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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24748: Manuscrito(s) (Luís Graça ) (238): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte V: um país de brandos costumes: quatro mil degredados em Angola, nos finais do séc. XIX, três em cada quatro dos colonos brancos


Porto : Museu Nacional Soares dos Reis > "O desterrado"0¥(¥, escultura, em mármore de Carrrara, datada de 1877.  Uma obra-prima da escultura portuguesa naturalista do séc. XIX. Autoria; Soares dos Reis (1847-1889). Inspirado no extenso e pungente poema de Alexandre Herculano, que conheceu bem o exílio:  "Tristezas do Desterrado" (1852):  Fonte: Imagem do domínio público,  adaptada. Cortesia da Wikimedia Commons. 



Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I e II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53 e 54")



Camilo Castelo Branco.
Cortesia de Wikipedia


1. Às voltas com a figura, intrigante e contraditória, de Zé do Telhado (1816-1875) (*), tinha que ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890), obra que eu, confesso, não conhecia.

Trata-se, de resto, de um autor prolífero, compulsivo, que, para além de uma história de vida, pessoal, amorosa, familiar,  turbulenta, truculenta, infeliz, que acabou em tragédia (o suicídio, aos 65 anos), nos deixou mais de duas  centenas e meia de títulos, de quase todos os géneros, embora de qualidade literária desigual. (Declaração de interesse: não é um dos meus escritores favoritos, mas têm sido as "Memórias do Cârcere", nos últimos tempos,  uma leitura de cabeceira; a par disso, conheço meia dúzia de títulos do autor.)

É um prosador portentoso, genial, um mestre da língua, com uma enorme capacidade de efabulação, e com grandes recursos estilísticos, mesmo se algumas das suas criações são dramalhões de ""faca e alguidar, ao gosto do público burguês oitocentista, que devorava os "folhetins" camilianos  (publicados semanalmente na imprensa), com a mesma avidez com que os portugueses no pós-25 de Abril consumiam as telenovelas brasileiras.

Deixou-nos, muitas vezes a traço grosso, um retrato de uma época conturbada socialmente em que Portugal estava longe de ser o tal país de brandos costumes que, no nosso tempo de meninos e moços, nos tentaram impingir na escola e na catequese.

O livro, "Memórias do Cárecere", foi escrito em 40 dias (cerca de 500 pp.
), depois dele sair da prisão, como explica no prefácio da 2ª ediçáo (1862). É constituído por mais de uma trintena de "historietas" (o termo é dele), incluindo um esboço biográfico relativo à figura do Zé do Telhado (op. cit, vol, II, cap XXVI, pp. 83-107).

E é seguramente ele, Camilo,  quem, através do seu advogado do Porto,  Marcelino de Matos, o salva da condenação à morte (pena que ainda não tinha sido abolida...), a ele,  Zé do Telhado, e  depois, com o livro, o transforma  numa herói romântico, com um destino trágico ( tal como  a  Brasileira de Prazins e tantas outras figuras da tragicomédia camiliana, sem esquecer o Simão Botelho e a Teresa Albuquerque, protagonistas da novela, com muitos traços autobiográficos, "Amor de Perdição", escrito na prisão, em 15 dias, em 1861).

Na realidade, o Zé do Telhado (das "Memórias do Cárcere")  é também uma criatura camiliana, romântica e trágica como o  seu criador...

No ano e picos em que esteve na cadeia do Tribunal da Relação do Porto, entre outubro de 1860 e novembro de 1861 (se não erro), pelo crime de adultério, o escritor conheceu dezenas e dezenas de homens (e também mulheres), a maior parte condenados, à espera de partir para Lisboa para depois aí embarcarem para o desterro em África; homicidas, parricidas, 
infanticídas, violadores, adúlteras, ladrões, bandidos, sicários, loucos, cleptómanos, moedeiros falsos, etc.

Um pouco ao acaso, ao sabor da leitura, selecionei uns tantos excertos do livro (I volume),  com algumas destas figuras, representantes da subumanidade que apodrecia nas enxovias da cadeia do Porto. Escolhi excertos menos "sombrios", de preferência com descrições  e cenas galhofeiras,   grotescos ou picarescas, fazendo  jus sobretudo ao sarcasmo com que o autor tratava os "maus fitas" de então ( a "corja", como ele lhes chamava).

Na época já se discutia vivamente a urgência da reforma do sistema prisional e o livro do Camilo, ao denunciar as miseráveis condições de carceragem em que viviam então os reclusos (que tinham de pagar "cama, mesa e roupa lavada"!), também dá um importante contributo nesse sentido. Aires Gouveia era então o grande paladino dessa reforma, cuja efectivação há de chegar ao séc. XX, com a criação de um moderno sistema penitenciário. (**)

2. Excertos de "Memórias do Cárcere" (I Volume, 1862):

(i) José Bernardino Tavares, lavrador de Santa Maria da Feira, que roubou a Felícia ao abade, acabando por ser preso por ajustes de contas com o rival (pp. 170/178):

(…) Tinha o padre no presbitério uma espadaúda a moça, que era o feitiço de seu amo, e dos rapazes. Rentavam-lhe todos, e ela a todos voltava as costas de esquiva, e de soberba pelas peias em que trazia o coração do abade (pág. 170).

(…) José Bernardino tirou-se de seus cuidados e fez dois dedos de namoro à sécia. (pág. 170).

(…) As carícias do abade como que lhe cheiravam a simoneta, os colóquios ao lar com ele, nas noites grandes, faziam-na tosquenejar, bocejar e dormir sobre a roca (pág. 171).

(…) Aquela casta de mulheres, quando adregam de amar, criam sangue novo, espanejam-se, enramalham-se, são como leoas na selva, quando ruído do leão lhes sacode os músculos (pág. 171).

(…) – Traz o leite, Felícia!, berra o pastor daquele tinhosa ovelha, que àquela hora estava já tresmalhada e sisada no aprisco do senhor José Bernardino (pág. 171).

(…) O abade amava Felícia quando todos as potências da sua imoralidade, da sua compleição, da sua estupidez (pág. 172).

(…) Uma noite pegaram lhe fogo à casa, e por um triz que a labareda não chorrisca os torresmos do padre (pág. 174).

(…) Nenhum outro preso [como o José Bernardino] encontrei ali tão ansioso da liberdade, e ao mesmo tempo tão regalado de amiudadas visitas de valentes e atoicinhadas mocetonas de sua terra (pág. 175).

(…) Com a morte do soberano [o rei Dom Pedro V (1837-1851), que visitou duas vezes o cárcere do Tribunal da Relação do Porto, quando o Camilo lá estava, em 1860/61 ] morreram as esperanças do preso [de obter perdão ou comutação da pena]. Desvanecidas estavam elas já para mim. A palavra dos reis era sagrada quando os reis governavam; agora apenas reinavam. Um amanuense de secretaria basta a entupir os canais por onde aflui a misericórdia do rei ao povo (pág, 177).

(ii) Outra história de um abade, minhoto, mas este homicida (matou a tiro o irmão da amante), e que conseguira fugir da cadeia de Braga, antes de voltar a ser apanhado e metido no cárcere do Tribunal da Relação do Porto (pp. 221/227)

(…) O padre Manuel [dos Arcos] teria cerca de trinta e oito anos, os olhos espelhavam melhor a alma, que eu sinceramente imaginava má (pág, 221).

(...) Estava ao padre condenado a calceta perpétua. Não sei de pena mais dura nem mais aviltante (pág. 221).

(…) Padre Manuel tinha uns amores com uma mocetona do concelho dos Arcos; e a mocetona tinha um irmão honrado, contrário a tais amores. Prevaleceu o coração do padre sobre as razões do irmão, e o escândalo sobre os rumores da opinião pública.

O padre era valente e temido; e a moça, afoitada por ele, afrontava o desprezo, e ostentava despejadamente a sua concubinagem (pág. 222).

(…) Estava o padre Manuel nas cadeias de Braga e entendeu que estava mal (pág. 222).

(…) Tomou por caminhos travessos que o levavam aos Arcos, e, porventura, surpreendeu a moça fiando e humedecendo a estriga com lágrimas, senão é que a encontrou contemplativa e sentada no rebordo da pia dos cevados (pp. 223/224).

(…) A moça foi à salgadeira, escolheu os melhores salpicões, respigou da horta os mais tenros renovos, e fez a ceia como as mulheres laboriosas de Homero, e ele comeu à tripa forra, como os heróis do mesmo poeta, que conhecia melhor o seu mundo e o nosso, que nós outros romancistas, falsificadores do coração humano (pág. 224).

(iii) Sobre o parricida, que foi desterrado para África (pp. 180/187):

(…) O hospital da misericórdia [do Porto] não queria receber doidos, porque não tinha enfermaria especial. Ninguém o dirá do estabelecimento de caridade mais dotado e rico do país. (pág, 180).

(…) Eu tenho de coração humano ideias sempre em divórcio com as ideias comuns. Quero acreditar que há remorsos e saudades naquele homem, que foi filho, que teve mãe, que orou com ela, que a viu morta, que a chorou talvez nos braços do pai, que foi tudo o que são os bons filhos, antes de serem parricidas. (pág. 187).

(iv) Os fabricantes e passadores de moeda falsa também passavam pela cadeia da relação do Porto, era um delito frequente na época. Um deles foi desterrado para Cabo Verde, deixando no Porto mulher e três filhos (pp. 117/129)

(…) Três deles esta hora estão a caminho da África, e não mais para eles aquele ardente céu lhes dará monção de voltarem à pátria. (pág. 117)

(…) [Um deles] o senhor Máximo que, ao tempo da sua prisão, tinha um lá, tinha no largo do Carmo um botequim. (pãg. 117)

(…) Na prisão trabalhava ele incansavelmente, desde o arraiar da manhã até alta noite na manufatura de caixinhas para as boticas, e fazia trezentas por dia. O lucro de cada tarefa diária orçava por quatrocentos e oitenta réis.

(...) Quando foi preso, tinha ele em começos de formatura na escola médico-cirúrgica um filho; outro em latinidade, e projetava educar o terceiro também na carreira das letras. Sua mulher tinha nascido, senhora, e recatada se mantivera sempre como exemplar mãe e esposa (pág. 118).

(...) Vou, como iria para a sepultura, deixando protegida mulher e filhos (...). De ora avante, já se me dá de morrer aqui ou no degredo (pág. 119).


(v) Zé do Telhado, salvo da pena capital, condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos  (pp.  83/107)

(…) Marcelino de Matos defendeu gratuitamente o seu cliente. Querer dar-lhe a liberdade era um paradoxo,  querer salvá-lo da pena capital era um arrojo. E salvou-o! 

Não foi o sofisma que embaíu os jurados;  foi a sincera e comovida eloquência que os pungiu a lágrimas. Muitas deviam ser necessárias para lavar tanta nódoa de sangue acusador! (pág. 105).

(…) Marcelino de Matos venceu muito; fez que José do Telhado fosse julgado como réu de uma única morte, sem premeditação, e como caluniado na maioria dos roubos arguidos. Fez muito ali, onde estavam os testemunhos, os roubados, os feridos, a multidão que o vira,  ou só vira pelos olhos do seu terror!

José Teixeira foi condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos.

A meio caminho, quando voltava ao antecipado inferno da reclusão incomunicável, encontrou sua mulher que lhe saiu a despedir-se… para sempre (pág. 106).

(…) Um dia, quando eu já era livre,  foi-lhe intimada imprevista ordem de embarcar para Lisboa. José Teixeira entroixou a sua pequenina bagagem, desceu a entrar na escolta, estendeu os pulsos às cordas, e pediu a um preso circunstante um vintém de esmola para cigarros. E recebeu a esmola mais alegre do que tinha recebido, em Valpaços, uma condecoração  [a "Torre e Espada"] por ter salvo a vida ao Bayard português [o  general Sá da Bandeira]   (pág. 107).

(...) Os jornais têm contado façanhas do José Teixeira do Telhado  contra a negraria [em Angola] . O comércio de África deve lhe muito, e espera muito mais daquele braço de ferro, e sede de sangue. Os pretos é que pagam os agravos que os brancos lhe fizeram cá. Se José Teixeira for esperto, pode morrer, pelo menos, rei daqueles sítios. (Nota da segunda edição). (Nota de rodapé, pag. 107). (#)

_____________

Fonte: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53).

(#) Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966 (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 54).

(Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24745: Manuscrito(s) (Luís Graça) (237): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte IV: 10 anos de impunidade

(**) Vd. Diário de Notícias, 1 de julho de 2017 : "A pena de morte estava abolida na consciência social desde 1840". Entrevista do director do Museu do Aljube, por Ana Sousa Dias.

 [O entrevistado é Luís Farinha. Estranhamente não é mencionado o seu nome, nesta peça do DN. Recorde.se que ele, com o nosso Renato Monteiro, é autor do livro "Fotobiografia da Guerra Colonial" (Publicações Dom Quixote, 1990; Círculo de Leitores, 1998)]

(...) Qual foi o percurso até à abolição?

Os abolicionistas começaram por tentar que nos códigos e nas leis houvesse menos motivos para a pena de morte, é uma estratégia clara desde a Viradeira, desde Pascoal de Melo e Freire, a quem D. Maria I manda fazer um Código Penal novo. As razões previstas na lei vinham desde as Ordenações Filipinas do século XVII, era uma longa listagem. A outra estratégia era tentar que o rei comutasse a pena, o que aconteceu constantemente com a D. Maria I, D. João VI , D. Maria II e D. Pedro V - com os reis da Guerra Civil, D. Pedro IV e D. Miguel, não, evidentemente.

Comutação em prisão perpétua?

Pode ser perpétua, trabalhos forçados ou degredo. Normalmente é degredo... as colónias nesse sentido deram sempre muito jeito. Um dos argumentos dos finais do século XIX contra a abolição era o facto de se mandar pessoas para as colónias aos milhares. Entre 1870 e 1896 há quatro mil degredados, são três quartos da população branca de Angola. (...)

(...) Os bem-intencionados queriam construir penitenciárias em todos os distritos, mas não havia dinheiro. E os que eram contra a abolição da pena de morte diziam: "Se não conseguem construir é melhor matar. Para que estão a criar ilusões? As pessoas vão para o degredo durante anos e anos - há lá alguma penitenciária, algum trabalho que regenere?" Claro que não havia. Os desgraçados viviam miseravelmente de trabalhos forçados, não só para o Estado mas também para particulares que faziam deles escravos. É isso que diz Ramalho Ortigão: estão a criar uma situação falsa, não há meios para regenerar as pessoas, não há cadeias preparadas. (...)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23648: (In)citações (223): Reflexão sobre ética (uma visão pessoal) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© Desenho de Manel Cruz


REFLEXÃO SOBRE ÉTICA

(Uma visão pessoal)

adão cruz

Existe uma ética inscrita no nosso código genético, válida só por si, existe uma ética baseada na história da vida e das sociedades humanas ou existem ambas, fundidas e inseparáveis?

Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética é a mais bela construção do ser humano, assente em quarto pilares fundamentais.

A Ética é, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo a ética a autenticidade deste fazer-se.

O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de assumir a séria orientação da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade.

O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres e arrogantes, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura espectáculo, a cultura enlatada de tanta gente cabotina, a massificação e homogeneização que apenas gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura da ética dialógica que está na base da racionalidade critica, orientada para a procura do verdadeiro significado da realidade humana.

O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito de nós próprios.

O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o egoísmo, o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda globalizante e os desculpabilizam e valorizam. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o desconhecido, a quem abre a sua curiosidade, a sua vontade de saber e a sua vital necessidade de procura da verdade.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23637: (In)citações (222): Reflexão (complexo caminho da simplicidade da Evidência) (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

quarta-feira, 3 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21963: Antologia (76): Os Homens Lobos, um conto por Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912 - Bissau, 1983), da coletânea "O Cativeiro dos Bichos" (cortesia de João Scharz da Silva)



Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, "O Cativeiro dos Bichos", Bissau, 2006 (Edição de autor).


Trata-se de uma  colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966, outros em Lisboa, entre essa data e 1973.

Preso em 26 de agosto de 1966, à chegada ao aeroporto de Lisboa, por motivos políticos ["actividades contra a segurança do Estado"], libertado quatro meses depois, sem culpa formada, foi-lhe fixada residência em Lisboa, ficando assim impedido de voltar à Guiné onde residia e exercia a advocacia desde 1948 e onde a esposa era professora do ensino liceal. A decisão só foi revogada em 1970, por ordem de Marcelo Caetano, seu antigo professor. Montou escritório de advogado na baixa lisboeta, e só voltou à Guiné-Bissau em 1977. 

Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983) foi um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade. Falava as línguas fulas e mandinga. Era casado com Clara Schwarz da Silva (1915-2016). descendente de judeus polacos, e durante largos anos a decana da  nossaTabanca Grande. De entre os seus filhos, Pepito e João são membros da nossa Tabanca Grande. O Pepito, infelizmente, também já falecido, em 18 de fevereiro de 2014. Teria hoje 72 anos, se fosse vivo.

A esta colectânea de contos pertence este, "Os Homenns Lobos", que vamos  agora reproduzir,  por cortesia do filho João Schwarz da Silva. Outros dois já aqui foram divulgados em tempos no nosso blogue (*)

1. Mensagem, com data de ontem, 2 de março, 10:58,  de João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, desde 2018, irmão do nosso querido e saudoso amigo Pepito, que nos deixou no dia 18 de fevereiro de 2014, prematuramente aos 63 anos:
Olá, Luís:

Espero que esteja tudo bem consigo e que tenha conseguido superar a Covid. Junto envio um pequeno conto que o meu pai escreveu em Maio de 1973 e que relata as desventuras de um homem num tribunal de Bissau. Pode publicá-lo se achar que ele se enquadra no seu site.

Um grande abraço

Joao Schwarz da silva

Os Homens Lobos, 

por Artur Augusto silva

(Maio 1973)

PRIMEIRO QUADRO

O juiz ordenou:

— Senhor oficial, recolha as testemunhas !

E o oficial de diligências começou encaminhando-as para a sala contígua à dos julgamentos, com certa dificuldade.

As testemunhas, incluindo o réu e o ofendido, eram da raça balanta e no seu ar bisonho e desconfiado denotavam logo pouco convívio com o branco.

— Levante-se o réu — disse o juiz — e o intérprete traduziu, o que provocou por parte do arguido um salto brusco, não fosse o branco pensar que não queria obedecer.

— Nome?

— Uaná Nhante.

— Casado ou solteiro?

— Tem mulher.

— Em que se emprega? Em que trabalha?

— Lavrador.

— Nome dos pais?

— Bidjane e Najá.

— Já alguma vez respondeu ou esteve preso?

— Esteve preso na Administração de Mansoa, por ter morto um homem.

— Há quantos anos?

— Não sabe.

—Então não sabe há quantos anos esteve preso?

Aqui o homem embaraçou-se, começou contando pelos dedos, repartia três de uma das mãos e três da outra e ia falando para o intérprete que, a espaços, aprovava com um aceno de cabeça.
Por fim traduziu:

— Ele diz que há mais de seis chuvas.

O juiz, voltando-se para o delegado, observou:

— Não consta do certificado...

O agente do Ministério Público depois de uma leve hesitação, explicou :

— Dantes, as administrações não mandavam os boletins. A justiça lá feita lá morria.

Dirigindo-se ao intérprete. o juiz informou:

— Diga-lhe que até aqui ele era obrigado a responder sob pena de desobediência. Daqui por diante só responde se quiser. Pode delegar a defesa no seu advogado oficioso. Quer responder?

— Quer.

— É verdade que ele quis matar o irmão com uma catana?

— É verdade.

— É porque estava bêbado?

— Não, não estava bêbado.

— Então, porquê?

Repetida a pergunta ao réu, este falou, fazendo gestos estranhos, avançando com os braços estendidos e as mãos encurvadas, agachando-se e abrindo os olhos desmedidamente, emitindonsons guturais, como se estivesse representando uma pantomima.

No final da cena, o intérprete explicou:

— Ele diz que o irmão, ao anoitecer, se vira em lobo e vem perseguir as pessoas da tabanca que se atrasam nos trabalhos do campo.

O juiz deu um salto na cadeira e, com ar severo, de quem não admite graças, disse:

— Advirta o réu de que neste tribunal não se brinca.

Nessa altura o advogado oficioso, mais filósofo do que advogado e que a filosofia levara a exilar-se em Africa havia mais de vinte anos, pediu a palavra para explicar que não havia, por parte do réu a mais pequena intenção de falta de respeito ao tribunal. Era assim: ele acreditava e todos os nativos acreditavam. Desconhecia S. Exa que nas aldeias, lá na Metrópole, o povo também acreditava em lobisomens?

O juiz, mais sereno, só comentava:

—É estranho! É estranho ! E isto em pleno século vinte! !...

— E tem V. Exa, Sr. Dr. Juiz, a certeza de que um homem não se pode transformar em lobo?!

— Mas há quaisquer dúvidas a esse respeito? — inquiriu o juiz, pasmado.

— Tenho-as eu, e grandes mas são contos largos que não vêm ao caso... Se V. Exa perguntar lá no seu íntimo o que é a realidade, talvez encontre um princípio de resposta para esta questão.

— Então o Sr. Dr. acredita...?

— Eu não disse que acreditava; eu conjecturei, quando muito.

— É o mesmo!

— Talvez...

E o advogado filósofo sorria, com um sorriso miudinho que mal lhe aflorava ao canto dos lábios, e parecia conferir-lhe um ar de superioridade e desdém.

O juiz suspendeu a audiência por um quarto de hora e, já no seu gabinete, mandou chamar o advogado. Este apareceu, ainda de toga, uma toga velha, a tornar-se ruça, atestando idade e má qualidade da fazenda. Sem mais preâmbulos, abertamente, o magistrado disse-lhe,

— Sou novato nestes casos de África. Estive quatro anos, como delegado, em Luanda, e lá, mal contactamos com os indígenas. Nunca vi nem ouvi falar destas superstições. O que mais me espanta é que o doutor, com a sólida cultura que me dizem ter, acredite nestas balelas populares...

Ia a continuar, mas o filósofo interrompeu-o:

—Perdão, Sr. Dr. Juiz. Eu não disse que acreditava. Pois, se nunca sei em que hei-de acreditar; se não consegui uma revelação que me afirme «isto é», como posso acreditar? Aceito as coisas, procuro encontrar a sua razão profunda e, até hoje, não a encontrei. O que existe é tudo o que vemos, sentimos e cheiramos, e só isso, ou antes: o que vemos, sentimos e cheiramos, não será uma ilusão dos nossos sentidos? A ciência com «c» pequeno. Bom arrimo para os que só gostam de trilhar os caminhos já percorridos...

E voltando-se de frente para o juiz:

— O que interessa neste caso é sabermos se o réu acreditava ou não que seu irmão se transformava em lobo e vinha comer as pessoas da tabanca. Se isso era uma realidade para ele,
tão real como a sua presença neste julgamento. Se, psicologicamente, ele agiu nessa convicção,
agiu em legitima defesa própria e colectiva ou então é juridicamente um inimputável: um caso de psicopatia a definir pelos médicos.

E acrescentou:

— Sr. Dr. Juiz: para mim, neste caso interessa a certeza da verdade do réu, desde que ela coincida com a certeza da verdade das testemunhas.

— Mas, então, vamos comtemporizar com a barbária?

—Dois mundos paralelos que, por mais que se prolonguem, não se encontram. — comentou o filósofo.

A audiência reiniciou-se passados momentos, com a audição do ofendido. Este explicou que
havia muitos anos, já, seu irmão o via com maus olhos, que o mataria porque era feiticeiro. Que o homem que o irmão matara fora grande amigo e companheiro dele, ofendido. Que não existia qualquer razão de inimizade entre ambos.

As testemunhas afinaram pelo mesmo diapasão, acrescentando que o réu era pacato, bom pai
de família e trabalhador. Matara um homem há anos, mas esse homem transformava-se em lobo e fazia mal à tabanca.

A instâncias do advogado declararam, ainda, que não havia dúvida de que o homem que ele
matara se transformava em lobo. Quanto ao irmão, não podiam afirmar, mas era voz corrente que também se transformava em lobo. Um pouco mais apertadas, vieram a confessar que toda a gente sabia que o homem se transformava em lobo e era um elemento perigoso na povoação.

Perguntados como é que um homem se podia transformar em lobo, foram unânimes em dizer
que bastava que ele fosse inteligente e tivesse nascido no primeiro tornado depois da primeira
chuva do ano.

O delegado e o advogado limitaram-se a pedir justiça. Um porque “crime era evidente”, outro,
porque era impossível refazer as consciências. O réu foi condenado em três anos de prisão maior.


SEGUNDO QUADRO

Na tabanca, à hora em que o Sol se esconde no horizonte e as pessoas velhas, de autoridade e
conselho, se reúnem para comentar os acontecimentos do dia. E nesse dia havia acontecimentos graves a comentar, porque tinham regressado as testemunhas do julgamento do Uaná. Mesmo aqueles mais velhos, que pela sua extrema idade já mal andavam, tinham vindo para se inteirarem de como tudo correra e saber da justiça do branco.

Taná, que fora como testemunha e, no consenso geral, era o mais avisado dos presentes, encarregou-se de contar o feito. Taná preparou o ambiente, mandando que os circunstantes se sentassem em círculo, por forma a que, no meio, pudesse falar para todos. Acenderam-se uns molhos de palha sobre os quais puseram uns troncos de árvores e Taná começou:

— Casa onde branco faz justiça é grande e bonita. Tem muitos bancos mas ninguém se senta neles. Numa mesa veio sentar-se um branco velho, de boa cara, mas vestia um fato com saias, como as mulheres deles, e pôs-se a escrever. Depois entraram dois brancos — com uma capa preta e logo a seguir outros dois brancos novos, também com saias de mulher. Todos se
levantaram : um deles era o dono da justiça dos brancos. O dono da justiça falou e nós fomos
levados para outra casa. Eu fui o primeiro a sair dessa casa e a voltar para onde estava Uaná. O
dono da justiça falava para um balanta que eles lá tinham e este perguntava-nos o que ele queria. Nós respondíamos. O dono da justiça não acreditava que um homem se pudesse transformar em lobo e perguntou-me multas vezes se era verdade. O tal branco que entrou primeiro, esse acreditava. Perguntou-me como era e eu dei uma resposta qualquer. Depois vi que o branco falava balanta — falava mal, mas eu percebi-o. O diabo até conhecia a nossa tabanca. Disse-me que já caçara um cavalo marinho na bolanha das palmeiras. Vocês lembram-se?

Houve uma pausa e um velho recordou que há muito tempo estivera ali um branco a caçar. Assim alto e forte, com uns vidros no nariz, até lhes tinha dado a carne do cavalo marinho...

— Já me lembro, já me lembro! — comentaram diversas vozes.

— Pois devia ser esse — aquiesceu Taná, que continuou contando as diversas cenas do julgamento, procurando imitar a voz e os gestos das pessoas.

Por fim, contou que Uaná, iria ficar preso durante três anos. Fez-se um silêncio geral em que se poderia ouvir um zumbido de um mosquito. Então o mais velho dos presentes comentou:

— Estes brancos são pessoas crescidas, mas têm coisas de meninos... Então o dono da justiça dos brancos não sabia que Uaná tinha razão?

E a pergunta ficou em suspenso porque ninguém podia imaginar o que o dono da justiça dos
brancos pensava.

Artur Augusto Silva (***)

[Originalmente publicado na separata Artes e Letras do "Diário de Noticias", de 24 de Maio de 1973: Sobre o autor, ver aqui a belíssima e exaustiva evocação feita pelo seu filho, João Schwarz da Silva, no seu sítio, Des Gens Intéressants]

2. Relembrando o Pepito (Bissau, 1949 - Lisboa, 2012)

Lisboa, campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 7 de setembro de 2007 > 

Neste rosto luminoso e fraterno, havia carisma, afabilidade, determinação, coragem física e moral, visão estratégica e capacidade de liderança, seis qualidades pessoais que eu identificava e admirava no engº agrº Carlos Schwarz da Silva (1949-2014), mais conhecido por Pepito ("nickname" que vem dos tempos da meninice: segundo o irmão João, o Carlos tinha um herói, uma das figuras de banda desenhada do "Cavaleiro Andante", o Agapito, um nome com 4 sílabas, difíceis de pronunciar por uma criança, e que ele abreviava, chamando-lhe "Pepito"). A foto foi tirada em 2006, sob uma pequena palmeira, que foi crescendo junto à fachada do edifício da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa, na Av Padre Cruz, onde então trabalhava.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 18 de fevereiro de 2016 > 

A palmeira cresceu, cresceu até gaklgar o segundo piso, estava vigorosa, contrariamente a muitas que na zona foram atacadas pelo escaravelho da palmeira (Rhynchophorus ferrugineus Olivier) e morreram... 

Sempre que passava por ela, lembrava-me do Pepito e da sua face luminosa, e continuava a sentir o vazio da sua ausência. Há uns meses atrás, em plena pandemia de  Coiviod-19, voltei lá e, para grande desgosto meu, tinham cortado a palmeira, possivelmente com o argumento de que, quando foi desenhado o edifício (pelo arquiteto Pardal Monteiro), ele não quis lá pôr nenhuma palmeira. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

O Edifício da Escola Nacional de Saúde Pública, integrado no conjunto das instalações do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. 

O projecto do edifício inicial foi desenvolvido pelo Arq António Pardal Monteiro e ficou concluído em 1972. Teve uma ampliação em 1985. Como se vê não há nemhuma palmeira. Foto s/d.

Foto: cortesia do sítio Pardal Monteiro Arquitectos



Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido)  e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:



(***) Último poste da série > 5 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Guiné 61/4 - P18057: Agenda cultural (617): o criminalista e antigo inspector-chefe da PJ, Barra da Costa, acaba de lançar o livro "Os crimes de João Brandão: das Beiras ao degredo" (Edições Macaronésia, Ponta Delgada, 2017)


Edições Macaronésia: Rua da Saúde N.º 107 - Arrifes, 9500-363, Ponta Delgada.


Ficha Técnica:

Autor - Barra da Costa

Título - Os crimes de João Brandão (das Beiras ao degredo) 

Edição - Edições Macaronésia

Local - Ponta Delgada

Ano - 2017

Sinopse:

“Quando abracei esta vida reprovada por todo o ser cristão e que nos coloca na posição mais ínfima, mais vil, mais repugnante da sociedade, foi porque a miséria me impeliu juntamente com a falta de caridade que encontrei no meu semelhante; o meu coração, contudo, não é desses ferozes que se vangloriam ao verem tudo nadando em sangue. Tenho aversão a isso e só na última necessidade, quando não nos possamos salvar sem lançar mão desse terrível recurso, é que aconselho a que se derrame. Além disso desejo que socorramos aqueles que ainda necessitam mais que nós. Tiraremos aos ricos, mas repartiremos também com os pobres. Com uma mão praticamos o crime, pois bem, com a outra pratiquemos a caridade: verdadeira religião cristã. Usarei de uns bilhetes com o meu nome e toda a pessoa que o apresentar a vocês deverá ser respeitada como se fora eu. Serei justo e imparcial para com os meus colegas. Eis aqui as minhas ideias e sentimentos, que desejo que sigam à risca.” [José do Telhado, in Souza, Rafhael (1874). A vida de José do Telhado, p. 26), apresentando as suas condições para aceitar o cargo de mestre, proposto pelos seus companheiros, aos quais pediu que jurassem em como se comprometiam a dar a vida uns pelos outros.]

Fonte: Edições Macaronésia, Ponta Delgada, RA Açores

Comprar  > P.V.P.: 11,00 € 


1. Mensagem, de 7 do corrente, enviada pelo autor, [José Martins] Barra da Costa [, professor, escritor, criminalista e antigo inspetor-chefe da PJ] com pedido de apresentação e divulgação da obra sobre João Vítor da Silva Brandão (Tábua, Midões, 1825 - Bié, Angola, 1880), que ficou conhecido como o "terror das Beiras":


O livro que ora se apresenta – Os Crimes de João Brandão (Das Beiras ao Degredo) - é um trabalho histórico publicado pelas Edições Macaronésia, que tem como pano de fundo um período fervilhante da História de Portugal.

[Contactar o editor - tm. 918189075 ou email acrpeixoto@sapo.pt - que após confirmar o depósito do 11 euros no NIB que ele próprio  vos fornecerá, enviará o livro, sem acréscimo de preço]

O meu objectivo específico enquanto autor passa por convocar os leitores, por um lado, a uma comparação com as «novas filosofias de vida» que parecem querer despontar e, por outro lado, a uma reflexão sobre o que vem sendo feito pelo sistema político-judiciário, tantas vezes regredindo e transigindo em princípios e valores de Liberdade e de Democracia que se julgavam consolidados.

A forma como então decorreu a divisão do país entre miguelistas e liberais, potenciou a formação de grupos de guerrilhas. João Brandão acabou a lutar pelos seus interesses, sob a capa de uma ou outra ideologia, muitas vezes legitimado pelo próprio Estado a braços com um novo sistema político, de forma a garantir a perseguição dos inimigos políticos e o controlo da ordem pública. Quando as elites políticas entenderam que o poder estava estabilizado e os bandos já não eram úteis para os seus fins, varreram-nos para debaixo do tapete.

O meu objectivo geral tem como de fundo avançar uma reflexão sobre o futuro que hoje se desenha sobre nós, designadamente quando, sobre os braços da Justiça, parece querer voltar a elevar-se a antiga pena de degredo à condição de peça histórico-jurídica actual. Apetecia dizer que se trata de uma reflexão sobre tudo o que já foi e que não queremos que regresse, até porque a questão do degredo, neste caso das Beiras para Angola, não é estranha a muitos dos que povoaram outras paragens. 

Veja-se a «prática» de enviar para os Açores e Madeira os candidatos pior classificados em diferentes carreiras da administração central ou como ainda subsiste o hábito de colocar nas ilhas funcionários da administração central que tenham sido alvo de processos disciplinares ou, a outro nível, o que se passa com os repatriados vindos do Canadá e dos Estados Unidos da América.

Na parte final abordo a natureza das penas e dos seus efeitos, em especial as que foram aplicadas ao nosso herói que, apesar de «negativo», não devia ter recebido um sofrimento que é uma inqualificável barbaridade, uma aberração vergonhosa e uma forma irregular, inconsciente e arbitrária de aplicar um qualquer princípio de justiça.

João Brandão é uma personalidade da História recente, um exemplo do continuado poder político próprio dos caciques locais; e é muito em razão dessa «estrutura provinciana» que consegue integrar ainda hoje a cultura popular portuguesa. Como pretendi demonstrar.

Espero que gostem e possa ser útil na vossa vida pessoal e profissional, pelo menos.

Barra da Costa.

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Nota do editor:

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16538: Inquérito 'on line' (68): Quando os filhos dos ricos e dos poderosos de então andavam connosco na escola, na tropa e na guerra... Resposta até ao dia 5/10/2016, às 19h44...


Guiné > Bissau > s/d > "Monumento ao Esforço da Raça (Bissau)". Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 131". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal. Imprimarte, SARL).

Coleção de postais  ilustrados do Agostinho Gaspar / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010) (*)


1. INQUÉRITO DE OPINIÃO: "OS FILHOS DOS RICOS E PODEROSOS DE ENTÃO ANDARAM COMIGO"...

1. Não, não andaram comigo na escola

2. Não, não andaram comigo na tropa

3. Não, não andaram comigo na guerra

4. Sim, andaram comigo na escola

5. Sim, andaram comigo na tropa

6. Sim, andaram comigo na guerra

7. Não sei / não me lembro


2. É um inquérito (ou "sondagem") para responder no nosso blogue, até ao dia 5 de outubro, até às 7:44 PM (19h44)... Colocar a cruzinha aqui. diretamente, ao canto superior esquerdo do blogue... Passadas as férias de verão, contamos com uma boa adesão dos nossos leitores, o mesmo é dizer, 100 ou mais respostas (**)...

Os ricos e poderosos do nosso tempo, do tempo da guerra colonial (1961/74), eram uma elite restrita: grandes agrários, grandes empresários industriais, grandes comerciantes, alto clero, banqueiros, generais, almirantes, magistrados,  deputados à Assembleia Nacional e procuradores à Câmara Corporativa, dirigentes do partido único (União Nacional / Ação Nacional Popular), ministros, governantes do Estado Novo, governadores civis, autarcas,,,.

Nas terras de província contavam-se pelos dedos. Tinham nomes de família sonantes. Eram respeitados. temidos, amados, odiados... Tinham criados, rendeiros, afilhados,,,, Eram influentes, eram poderosos, mesmo que nem todos fossem ricos, ou muito ricos... Portugal era (e ainda o é) uma "sociedade clientelar"...

Será que os filhos desses senhores (e senhoras) andaram connosco ?... Na escola, na tropa e na guerra ?... Não pomos outras hipóteses, como creche/jardim de infância, que era coisa que no nosso tempo não existia... Quando muito, catequese, mocidade portuguesa... A escola inclui o liceu (para os poucos que tinham a sorte de chegar  ao liceu e depois, com mais sorte ainda,  à universidade)...

Confesso que o mote me foi dado pelo nosso camarada Adão Cruz, ex-alf mil médico (***).

A resposta é múltipla: os filhos dos ricos e poderosos da  nossa terra, nos anos 50, 60, 60, 70, do século passado,  podem ter andado connosco na escola ou no liceu (?) ou até na tropa (!) mas provavelmente não na guerra... E, se eram mobilizados para a "guerra do ultramar", arranjavam, com facilidade, maneira de ficar no "ar condicionado" de Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... É verdade ?...

Histórias, precisam-se!... E,  se houver fotos, melhor!.. Mas,  antes,  não se esqueçam de "votar", ou seja, escolher as categorias de resposta que vos parecerem mais adequadas... (LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de junho de 2010 >  Guiné 63/74 - P6645: Memória dos lugares (87): Bissau, cidadezinha colonial (Parte V) (Agostinho Gaspar)

(...) Não sei de quem é o autor deste monumento nem o ano exacto da sua concepção e construção. A estética é claramente estado-novista típica dos anos 40/princípios de 50... O monumento, destruído depois da independência (segundo sei), tem várias leituras: para uns pode ser uma obra-prima, para outros um mamarracho... Eu, que sou contra o camartelo dos iconoclastas (de todos os iconoclastas), tenho pena que o monumento não tenha sido poupado, como de resto parte da estatuária do 'colonialismo'...

Para os camaradas que fizeram a guerra colonial, como eu, e que conheceram este monumento, devo dizer o seguinte: toda a arte traz a marca do seu tempo e fala do seu tempo... Seria fácil, há trinta e cinco atrás, do alto da nossa arrogância juvenil, apodar o monumento de 'colonial-fascista'... Mas já nos tempos que por lá passei, em Bissau, em 1969/71, o termo raça me fazia urticária... Qualquer que fosse a raça em causa... Hoje é sabido, de resto, que não existem raças humanas... Pertencemos todos à mesma espécie, Homo sapiens sapiens... É uma constatação científica, não é uma asserção do politicamente correcto... Dito isto, tenha pena que os guineenses tenham destruído o 'Monumento ao Esforço da Raça' [, Portuguesa, claro]... fazia parte do seu património histórico, da mesma maneira que os marcos milíários que pontuavam as vias romans ligando a Lusitânia ao resto do Império Romano, fazem parte do nosso património histórico (...) (LG)


(**) Último poste da série > 25 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16419: Inquérito 'on line' (67): Valha-nos, ao menos, isso: as NT nunca usaram soldados-meninos....

(***) Vd. poste de 27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

(...) O Alferes Almeida foi meu companheiro de quarto em Bigene, no norte da Guiné, se é que podemos chamar quarto ao alpendre onde dormíamos. Cerca de oito anos mais novo do que eu, o Almeidinha fez-se meu amigo de verdade. Amigo desde o acampamento da Fonte da Telha, do quartel de Porto Brandão e da Amadora.

Embarcámos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do Movimento Nacional Feminino e o malabarístico safanço dos filhos dos ricos e patriotas da situação. Embalados pelas ondas do mar da Mauritânia, e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo, demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966. (...)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15641: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (5): crime & castigo, degredo para as praças de Cacheu e Bissau (1801), e para a Índia e Moçambique (1803)... E amnistia real a "todos os portugueses que se acharem presos, processados, desterrados, ou perseguidos por opiniões políticas", além de "todos os crimes de deserção simples, e agravadas, bem como todos os réus sentenciados por três anos a galés, degredo ou prisão dentro do reino ou fora dele" (Rio de Janeiro, 1826)



Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 09 DE JANEIRO DE 1801
Decreto mandando destinar para Cacheu, e Bissáo todos os Reos que se acharem incursos em degredo para Africa
› D. JOÃO, REGENTE DO REINO (1792-1816), Livro 1791-1801




Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 17 DE OUTUBRO DE 1803
Decreto para se commutar a pena de certos Réos em degredo para a India , e Moçambique
› D. JOÃO, REGENTE DO REINO (1792-1816), Livro 1802-1810





Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 27 DE ABRIL DE 1826
Decreto concedendo Amnistia a todos os que se acharem prezos, processados, desterrados, ou perseguidos por opiniões politicas até á data deste Decreto, perdoando todos os crimes de deserção simples, e aggravada assim como a todos os Réos sentenceados por tres annos a galés, degredo, ou prizão dentro, ou fora do Reino, e aquelles, que estiverem nestas circumstancias , e que para cumprirem suas Sentenças lhes faltarem tres annos, quaesquer que forem os seus crimes.
› D. PEDRO IV (1826), Livro 1826 - 2º Sem




O último retrato Dom Pedro I do Brasil (e  depois IV de Portugal) (Queluz, 1798 . Queluz, 1834), c. 1830, da autoria do  pintor Simplício  Rodrigues de Sá (São Nicolau, Cabo Verde, 1785-Rio de Janeiro, 1839). O original está no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15374: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (4): aberto um crédito especial de 250 contos, em 27/2/1908 (escassas semanas depois do regicídio), para fazer face às despesaas com operações militares na "província da Guiné", ao tempo do governador Oliveira Muzanty, 1º tenente da armada

terça-feira, 4 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11670: Blogpoesia (343): Recuso dizer uma oração / ao Deus que te abandonou... (José Manuel Lopes, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

 1.  Poema, sem título, do nosso camarada José Manuel Lopes (ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), mais conhecido na região de Tombali pelo seu pseudónimo literário Josema...

Retirado das lides literárias (de resto, eu acho que ele nunca se levou a sério como poeta, embora escrevesse todos os dias alguma da melhor poesia da guerra colonial!), é hoje vitivinicultor na região demarcada do Douro, produzindo belos nectares com a ajuda da sua mulher  Maria Luísa Valente (, uma mulher de armas!) e com o talento do filho de ambos, Vasco Lopes, enólogo (mas também DJ)...

Apesar de já ter sido publicado, no poste P2739, de 20/4/2008, juntamente com mais outros cinco poemas do seu "poemário" (ou do que restou do seu "poemário", em grande parte destruído, num noite de descrença e de fúria),  achamos que é tempo de dar-lhe o devido destaque, agora na nossa série Blogpoesia... 

É um texto, duro, de 1972, escrito em Bolama, no início da comissão... Admito que alguns leitores poderão inclusive achá-lo iconoclasta, se não mesmo blasfemo... Mas quem é que, perante a morte de um camarada no TO da Guiné, não passou por estes momentos de desespero, angústia, raiva ? E, sendo cristão, não chegou mesmo a invectivar Deus e a sua "momentânea distração" ?

É mais um poema do nosso camarada José Manuel Lopes, que vai estar connosco em Monte Real em 8/6/2013, mas que está a passar por um mau momento na sua árdua vida de empresário, tal como a grande maioria dos portugueses, quer trabalhem por conta de outrem , quer trabalhem por conta própria.. Enfim,  é mais  um belo poema do nosso Josema, que merece ser lido em voz alta, pausadamente, nestes dias tristes, de perplexidade e de angústia,   "quando [, citando um poema de Sophia de Melo, do Livro Sexto, 1962, que me acaompanhou no TO da Guiném, em 1969/71 ] a pátria que temos não a temos,  / perdida por silêncio e por renúncia, / até a voz do mar se torna exílio / e a luz que nos rodeia é como grades". Até Monte Real, camarada, amigo e poeta ! L.G.

PS - Muito oportunamente, o António Carvalho, que foi fur mil enf da mesma companhia, e grande amigo do poeta, fez este comentário ao  poste: "Este pungente poema é um brado de dor e revolta em que todas as amarras de ordem religiosa e cultural se quebram num absoluto desafio aos deuses. Não é um insulto ao Criador mas a busca desesperada de uma explicação.O contexto ou o cenário em que este poema foi escrito? Não pode ser outro acontecimento, trata-se da morte do soldado Mata, no acidente com um dilagrama, no dia 10 de Julho de 1972, quando morreu também o alferes Figueiredo do BART 6520. É também para mim um belíssimo poema."


2. Recuso dizer uma oração
ao Deus que te abandonou,
não sei se é do nó
que me aperta a garganta
ou da revolta que brota do meu peito,
só sei que não consigo
desculpa...
sinto ganas de arrancar
o fio preso ao teu pescoço
e atirar dentro da mata essa cruz
no local...
onde encontraste a tua,
onde perdeste a vida
e eu a minha fé, entorpecida;
recuso deixar de pensar
no que aqui nos trouxe,
para onde nos levam,
quero encontrar respostas
a todas as perguntas
que se soltam em turbilhão
dentro de mim,
quero encontrar
algo que justifique,
achar uma razão,
por pequena que seja,
irmão,
para acalmar esta dor
e não encontro
e não encontro... não!

Bolama, 1972
josema

[Fixação de texto: L.G.]
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11648: Blogpoesia (342): Antologia: Poemas de Maio, de Ovar a Mafra, entre o céu e o inferno, com as bolanhas de Tombali ao fundo (J. L. Mendes Gomes)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8951: Humor de caserna (23): Uma insubordinação do c... ou uma viagem pelo polissémico país do c...!!!

1. Termos (ou expressões) considerados “insultuosos” no meio civil, à luz das nossas regras de boa educação e urbanidade, incluindo as regras do nosso blogue (ou livro de estilo),  podem ter outra leitura, apreciação ou abordagem,  vistas  de dentro da “caserna da tropa" e, consequentemente,  à luz do sacrossanto  RDM.

É, pelo menos, essa opinião dos senhores jurisprudentes, civis e militares… Ou, pelo menos,  de alguns. O termo em causa é o nosso tão familiar c..., típica forma de “linguagem de caserna”... Mas podiam  ser outras armas de arremesso do nosso arsenal de insultos verbais, em contexto castrense ou fora dele, algumas usadas até no nosso blogue, no calor das nossas batalhas que, felizmente, são apenas verbais: por exemplo,  fascho, comuna, corno, tuga, turra, filho da puta, cabrão, panasca, fujão, penetra…).


Das Caldas (onde o Bordalo Pinheiro transformou o  c... em faiança artística, e onde no RI5, no CSM, eramos tratados de c... para baixo) a Tavira (onde sofremos pra c... nas salinas), de Mafra (onde o cadete na formatura, na parada do EPI, não podia mexer uma pestana nem que lhe passasse um c... pela boca) a Bedanda (onde o obus 14 dava um coice pra c ...), enfim, por toda a parte onde andámos fardados e calçados pela tropa o dito c... acompanhou toda a nossa alegre e divertida vida militar... 


Mais: é um verdadeiro ferrete, faz já parte do nosso ADN... Falo por mim que já não o dispenso no meu léxico, com 4 anos de tropa mais... 36 anos de conbíbio com a gente nortenha pela bia uterina... 

Esta peça de jurisprudência, de que já dei conhecimento ao nosso “alfero Cabral” (sendo ele um fino e erudito colecionador desta produção dos nossos jurisconsultos), merece figurar (em forma de excerto e link) no nosso blogue e na nossa série Humor de caserna… 


Aqui fica, para os efeitos que foram julgados convenientes ou que se mostrem devidos (memória futura, enriquecimento linguístico, resiliência ao stress, reforço do sistema imunitário, preservação dos usos e costumes, desopilanço dos tabanqueiros, proteção da dentadura do proletariado, etc.) (LG)


PS - Ah!, já me esquecia,  tiro o quico e bato a pala ao senhor relator...



Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  (reproduzido parcialmente com a devida vénia...)


Processo:  1/09.3F1STC.L1-9
Relator:  CALHEIROS DA GAMA
Descritores:  INSUBORDINAÇÃO POR OUTRAS OFENSAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão:  28-10-2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão:  NEGADO PROVIMENTO



(...) Sumário

I - A palavra “caralho”, proferida por militar (Cabo da Guarda Nacional Republicana), na presença do seu Comandante, em desabafo, perante a recusa de alteração de turnos, não consubstancia a prática do crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo artigo 89º, n.º 2, alínea b), do Código de Justiça Militar.

II - Será menos própria numa relação hierárquica, mas está dentro daquilo que vulgarmente se designa por “linguagem de caserna”, tal como no desporto existe a de “balneário”, em que expressões consideradas ordinárias e desrespeitosas noutros contextos, porque trocadas num âmbito restrito (dentro das instalações da GNR) e inter pares (o arguido não estava a falar com um oficial, subalterno, superior ou general, mas com um 2º Sargento, com quem tinha uma especial relação de proximidade e camaradagem) e são sinal de mera virilidade verbal. Como em outros meios, a linguagem castrense utilizada pelos membros das Forças Armadas e afins, tem por vezes significado ou peso específico diverso do mero coloquial.

(...) Decisão Texto Integral:

(...) Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:  


(...) Se bem compreendemos, parece que para a Digna Magistrada do MP a ser por alguém proferida a palavra “caralho” esta terá de ser sempre entendida, seja em que circunstancialismo for, como ofensiva do bom nome honra e consideração quiçá de todos quantos estejam à volta de quem a proferiu, ainda que não lhes seja dirigida (vd. conclusões C) e D) do recurso).

Afigura-se-nos que, manifestamente, sem razão.

Segundo as fontes, para uns a palavra “caralho” vem do latim “caraculu” que significava pequena estaca, enquanto que, para outros, este termo surge utilizado pelos portugueses nos tempos das grandes navegações para, nas artes de marinhagem, designar o topo do mastro principal das naus, ou seja, um pau grande. Certo é que, independentemente da etimologia da palavra, o povo começou a associar a palavra ao órgão sexual masculino, o pénis. E esse é o significado actual da palavra, se bem que no seu uso popular quotidiano a conotação fálica nem sequer muitas vezes é racionalizada.

Com efeito, é público e notório, pois tal resulta da experiência comum, que CARALHO é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos e diversos estados de ânimo.

Por exemplo “pra caralho” é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (exº: "chove pra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga pra caralho"; "moras longe pra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno pra caralho"; "esse filme é velho pra caralho").

Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: “isto é mesmo bom, caralho”.  Por outro lado, se alguém fala de modo ininteligível poder-se-á ouvir: "não percebo um caralho do que dizes" e se A aborrece B, B dirá para A “vai pró caralho” e se alguma coisa não interessa: “isto não vale um caralho” e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração: "este gajo é do caralho" e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo não via “como vai essa vida, onde caralho te meteste?”.

Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação “carago”, não há nada a que não se possa juntar um “caralho”, funcionando este como verdadeira muleta oratória. 

Assim, dizer para alguém “vai para o caralho” é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade “ai o caralho” ou simplesmente “caralho”, como parece ter sucedido na situação em apreço nestes autos. No primeiro caso a expressão será ofensiva, enquanto que, ao invés, no segundo caso a expressão é tão-só designativa de admiração, surpresa, espanto, impaciência, irritação ou indignação (cfr. Dicionários da Língua Portuguesa da Priberam e da Porto Editora 2010).

Para a primeira hipótese vale aqui, entre outros e por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Dezembro de 1997 (in www.dgsi.pt) onde se expendeu em síntese que: “Integra a prática de um crime de injúrias, qualificado em razão da qualidade profissional do ofendido, subchefe da PSP, aquele que, ao dirigir-se-lhe, no exercício das suas funções, diz "vai para o caralho".” (…)

(...) DECISÃO

Em conformidade com o exposto, tudo visto e ponderado, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando, nos seus precisos termos, o despacho recorrido de não pronúncia do arguido A....
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique-se nos termos legais. (O presente acórdão, integrado por vinte e uma páginas com os versos em branco, foi processado em computador e integralmente revisto pelo desembargador relator, seu primeiro signatário – artº 94º, nº 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 28 de Outubro de 2010

Desembargador J. S. Calheiros da Gama
Juiz Militar Major-General Norberto Bernardes (...)

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Nota do editor:

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7703: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (4): "Eu servi a minha Pátria. É justo que a minha Pátria reconheça isso" (Cândido J. R. Pimenta)

O autor da petição, o nosso camarigo Inácio Silva (, foto à esquerda, ex-1.º Cabo da CART 2732, Mansabá, 1970/72)

1. Nós já subscrevemos a Petição Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios, para Assembleia da República e Governo. 2178 pessoas (ex-combatentes, seus familiares, seus amigos, seus concidadãos) já subscreveram.  Faltam mais de 1800 assinaturas. Aqui ficam alguns comentários (selecção dos editores)...


Nome
 Comentário

2162
Carlos de Jesus Gouveia Rodrigues
Estive na Guiné 69/70, não tenho Pensão,    mas estou convosco. 
2137
Vitor Hugo Rodrigues Figueiredo
Apoio 100%. Nação que não protege os seus veteranos, não merece qualquer sacrifício de parte os seus cidadãos.
2104
Ana Maria Delgado Martins
Sou filha de um ex-combatente na Guiné - Bissau,   Comp de Caçadores 1589, Fá  e Madina de Boé.
2117
Aurélio Neves de Sousa
A todos os camaradas que serviram a Pátria além fronteiras,  sou solidário no reconhecimento que o Estado Portugês deve aos ex-combatente uma vez que no cumprimento de suas missões revelaram um elevado sentido de Patriotismo e como tal deve ser reconhecido o seu mérito.
2090
Amaro de Oliveira Antonio
Comando de Agrupamento 1980 - Guine, Bafatá 67/68
2047
José Joaquim das Estevas
Combati na Guiné em nome de Portugal. Mereço respeito.

1864
Francisco Martins Moris
O dever de gratidão também deveria fazer parte do código de ética do Estado Português.
1821
Joao Luis dos Reis Moniz
Guiné, 1970-1971-1972...
1728
Candido José Rodrigues Pimenta
Eu servi a minha Pátria. É justo que a minha Pátria reconheça isso.
1686
Manuel gonçalves
Começo a entender que fomos os "mainatos" da pátria.
1638
Francisco Manuel Branco Frutuoso
Guiné.  Guidage, 1969 a 1971.
1611
Carlos Gil Correia Veloso da Veiga
Há sobretudo que dar uma atenção muito especial aos ex-combatentes naturais da ex-colónias e que por lá ficaram, perdendo a nacionalidade portuguesa.
1556
Jorge Morais de Araújo Ribeiro
Consultar legislação similar dos EUA sobre veteranos da Guerra do Vietname.
1509
António Manuel de Lemos Viana Boavida
Cmdte do Pelotão de Morteiros 4581/72 . Entrada em Mafra em 24 Abril de 1972. Guiné desde 1973 a 1974.
1480
Vítor Manuel Sampaio e Melo dos Santos
Sou ex-combatente miliciano e saliento que o País não trata devidamente os seus ex-combatentes como nos países desenvolvidos e até nos países mais pobres como os PALOP, em que existe um Ministério dos Ex-Combatentes.
1447
Pedro Gonçalo Coelho Nunes de Melo
Um povo que não honra quem o serviu, não merece esse nome.
1324
Renato Manuel Laia Epifânio
Presidente do MIL - Movimento Internacional Lusófono.
1320
Manuel Augusto Gordo Correia
"Honrai a Pátria que ela vos Comtempla" era o lema que nos massacrou durante todo o tempo de serviço. Nós honrámos a Pátria e ela não nos comtemplou. É mais que tempo para que se faça justiça. Tenho dito.
1240
António Monteiro Marques
Bendita Pátria que tais filhos tem.
1160
Honorata Jesus Soares Pequeno
Eu,  como mulher do ex-combatente,  é que sei o que as mulheres sofrem com o stress de guerra,  eu tenho um cá em casa.
1034
Filipe Vilhena Lemos Gonçalves
Lembrar ao Estado que os ex-combatentes não foram como voluntários para a guerra do ultramar.

943
Verónica leal
O meu pai quase morreu em 1966 na Guiné, hoje com 66 anos tem muitas mazelas fisicas e psicológicas e nunca recebeu nem recebe nada nem um obrigado...
926
João Alves Gomes
A Pátria deve honrar os seus soldados, a quem lhes pediu todos os sacrifícios incluindo o da vida. Quando isso não acontce, essa Pátria está doente.
919
Carlos Alberto Candido Ferra
Só neste País é que não reconhecem os ex- combatentes. Nos Estados Unidos são tratados como heróis, e com assistência total e boas reformas.
723
Carlos Manuel Alves Coutinho
Peca pelo tardio.
586
Terry Chagas Lino
O meu pai sofreu, e ainda sofre,  por causa da guerra na qual participou.
388
José Alexandre da Silveira Câmara
Fur Mil,  CCaç 3327/BII17, Guiné
305
Manuel Fernando Dias Oliveira
O Carácter de Uma Nação Vê-se Pela Forma Como Trata os Seus Veteranos (Winston Churchill).
137
João Maria Pereira da Costa
Muitos há anos que já mereciam os seus problemas resolvidos. Não esqueço os africanos que tombaram e vivem em condições sub-humanas. No livro «A Última Missão» do ex- Major Pára Calheiros vem a vergonha que assinámos e nos comprometemos. Leiam.

 
Brazão da  madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72), a que pertenceram, entre outros os nossos camarigos Inácio Silva, Carlos Vinhal e Jorge Picado


2. Texto da petição

Bellum dulce inexpertis
(Bem parece a guerra a quem não vai nela)

Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios.

1. Com a publicação da Lei 9/2002, de 11 de Fevereiro, foi regulado o regime jurídico dos períodos de prestação de serviço militar dos ex-combatentes, para efeitos de aposentação e reforma;

2. A regulamentação a que aquela Lei foi sujeita (Dec.-Lei nº 160/2004, de 2 de Julho), desvirtuou, em absoluto, os seus princípios, designadamente, a fórmula de cálculo do CEP (Complemento Especial de Pensão);

3. O Governo, perante inúmeras reclamações, submeteu à Assembleia da República, a Lei nº 3/2009, de 13 de Janeiro, que regula os benefícios previstos nas Leis n.os 9/2002, de 11 de Fevereiro, e 21/2004, de 5 de Junho e revogou o Dec.-Lei nº 160/2004, de 2 de Julho;

4. Porém, a injustiça manteve-se, não sendo acautelados, como deveriam ter sido, os interesses dos ex-combatentes.

Assim, propõem, à Assembleia da República e ao Governo, o seguinte:

a) Que os complementos especiais de pensão, agora convertidos no suplemento especial de pensão, sejam substituídos pela antecipação da idade da reforma, tendo em conta o tempo de serviço militar prestado em condições especiais de dificuldade ou perigo, até ao máximo de 5 anos;

b) Esta medida é extensiva a todos os ex-combatentes que efectuaram descontos para os subsistemas de Segurança Social, independetemente de estarem ou não reformados;

c) Aos ex-combatentes que recorreram à antecipação da sua reforma, deverá ser feito o recálculo da sua pensão, aplicando-se o regime previsto na alínea a), após a sua aprovação;

d) Aos ex-combatentes já reformados, tendo cumprido o período máximo de descontos para a Segurança Social, será atribuído um complemento adicional à sua pensão, correspondente ao tempo referido na alínea a);

e) Aos ex-combatentes que não se enquadram na al. b) mas que passaram a usufruir do “suplemento especial de pensão”, ser-lhes-á garantido o valor já atribuído;

f) Aos ex-combatentes que optaram por passar à disponibilidade numa das ex-províncias ultramarinas, considerar, para efeitos de reforma, o tempo de serviço aí prestado, ainda que o tenha sido numa empresa privada, a exemplo do que foi considerado para os bancários, advogados, solicitadores e Rádio Marconi.

Quae sunt Caesaris, Caesari
(A César o que é de César)

Os signatários


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Nota de L.G.: