engenharia, vi outro ser atingido por uma granada de morteiro e ficar desfeito. Estive com ele até morrer. Sabe o que é apanhar ao colo um amigo sem braços nem pernas?”

Quem testemunha confessa que sentiu prazer em matar, fica o peso da consciência: 

“Por cada pessoa que matei, os rostos ainda me perseguem e devoram”.

 Regressou e a inadequação cedo se manifestou. Sentia-se consumido por uma fúria destruidora: 

“Engravidei a minha segunda mulher quando ainda vivia com a primeira – e também a abandonei anos mais tarde. Sempre fui abandonando as pessoas de quem gostava, para não as magoar mais. Um dos meus netos, ainda criança, odeia-me e com razão: parti o braço ao pai dele. O meu genro é toxicodependente e esteve envolvido em assaltos. Eu tentava fazer-lhe mal de cada vez que o via e cheguei a atropelá-lo. Tenho medo de dormir, quando fecho os olhos vejo coisas passadas na guerra. Às vezes dou por mim a chorar sozinho quando penso no Ultramar, parece que sinto uma pessoa a gemer dentro de mim”

Meses continuados de tensão podem, imprevistamente, revelar-se em sinais de abulia, indiferença ou o seu contrário, alguém testemunha assim:

“Ao fim de quinze meses, depois de me confrontar com tantos problemas, os homens motivados por minas, dar dinheiro a soldados para pagarem medicamentos dos filhos na Metrópole, comecei a desparecer de vez em quando: disseram-me mais tarde que me iam encontrar na estrumeira, fora do aquartelamento, sujeito a expor-me ao fogo inimigo, sem saber o que estava ali a fazer”.

O convívio com a morte e toda a escala do sofrimento também pode gerar relações paradoxais, como alguém revela: 

“Éramos capazes de cantar e beber cerveja ao pé de camaradas mortos. Quando um de nós recebia alguma coisa da Metrópole, como chouriços e coisas assim, era uma festa. Comíamos e bebíamos juntos, mesmo que ali ao lado estivessem os mortos embrulhados. Isto já numa fase mais avançada, endurecidos pela guerra”

E alguém morreu por ele, a dor parece interminável: “Fui ferido três vezes num ataque. Viram-nos a entrar para o abrigo e mandaram para lá a granada. Um dos que tinha entrado para o abrigo primeiro do que eu estava à minha frente e salvou-me a vida, porque levou com tudo. Caio com o meu peito em cima dele, que estava a morrer, senti o sangue dele a jorrar para cima de mim, a correr em golfadas que faziam barulho, parecia que silvava. Eu fiquei ferido com dezenas de estilhaços cravados no peito, barriga e pernas. Ainda hoje encontro camaradas que me dizem como é que eu tinha tanto sangue para deixar lá”

A destruição familiar é muito frequente, oiçamos alguém: 

“Ao fim de 36 anos de casamento, a minha mulher deixou-me. Fiquei sozinho. As minhas filhas estão do lado da mãe. Uma não me liga nada, a outra sim, porque precisa de mim para ir levar e trazer a minha neta que anda no infantário. Dizem que sou um sobrevivente, um exemplo para os meus camaradas, que me viram como morto e nunca julgaram que escapasse. Recebi um louvor, porque, mesmo ferido, não deixei de incentivar os meus camaradas. Eu quero viver, levar a vida para a frente. Mas como é que eu chego lá?”.

Insónias, solidão, sonos invadidos pela guerra, gritaria nos pesadelos, arrependimentos, viver como um fantasma, a vida a fazer uma revisão da guerra… E o horror de um momento capital que depois é versado em termos banais: 

“Perto do fim da comissão, seguíamos dez numa viatura, íamos assistir a um jogo de futebol no quartel da companhia mais próxima. Não ia eu a conduzir. O meu colega deixou o carro despistar-se na picada. Fiquei com o braço debaixo do carro, que me decepou a mão esquerda. Vi a mão caída no chão, mesmo à minha frente. Olhei para o couto, olhei para a mão. Com raiva, dei um pontapé na mão, que voou para o mato. Na enfermaria perguntaram-me pela mão, ainda poderia ser cosida ao braço, no hospital central. Eu e alguns camaradas voltámos ao local do acidente, procurámos no meio da vegetação. Já não a encontrámos. Deve ter sido um festim para as formigas”.

 Tudo é indelével, e momentos há em que se percebe o quilate da camaradagem indefetível: 

“Nos anos 90, quando visitei o Monumento aos Combatentes do Ultramar, em Belém, com o mural onde estão gravados os nomes dos mortos, li o nome completo do Valter, a quem fechei os olhos, e, nesse momento, tornei a sentir o corpo dormente: era o espírito dele a sair do meu corpo”.

Cansaço, cólera, abandono, recolhimento, susto com o barulho dos carros, foguetes, estrondos, sair da cama a meio da noite, vestir-se com a preocupação de que vai para uma operação, um choro compulsivo repentino, olhar para o arvoredo e pensar que está ali um belo sítio para fazer uma emboscada… O que Vasco Luís Curado regista em testemunhos muito bem cuidados é uma gritante chamada de atenção para esses milhares de combatentes que precisam de apoio e de muita compreensão. A sociedade portuguesa precisa de estar mais aberta e compreensiva para este passado colonial, pois muita desta dor aqui contada vem do esquecimento a que estes homens se sentem votados.

De leitura obrigatória.

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Nota do editor:

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18317: Bibliografia de uma guerra (86): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,

Não é de mais insistir, ao findar estas notas de recensão, que se trata de um estudo profundíssimo, rigoroso, porventura o melhor pano de fundo que possuímos na historiografia portuguesa contemporânea sobre a política externa portuguesa no pós-guerra face aos novos ventos da História - o surto independentista que se difundiu nos grandes e pequenos impérios coloniais.

Trata-se de uma organização admirável dos principais factos, respostas, hesitações, manobras de adiamento, quebra de alianças, informações alarmantes que chegavam ao Estado Novo por via de vozes autorizadas. Tudo em vão, a doutrina era inflexível, ou tudo ou nada, "a pátria não se discute". É neste ecrã de 15 anos de espera e turbilhão que em 1961 eclode a guerra colonial que levou o regime urdido por Salazar ao fundo. Demorará décadas a aparecer ensaio tão qualificado como este de Valentim Alexandre.

Um abraço do
Mário


Contra o vento: uma obra-prima da historiografia portuguesa (4)

Beja Santos

“Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, é indubitavelmente um dos principais acontecimentos da edição historiográfica de 2017.

O investigador Valentim Alexandre tem sobejas provas dadas na área da história colonial, este seu opulento (e a partir de agora incontornável) levantamento é o fecho de abóbada, a consagração da sua carreira. Passamos a dispor, a partir deste trabalho, de uma sequência bem articulada para a cronologia os principais eventos que contextualizam o Império Português no pós-guerra, ressaltando a primeira ameaça, a crise de Goa (1954-1955), segue-se a pormenorização dos dados da grande veja da descolonização e a resposta dada pelo Estado Novo: o luso-tropicalismo – a política indígena, uma incipiente industrialização, as formas precárias de deslocação da população branca, nomeadamente para colonatos, a ONU como a principal arena a confrontar o império português, os atritos com o Vaticano, a reorganização dos dispositivos militares; e a manutenção das inquietações no Oriente, um tanto à semelhança de que ocorrera no decurso da II Guerra Mundial, mas agora fruto das descolonizações: Goa, Macau e Timor, devido ao aparecimento da União Indiana, da República Popular da China e da República da Indonésia.

Este último apontamento passa em revista, no período compreendido entre 1955 e 1960, como se procuravam superar riscos, ameaças e tensões no Oriente (Goa, Macau e Timor) e ter em consideração a matérias das conclusões apresentadas pelo autor.

Quanto a Goa, a diplomacia portuguesa sentia que já pouco podia contar com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. No encontro entre Foster Dulles e Paulo Cunha, o Secretário de Estado norte-americano recordou ao Ministro dos Negócios Estrangeiros português a posição do país em relação ao colonialismo: direito à independência, evitando-se a todo o transe independência prematuras para quem ainda não estivesse preparado para assumir as inerentes responsabilidades.

Em 1956, Salazar prepara um documento para o Conselho de Estado, não ignora que no Conselho Legislativo goês, a maioria dos membros eleitos constituía uma verdadeira oposição ao governo. Silva Tavares, Secretário-Geral do governo da Índia enviará uma carta a Sarmento Rodrigues onde escrevera:

“Continuo a pensar que a ideia da integração é impopular. Porém, não se pode inferir que todos sejam pela unidade com Portugal. Desde os partidários de uma restrita autonomia até aos partidários da independência e aos que só sentimentalmente gostam de falar em autonomia sem no fundo a desejarem, há as mais variadas cambiantes”.

Salazar sublinhou esta frase. Orlando Ribeiro também elaborou um extenso relatório sobre a sociedade da Índia Portuguesa, documento bastante pessimista: Goa aparecera a seus olhos “como a terra menos portuguesa de todas as que vira até então, menos portuguesa do que a Guiné”.

E, mais adiante:

“Ao contrário da África portuguesa, onde há o maior cuidado em empregar expressões como Metrópole e metropolitano, em Goa opõe-se esta província a Portugal e o Goês cristão opõe-se a português. É corrente sermos assim designados por gente muito próxima de nós na fala e nos usos, mas alheia ao nosso sentido de pátria. Pátria para o Goês é Goa”.

Valentim Alexandre detalha a evolução das tensões, a euforia efémera da sentença do Tribunal Internacional de Haia no processo interposto por Portugal contra a União Indiana em 1956, por alegada violação do direito de passagem entre Damão e os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli, dando razão a Portugal. A vitória durou pouco tempo, em Dezembro de 1960 as resoluções da Assembleia Geral da ONU sobre a “outorga da independência aos países e aos povos coloniais” constituíram um momento de viragem, as posições coloniais tinham os dias contados.

O autor igualmente explica como a política da República Popular da China assegurou temporariamente a posição portuguesa em Macau, mesmo sujeita a restrições e todo o processo timorense é detalhado.

 Atenda-se ao valor das conclusões desta vastíssima obra. Tendo saído indemne da II Guerra Mundial, o regime sabia que a ordem internacional estava radicalmente alterada, o sopro anticolonial não só rapidamente se espalhara pela Ásia, era ínsito à Carta das Nações Unidas e constituía elemento de referência nas políticas norte americana e soviética.

Portugal começa por não estar isolado na conceção da independência às colónias, mas deu-se uma evolução nas políticas britânica e francesa, os seus impérios desagregaram-se. Numa tentativa de atualização, o Estado Novo substitui as colónias por províncias ultramarinas, procura ir abolindo o conceito de indígena e do trabalho forçado, como o autor observa:

“Fruto da Repressão e da ausência de liberdades, a pax lusitana era um dos temas prediletos da propaganda do regime, que nela via a comprovação da excelência da colonização portuguesa e da sua especificidade”.

Dá-nos conta da ameaça que impendia sobre Macau e quanto a Goa, Lisboa recusava a mínima cedência de soberania, quais que fossem as garantias de respeito pelas identidade de Goa e pela influência cultural nela exercida pela metrópole.

Chegados a 1955, ninguém na cúspide do Estado Novo ignorava as crescentes ameaças que se avolumavam sobre o império. Até 1958, prevalecia a noção de que sob os territórios de África era um perigo a longo prazo. Subitamente, esfumou-se a ilusão. O regime procurava remoçar a mística imperial, confortar a tese da especificidade de Portugal como nação pluricontinental, foi alimento para consumo interno.

Perante um perigo iminente de diferentes contestações dos movimentos independentistas, o regime monolítico procurou modificar as forças armadas e a PIDE passou a ter muito mais trabalho em África. No campo da política interna, Salazar nunca aceitou hipóteses de entendimento com grande parte da oposição que até poderia ter cooperado numa frente comum na defesa do Ultramar. O mais longe que Salazar quis ir constou na sua aceitação de um plano de reformas, mostrou-se aberto a modificações da estrutura administrativa do Império, como sempre tudo muito lento e aferrolhado.

E assim termina este valiosíssimo trabalho:  

“Só o abalo produzido pelo início da Guerra Colonial, em 1961, dará o impulso necessário a reformas de fundo, com a abolição legal do indigenato e do trabalho forçado. Ainda em 1959-1960, avultam, mais do que o reformismo, o acréscimo da repressão, com as vagas de prisões, nomeadamente em Angola, e os massacres, na maior parte já com intervenção das Forças Armadas, que então marcam a vida das colónias portuguesas do continente africano, bem como Timor. Longe de se contraporem, reforma e repressão não passavam de duas faces das mesma política, tendente a preservar a soberania nacional sobre o Império – como os tempos iniciais da guerra em Angola, em 1961, tornariam evidente”.

Esta notável investigação é de leitura obrigatória, como se depreende.
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Notas do editor:

Vd. postes anteriores de:

10 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18198: Bibliografia de uma guerra (82): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

17 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18221: Bibliografia de uma guerra (83): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)
e
24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18246: Bibliografia de uma guerra (84): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18271: Bibliografia de uma guerra (85): “O céu não pode esperar”, por António Brito; Sextante Editora, 2009 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18246: Bibliografia de uma guerra (84): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,

Quando classifico esta obra de Valentim Alexandre como obra de consagração, refiro-me a uma laboriosa atividade investigativa anterior em torno da problemática do império português que encontra neste livro uma poderosa articulação das peças fundamentais do império português no pós-guerra, as sucessivas crises, o contexto geral da descolonização, a obstinação férrea de Salazar em recusar descolonizar, adiando sempre reformas, que surgiram demasiado tarde.

A investigação compreende o período determinante do fim da II Guerra Mundial até ao último ano de paz, 1960.

Como recorda o autor, nunca se excedeu o debate interno sobre a política colonial, era truncado e secreto, funcionava apenas na vertical, na relação entre cada um dos intervenientes e Salazar. E o Estado Novo também não encontrou fórmulas de abertura e entendimento com a oposição. Se "orgulhosamente só" estava, orgulhosamente só preparou a sua condenação e queda.

Um abraço do
Mário


Contra o vento: uma obra-prima da historiografia portuguesa (3)

Beja Santos

“Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, é indubitavelmente um dos principais acontecimentos da edição historiográfica de 2017. O investigador Valentim Alexandre tem sobejas provas dadas na área da história colonial, este seu opulento (e a partir de agora incontornável) levantamento é o fecho de abóbada, a consagração da sua carreira.

Passamos a dispor, a partir deste trabalho, de uma sequência bem articulada para a cronologia os principais eventos que contextualizam o Império Português no pós-guerra, ressaltando a primeira ameaça, a crise de Goa (1954-1955), segue-se a pormenorização dos dados da grande peja da descolonização e a resposta dada pelo Estado Novo: o luso-tropicalismo – a política indígena, uma incipiente industrialização, as formas precárias de deslocação da população branca, nomeadamente para colonatos, a ONU como a principal arena a confrontar o império português, os atritos com o Vaticano, a reorganização dos dispositivos militares; e a manutenção das inquietações no Oriente, um tanto à semelhança de que ocorrera no decurso da II Guerra Mundial, mas agora fruto das descolonizações: Goa, Macau e Timor, devido ao aparecimento da União Indiana, da República Popular da China e da República da Indonésia.

Vimos anteriormente o pano de fundo do império português no pós-guerra, como entretanto se começaram a desagregar os principais impérios coloniais, como a política externa do Estado Novo procurava enfrentar ameaças que impendiam sobre a Índia Portuguesa, Macau e Timor e como emergiram os sinais de alarme com os ventos de mudança em África. Por um lado, com êxito relativo, atraía-se população branca para os colonatos, ensaiava-se uma industrialização controlada, estabeleciam-se acordos com grandes grupos por causa de matérias-primas básicas e para aumentar a rede do caminho-de-ferro.

Para consumo interno, adotava-se o luso-tropicalismo, algo que o sociólogo Gilberto Freyre tratava como a integração dos portugueses nos trópicos, tese muito simpática para incensar a apologia do multirracial mas que tinha na prática múltiplas entorses, uma deles, a mais óbvia, era a Guiné onde só por humor negro se podia falar da aptidão natural dos portugueses para o convívio com os nativos. A chamada missão civilizadora de Portugal não resistia a uma rigorosa leitura dos factos históricos.

É neste contexto que o historiador Valentim Alexandre analisa a reorganização dos poderes coloniais, a natureza do fomento e povoamento, passando depois em revista a pressão crescente que se fazia sentir nas zonas de fronteira das colónias portuguesas, sucessivamente a Guiné, Angola e Moçambique. Confirma-se, quando se lê este laborioso levantamento, muito dele depositado no Arquivo Salazar, que o regime, com boa antecedência, dispunha de informação segura sobre o braseiro que se iria anunciar muito em breve.

Veja-se o caso de um documento enviado a Salazar em Setembro de 1959, assinado por personalidades como Adriano Moreira, Franco Nogueira, José Manuel Fragoso, Alexandro Ribeiro da Cunha, Sarmento Rodrigues, Henrique Martins de Carvalho, Jorge Dias e outros. Partia-se de uma constatação, um “clima de tensão social”, sobretudo em Angola e Moçambique, também por efeito de “múltiplas causas internas”. Considerava-se premente promover um “amplo esclarecimento de opinião pública portuguesa tanto metropolitana como ultramarina”, a fim de “tornar a nação ciente dos perigos que a situação actual envolvia, de modo a ser possível formar-se a consciência nacional necessária numa crise eventual”. E o documento avançava com variadíssimas soluções de carater reformista.

Os ataques na Assembleia Geral da ONU eram insistentes, a propaganda do regime respondia com o tema da unidade nacional. Salazar detivera-se sobre o problema colonial em Maio de 1959 no discurso “A posição portuguesa em face da Europa, da América e de África”, proferido na sede da União Nacional. Bateu na sua tecla dominante: África era “o complemento da Europa, imprescindível à sua defesa, suporte necessário à sua economia”. E o historiador termina o capítulo com a seguinte observação:

“Tudo somado, as alterações ao sistema colonial ficaram-se, nos anos de 1959-1960, por uma forma de reformismo mitigado, praticado sobretudo pelos governador de Angola e Moçambique que, não pondo fim aos aspetos mais contestáveis do domínio colonial, procuravam melhorar a relação entre a administração e a população africana e corrigir, aqui e ali, os abusos mais gritantes. Só a eclosão da guerra colonial em Angola, meses depois, dará o impulso a reformas de fundo”.

Entrementes, altera-se modestamente o dispositivo militar, têm lugar algumas missões militares, redefine-se a política de defesa, reequipa-se as Forças Armadas, reforça-se a ação da PIDE.

O combate na ONU não dá tréguas. Aliados do passado, começam a desalinhar-se com a posição portuguesa, enfraquecem-se as solidariedades, e o mais gritante é o que se irá passar com a Grã-Bretanha. Os EUA não escondem divergências, que se agravarão substancialmente em 1961 com a eleição do presidente Kennedy. Observa o historiador: 

“A grande divergência entre os governos português e norte-americano era de ordem estratégica: enquanto Salazar tinha por certo que se devia seguir uma linha de intransigência absoluta, nada cedendo aos nacionalismos africanos, a seu ver artificiais, já em Washington se defendia uma política de contemporização, tendo em vista uma transição pacífica dos territórios coloniais para o autogoverno e a independência, em estreita cooperação com as respectivas metrópoles”.

E chegaram os sinais preocupantes como a abstenção dos EUA em votações tidas por altamente sensíveis. Valentim Alexandre passa em revista os pontos de apoio conjunturais, o relacionamento com os vizinhos africanos. E surgem os atritos com o Vaticano, abre-se um vasto campo de melindres e ziguezagues dentro da hierarquia católica portuguesa face à questão colonial. Os perigos no Oriente não podiam ser relativizados. Deixaremos para o próximo e último texto a sua apreciação e as conclusões da obra.

(Continua)
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Nota do editor

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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18221: Bibliografia de uma guerra (83): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Este tratado de historiografia onde se contextualiza o pano de fundo que precede a guerra colonial possui todo os ingredientes para ser leitura obrigatória, nas próximas décadas. Contextualiza a posição do império português no final da II Guerra Mundial, releva a tentativa de arrancada das colónias para um estádio de desenvolvimento, na recuperação do pós-guerra aquelas matérias-primas eram preciosíssimas para o desenvolvimento das potências ocidentais.
Mesmo num plano muitíssimo subalterno ao que irá acontecer em Angola em Moçambique, Sarmento Rodrigues procura fazer da Guiné uma colónia modelo, o progresso é a grande consigna do novo estádio da mística imperial: infraestruturas, desenvolvimento agrícola, escolas, instâncias de saúde, novo modelo de administração colonial. Mas os perigos agigantam-se na Ásia, a União Indiana é a principal dor de cabeça. E em meados dos anos 1950 as independências chegam a África - é a grande vaga, Portugal posiciona-se contra a maré.

Um abraço do
Mário


Contra o vento: uma obra-prima da historiografia portuguesa (2)

Beja Santos

“Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017, é indubitavelmente um dos principais acontecimentos da edição historiográfica de 2017. O investigador Valentim Alexandre tem sobejas provas dadas na área da história colonial, este seu opulento (e a partir de agora incontornável) levantamento é o fecho de abóbada, a consagração da sua carreira. Passamos a dispor, a partir deste trabalho, de uma sequência bem articulada para a cronologia os principais eventos que contextualizam o Império Português no pós-guerra, ressaltando a primeira ameaça, a crise de Goa (1954-1955), segue-se a pormenorização dos dados da grande veja da descolonização e a resposta dada pelo Estado Novo: o luso-tropicalismo – a política indígena, uma incipiente industrialização, as formas precárias de deslocação da população branca, nomeadamente para colunatos, a ONU como a principal arena a confrontar o império português, os atritos com o Vaticano, a reorganização dos dispositivos militares; e a manutenção das inquietações no Oriente, um tanto à semelhança de que ocorrera no decurso da II Guerra Mundial, mas agora fruto das descolonizações: Goa, Macau e Timor, devido ao aparecimento da União Indiana, da República Popular da China e da República da Indonésia.

No texto anterior, desvelou-se o mundo do pós-guerra, a emergência do anticolonialismo, a entrada em cena da ONU, o Estado Novo pressagia novas ameaças, em primeiro lugar no Oriente, em Goa, Macau e Timor. Afastados os perigos das duas últimas colónias, Goa será ameaça permanente até que em Dezembro de 1961 os exércitos da União Indiana porão termo à presença portuguesa.

Há razões de sobra para impulsionar o desenvolvimento, sobretudo em Angola e Moçambique, o comércio mundial começa a crescer a muito bom ritmo e as matérias-primas africanas são disputadas. De Angola vêm diamantes, sisal e café; a produção de algodão e de açúcar cresce em Angola e Moçambique. Altera-se o modelo de relações económicas que interligavam a metrópole e as colónias, o espantalho do condicionalismo industrial limita o modelo de desenvolvimento colonial, a instalação de indústrias nas colónias é feita com a muita cautela: cimento e têxtil, fábricas de óleos alimentares, de calçado, de metalomecânica, de artigos de borracha, de pasta de papel e de mobiliário, surgirão confrontos como o da Companhia de Cimentos de Angola e a Secil. Os caminhos-de-ferro tornam-se estruturas fundamentais, ganham expressão internacional, o mesmo se dirá das estruturas portuárias, como o porto da beira. Na política externa, Salazar procura obter dividendos com a concessão de “facilidades” nos Açores, Portugal integrava-se na NATO, o que dava ainda maior realce à posição estratégica das Lajes.

O Estado da Índia é o enorme quebra-cabeças, em Nova Deli insiste-se na “Mãe-Índia”, não há exceções coloniais. Salazar responde: “Se geograficamente Goa é Índia, socialmente, religiosamente, culturalmente Goa é Europa. Se ali habitam ocidentais, indo-portugueses e indianos, politicamente só há cidadãos portugueses”. Salazar confia que o processo de integração da Índia iria ser moroso, teria que absorver as mais de cinco centenas de principados que o domínio britânico deixara subsistir. Mas deu-se a integração dos principados, um a um foram aderindo à União Europeia, em meados de 1948 o subcontinente ganhara coesão. Já não podíamos contar com a Grã-Bretanha e também o Vaticano já não podia privilegiar o Padroado do Oriente. A Santa Sé acabará por nomear um bispo indiano, o que compromete a jurisdição do arcebispo de Goa. Assim se pôs fim ao padroado e entrou-se diretamente na reivindicação do solo. O autor chama-nos à atenção para a interessante análise de Orlando Ribeiro no relatório de 1956, ele refere-se à coexistência em Goa de duas regiões e duas sociedades, a sociedade cristã e a sociedade hindu. Quatro séculos de cristianismo e um clero numeroso e zeloso criaram uma oposição entre cristãos e gentios, situação que dificultava em extremo a integração hindu na nação portuguesa já que todo o hindu via na Índia a sua pátria espiritual. E o distinto geógrafo observa: “Pátria para o goês é Goa, é nela que eles desejam gozar liberdades e proeminências. Aquilo que para alguns é uma espécie de dupla cidadania, goesa e portuguesa preferiam-no eles em relação à União Indiana”. As relações luso-indianas azedam-se. Em 1953, Nova Deli encerrou a sua Legação em Lisboa, não era um corte de relações diplomáticas, mas passava-se para outro nível da ofensiva. Em Macau e Timor, a República Popular da China e a Indonésia descansam Lisboa, não têm reivindicações a fazer, a China precisa de portas abertas para o exterior, o comércio está à frente da ideologia.

O sistema político imperial foi reformulado em 1951 com o Acto Colonial, Portugal é uno e indivisível, será a especificidade do caso português que na retórica procurará querer dizer que não há semelhanças entre o império português e as outras potências europeias. Valentim Alexandre recorda que a ideia de integração nacional imposta por decreto não irá contrariar o aparecimento da geração de Cabral que tinha como âncora a Casa dos Estudantes do Império. O trabalho forçado passara a ser visto com maus olhos nas instâncias internacionais. Henrique Galvão, no célebre Relatório que em 1947 apresentou na Assembleia Nacional, denunciou a extensão dos abusos e a desumanidade de mão-de-obra humana, eram parágrafos que incendiavam as consciências: “As autoridades castigam os chefes indígenas que não lhes apresentam o número exigido, tornam os sobas responsáveis pelos fugitivos, resolvem o caso mais drasticamente enviando os cipaios às povoações prender a torto e a direito até satisfação da quantidade. Os cipaios, por sua vez, fazem negócio com a missão que têm a cumprir, deixando escapar os que os gratificam (…) Se quisermos ser realistas, a situação é pelo menos tão desumana como era nos tempos da completa escravatura. Contudo, nesse tempo, o negro, comprado como um animal de trabalho, continuava a ser uma peça da propriedade pessoal que o seu dono tinha interesse em manter saudável e vigorosa, como fazia com o seu boi ou o seu cavalo. Atualmente, negro não é vendido mas simplesmente alugado ao Governo sem perder o rótulo de homem livre. O patrão importa-se pouco que o homem viva ou morra, desde que trabalhe enquanto puder; pois o patrão pode pedir que lhe forneçam outro trabalhador, se o primeiro ficar incapacitado ou se morrer. Há patrões que deixam morrer até 35% dos trabalhadores que recebem dos agentes governamentais durante aquilo a que se chama período do contrato de trabalho. Mas não há notícias de que a alguns deles tenham sido recusados novos trabalhadores para trabalharem nas mesmas condições”.

Mas não era só o trabalho forçado que servia de ónus à população nativa. Também a propriedade e posse de terra por parte dos indígenas estava em causa. O regime algodoeiro, por exemplo, era uma autêntica forma de escravatura, um contrato leonino a que o indígena ficava amarrado. Valentim Alexandre espraia-se sobre a queda de Dadrá e Nagar-Aveli. Quando a França deixa de poder aguentar a sua posição colonial em Pondichéry, retirou-se. O Estado da Índia é para Nehru o último escolho. Começa pelo mais fácil, toma conta de dois enclaves, houve uma imensa campanha nacional de protesto, a oposição portuguesa divide-se na resposta. É esse o tempo em que o PCP denuncia a campanha nacionalista como belicista ao invés de negociar com o povo indiano de Goa e com a União Indiana, Salazar estaria instigado pelos norte-americanos, queria um foco de guerra dentro do cenário que era o cerco à União Soviética e à China. O PCP denunciava a situação vivida nas colónias e procurava passar a ideia de que a natureza repressiva do Estado Novo o tornava especialmente inapto para resolver os problemas coloniais. O regime sente perder o pé junto do Vaticano: o Papa recebe Nehru em 8 de Julho de 1955, a questão de Goa irá atravessar um novo pico de tensão que culminará nos satiyagrahas de Agosto seguinte a manifestações aparentemente pacíficas de indianos que procurava ocupar o território, em jeito de invasão. A partir de então, Lisboa não tem ilusões: a qualquer momento haverá uma invasão, impossível de conter. A inquietante expectativa prolongar-se-á por anos.

Estamos na terceira parte da importantíssima obra de Valentim Alexandre: a grande vaga da descolonização (1955-1960). A Conferência de Bandung (1955) condenará explicitamente o colonialismo sob todas as suas manifestações. Observa o autor: “Esta fórmula era suficientemente lata para abranger o domínio exercido pela União Soviética nos países do Leste da Europa (que o Paquistão e as Filipinas pretendiam denunciar); mas, nas interpretações subsequentes, foi lida como uma referência aos impérios coloniais europeus e um apelo ao seu desmantelamento, nomeadamente em África”. O Norte de África muda de fisionomia política por esta época e acolhe de bom grado os ventos do nacionalismo africano. A independência do Sudão não teve as repercussões da independência do Gana, neste país, o seu dirigente, Nkrumah assumiu de paladino do anticolonialismo e do pan-africanismo, abriam-se as portas ao processo de descolonização de outro grande território da África Ocidental Britânica, a Nigéria. “As colónias inglesas da África Oriental (Tanganhica, Quénia, Uganda e Zanzibar) e da África Central (Rodésia do Sul, Rodésia do Norte e Niassalândia) não ficaram imunes à influência ao movimento que afetou as da África Ocidental a partir de 1957”. Analisando a outra poderosa potência colonial, escreve o autor: “As colónias francesas da África Negra tiveram uma evolução semelhante às da África Ocidental Britânica” e, mais adiante: “Pela sua natureza – a de territórios submetidos a tutela, por isso sujeitos a supervisão da ONU – o Togo e os Camarões Franceses tendiam a escapar a esta lógica uniformizadora. Em meados da década de 50, a França procurou sapar o terreno aos nacionalistas, fazendo concessões que iam no sentido da autonomia interna, mas no âmbito da União Francesa”. Mas a independência era o ar do tempo, irreversível. Cria-se a comunidade francesa, era a redefinição das relações entre a França e as suas colónias. Todos eles votaram afirmativamente, salvo a Guiné. É nisto que se ateia um incêndio que terá consequências em Angola, os incidentes do Congo. E depois o autor discreteia sobre o colonialismo missionário e uma espécie de “Portugalização” do Ultramar.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18198: Bibliografia de uma guerra (82): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)