Mostrar mensagens com a etiqueta guias. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta guias. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16810: (De)caras (56): O picador e guia das NT, Malan Djai Quité que eu conheci e que foi gravemente ferido em combate, na Ponta Coli em 22/4/1972 (Jorge Araújo)


O guia e picador das NT, Malan Djai Quité, mandinga do Xime, ferido em combate, na Ponta Coli, em 22 de abril de 1972, ao serviço da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74)

Foto: © Jorge Araújo  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



I. Comentário de Jorge Araújo ao poste P16804 (*)


[O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 105 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é  professor universitário.]

Caros Camaradas, Luís Graça e Pereira da Costa, meu Cmdt no Xime, entre 22 de junho de 1972, dia do seu aniversário, e 10 de novembro de 1972, dia do meu (coincidências!) e que não tive a oportunidade de dele despedir-me naquela data, pois encontrava-me de férias em Lisboa. Pelas imagens e pelas histórias nele narradas, o presente texto fez-me recuar quarenta e quatro anos recordando algumas das vivências e ocorrências daquela nossa estadia no Xime, já baptizada por “pedaço do inferno”. Eis um novo olhar sobre o seu conteúdo. 

1. – A pergunta do Luís Graça sobre quem seria o velho habitante por detrás do Lúcio Silva, não consigo identificar. É que entre março de 1973 e novembro de 2000 passaram quase dezoito anos… é muito tempo! 
 
2. – Quanto aos guias/picadores: Malan Quité e Mancaman Biai (tenho uma foto do Malan no P14495 e que se reproduz acima) (**), da minha memória cronológica consigo ainda identificar o seguinte: 

a) – Até à primeira emboscada na Ponta Coli, ocorrida em 22 de abril de 1972, o Malan foi o único guia/picador que me acompanhou em todas as missões em que participei. O nome de Mancaman Biai e a sua pessoa não me diziam nada. 

b) – Em consequência de ele ter ficado ferido com alguma gravidade naquele combate, foi evacuado para o Hospital Militar, em Bissau, aonde esteve algumas semanas (2/3 meses). 

c) – No período que vai de 23 de abril a 22 de junho de 1972 (dois meses) a CART 3494 ficou sem comando, uma vez que o seu líder decidiu rumar ao Serviço de Psiquiatria do HM, para nunca mais regressar à sua Unidade. 

d) – Mesmo sem liderança, o contingente da CART 3494 nunca deixou de cumprir com as suas missões, não entrando em histeria ou entropia, pois já tínhamos interiorizado o quão seria difícil viver naquela região. 

e) – Com três Gr Comb apenas (1.º, 3.º e 4.º, pois o 2.º estava destacado no Enxalé), e sem oficiais disponíveis para as diferentes actividades [ somente dois; Alf.Mil. Manuel Carneiro; que depois foi para uma Companhia Africana; e o Alf. Mil. Manuel Gomes (1948-2014), que, entretanto, tivera que se deslocar a Bissau], foi o colectivo de furriéis que garantiram todas as missões protocoladas. Neste período atípico não me recordo de ter a companhia de qualquer picador do Xime.

f) – Já não tenho memória de quem era (no caso de ter havido) guia/picador na acção «Gaspar 5», em conjunto com a CCAÇ 12, no dia 25 de maio de 1972, onde viria a morrer o Mário Mendes, cmdt do bigrupo que nos emboscou na Ponta Coli.

g) – Curioso é o facto de somente a 26 de junho de 1972, segunda-feira, às 20h15, o aquartelamento do Xime voltar a ser atacado, quatro dias após o camarada Pereira da Costa aí ter chegado.

h) – Para concluir, gostaria de deixar uma pergunta para o meu amigo e camarada Pereira da Costa: Se existe um relatório da acção, quem o terá redigido? Como é possível escrever-se que o Malan fez fogo com duas G3, se ninguém me pediu que relatasse o que quer que fosse, pois acabei de assumir a gestão total do grupo, uma vez que o ex-furriel Manuel Bento (1950-1972) teve morte imediata e o ex-furriel Sousa Pinto (1950-2012) ficara ferido e com pouca mobilidade ?!

Voltando ao Malan Quité recordo, como se tivesse sido ontem:

Chegava à messe de sargentos, cumprimentava à sua maneira o pessoal, e de seguida perguntava “quem parte coca-cola com Malan”. A resposta era sempre a mesma: “Almeida (impedido da messe) dá uma ‘coca’ ao Malan, e põe na minha conta”.

Quanto ao Homem, resgato o que escrevi no P14495:

O guia/picador Malan sempre me mereceu o maior respeito, admiração e apoio, pois era um homem solitário, tendo como única companhia o seu cachimbo artesanal, mas nosso amigo, e que muito nos ajudou nos diferentes itinerários que tivemos de percorrer, numa mata extremamente difícil, com muitas armadilhas, ratoeiras e outros obstáculos [já relatados neste espaço por outros camaradas que por lá passaram].


Parece que ainda o estou a ver sangrando com alguma abundância da cabeça, onde existiam pelo menos duas perfurações, empunhando duas G3 [a sua e outra que encontrou abandonada no solo]. […] Foi depois evacuado para Bissau, onde ficou internado algumas semanas, regressando ao Xime ainda a tempo de participar na segunda emboscada.

Fez na passada quinta-feira, dia 1 de dezembro, quarenta e quatro anos.

Boa semana, com saúde.
Ab.
Jorge Araújo.


II. Resposta do [António José Pereira da Costa, cor art ref (ex-alf art , CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art e cmdt , CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74; tem mais de 110 referências no nosso blogue]


Olá,  Jorge Araújo

Não li ou se li não me lembro do relatório da emboscada onde morreu o Bento. 

Quando cheguei ao Xime, o Alferes Manuel Gomes debatia-se com vários autos por ferimentos em combate e um por morte relativos à emboscada. Tinham passado dois meses e ele não tinha a mínima ideia do que havia a fazer e parece que ninguém lhe explicou. 

Em cada um destes autos deveria haver uma cópia do trecho do relatório da acção onde constasse o ferimento do elemento em causa.

Confirma-se que o Malan empunhou duas G3 [provavelmente a sua e outra que encontrou abandonada no solo]. Será problemático afirmar que fez fogo com as duas, acredito. A precisão do tiro não seria grande e a necessidade de o fazer também. Foi evacuado para Bissau, mas já tinha regressando ao Xime quando lá cheguei. Lembro-me de ter remetido o auto relativo ao ferimento dele para Bissau.

Posso ter ouvido falar a algum dos que foram emboscados, mas não posso dizer quem.

Um Ab.
António J. P. Costa


III. Resposta do Jorge Araújo:

Caro Camarada Cmdt Pereira da Costa,

Obrigado pelos esclarecimentos.

Ainda hoje não acredito que alguém tenha elaborado um relatório credível, mesmo desconhecendo as normas para a sua elaboração, tanto mais que nunca participei em actos administrativos, com a excepção do naufrágio, em que os dois fomos intervenientes.

A própria História do Batalhão resume a sua redacção a três linhas:

"Em 220600ABR72 grupo IN emboscou a segurança da PTA COLI (01 GRCOMB da CART 3494). As NT e Artilharia do XIME pôs o IN em fuga. Sofremos 01 morto (Furriel, 07 feridos graves e 12 feridos ligeiros)" p.59.

Acresce dizer que o então Cmdt da companhia seguiu para Bissau no domingo, 23 de abril, ou seja, no dia seguinte, e caso tenha escrito algo, fê-lo de modo (muito) resumido...

Ab.
Jorge Araújo.


IV. Comentário de Sousa de Castro [o nosso grã-tabanqueiro nº 2,  ex-1º cabo Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74; editor do blogue  CART 3494 & Camaradas da Guiné; tem mais de 130 referências no nosso blogue]

Caros amigos, quanto à veracidade se o Malan empunhou duas G-3, confirmo pelo relato da época de vários intervenientes, assim como o empenho do 1º cabo Manuel Amorim do Alto com o seu morteiro de 60 mm e o Sold. Manuel de Sousa Monteiro com o seu lança-granadas, daí terem sido distinguidos com o Prémio Governador da Guiné que consistiu na vinda à Metrópole em gozo de férias.

SdC
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 5 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16804: (De)caras (64): Os picas e guias das NT, Malan Djai Quité e Mancaman Biai, que eu conheci, no Xime, em 1972 (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

(**) Vd. poste de  > 20 de abril de 2015 > Guiné 63/734 - P14495: História da CART 3494 (6): Recordando a 1.ª emboscada na Ponta Coli em 22 de abril de 1972 e a morte do furriel Bento, a  única baixa em combate da CART 3494 (Jorge Araújo)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16772: (De)Caras (54): Em homenagem ao António Vaz (1936-2015), que nos deixou há um ano na véspera de natal: "os guias e picadores do Xime: Seco Camará 'versus' Mancaman Biai"


Leiria > Monte Real > Hotel Palace Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 > Da esquerda para a direita, o António José Pereira da Costa, o António Vaz, o Acácio Correia e o Jorge Araújo (ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74). Entre o António Vaz (ex-cap mil art, cmdt CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) e os restantes, graduados da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74), há duas outras subunidades pelo meio, a CART 2520 e a CART 2715...

Como antes da CART 1746, tinha havido a CCAÇ 1550, e como depois veio a CCAÇ 12 render a CART 3494...

Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Leiria > Monte Real > Hotel Palace Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 >  O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69).  O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné, retirado pelas NT em outubro de 1968... 

Conheci ambos, tal como ao Manuel Moreira, no nosso VII Encontro Nacional, em 2012. E a propósito, lembro-me da história que o António Vaz contava do João Guerra da Mata, no dia em que o Spínola, ainda periquito, "aterrou" na Ponta do Inglês:
– Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… –  disse, ao aterrar, o brigadeiro Spínola.
–  Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês – respondeu o alf mil João Mata que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal.


Foto (e legenda): © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. O António Vaz (19936-2015) já não está entre nós. Morreu vai fazer um ano, na véspera de Natal. (*)

Deixou-nos muitas saudades. Tinha uma grande vontade de viver, e era um belíssimo contador de histórias. Algumas estão connosco no nosso blogue,, infelizmente não tantas quantas ele gostaria ter podido contar.

Penso que a última vez que o vi,  fora numa manife, no Terreiro do Paço, contra a troika e a política de austeridade, em data  que já não posso precisar, talvez em finais de 2013/princípios  de 2014. 

Tinha superado um ACV, achei-o combativo e otimista. "Agora vou a todas"!, garantia-me ele, referindo.se às manifes. De vez em quando telefonava-lhe, umas vezes respondia-me, outras não... . Na véspera do Natal de 2015, talvez até no próprio dia em que morreu, tive o pressentimento de o seu telemóvel calara-se de vez... Foi uma estranha premonição. Sabia que ele estava de novo doente, com uma neoplasia,,, 

O António Vaz entrara para a Tabanca Grande em 31/3/2012, e timha cerca de 25 referências no nosso blogue. Era lisboeta e, se não erro, trabalhara na antiga Direção Geral das Alfândegas. Casado, tinha pelo menos uma filha e netos, de quem não temos, infelizmente, nenhum contacto.

Quase um ano depois, apetece-me convocá-lo para as nossas fileiras e para as nossas conversas intermináveis, sob o poilão da Tabanca Garnde, versando a Guiné, o Xime, a guerra, o blogue... Fui repescar um poste antigo em que ele evoca a figura do pequeno Seco Camará, ostracizado pela elite mandinga do Xime, e contrapondo-a à figura, mais ambígua e distante, do Mancaman Biai, filho do chefe da tabanaca. Um e outro disputavam a liderança da equipa de guias e picadores do Xime. É interessante seguir o raciocínio do António Vaz e ver como ele toma partido por um deles, 

Nunca soube ao certo a etnia do Seco Camará... Sempre o considerei mandinga, mas não tenho a certeza, dada a rivalidade com o clã Mancaman Biai. Ele morreu em 26/11/1970 e está sepultado em Nova Lamego. Os mandingas, no início de 1970, estavam longe de ser a maioria da população do regulado do Xime, sob nosso controlo: no que restava daquele martirizado regulado, estavam recenseados 872 habitantes (745 fulas e 127 mandingas), distribuídos por 4 tabancas: Xime: 250; Amedalai: 160; Taibatá, sede de Regulado do Xime: 228; Demba Tacó: 234. Julgo que os mandingas viviam todos os no Xime. (Fonte: História da Unidade - Bart 2917, BambadincA, 1970/72).

Do nosso blogue o António Vaz disse palavras que  nos enchem de orgulho e reforçam a nossa motivação  para continuar a trilhar a difícil picada que é este projeto de partilha de memórias (e de afectos):

Seco Cmará em Mansambo (c. 1969).
Foto de Torcato Mendonça (2007)
"A Tabanca Grande é um fenómeno que eu, que não sou bloguista, me deixa abismado e de certo modo surpreendido, porque,  que eu saiba,  não tem paralelo com outras formas de depoimento escrito sobre outros teatros de operações nem outras actividades. Para todos que erigiram e alimentaram com contribuições várias este blogue presto aqui as minhas merecidas homenagens. (...)


2. Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai (**)

Quando cheguei ao Xime, em janeiro de 1968, na "passagem do testemunho" que a CCAÇ 1550 [1966/67] fez da situação material e do pessoal adstrito (Pel Caç Nat, milícia e picadores), foi-me dito que o picador Seco Camará era o melhor da zona e que, nessa época, já levava 56 minas detectadas, o que para mim, nessa altura, era um número respeitável pois até à data, vindo de Bissorã, não tinha tido contacto frequente com tais engenhos.

Fiquei sabedor e considerei que a chefia do grupo de picadores estava, continuaria, bem entregue. Assim sucedeu durante alguns meses e o Seco era sempre convocado para as operações que pareciam mais complicadas.

Numa delas, em julho de 68, talvez a Op Golpear, com a paragem da coluna veio-me a informação:
 – MINA!!!

Ao chegar-me aos ouvidos, avancei para junto do Seco pois fora ele que a tinha detectado e operava. Aproximei-me dele com o cuidado requerido e fiquei a observar o seu procedimento. (Será que  a adrenalina que se liberta tem cheiro? O mato molhado parecia-me sempre adocicado mas naquela altura tinha mudado.)

Estava o Seco semideitado no chão e com a "pica" fazendo perfurações quase horizontais no terreno pois achava que este estava mais brando que o normal. Os gestos comedidos, o cuidado imenso e a tensão elevada ao máximo contagiaram-me. Tentava perceber se aquela textura do terreno correspondia ao que pensava ser uma "caminha" de mina.

Não mais esqueço a transformação que nele se operou: o seu semblante e a própria cor mudaram; o Seco estava cinzento de tão pálido que estava. Levantou-se,  lentamente dizendo:
– É mesmo mina, capitão!

A minha norma foi sempre "Mina rebenta-se, não se levanta". Arriscava contudo a perca do segredo da progressão mas era assim. Assim se procedeu mas o Seco teve o seu prémio pecuniário.

Vieram mais operações e num delas um alferes nomeado veio dizer-me que havia problema com a escala dos picadores, não queriam que o Seco fosse naquele dia e nos subsequentes porque não o queriam como chefe.
– Grande berbicacho – pensei eu.

As razões que me apresentaram não me convenceram: invocavam que aquele posto – chefe dos picadores –  devia ser desempenhado por alguém superior na hierarquia tribal. Prometi que resolveria o assunto depois daquela operação pois não era altura de estar com mais conversa.

O Seco foi como estava determinado mas com os resmungos dos outros picadores que acalmaram, talvez por eu ir nessa operação. Esta como outras foi "sem contacto, com vestígios" e,  num dos dias seguintes,  falei com o Seco que me disse que ele próprio não estava interessado em viver no Xime e preferia ir para outro lado.

(Eu à época não estava a par de eventuais "trabalhos sujos", já invocados neste blogue, que Seco desempenhara anteriormente. O comandante que me antecedeu [, da CCAÇ 1550,]  nada me referiu, embora quando arrumava as minhas coisas tivesse encontrado, na secretária a mim atribuída, um objecto formado por um cabo de madeira com 40 ou 50 centímetros ao qual estavam presos 3 ou 4 pedaços de arame farpado de idêntico comprimento formando um sinistro chicote. Destruí-o, pois não tinha como conduta torturar prisioneiros e achei que tal objecto prefigurava situações que sempre repudiei por princípio. Nos primeiros meses da comissão, em Bissorã, tive de travar, nem sempre com êxito, atitudes condenáveis por parte de milícias que facilmente se propagavam pelo pessoal da companhia.)

Quanto ao Seco, não consegui arrancar-lhe mais explicações e, falando no comando do Batalhão, em Bambadinca [, BCAÇ 2852], consegui arranjar-lhe um sítio para ele morar e que ele seria o "picador do capitão" e que seria convocado de vez em quando,  por mim, coisa que lhe agradou. 

Depois, falando com os picadores, vim a saber que, embora já desconfiasse, o chefe por eles desejado era o filho do chefe da tabanca, o Mancaman Biai, que desempenhou o papel até ao fim da comissão.

O Mancaman foi sempre uma pessoa reservada, discreta, embora entre o pessoal existisse certa desconfiança que me foi transmitida por diversas maneiras. O mesmo se passava com o chefe da tabanca que, na noite do ataque ao Xime, na passagem do ano de 1968 para 1969, que foi o mais forte da minha época, foi trazido para dentro do "quartel" por haver fortes suspeitas a seu respeito (não esquecer que a morte do furriel Dias, o vaguemestre da CART 1746,  e os muitos feridos na emboscada,  passara-se um mês antes). As coisas serenaram mas a desconfiança [manteve-se] com altos e baixos.

No dia da minha retirada, já com a LDG atracada no Xime, veio o Mancaman ter comigo,  se eu não lhe deixava uma recordação:
– Não, Mancaman, não tenho nada para te dar, mas já dei a ti e ao teu pai a possibilidade de não terem sofrido represálias que, numa certe altura, pareciam mais que prováveis.

Compreendia que as populações estavam divididas com a guerra e que era natural que familiares ou antigos amigos seus vivessem naquilo que à época eram bases IN e que isso era agora a realidade.
– Adeus, Mancaman.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de dezembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012

(**) Vd. poste de 20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

Vd. também postes de:

26 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16764: Efemérides (241): a Op Abencerragem Candente foi há 46 anos: lembrando os nossos mortos, incluindo o Joaquim Araújo Cunha, e evocando aqui a figura do valoroso guia e picador das NT, Seco Camará (Bambadinca), rival do Mancaman Biai 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12588: Os nossos camaradas guineenses (37): Os milícias e outras tropas auxiliares: as estatísticas dos tombados (José Martins / António J. Pereira da Costa / Jorge Picado)


(a) Milícias, polícia administrativa, caçadores nativos, civis contratados, etc.

Fonte: José Martins (2014)


1. Texto elaborado a partir de um comentário de L.G. ao poste P12576 (*)

Parece-me haver uma injustiça gritante, quando as nossas Forças Armadas não registaram (ou não registam) na lista oficial dos mortos os nomes de todos ou de muitos dos valorosos "milícias", ou tropa auxiliar, que esteve do nosso lado, durante a guerra colonial na Guiné... 

Por exemplo, o srgt de mílicas Samba Coiaté não consta na lista dos mortos da guerra do Ultramar, disponível no sítio da Liga dos Combatentes... Pesquisei pelo seu nome e data de morte em combate (18/3/1973)... E nada, o seu nome não consta...

E no entanto a sua morte é uma morte heróica, a avaliar pelo relato do Manuel Reis (*)...

Fiz um outro teste, com o nome do Seco Camará, valoroso milícia e guia das NT (que muitos de nós, do Setor L1, conhecemos)...  Não sei exatamente qual era o seu estatuto: creio que era um "civil contratado" (sic), às ordens do comando do BART 2917, com sede em Bambadinca, embora ele tivesse morança  no Xime (**)...

[Foto à esquerda: Seco Camará, em Mansambo.Foto: © Torcato Mendonça (2007) ]


O Seco Camará morreu, juntamente com uma secção inteira (5 camaradas do Xime, da CART 2715), numa operação em que participei, no subsetor do Xime (Op Abencerragem Candente)...  Foram os 6 primeiros homens abatidos de uma enorme coluna apeada, composta por 2 destacamentos, cada um com 3 grupos de combate, ou seja, no total cerca de 180 homens... Ajudei a recolher os seus restos mortais... tão reduzidos que cabiam num poncho...

Fez connosco (CCAÇ 12) diversas operações, fez operações com o Torcato Mendonça e outros camaradas que estão aqui na Tabanca Grande, e que passaram pelo Setor L1 em diferentes épocas... Mas aquela operação foi-lhe fatal... a ele que tinha guiado milhares e milhares de homens pelas matas do Xime e do Corubal, desde os  primeiros anos de guerra... Morreu, à roquetada, no dia 26/11/1970...

O seu nome também não consta na lista dos "nossos" mortos (, pelo menos na lista da Liga dos Combatentes)...

Um primeiro pensamento que me ocorre, é de indignação, esperando que  no entanto que isto não tenha passado de um lapso ou de falha da máquina burocrática do exército...

Os milícias não eram militares, mas foram combatentes... E que combatentes, muitos deles!... O Seco Camará não era nem podia ser um simples civil: era considerado o melhor (ou mais leal) dos nossos guias, e um exímio e corajoso picador. Mas os outros mílícias do Xime, ao que parece, não gostavam dele. Daí talvez a sua transferência para Bambandinca, ao tempo do BART 2917, se não me engano.

Tudo para dizer que a memória destes homens, o Samba Coaité, o Seco Camará e outros "tropas auxiliares" guineenses que tombaram, ao nosso lado,  deve ser honrada por todos nós... Pelo menos aqui... LG


2. E a este propósito, perguntei ao José Martins, nosso colaborador permanente [, e que tem especial sensibilidade em relação a este assunto, já que pertenceu a um companhia afriicana , a CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70], para me confirmar se os milícias estão ou não estão fora das listas dos mortos da guerra na Guiné.

Dei-lhe estes dois exemplos, o do Samba Coiaté e do Seco Camará, em que sabemos os nomes e as datas da morte... Mas haverá mais casos que, em princípio, terão ficado fora das nossas contas. A ser assim, teríamos que  rever os números das nossas baixas (mortais)  no TO da Guiné que, tenho, ideia andarão à volta das 3 mil... 

A resposta do José Martins, com data de 13 do corrente, foi a seguinte:

Boa tarde, Luis: Junto quadro elaborado a partir dos totais inscritos nos dois livros sobre os Tombados na Guiné. [ Vd. quadro supra.]

Dos nomes indicados o primeiro  [Samba Coiaté]   não  consta, com os elementos fornecidos, mas o segundo  [Seco Camará] faz parte da relação.

É preciso ter em boa nota os nomes por que eram conhecidos e se identificavam. Há milicias a quem se atribui dois nomes.

Abraço, José Martins.

Analisando o quadro acima verficamos que os nossos piores anos, em termos de baixas mortais, no caso das tropas regulares, foram os de 1967, 1968, 1969 e 1973... No caso das tropas auxiliares (e nomeadamente milícias), foram os anos de 1967, 1968, 1971 e 1973. No conjunto, o pior ano é do de 1973, com 11,9% do total das baixas mortais, ou seja, em termos absolutos 339 tombados.

3. Eis a seguir a opinião do nosso camarada António José Pereira da Costa, cor inf ref, a quem também pedi opinião, na mesma data.

[Foto à direita ... Recorde-se que ele foi alf art  na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; e Capitão Art Cmdt das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74]

Nunca estudei esse assunto.

Creio que não estarão incluídos por terem o estatuto de civis que colaboravam com as NT.

Não ganhavam como soldados e no período de formação (em Mansabá houve instrução de milícias) não tinham a mesma verba para alimentação dos soldados que assentavam praça para fazerem o SMO.

Em 1968 ainda armavam de Mauser e vestiam as sobras do fardamento e equipamento das NT. Daí para a frente as coisas mudaram e surgiram até os GEMil (havia dois no Enxalé, em 1972).

Claro que, nestas condições,  a sua prestação era variável havendo Pelotões de  Milícias com óptimas prestações e outros nem tanto. 

O mesmo sucedia individualmente. Até conheci um que, em 1968 era muito decidido e em 1972 procurava viver na paz do seu lar deixando a guerra que parecia não ter fim.
Um Ab.

António J. Pereira da Costa

4. Comentário, de 14 do corrente, do Jorge Picado, ao mesmo poste (*)



[Foto à esquerda: ex-cap mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72 ... aos 32 anos, pai de 4 filhos, engenheiro agrónomo, ilhavense].



Camaradas: Comungo do sentimo geral expresso sobre "a sorte" dos guineenses que nos foram fieis e que muito nos ajudaram.

Já agora, como dizem que os milícias e outros, como os carregadores, não constam das baixas em combate, posso acrescentar que na HU do BCaç 2885, constam os seguintes Mortos em Combate:

Pel Mil n.º 250 (Ex-Pel Mil n.º155)

- Soldado Mil.ª n.º 17267 Bailó Djaló, em 18MAI69

Pel Mil  n.º 251 (Ex-Pel Mil n.º 156)

- Soldado Mil.ª n.º 21067 Alberto Silva, em 18JUL69

Pel Mil n.º 252 (Ex-Gr Caç Balantas) (Ex-Pel Mil  n.º 186)

- Caçador Nativo José Bacar, em 04JUL69
- Caçador Nativo Clode Biete, em 18JUL69
- Caçador Natigvo Toban Car, em 23SET69
- Cacçador Nativo Quedim Botche, em 23SET69
- Soldado Mil  n.º 49069 Tuquena Iagna, em 06DEZ70

Pel Mil.ª n.º 253 (Ex-Pel Mil.ª n.º159)

- Soldado Mil.ª n.º 02868 Sambel Sabali, em 05OUT70

Colaborador das NT

- Carregador José Sambú, em 17AGO69.

Abraços
JPicado

________________

Notas do editor:

(*) 12 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12576: Os nossos camaradas guineenses (36): Abdulai, meu irmão!... Recordando quatro valorosos milícias de Guileje: Sátala Colubali, Camisa Conté, Abdulai Silá e Sargento Samba Coiaté (Manuel Reis, ex-Alf Mil Cav, CCAV 8350, Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã, Colibuia, 25/10/72 - 27/8/1974]

(**) Vd. postes de:

20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

26 de novembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7339: In Memoriam (62): Por quem os sinos dobram hoje, 40 anos depois: Fernando Soares, Joaquim de Araújo Cunha, Manuel da Silva Monteiro, P. Almeida, Rufino Correia de Oliveira e Seco Camará, os bravos do Xime, mortos na Ponta do Inglês (Op Abencerragem Candente) (Luís Graça)

11 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador, Seco Camará

12 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...

2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12114: Álbum fotográfico de Carlos Fraga (ex-alf mil, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973) (12): O terror das minas...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 1 > Numa picada numa operação de patrulhamento. Eu estou em 1º plano. À frente os guias. Creio que foi numa picada que ia de Mansabá em direcção ao Sara-Changalena, picada que não era utilizada há anos e que pretendiam reabrir para reabrir o acesso directo a uma localidade que não me lembro o nome picada que atravessava o Sara-Changalena.



Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 2 >Na picada acima referida, depois de abandonarmos as viaturas. A partir daí foi a pé. Creio que sou o primeiro, de costas. Pormenor muito interessante é que nós não facilitávamos. Mantínhamos as distâncias entre os militares e em deslocações auto matinhamos as distâncias entre as viaturas e a velocidade e em zonas perigosas íamos a pé com as viaturas no meio da coluna às distâncias próprias.



Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 3 > Os guias

Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 4 > Os picadores


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 5 > Durante a mesma operação. Intervalo para almoço. O calor era tanto que tirei o dolmen para o torcer encharcado de humidade. Outro pormenor. Tínhamos sempre as armas prontas. Almoçava-se ou descansava-se com elas ao colo ou mesmo à mão.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 6 >Mina anti-pessoal




Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 4612/72 > Foto nº 7 > Mina A/P, referida na foto nº 6, montada pelo PAIGC, e devidamente detectada e desmontada pelas NT.


Fotos da autoria do ex-alfd mil Carlos Alberto Fraga, enviadas em CD pelo Jorge Canhão e o Agostinho Gaspar, e outras por mail, pelo próprio Carlos Fraga. A ordem de numeração ( e a reconstituição da sequência são da responsabilidade do editor).
Fotos (e legendas): © Carlos Alberto Fraga / Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados

1.  Continuação da publicação do álbum de Carlos Fraga, que foi alf mil, na 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, em Mansoa, na segunda metade do ano de 1973. Foi adjunto (num curto período de 4 meses, até finais de 1973) do cap [José Manuel] Salgado Martins, indo depois ele próprio comandar, como capitão, uma companhia em Moçambique, a seguir ao 25 de abril de 1974. [ O cap art José Manuel Salgado Martins, transmontano, hoje coronel na reforma, a viver nos Açores. Nunca veio a nenhum encontro da companhia, constituídio maioritariamenmte por malta do Algarve, Alentejo e Lisboa..

Adenda às legenda, pelo  Carlos Fraga:

As fotos que se seguem [. vd. acima], foram tiradas numa operação de patrulhamento. Fomos por uma picada que saía de Mansabá e seguia para o Sara-Changalena. Isto passa-se,  salvo erro,  em 18/08/73. Nesse dia detectámos uma mina anti-pessoal que foi desmontada pelo Capitão Salgado Martins.

Tratava-se de uma mina anti-pessoal do PAIGC. Note-se que está plantada ao pé de um tronco de árvore. A ideia era quem se sentasse para descansar no tronco pisava a mina.

Estava desenterrada. Nisso os macacos eram nossos aliados. Com a curiosidade iam mexer. Foram eles que a desenterraram. Às vezes os pobres dos bichos também iam pelos ares,  vitimas da curiosidade. 

Nós queríamos rebentar a mina de longe mas o Cap Salgado
 Martins,  que era um belíssimo comandante de companhia
e corajoso,  embicou que conseguia desmontar a mina e desmontou-a.  [Foto à direita: O ex- cap art José Manuel Salgado Martins, transmontano, hoje coronel na reforma, a viver nos Açores. Nunca veio a nenhum encontro da companhia, constituídio maioritariamenmte por malta do Algarve, Alentejo e Lisboa, segundo informação do Jorge Canhão.Foto do Carlos Cordeiro].

Nessa operação aconteceu um episódio pitoresco. Mal tínhamos começado a andar na picada quando ouvimos um restolhar do lado direito. Por instinto agachámos e virámos as armas para o mato,  do lado direito,  e surge uma gazela (ou bicho semelhante) que passa entre nós de um lado para o outro. 

Desatámos a rir. Era o que menos se esperava.

Carlos Fraga
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11898: Álbum fotográfico de Carlos Fraga (ex-alf mil, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973) (11): Imagens de postais ilustrados (Parte II)

domingo, 17 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11268: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (41): O Chissóia e tantos outros que fomos obrigados a abandonar

 

1. Em mensagem do dia 21 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), volta a aflorar o doloroso fim de muitos dos camaradas africanos que lutaram ao nosso lado e que foram abandonados à sua sorte aquando da independência dos territórios ultramarinos.



O Chissóia

Este título encabeçava um texto que me foi enviado, há já algum tempo, via mail, por um amigo de longa data que reside, há anos, para lá da outra margem do Atlântico. Logo pensei escrever sobre tão desgraçado tema; eu estava, porém, assoberbado com outro longo assunto… trabalho do dia-a-dia, e o tempo foi passando, inexoravelmente.

Como assunto escreveu: “Homenagem de gratidão ao Chissóia e a tantos outros que fomos obrigados a abandonar”. “Malhas que o Império teceu”!

Faço agora duas perguntas:
- Quem terá sido obrigado a abandonar?
2ª - Foi obrigado por quem?

De seguida relata: extraído do livro "Quinda" de Carlos Acabado, da coleção Império, nº 3.
Mais abaixo, transcreve algumas passagens das páginas do autor acima referido, narrando um pouco da vida dos Chissóias, pai e filho

O progenitor fez-se pisteiro e caçador de elefantes - saber de experiência feito - para proteger (e não só) as culturas do povo da sua aldeia que - sabe-se lá porquê - ficavam na zona de passagem dos paquidermes, à procura da água do rio Lungwebungo, destruíam ou danificavam seriamente, em trânsito, as lavras dos seus vizinhos; com os seus estragos lançavam às malvas o trabalho estrénuo de meses. Destruídas as culturas, o povo pagava as favas… com meses de fome.

Ao mesmo tempo que protegia as sementeiras do seu povo, o pai Chissóia acompanhava também os abastados colonos da região na caça aos elefantes; a carne, às toneladas, era distribuída pela população da aldeia de Lucusse; apenas os dentes, depois de extraídos dos maxilares - tarefa de que o pai Chissóia, de bom grado, se encarregava - eram entregues aos colonos que haviam abatido os animais de… tromba.

Naqueles tempos conturbados - estávamos no início da Guerra Colonial - um grupo de gente armada, pessoas desconhecidas naquela aldeia, entrou em Lucusse para conversar com o soba. Perante a “incompreensão” daquela autoridade gentílica e até de alguma pretensa e/ou manifesta “hostilidade”, o chefe do bando armado, sem mais delongas, e perante a população aterrorizada, fuzilou o soba por ser um “chefe corrupto”; o velho Chissóia foi também barbaramente abatido, por ser “lacaio dos colonialistas”.

O filho Chissóia fugiu à pressa, embrenhando-se na selva protetora e conseguiu chegar a pé, são e salvo, à capital do distrito; procurou o chefe militar português a quem transmitiu a malvada notícia. De seguida, um destacamento militar fixou-se na aldeia e o jovem Chissóia foi colaborador dos militares, ficando para “sempre” ligado à nossa tropa; os seus conselhos e atuação eram cada vez mais imprescindíveis. Veio a ser condecorado com a Cruz de Guerra, por atos heróicos em combate, e, durante a cerimonia, ouviu do general que lha colocou no peito:
- Portugal sente orgulho por ter filhos como tu.

Os anos passaram… lentos; chegou a não menos sangrenta fase de transição para a independência; de novo ocorreram os ajustes de contas, talvez ainda em maior quantidade e, por certo, também mais atrozes.

Alguns elementos da aguerrida equipa de Chissóia foram selvaticamente abatidos; as chacinas generalizaram-se; outros companheiros, porém, tiveram tempo de se proteger na mata, às escondidas, com elevadíssimo risco, mantinham contacto com o chefe.

O Chissóia conseguiu chegar ao comando militar da zona, onde um “tenente de barbas”, depois de saber o seu nome, lhe transmitiu que isso “tinha de acontecer aos lacaios do imperialismo e traidores do povo”. O indígena sentiu o mundo cair dos eixos sobre a sua cabeça; ficou descoroçoado!

No Comando Militar, ele pensava ser absolutamente protegido; afinal ouviu do tal ”tenente de barbas” o mesmo que disseram ao seu pai antes de o fuzilarem: 
- Lacaio dos colonialistas.

Ao seu interlocutor, um militar da FAP, o Chissóia, incrédulo, referiu: 
- Mas, no caso do meu pai, os matadores eram negros… um tenente branco, ao serviço do Exército Português, não podia dizer-me o mesmo! Será que já fui riscado do rol dos portugueses para ser livremente abatido pelos africanos independentistas?!

Solicitou ao mesmo interlocutor o especial favor de, em meio aéreo, o colocar - bem como à sua família ali presente e mais duas mulheres - em determinada pista militar próxima da fronteira e já abandonada; dali eles partiriam, através da mata, ao encontro dos seus companheiros que haviam conseguido debandar antes de serem abatidos. Tinha a certeza que um dos “movimentos” estaria disponível para aproveitar a sua experiência e o seu saber fazer. Com desmedido perigo para as duas partes envolvidas na arriscada viagem, até à dita pista, o Chissóia foi ali colocado e, em poucos segundos, despareceu no soturno silêncio da brava selva africana que a todos, irmãmente, protege.

No dia seguinte, ao proceder-se à limpeza habitual do aparelho voador, alguém encontrou, por baixo do banco usado pelo Chissóia, uma Cruz de Guerra com a qual aquele herói tinha sido agraciado, anos antes. Tê-la-á perdido involuntariamente? Ou terá sido abandonada intencionalmente? Só ele e Deus o sabem. Aquela condecoração poderia ser um elemento comprometedor, pois confirmaria a sua íntima e longa ligação às Forças Armadas Portuguesas.

E mais não disse!

Como português, fiquei profundamente magoado - e como me doeu! - por ficar a saber (aliás já sabia de acontecimentos semelhantes) que alguns portugueses, embora de cor (o que nada significa) fossem maltratados, molestados, abatidos, selvaticamente chacinados, sendo tão portugueses como nós.

Quem assim agiu ou permitiu que se obrasse seria português apenas no BI ou até talvez isso; no coração a nacionalidade seria outra.

Neste momento, apetece-me perguntar às chefias, aos responsáveis no terreno, daquela época:
- Quantos Chissóias criámos nos três teatros de operações durante os longos e funestos anos da nossa guerra do Ultramar, para, no fim, serem cobardemente abandonados à sua triste sina?

A nova força africana... O major Fabião, na altura (1971/73) comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.
Autor da foto: desconhecido. (Reproduzidas com a devida vénia)

Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > 1970 > Pel Caç Nat 54 >
Foto: © Mário Armas de Sousa (2005). Todos os direitos reservados.
 
Militares da 1ª Companhia de Comandos Africanos, comandada pelo Capitão João Bacar Djaló
Foto retirada do nosso Blogue - Poste 6149

Estou a escrever para um blogue de ex-combatentes da Guiné. A esses eu pergunto de outro modo:

- Quantos Malans viveram, lutando sabiamente, corajosamente, lado a lado connosco, como portugueses de rija têmpera? O seu sangue, independentemente da cor da pele, que nada importa, era tão rubro, tão português como o nosso!

Quem saberá informar o que, na verdade aconteceu aos valorosos e portuguesíssimos militares do célebre Batalhão de Africanos, aquartelado em Bissau?

Citei o nome Malan, não só por ser comum na Guiné, mormente entre os mandingas, mas principalmente porque era o nome do brioso, ousado e valente guia da nossa gloriosa CCaç 675; no fim da Guerra terá sido cobardemente abandonado à sua sorte e veio a ser desumanamente fuzilado (sem qualquer sombra de julgamento) no Senegal onde se refugiara, tentando fugir ao destino que lhe traçaram.

Antes da Guerra, por ser muito conhecido e benquisto na região de Farim, o PAIGC tentou arrebanhá-lo. Impossível! O seu puro portuguesismo não o permitia!

Profundo conhecedor da maior parte do território a norte do Cacheu e de boa parte do Oio tornou-se guia da CCaç 675, a primeira companhia a sediar-se em Binta, que ficava a escassa meia dúzia de quilómetros da sua aldeia natal, Genicó Mandinga. Esta tabanca fora incendiada pelos independentistas, bem no início da Guerra e a mãe do guia foi ali cruamente abatida, porque o filho, o nosso querido Malan, não aceitou bandear-se.

Foi uma figura marcante, preponderante, e a ele devemos uma boa parte dos extraordinários sucessos operacionais da sua e nossa CCaç 675.

Com o acordo do então comandante da companhia, eu tentei conseguir, no QG, em Bissau, a necessária autorização para que o Malan pudesse vir passar seis meses na Metrópole, a expensas nossas; o Governo Português apenas seria sobrecarregado com as viagens de ida e volta em navios de transporte da tropa. O requerimento foi indeferido, alegadamente, por “motivos operacionais”. Nada mais se podia fazer!

Nos últimos dias de 1964, o indómito capitão Tomé Pinto decidiu “invadir e destruir” a base de Sambuiá, sita na Península com o mesmo nome (Península porque ficava entre os rios Sambuiá e Malibolon que são tributários do Cacheu); esta era sem dúvida a base inimiga mais poderosa a Norte do Cacheu. Deste modo, o nosso ilustríssimo capitão pretendia vingar a morte do furriel Vilhena Mesquita, abatido pelo rebentamento de uma poderosíssima mina anticarro, no dia 28 de Dezembro de 1964. Já em Janeiro de 1965, a bordo de um Dornier, o Cap. Tomé Pinto fez o reconhecimento aéreo da dita península.

O piloto Honório, homem já muito experimentado nestas andanças apercebendo-se das enormes movimentações de combatentes fortemente armados, perguntou:
- Que efetivos vão atuar nesta zona?
- A minha companhia! - Respondeu secamente o nosso valente comandante.
- Apenas uma companhia? Isso é uma temeridade!

No dia 5 de Janeiro, a CCaç 675, reforçada com alguns homens da frágil guarnição de Guidage (havia ali apenas um pelotão) calcorreou livremente (quase) aquela Península de lés-a-lés; o sucesso da operação só não foi estrondoso (como previsto) porque algo muito grave aconteceu; o Pelotão de Morteiros 980, a quem cabia a missão de proteger (impedir a fuga) a ponte de Malibolon sofreu um gravíssimo revés: um terrível naufrágio em que oito militares, na flor da idade, perderam ingloriamente as suas vidas nas revoltas águas turvas do Cacheu. Assim aquela ponte ficou sem vigilância e foi por ali que os “corajosos” donos da Guerra da base de Sambuiá se escapuliram apressadamente, antes que fosse tarde, colocando-se a seguro em terrenos próximos de Bigene ou no Senegal, ali ao lado.

Anos mais tarde, houve nova tentativa de aniquilar aquela base. O General Spínola apareceu a meio da operação para transmitir mais confiança às tropas. O governador ficou tão agradado coma a atuação do nosso guia, Malan Sissé, que de seguida o galardoou com o Prémio Governador da Guiné - um mês de férias na Metrópole (no Puto).

Os africanos beneficiários daquela benesse ficavam instalados no DGA e faziam ma série de visitas programadas para ficarem a conhecer os locais e os monumentos mais significativos da História de Portugal.
Ao segundo dia da sua estada em Lisboa, o nosso famoso guia foi “raptado” no DGA; durante uma semana ficou “adido” em minha casa; depois andou de mão em mão, sempre acompanhado pelos seus indefetíveis amigos da CCaç 675. Voltou ao DGA na véspera do seu embarque de regresso à Guiné.

Mal tu imaginavas, meu caro Malan, depois de tantos sacrifícios, tanta guerra, tanta manifestação de puro portuguesismo, que virias a ter o mesmo trágico e cobarde fim de tantos outros Malan's... e Chissóia's.

Ficam as perguntas atrás formuladas. Quem saberá responder convenientemente?

A todos um alfa bravo muito cordial neste início de novo ano (já vai ficando velho) de 2013.

Fevereiro 2013
BT
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (40): O sr. Dr. Matos

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5863: Histórias de heroísmo (3): A odisseia de uma escolta a Cabedu, em LDP, no Rio Cumbijã (José Colaço)


1. O nosso Camarada José Colaço (ex-Sold Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), enviou-nos a seguinte mensagem em 20 de Fevereiro de 2010:


A odisseia de uma escolta (*)



Tudo começou na manhã de 14 de Dezembro de 1963.

A companhia independente, CCaç 557 , comandada pelo então capitão Ares, vinda da Metrópole, tinha desembarcado no cais de Pidjiguiti, em Bissau, no dia 03/11/1963 e tudo corria normalmente, com o pessoal aquartelado num barracão na Bolola, com vista para o referido cais.

Nesse dia cerca das 9 horas, mais ou menos, o capitão chamou-me e fez-me a seguinte pergunta:
- Ó Colaço (nome por que sempre me tratou, dado eu na companhia ser conhecido pelo nome e não pelo número como seria normal), quantos homens de transmissões temos neste momento na companhia?.

A pergunta derivava do facto de haver vários especialistas de transmissões que tinham sido escalados para escoltas aos batelões destinados a levar os chamados géneros (mantimentos), para companhias que estavam no mato.

Lá dei a informação o melhor possível e a resposta do capitão foi: “
- Então,  tu e os teus colegas arranjem as vossas coisinhas, que à tarde têm de embarcar para o mato!.

Não nos disse para onde. Só na hora do embarque vim a saber que o destino era Catió, mas estava muito longe de saber que Catió era só uma miragem para um mini-estágio e, o destino final seria o Como [e a Operação Tridente].

A hierarquia sabia o grau de deficiência com que os chamados especialistas eram chamados para a guerra, porque uma coisa era apertar o gatilho de uma G3 que, em segundos, um atirador estava pronto a efectuar, outra,  que fiava um pouco mais fino, era receber mensagens e emitir outras tirando partido da saída da antena para que as ondas hertzianas se propagassem no espaço.

Assim, as transmissões eram um ponto fulcral para toda a organização estratégica de uma companhia ou de um grupo de combate, pois ficar incontactável era um dos problemas de difícil, ou nula, resolução.

A viagem até Catió foi normal e pernoitei no quartel de Bolama com tudo programado (cama e pequeno almoço).

Chegado a Catió fiquei adido ao BCAÇ 619, sendo o meu trabalho, único e quase exclusivo, passar os dias no posto rádio do batalhão a treinar, principalmente, a recepção de mensagens e o alfabeto fonético, que era o meio, com prioridade, utilizado no mato.

Só nas emergências e a comunicação entre grupos, em combate, era autorizado a utilizar a comunicação oral normal.

Mesmo assim, com alguns códigos à mistura, à noite, fui escalado (não sei quantas vezes), para fazer parte da secção que fazia protecção aos obuses que bombardeavam o Como (por períodos de cerca de 45 minutos a uma hora).

Isto serviu-me, para me ir habituando ao que me estava reservado.

Como a roda do tempo não pára, estávamos na semana do Natal de 1963, e, foi aqui, que surgiu a odisseia da dita escolta.

Era urgente reabastecer a CCaç 555 sedeada em Cabedu e adida ao BCaç 619 (**). Então o comando de Catió organizou um reabastecimento de mantimentos (os tais chamados géneros), numa LDP [, Lancha de Desembarque Pequena] com uma secção de atiradores comandada por um furriel miliciano, e eu fui integrado nessa escolta como elemento de transmissões para manter o contacto com Catió, e, quando este não fosse audível, sintonizaria Cabedu.

O rádio que me disponibilizaram, foi um ANPRC 10, cujo alcance era bastante limitado (só era muito bom para comunicar com os aviões, DO 27 ou T-6), quando nos sobrevoavam.

Lembro-me de ter dado muitas informações aos pilotos dos T-6, para metralhar mais 40 ou 50 metros à esquerda, à direita ou à frente, em relação à picagem que tinha sido feita anteriormente. Não posso precisar, mas o alcance era de cerca de 5 a 6 km em boas condições de propagação das ondas hertzianas.

O contacto com Catió perdeu-se, logo que navegámos meia dúzia de milhas, e de Cabedu nem ruídos eu conseguia ouvir. Tudo totalmente mudo.

Como nem o comandante da escolta, nem o marinheiro maquinista da LDP, conheciam a zona, o já então carismático João Bacar Jaló forneceu-nos um dos seus homens, que ele pensava ser de inteira confiança, como guia conhecedor da zona.

Com tudo previsto quanto às marés, na parte da manhã rumámos com destino a Cabedu, e, após navegarmos pelo rio Cumbijã, cortamos numa bifurcação à esquerda, não sei se era um afluente ou uma ria.

O que eu sei é que conforme prosseguíamos, o caudal do rio era cada vez mais fraco, e a pergunta sacramental que se fazia ao guia era:
- Tens a certeza que vamos no rumo certo ?

Ele dizia:
- Sim, sim, é este o rio para Cabedu!

A dado momento, já nenhum de nós acreditava no guia, porque a informação que tínhamos é que até Cabedu não havia problemas quanto à falta de água para navegar, o que não era o caso. O comandante da escolta bem me dizia:
- Ó telegrafista,  comunica.

Disse-lhe, meio desorientado:
- Para já não sou telegrafista, sou de transmissões, e como é que comunico com esta m... se isto não presta, só dá para avisar quando estivermos próximo de Cabedu, ou se, por sorte, se neste momento formos sobrevoados por um avião dos nossos, uma DO ou um T-6 ?!

Estávamos numa zona de campo aberto, fazia lembrar o Alentejo na Primavera, viam-se ao longe vacas a pastar e nós, com receio que a lancha batesse no fundo e parássemos por falta de altura de água para navegar, ou, pior ainda, de atravessar a fronteira sem sabermos. Nós não fazíamos a mínima ideia onde nos encontrávamos.

Mas como é hábito dizer,  o tuga tem sempre sorte, se parte uma perna foi sorte não ter partido as duas, se parte as duas foi sorte não ter morrido e se morre teve sorte senão ficava a sofrer o resto da vida.

Surgiu então um pequeno lago, onde o marinheiro com muita perícia conseguiu inverter a marcha. Que alívio! Não há palavras para qualificar aquele momento feliz, por ter sido encontrado aquela pequena bacia de água, que nos permitiu pôr a salvo.

Logo que invertemos a marcha, o guia que vigiávamos com muita atenção, veio debaixo de prisão. A partir daí, uma das razões dele nunca ter tentado a fuga, era encontrarmo-nos numa zona ampla, com boa visão, onde ele seria abatido com muita facilidade. Se a zona fosse de Bolanha, e, ou, tarrafo, com a nossa preocupação presa no IN, bastava ele dar um salto para fora da lancha e nós não mais o víamos.

Chegados a Catió, o comandante da escolta fez o relatório e o guia foi entregue ao João Bacar Jaló. O João reprimia as traições com bastante dureza. Ele mostrou o pau com que agredia os traidores no estômago, mas a resposta do falso guia foi:
- Mim murre… mas não diz nada.

Um alfa bravo
José Colaço
Sold Trms da CCAÇ 557
____________

Notas de M.R.:


 
(**) Notas sobre o BCAÇ 619: Mobilizxdao pelo  RI 1, partiu para aGuiné em  8/1/1964. Regressou a 9/2/1966. Esteve sedeado em Catió. Comandante: Ten Cor  Inf Narsélio Fernandes Matias. Unidades de quadrícula: CCAÇ 616 (Bissau, Empada); CCAÇ 617 ( Bissau, Catió, Cachil); CCAÇ 618 ( S. Domingos, Binar)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3640: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (4): 1973, Ano Novo... Vida Velha

1. Mensagem de Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74, com data de 11 de Dezembro de 2008, com mais um episódio da História dos Tigres (*).

Ano novo… Vida velha

Janeiro de 1973 inicia-se porco, feio, violento, e o primeiro aviso de que a Guiné era a sério acontece-nos a 10 de Janeiro.

Um dos nossos Grupos de Combate fazia patrulhamento em IEROIEL - SAMBA SEIDI - Rio Nafa, portanto na zona de Aldeia para a fronteira, quando o quarto elemento da coluna accionou uma mina antipessoal.

Contactado o quartel de Aldeia, logo saí a comandar um Pelotão reforçado, com a colaboração de um guia, e rapidamente chegámos ao local. Tomadas as devidas precauções, evacuei de imediato o ferido grave, de seu nome Francisco da Silva Ribeiro Mota, para Aldeia Formosa, de onde foi transportado para Bissau e, mais tarde, ainda no decurso do mês de Janeiro para Portugal. Fizemos o reconhecimento da zona e constatámos vinte e cinco abrigos bem cavados situados a cinco metros do trilho minado. Picámos cuidadosamente todo o trilho e encontrámos e levantámos duas minas anti-pessoais. Segundo o guia que me acompanhou e com quem tanto aprendi numa aula prática forçada, teria estado preparada uma emboscada por um grupo que havia abandonado o local cerca de duas horas antes, seguindo na direcção do rio Habi e flectindo depois para o sul.

Uma nota de apreço e louvor aos nossos guias

Uma pequena nota, para mim de importância fundamental, no sentido de elogiar o papel dos guias que comigo trabalharam, verdadeiros mestres de caminhar no mato e com um sentido de orientação apuradíssimo, sempre atentos a indícios que passavam despercebidos à grande maioria dos nossos soldados, e que eu exigia que eles me explicassem para que os homens que eu comandava pudessem mais tarde absorver.

Já que falo nos guias, foi com grande estupefacção que li há uns tempos atrás num poste da nossa Tabanca que o capitão de determinada companhia mandava matar os guias, finalizada que fosse a Operação em que estes participavam. Acabei por não saber se era ficção ou realidade.


Se era ficção dela ressalta o desprimor com que alguns conseguem aguiar (consultar dicionário) (**) com cores escuras e adjectivos caluniosos os que foram obrigados a combater; pelo contrário se foi realidade, não entendo o silêncio cobarde dos que não foram capazes de tornar público crimes de tal tipo no momento próprio. Nunca tive medo de nenhum superior hierárquico, sempre os respeitei, como respeitei todos os meus camaradas, mas a nenhum deles consenti que me pusessem o pé no cachaço. Nem a militares nem a civis.

Sou do tempo em que na Faculdade de Economia se fez greve a um ditador, enganei-me, a um professor muito antes do 25 de Abril! Exactamente, antes do 25 de Abril! Soube arcar com as consequências e ainda hoje aos sessenta e dois anos prefiro a fome do lobo à coleira do cão.

A minha modesta participação na Tabanca Grande, que em boa hora descobri, e que julgo ter também como fundamento um convite à vida participada, vai no sentido, atrevo-me a dizê-lo, de que as gerações que se nos seguiram, incluindo os que nos (des)governam, tenham o respeito por quem tanto sofreu e não se esqueçam de se curvar respeitosamente perante todos os camaradas que tombaram em combate numa guerra que não era a deles.

A esmagadora maioria dos ex-combatentes tem a humildade e a solidariedade, que são conceitos sem significado na vossa sociedade de senhores de anéis e de podres compadrios. Penso não conhecer pessoalmente nenhum dos camaradas da Tabanca (***), mas sinto-os como elementos da minha família; vocês, os que não nos conhecem, também não conhecem nem cumprimentem o vosso vizinho que mora no andar de baixo ou de cima.

Ex-combatentes, quem são esses gajos? Eram pedreiros, carpinteiros, médicos, engenheiros, padeiros, universitários, analfabetos, arrancados à família e ao emprego e obrigados, na sua esmagadora maioria, a partir para o desconhecido com a preparação militar, em muitos casos de pouco mais de seis meses, que dependiam uns dos outros para sobreviver. A amizade que se criou e que perdura há quase quarenta anos é algo que os senhores nunca vão conseguir descobrir…

Voltemos ao malfadado ano de 1973 e , se ainda não me perdi, estamos em Janeiro.

Segurança à construção da estrada Aldeia Formosa-Cumbijã

Volvidos quatro dias, portanto a 14 de Janeiro, estávamos em preparação para uma saída que consistia numa emboscada nocturna, seriam umas 15 horas, um camarada do mesmo grupo do Mota, por distracção, ao preparar a G3, deu um tiro que felizmente só lhe arrancou parte da falangeta. Teve no entanto de ir para Bissau curar-se dessa maleita.

A 19 desse mês os Tigres voltam a ser visitados pelo Sr. Comandante Militar, novamente para apreciar a nossa evolução. Pareciam visitas a mais dos Graúdos, mas elas continuaram como vamos ver e ilustrar.

Por esta altura a estrada ia caminhando a bom ritmo e a nossa Companhia, em conjugação com outras forças, picava a frente dos trabalhos. À noite emboscávamos na Zona do Cumbijã ou vínhamos dormir a Aldeia, tudo dependia da articulação com as outras Companhias. Quando dormíamos em Aldeia seguíamos na coluna militar que protegia centenas de capinadores e outros trabalhadores da Engenharia, bem como as máquinas. Os vestígios de passagem de grupos do PAIGC eram cada vez mais evidentes. Sabíamos que antes da estrada chegar ao Cumbijã as coisas iam aquecer.

No dia vinte avancei um pouco mais com a Companhia e detectámos um carreiro enorme por onde tinham passado havia pouco tempo um grupo estimado em mais de quarenta homens. Redobrámos os cuidados, apresentou-se um relatório detalhado dos movimentos na frente dos trabalhos e, curiosamente, a vinte e cinco de Janeiro, Aldeia Formosa é flagelada durante quinze minutos, tendo sido referenciados 60 rebentamentos. Digo curiosamente pois os ataques a Aldeia Formosa provinham de bases situadas do lado contrário ao da frente de trabalhos.

Na manhã seguinte, dia 26 de Janeiro, ainda comentando o embrulhanço da véspera, que mais uma vez não causara qualquer mossa, lá vai a malta toda para a frente da estrada em coluna auto quando em XITOLE 4G 7-21 (vd carta militar) levámos com uma emboscada a parecer bem.

Para além da minha Companhia seguiam também dois grupos da CCaç 18. As crónicas oficiais rezam que fomos emboscados por um Bigrupo IN com morteiros, RPG e armas ligeiras. Na reacção à emboscada a CCaç 18 teve dois feridos graves, um dos quais era um graduado, penso que furriel. A nossa Companhia não teve feridos. Passadas umas horas uma viatura do Batalhão de Engenharia accionou uma mina anticarro na região da Pedreira, mas o condutor saiu ileso.

No dia 29 dois Gr Comb dos Tigres em conjunto com um Pelotão da 6250 detectaram uma mina anticarro com dispositivo antilevantamento e 12 minas antipessoais.

A morte de Amílcar Cabral, chorada por uns, festejada por outros

Janeiro havia chegado ao fim, mas algo de muito importante não pode deixar de ser referido: O assassinato de Amílcar Cabral que ocorreu a 20 de Janeiro de 1973 em Conacri (e não no Senegal, como alguém por distracção postou no blogue).

Não vou entrar em considerações sobre a pessoa de Amílcar Cabral, não tenho capacidade para tal e os entendidos já publicaram literatura suficiente para todos os gostos sobre essa personalidade que, quer se queira quer não, foi o paradigma das lutas de libertação das ex-colónias.

Apenas dois pequenos registos, o primeiro para dizer que um amigo do meu pai, também homem do reviralho, mas bastante mais jovem e bastante mais contundente na forma como manifestava os seus ideais, fora colega do, também como ele, engenheiro Amílcar Cabral. A segunda nota é uma nota de tristeza para a alegria com que pelo menos duas pessoas festejavam, bebendo à saúde da morte do Cabral. O nome tinha outra terminação e os artistas eram oficiais. Curiosamente ou talvez não, nenhum dos dois era operacional.

Lembro-me de cena semelhante com outros personagens, era eu professor no Instituto Superior de Contabilidade e Administração, quando a morte do Dr. Sá Carneiro foi também comemorada, dizem-me que durante toda a madrugada de 4 para 5 de Dezembro de 1980. Lembro-me da data, pois eu havia casado a 5 de Outubro de 1970. Palavras para quê?

Fevereiro, dia primeiro, mais um ataque ao aquartelamento de Aldeia durante cerca de, cito, 50 minutos com cerca de setenta granadas de canhão sem recuo e 6 Foguetões 122. Nunca tinha ouvido o estrondo de um foguetão. Esses assustaram-me, mas foram um bom treino para o que nos aguardava no Cumbijã e posteriormente em Nhacobá. Houve sempre uma coisa que me intrigou durante todo o tempo em que estivemos em Aldeia, não me lembro de nenhuma granada ter caído dentro do quartel. Teria o PAIGC receio de acertar na população que se acantonava à volta do quartel?

O Cancioneiro de Cumbijã

Seria fastidioso enumerar todos os ataques que sofremos neste período sobretudo na protecção à estrada, como seria injusto não referir uma das Companhias do Batalhão que, já muito perto do final da comissão, foi fustigada por uma série de azares: a Companhia de Caçadores 3399, vulgarmente conhecida pela 99 e comandada por um capitão do quadro chamado Horácio Malheiro, de quem voltarei a falar mais adiante. Foi meu companheiro de longas conversatas, homem extraordinariamente simpático, com quem me identifiquei pouco tempo após a chegada a Aldeia, e era sobretudo solidário nos reveses que iam surgindo.

Não o vejo desde Julho de 1973, pois a partida do seu Batalhão coincidiu com a minha vinda de férias a Portugal. Deixou-me uma carta muito simpática que ainda hoje conservo, tendo também herdado alguns dos seus bens.

Neste período de Fevereiro/Março em que a guerra das minas era tremenda, pelas minhas notas registo, relativamente à 99, um ferido grave e dois ligeiros a 4 de Fevereiro, outro ferido grave a 26 de Fevereiro também por accionamento de mina e ainda um outro em finais de Março. Também um dos nossos camaradas de Mampatá, Companhia comandada pelo Marcelino, meu colega de curso e amigo, teve a infelicidade de accionar uma mina a 16 de Março na frente de trabalhos da estrada.

A CCav 8351 havia passado incólume a este vendaval de minas. Apenas uma pequena nota pessoal para o meu camarada Manuel Félix, o melhor pica da Guiné.

Os dados estavam lançados, o destino dos Tigres era... o CUMBIJÃ.

Termino mais um capítulo, desta feita com um poema premonitório que o meu camarada Tavares de Bastos, alferes da CCaç 3399 me dedicou

NA ESTRADA DO CUMBIJÃ

Vêm picadores
Incertos descobridores
da oculta traição
e deixam pedaços de si próprios
nas bermas alagadas.
Os camaradas raivosas lágrimas
a mata ri, quietamente.
Vêm também atiradores caçadores
naquelas viaturas
às centenas os negros descapinadores
e a engenharia.
Há calor de emboscada tiroteio estrondos
crepitam as armas infernais.
Berros caralhadas ais.
Sangue.
E alguém morre sozinho no chão estranho
E o irmão de longas horas não sente
Já não quer
Apaga a dor.
O hábito queima a dimensão do perigo.

Pela manhã
Há escura guerra
Nesta terra
Do Cumbijã.

Máquinas malucas ( orgulho da técnica )
Com fúria galgam bolanhas irrompem capim selvas;
As árvores tombam… amanhã levantar-se-ão… depois…
Poeira
suor
nuvens nos olhos
a terra é rasgada violentada.
Atrás o alcatrão arrasta-se
Mas os dias, os dias não fogem
nesta terra
do Cumbijã
onde logo pela manhã
há guerra.

Lá,
onde o rio solteiro (?!) alaga extensos arrozais,
Nhacobá,
longe da confusão,
promete rebelde vulcão
que não parará jamais.


Por esta altura estava desfalcado de dois alferes. Um tinha ido para a Chamarra, outro para Bissau.

Estou cansado, camaradas, deixo-vos com duas imagens do que era o Cumbijã.

Vasco da Gama (***)


Guiné > Regiãod e Tombali > Cumbijã > 1973 > CCAV 8351 (1972/74) >A triste paisagem de Cumbijã, na época seca...

Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > 1973 > CCAV 8351 (1072/74) > As minas, sempre as minas, as malditas minas...

Fotos: © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados

___________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3638: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (3): Jan 73: Com o Cherno Rachide, em Aldeia Formosa

(**) Aguiar, o m.q. fazer tratantadas

(***) O que era verdade no dia 11 de Dezembro, mas não no dia 13: O Vasco apareceu na sessão de lançamento do livro do Coutinho e Lima e teve oportunidade de fazer novos amigos...

(****) Subtítulos e negritos da responsabilidade do editor