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quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25242: Notas de leitura (1673): Recordando o Augusto Cid (Horta, 1941 - Lisboa, 2019) e o humor na guerra (Virgínio Briote)


 





Cartoons da guerra... Do álbum 
Que se passa na frente?!!, com a devida vénia...

1. Mensagem do nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote:

Data - 4 de fevereiro de 2024, 21: 58

Assunto - Recordando o Cid e o humor na Guerra

Augusto Cid nasceu na Horta, em 1941 e morreu em Lisboa em 14 de março de 2019. Publicou os livros.
Dois anos antes de morrer, em entrevista ao Jornal I, Augusto Cid, que foi antigo combatente em Angola, não deixou de desenhar.

“Curiosamente eu fazia a minha guerra – não a guerra que eles queriam que eu fizesse. Cumpria a minha obrigação, julgo eu, mas depois quando chegava ao destacamento rapava dos meus lápis de cores e das minhas aguarelas e fazia um cartoon sobre aquilo. Quando vi que havia umas páginas de cartoons numa revista militar pensei: ‘Posso trabalhar com eles’. Curiosamente não era mal pago. Davam-me 150 paus por cartoon, que era dinheiro. E faziam concursos em que o prémio era 500 escudos e eu ganhava quase sempre, portanto ganhava mais nos desenhos que fazia do que como furriel”, recordou.

"A guerra é uma boa escola da vida. Só tem um pormenor: é que se pode morrer com facilidade durante o ensinamento. Tirando isso, é uma belíssima escola”, disse ainda.

Anexo alguns "bonecos" do Cid,  extraídos do livro "Que se Passa na Frente" (com a devida vénia...)

Abraço do V. Briote

_______________

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I



Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]


Contos com mural ao fundo >

Três amigos, três destinos - Parte I

por Luís Graça


 
Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história., reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo,

***

Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos estando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, gemendo e chorando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

O Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, reformado, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo que, no passado, há mais de oito éculos,  fora fronteira natural e política de Portugal, já não se viam...  desde os tempos da Expo 98!....

− Agora, cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos "amigos do pêto"!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez  desde 1998, o ano da Expo, o que só podia queria dizer... “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescenta aí!... (Felizmente, ainda tenho vários, mas biológicos.)

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha "um medo que se pelava de passar por aquelas bandas", sozinho, à noite, fora do resto das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que fora outrora o grande celeiro da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas, as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser homens, isto é, machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) um belo monumento da nossa terra, e mais do que isso, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!.. . Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. 

− E, tens razão, era a casa de Deus!... Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes... E havia até quem tivesse a triste ideia de a transformar em museu de arte sacra!

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para as Américas...


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mais mal educado, mais traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em terceiro grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro, negociante de gado, antigo almocreve.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, aos EUA, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!... Não lhe posso desejar mal, para mais meu parente.

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar, na Quaresma,  ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas um simples castigo no purgatório. 

− Deixa-te de tretas, o purgatório já existe, se é que alguma vez existiu...

− Concordo, é uma metáfora, como todas as criações da Bíblia...uma obra-prima da literatura universal...

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, que fazia os sermões da Quaresma e confessava ruas inteiras de putos e beatas, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um tumor cerebral,  fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...E que nos habituamos a ver sempre cheio de saúde, energia e alegria de viver...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de guarda-marinho....

 − ...numa lancha de fiscalização grande ou numa corveta, que eu de marinha (e de tropa) sou um zero à esquerda − atalhou, de pronto, o Belmiro

− A imagem que eu tenho dele era o do moço de forcados, jaqueta bem apertada, calça à boca de sina, como se usava naquete tempo, pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, garanhão, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo. Devo ser, nesse como noutros capítulos da nossa gesta heróica,  a ovelha ranhosa cá da terra... 

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade,  cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola, a política e a igreja) são algumas delas...

− Sim, coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol, os touros e o sexo…, o que no cômputo final representa 99% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... É um dos desportos favoritos da nossa gente. Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno,..

− ... ou que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta, com tristeza,  o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali num  murete do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos", em que havia "três amigos, três destinos" (título da letra de um velho fado, que o Zé Nuno tocava e cantava com muita piada). 

− Deixa cá ver se me lembro da primeira quadra... Três  amigos, três destinos / Que o Diabo moldou /, No Tejo os batizou, / Para sempre, três meninos"...

O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e chicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um bocado, 
antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Eu nessa altura era, como sabes, um maosta  intratável, arrogante, convencido...(e perdi amigos por isso).

Foi também para Lisboa, estudar, o Zé Nuno...

− ...Mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, ficava ao pé de casa, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem conservador, autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho,  é que começou cedo a tomar conta da herdade. (Dizia que não tinha cabeça para estudar.)

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi pessoa, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony. 

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições monárquicas, com criação de cavalos e de gado bravo, 
está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três ou quatro gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, que chegou a ser uma das maiores e melhores da nossa região.

− Há aí uma espécie de sina ou  anátema da História... Sei pouco da saga tumultuosa  da família, mas contava-me o meu avò, que era republicano dos quatro costados, que um dos antepassados do Zé Nuno, talvez o pai do trisavô,  teria sido um dos campinos que montou a guarda de honra ao Dom Miguel, na sua entrada triunfal em Lisboa após a vilafrancada (em 1823).. 

− Nunca lhe ouvi contar essa história... Mas, na verdade, o irmão, o "morgado", era Miguel. (Também já lá estána terra da verdade ...)

− Mera coincidência ou talvez não... Sabes que os portugueses são maus alunos em História...  Quando dava aulas (já estou reformado), punha os meus alunos a escrever a história da família, paravam logo nos avós que já mal conheceram... Era gente humilde, no geral...  Os pobres encolhem os ombros, acham que têm pouco ou nada para contar...

− De qualquer modo, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas... Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço. 

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

−  Sabes que o Zé tinha casado tarde, ficara solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, contemporâneo e condiscípulo,  em Coimbra,  do nosso José Relvas, ali da Golegã. (Nunca foram amigos, um era monárquico,  o outro republicano.)... 
E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar na universidade. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar...

 −  Enfim, Belmiro, essa é a desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. – Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do médico no consultório...

E prosseguiu:

− Belmiro, o que a gente sabe é que o raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher, o ganhão e o latifunidário... Também não já não me lembrava que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária e do colégio, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como antes para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar. 

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram a possibilidade de prosseguir os seus estudos… E de ter direito a férias de praia, no verão. 

−  O que foste agora buscar agora, a  nossa época balnear!...Tu, na praia de São Pedro de Moel, e eu na  praia da Vieira, da arraia-miúda! ....

− Ias de bicicleta visitar-me. Que inveja, os meus pais não me davam essa liberdade.. Mas gostavam muito de ti e sabiam que tu eras de famílias honradas e sobretudo uma "boa companhia"...

O Tony estudara até ao antigo 5º ano do liceu no antigo  colégio particular da terra;  com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia.

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes da Faculdade de Letras,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial

Um dia um pequeno grupo foi apanhado pela PSP a deixar "papéis subversivos" na estação de metro  e no interir das carruagens, a horas mortas... A PIDE tomou conta da ocorrência.

… As mensagens eram "pacifistas",  o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(sic), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação sacerdotal. Saiu do seminário, aos 21 anos, zangado com  Deus e com os homens...E aos 22 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.

***

− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta das ruínas do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam... Só eu ia lá, à sua casa, aliás um casarão do séc. XVIII, fria e desconfortável, mas descomunal para um miúdo da minha idade...

O Tony alongou-se depois com memórias sobre a família do Zé Nuno e a sua: 

− Como sabes, os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seus dois ou três empregados.

− Enfim, encontravam-se, ao menos,  na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo....

−  Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes.! .. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Nunca se tratavam por tu... 

Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo... como de resto aconteceu, de norte a sul do país...

O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:

− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...

− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...

− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.

O António Mota, ex-crente, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.

− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…

− O quê ?...

− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...

− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem das ciências duras, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que infelizmente  já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...

−... e às alunas, de alto a baixo!

− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , no colégio, nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?

− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…

− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde a minha mulher, que era de lá, foi notária,  antes de decidirmo-nos, já com filhos, de voltar às minhas origens... E aqui estou na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria… Sabes, as ilhas, sim, são claustrofóbicas. E eu seria incapaz de viver e trabalhar num navio como o Zé Nuno... (Se tivesse que ir à tropa, oferecia-me para a Força Aérea.)

− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Mesmo soalheira, há de ser a nossa última morada, também…

− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... Lembras-te, vieste cá, em 1998, ao enterro do meu pai... Fiquei muito sensibilizado com o teu gesto solidário...

− E agora é a rapaziada do nosso tempo... Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!

− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!

− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.

− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.

− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…

− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há de chegar!

− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!

− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…

−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...

− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…

− A alma ?

− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...

− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… 

E, mudando de assunto, o Tony fez uma proposta ao amigo:

− E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns bons quilómetros  para fazer ?!… (E cada  menos gosto  de conduzir!...) Fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos lá dar de beber à dor, companheiro!

− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras do  largo da Misericórdia. O "Carpe Diem". É de um gajo castiço, poeta popular, o nosso Aleixo, eu chamo-lhe o António Aleixo do Ribatejo. Um bom sítio para se petiscar e beber um copo.

 (Continua)

© Luís Graça (2018).

Revisão: 3/2/2024

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24875: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): pequeno glossário para compreender as letras de fado e outros textos em calão


"Fado da Trolha", António Manuel Lopes, Lino Ferreira, Silva Tavares, Feliciano Santos, António Carneiro, Revista | Vaudeville Mãe Eva, Sassetti & C.ª Editores, s/d., p. 1 (Fonte: Museu do Fado, com a devida vénia...). 
 


1. Aqui vai uma ajuda para "descodificar" as letras dos fados e outros textos que reproduzimos nos postes P24840, P24858 e   P24866 (*)

Para esta recolha (feita muito em cima do joelho, mas consumindo já umas largas horas...), ocorremo-nos, no essencial, do  livro de Guilherme Augusto Simôes, "Dicionário de Expressões Populares Portugueas" (Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1985, 432,  XX pp.), talvez a mais completa compilação  de termos e expressões idiomáticas neste domínio, incluindo "arcaísmos, regionalismos, calão e gíria, ditos, frases feitas, lugares comuns, aportuguesamentos, estrangeirismos e curiosidades da linguagem"... (Na edição que consultámos, de 1985. a compilação tem mais de 25 mil entradas; há outra edição posterior, Dom Quixote, 2000, com 700 pp. )

Pena é que o autor tenha feito autocensura, expurgando do seu dicionário grande parte dos palavrões considerados "obscenos",  esquecedo-se que o leitor estrangeiro, que ande a aprender português, também tem direito a conhecer o nosso calão de carroceiro:

(...) "Encontra-se neste dicionário:

  •  o calão académico (usado pelos estudantes), 
  • o calão vulgar (usado pelo povo), 
  • o calão dos marginais (usado pelos criminosos de todo os graus, desde o simples vigarista ao assssino da pior espécie)
  •  e omitimos, o mais possível, o calão ordinário a roçar a obscenidade. 

Mas deste, ao omiti-lo, não foi por falso pudor, mas sim por por verificar que infelizmente não é necessária a sua nomeação. tão sabida é pela nossa mocidade de ambos os sexos" (pág. XV). (Negritos nossos).

Não é necessário esta pregação moralista do autor: os modernos dicionaristas e lexicógrafos  já há muito que grafaram os nossos palavrões ditos obscenos, que também fazem parte da nossa língua materna: quando nos apetece mandar para o c...ralho alguém, que nos chateia os c...rnos ,  não o fazíamos, nos quarteis e matas da Guiné,  na língua dos nossos vizinhos espanhóis, mas na nossa querida língua...  

De resto, todas todas os nossos  "palavrões"  estão ao alcance de toda gente (a começar pelas criancinhas...) na Internet.

No que respeita à gíria ou calão do fado de antigamente, o autor recorre também ao livro "A gíria portuguesa: esboço de dicionário do 'calão' ", de Alberto Bessa (1901). 

Consultámos também o nosso camarada, transmontano de Moncorvo, infelizmente já falecido, o jornalista e escritor  Afonso Praça (1939-2001),  "Novo Dicionário de  Calão", 2ª ed. rev. (Lisboa, Editorial Notícias, 2001, 258 pp.).   O autor (AP) discrimina alguns termos e expressões do calão conforme o meio de origem: crime, desporto, droga, estudantes, jornalismo, militar  (incluindo Colégio Militar, Grande Guerra e Guerra Colonial), e regionalismo... 

Infelizmente, o Afonso Praça (que, além de seminarista,  foi alferes miliciano, em Angola, na zona norte, entre 1963 e 1965), já não é do tempo do nosso blogue: morreu prematuramente aos 62 anos. 

Já agora, e para saber algo mais sobre a história do fado, ver aqui uma excelente sinopse, disponível na página oficial do Museu do Fado, e baseada no essencial na bibliografia etnomusicológica e histórica sobre o fado de Rui Vieira Nery, professor associado da FCSH/NOVA. 


Pequeno glossário para compreender as letras de fado e outros textos em calão (de A a Z)

Quem se metter c'um fadista
E o ouvir faltar calão, 
Fica logo a ver navios, 
'Té perde a mastreação.  (pág. 93)

(...) Que era então p'ra se lembrar
Que o mundo é uma fumaça,
E emquanto n’elle se passa
E' dar-lhe, toca a gimbrar. (pág. 99)
 
(in: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, editot, 1904)


afinfar (bater em, arrear);
alcouce (bordel, prostíbulo; etimologia duvidosa);
alcoveta (mulher intermediária no comércio do sexo; do árabe, al-qawwâd, intermediário);
algema (pulseira, bracelete);
amarra (corrente do relógio, pulseira)
andantes (pés, pernas, sapatos);
andar ao fanico (na prostituição de rua, à procura de cliente);
andar no fado, andar no mundo, andar na vida (prostituir-se);
andorinha [prostituta, (AP)];
antrames [algibeiras, mas bolso interior o casaco, (GUS)];
apeado (diz do que deixou de ter amante, ou viatura pópria);
arame (dinheiro);
archeiro (bêbado);
arcos,arcosos (anéis);
arranjo, arranjinho (conquista amorosa, engate);
às duas por três (quando menos se espera);
asas (braços);
avental de pau (meia-porta dos bordeis do Bairro Alto);
avesa (tem);
avesar (conseguir, juntar, por ex., "bago grosso");

bago (dinheiro, termo que já vem do séc. XVIII);
bailhão [fadista, desordeiro, rufião (AB / GUS)];
batata (soco);
batolas (mãos);
beber (apanhar pancada);
belfe (calote);
brezunda, brezundela (pândega, brincadeira,pagode);
briol (vinho);
buchinha (num baile, era ceder a dama a outro cavalheiro);
butes 
 [otas, pés) (passar os butes/ fugir, dar aos butes / correr, meter os butes a caminho / partir, meter os butes/ enganar, mentir), (AP)];
buzilhão [dois vinténs, mas também muito dinheiro (GUS)];

cabides (orelhas, brincos);
camolete (?)
calhar (agradar, ficar bem);
canalha (biltre,patife, gentalha);
carinha (um) (moeda de prata de 500 réis, ou cinco tostões);
carunfa (traição);
carunfeiro (traiçoeiro);
celitro (decilitro, de vinho);
centopeia (mulher feia, de aspeto repelente);
cépios (vd. sépios);
charuto (pé de cabra, ferro para forçar fechaduras);
chata gorda (carteira bem recheada);
cheta (um vintém, 20 réis; 5 chetas equivalia a 1 tostão ou 100 réis);
cocheiro (jogador de pau);
comadre (mexeriqueira);
conquista (namoro, namorada),
cortado (vinho com soda);
cortiço (casebre);
cri-cri (?):
c'roa (dois mil, ou mal...réis);
cunfia (confiança);
cuté (casa ou quarto para encontros amorosos, ou para refúgio temporário)

dar os bons dias (ser o mais valente);
data (grande porção de alguma coisa, por ex, "camolete");
deixar espalhado (matar);
desarmado (teso, sem dinheiro, sem recursos);
direitinho (pessoa honrada e honesta);
duques (?):

elas (batatas, "iscas com elas");
embigo (baixo ventre);
encadernador (cangalheiro, agente funerário, gato pingado)
ensaio de galheta (ar de bofetadas);
entalada (uma isca metida num quarto de pão);
entortar (embriegar,mas também tornar pior);
envinagrado [embrigado, mas também mal disposto, zangado, azedo, (GUS)];
esfola (penhorista(;
esgueirar-se (fugir);
espiche (do inglês, "speech") (discurso, elogio, brinde, mas também hospital);
espinha (navalha);
estafar (matar, dar cabo, gastar de maneira perdulária);
estampa (bofetada);
estar a dormir (roncar);
estar no pinho (não ter amante);
estarim (cadeia, prisão);
ético ("estar ético", sem dinheiro);

fadista (homem vadio, brigão, desordeiro;mas também ulher que se entrega à prostituição);
faduncho (fado mal cantada, com má letra e música):
farol, faroleiro (indivíduo que joga por conta da banca, na casa de jogos);
fazer joginho (bater);
filhoses (notas de banco);
flaquibaque (estalada);
fole das migas (barriga);
francês (indivíduo enganador, desleal); 
fuça (cara);
fuças, ir às  (esbofetear, bater);
futrica [designação dada, entre os estudantes de Coimbra, a quem não é estudante; mas também futre, pessoa desprezível, (GUS)];

gabinardo (gabão, casacão, capote, gabardine):
gadunhas (mãos);
gaja, gajona (maneira depreciativa de referir uma mulher);
galdinas, galdras (calças);
galego (indivíduo grosseiro);~
galfarro (comilão, vadio, mas também agente da polícia)
galfo (fidalgo);
galopim (moço de recados, vadio, garoto, trampolineiro);
gamote  [reunião… mas também, grupo e rapazes, ou elementos do mesmo bando, (GUS)];
garonga (?);
gato pingado (agente funerário)
gentaça, gentalha, gentinha,gentuca (ralé, gente ordinária);
giga (vender em; arriar a) [discutir usando linguagem e modos grosseiros; insultar, gritando e gesticulando, arriar a canastra, (GUS)]
gimbrar
[viver à custa da amante, chular) (AP)];
grudar (convir, ser aceitável ou razoável);
guitarra (barriga);
guitarra pela cabeça abaixo, enfiar uma ( fazer uma gravata);

horas mortas (altas horas da noite);
hortas (retiros, tabernas nos campos, nos arredores de  Lisboa; começavam logo em Benfica);

isca [ pergunta capciosa, feita como objetivo de obter a resposta já esperada ou uma mais conveniente, (AP)]: 
iscas com elas (iscas com batatas);

juntas (pernas);
juiz do Bairro Alto (Deus);

labita (fraque);
laia (prata, dinheiro; mas também espéceie, casta: gente da mesma laia);
lárpios (ladrões);
libra (4500 réis);

má rês (pessoa velhaca, de mau carater, de maus instintos);
marafona (mejera, mulher ruim, mal-vestida, também rameira);
mariola (patife);
mastro (pénis);
meia-lata (meio litro de vinho);
meia-unha (meio tostão);
meio-caiado (água com café):
meio-curto (copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar);
místico (?);
moca (pénis, mas também cacete, asneira);
modista (taberna);
mondonga (mulher suja e desmaselada);
morraça (vinho ordinário, bebida reles);
mulato (café com leite);

nadar (justificar-se);
naifa (navalha);
naifada (navalhada);

orchata (azar ao jogo);
orchatado (?);
ourelo (cuidado, cautela);

pai de vida, pai da vida! [exclamação, "o que para aqui vai!", (GUS)];
painço, milho (dinheiro);
paivante (cigarro);
palhetas (botas, sapatos);
panaça (marido que tem medo da mulher);
passar as palhetas (esgueirar-se, esquivar-e);
pescoço (altivez, arrogância, soberba);
piela (bebedeira);
pingado (ligeiramente embriagado ou etilizado);
pingar-se (embededar-se);
pitorra(cabeça);

quarto de bife ou quarto de dose (um meio bife custava 140 réis ou sete vinténs; um quarto custava metade; retexto para se beber nais um copo);
queijada (a quantia que o chulo recebe da amante, mas também gorjeta ou gratificação);

rapioca (regabofe, pândega, paródia);
rascoa 
"mulher da vida", prostituta; era duplamente exploradas: pelos chulos (rufiões, que nem todos eram fadistas, vivendo do pequeno crime) e pelas "patroas", as donas das casas ("cobravam, em geral, quinze tostões a dois mil réis por dia por cada casa"; (...) "uma exploração ignóbil de que as infelizes eram vítimas, pois que, na maior parte dos dias, não ganhavam nem para o petróleo, como elas próprias diziam" (Avelino de Sousa, 1944, pág. 192)];
requineta (fraque);
retanha (gazua, ferro de abrir fechaduras);
roda,rodinha (um tostão, duas rodas, dois tostões ou dois-tões);
rodilha (gravata, mas também pessoa servil e bajuladora(
rouxinol (apito);

sanha (bofetada);
sardinha, sarda (navalha);
se m'entende (cemitério);
sépios (chapéus altos);
serviço [mulher fácil, ou criada com que se traz namoro, (GAS) ];
sino grande (copo de vinho dos grandes);
soldado de calça branca (cigarro);
suquir [ bater; mas também comer, furtar (GAS) ];

tabuleta (cara, fuça);
tingar (fugir, desaparecer);
tostão (100 réis, 5 chetas ou 5 vinténs);
toudas (sopapo);
trolha (pancadaria: andar à trolha; mas também servente de pedreiro);
trompázio na fuça (soco na cara);
trovas a atirar (cantigas que encerravam uma provocação, dando origem por vezes a conflitos);
tusto (tostão);

vintém (20 réis);
viúva (garrafa preta da taberna);
viúva, filhos da (copos)

urdimaças (mexeriqueira)

zaragata (pancadaria, desordem);

Abreviaturas - A recolha, feita do nosso editor LG, baseia-se sobretudo em Guilherme Augusto Simões (GAS) (que por sua vez tem uma bibliografia extensa, com cento e tal autores)... O Alberto Bessa (AB) é uma fonte obrigatória... E, pontualmente, recorremos também ao Afonso Praça (AP). Para um ou outro vocábulo não conseguimos encontrar o significado: por exemplo, camolete, duques, místico, orchatado... 

Mas este é um glossário aberto... Esperamos que os nossos leitores possam também dar os contributos do seu(s) saber(es), alargando o nosso campo  de cohecimentos ao calão do Porto (Bairro da Sé), e ao nosso calão militar (ou de caserna).

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24866: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (22): mais quatro fados com letras em calão do fadista ou faia de antigamente
Vd. também:

17 de novembro de 2023 Guiné 61/74 - P24858: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (20): O calão do Bairro Alto em finais do séc. XIX, algum do qual chegou à nossa caserna...

11 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"

 

"Bal du moulin de la Galette" (1876), do pintor francês Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), uma das obras primas do impressionismo. O "Moulin de la Galette" ficava no bairro de Montmartre, Paris, onde se situava o estúdio do artista. Óleo sobre tela. Musée d'Orsay. Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.


Contos com mural ao fundo (12) > De Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"


por Luís Graça (*)



"Nascido no ano zero, 1945"... Lembro-me de tu teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira (e única) exposição de pintura, e logo  no SNI... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?!

Lembras-te, dessa história, passada no já longínquo ano de 1967 ?!... Foi um sucesso, a minha "vernissage"... Os "meus padrinhos e mecenas" financiaram os comes e bebes. Ate meteu "foie gras", coisa que nunca tinha provado... 
E houve mesmo  umas críticas favoráveis em um ou dois jornais da capital. Para te ser franco,  acho que foi o único momento de glória na minha vida... 

Depois veio a ressaca, a descida à terra, a dura realidade... Éramos uns putos... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos os dois vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente pacífistas  e anti-imperialistas (a guerra do Vietname estava  ao rubro e ninguém, na América, queria morrer pelo tio Sam; crescia a contestação) . 

Eu sonhava com Paris, Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado de mulherengo!), enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida (na Sorbonne, que ficaria famosa um  ano depois, com o maio de 68) !... 

Eu estava quase a completar os meus vinte e dois anos, com a tropa à perna, mas sem a mais pequena consciência disso. Tinha-me esquecido completamente que, uns bons anos antes, fora à inspeção, tendo sido apurado para todo o serviço militar. Dei uma palmada na testa, quando tu me interpelaste : "E a tropa, pá ?!"... 

Tu eras ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária, da poesia e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo. 

Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" (quem tinha  conta bancária nesse tempo?!) a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, bem menos do que eu...

E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos e mecenas" de Lisboa, expulsaram-te de casa  (uma cena triste, confesso) e, a mim, cortaram-me a "mesada"... (Ficaram histéricos, ameaçaram até denunciar-me como se eu tivesse cometido,  ou estivesse à beira de cometer,  um crime hediondo!... E, na realidade, era,  na ótica deles, católicos,  conservadores e situacionista,  um "crime de lesa-pátria", e sobretudo um caso de simbólico parricídio e de inqualificável ingratidão!)

Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande, em frente à feira popular... A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!, andava a tirar o curso de serviço social. (Aliás,  acabámos os dois por ir lá ficar uns dias enquanto não passou a zanga do meu "padrinho"; de resto, o andar do Campo Grande estava por conta da Flora e das amigas.)

Eu era mais corajoso (e, seguramente, mais inconsciente) do que tu, tens que admitir. Era artista e tu literato. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:

– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:

E os oito, nove ou dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?

Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, gritavam  os parisienses, eufóricos, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho,  extensível à  nossa terra (pensavam alguns ingénuos), o recomeço da história da humanidade, etc., etc., blá-blá, blá-blá...  (
Mas ainda não fora dessa que o Salazar cairia da cadeira.)

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, como é óbvio, o Salazar era tabu!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o "non-sense",  o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça (que só mais tarde vim a descobrir que eram da tropa,   coronéis na reserva ou na reforma)...

Uma exposição no SNI em 1967!... "A arte ao serviço da Nação"!... Que privilégio, ironizavas tu!... O SNI, o Secretariado Nacional de Informação (ou da Propaganda, emendavas tu, sarcástico) no Palácio Foz, nos Restauradores, criado pelo António Ferro... Tu até tinhas repugnância em lá entrar, sei que fizeste esse "enorme  sacrifício" por amizade...

Mas, em boa verdade, não havia borra-botas, aprendiz de artista,  que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expor no SNI!... Um casapiano, novato, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, filho de pai incógnito, nascido nas faldas da serra de Montemuro, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela, ao som de um acordeão... Sempre adorei o preto e o vermelho. E o som do acordeão. E as rosas. E as francesas (que começavam a aparecer em Lisboa, nos seus 2 cavalos, Citroën, que lindas, vaporosas, livres, provocantes!)...

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3º ano das Belas Artes, e tinha um "padrinho e mecenas", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao patrão do SNI, o dr. César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no Palácio Foz, ali nos Restauradores…  (Mas o melhor, dizias tu, era a "Ginginha", ali ao lado, no Rossio, no Largo de São Domingos...)

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. 

Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento e até uma carreira de futuro à minha frente!... (Sim, ao nível da gravura, da água-forte, da serigrafia, acho que podia ter ido mais longe!...Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as minhas gravuras, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo o que fosse obra de arte, naquela época, em que começou o frenezim de investir em arte e ganhar dinheiro... A começar pelos amigos do meu "padrinho e mecenas" de Lisboa, que conseguiu impingir alguns trabalhos meus a um ou outro colecionador; coitado, eu, casapiano, fui para ele o filho que ele nunca teve, mas o contrário infelizmente não era verdadeiro.)

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, isso, sim, podes escrever, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!... E esse sonho começou Casa Pia: devo-lhes esse favor, aos mestres que me ensinaram os rudimentos  de desenho e pintura nas oficinas, que ficavam lá por detrás dos Jerónimos.... Ainda hoje estou grato à Casa Pia por me ter acolhido e educado. Mas lá também me faltou o amor  de pai, coisa que eu nunca tive na vida.

Claro, fiquei inchado que nem um peru de Natal quando entrei em Belas-Artes. Ainda dei essa alegria à minha querida mãezinha e aos meus pobres avós. Infelizmente, nunca cheguei a acabar  o curso, a tropa cortou-me as pernas. 

Na minha cédula pessoal, podia-se ler um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que eu nasci, filho de mãe solteira e "de pai incógnito" (lá estava escarrapachada a infamante expressão, originando um estigma social que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe ou regedor da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois, esse filho do "Francês",  o primeiro rapaz da terra  a ir estudar para a Universidade. Casou-se no Porto, ainda estudante, teve um primeiro filho em 1947 ou 1948, o Gustavo.  E no Porto acabaria por estabelecer-se como advogado.

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. (Só não gostava dos "boches"...).  Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos recados e fretes que ia fazendo, a este ou aquele, e que no largo da escola, onde se hasteava a bandeira nacional,  dava vivas à  República no dia 5 de Outubro!

O regedor era o meu... "padrinho de batismo"! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... 

Nas aldeias, toda a gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida de todos. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós (que, coitados, eram mal vistos na aldeia pelo "pecado da filha").

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem  e capacidade de sofrimento, como muito poucas que conheci na vida: recusou-se a casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o "prudente e caridoso conselho"  do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... 

O escândalo foi rapidamente abafado.  A minha mãe desapareceu das vistas da aldeia.   Por uns tempos refugiou- se na casa de uns parentes no concelho vizinho, Resende. Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos (com quem, de resto, pouco convivi, e  de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo).

Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo (e de hipocrisia) que vigoravam na minha terra, uma aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas, fulas e balantas, por onde eu haveria de passar, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia, hoje completamente diferente e com pouca gente, muito menos nova, Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, no Marco, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu "querido mês de agosto", quando vieres de férias,  bem poderemos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer, como deves imaginar.

Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo coitada, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, muito mais novos do que eu, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto e ao alarido social  que provocara a sua gravidez de rapariga solteira... Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram  isso, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, imagina!, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce.  Estás-me a imaginar de sotaina branca,  longas barbas pretas e óculos de tartaruga,  não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o até próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias, as missões e, depois, para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1967, que um ano e tal depois estaria a desembarcar em Bissau... como combatente!

No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas fragas, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores,  usurpadores e bandidos. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955, depois de feita a 4ª classe com distinção. 

Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para construir casa e casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia, incluindo os meus avós.  Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo,  até aos meus dez anos, de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente. 

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, como tu bem sabes, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.

O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia, dono de casas e terras  compradas ao desbarato na crise dos ano 30 e 40.  Era, além disso, negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa Mas antes  ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", o "Francès de Moncorvo", por ter andado na guerra e ser natural daquela terra transmontana.


Tinha fama de ser violento8 e andava sempre armado, o meu padrinho. Os caminhos da serra não eram seguros na época. Percorria os concelhos à volta, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. 

Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. E ele próprio era o "carteiro" e  lias cartas e os telegramas para os analfabetos.  

Não havia luz elétrica, nem muito menos ainda a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... Ia lá a casa o povoléu, parolo,  para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... 

Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores e precisavam dele...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, um tal "mandjor" de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa desse tal  major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava a manta do poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional (coisa que eu não sabia o que queria dizer), e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. Honra lhe seja feita!... O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama", com reverência e despeito, para mais sendo de fora).

Ele, o meu padrinho de batismo, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "estudar e aprender um ofício "... (Ainda pensaram no seminário, mas ficava mal a um futuro padre ter sido concebido "em pecado".)

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram, já não sei como ) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa..., e que tu chegaste a conhecer na sua casa, em  Benfica.

Ao fim de semana, eu saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, uma vivenda, em Benfica, perto do jardim zoológico. Depois de fazer o 5º ano, aos 16 anos, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas-Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal, o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em finais de 1968, depois de eu ter chumbado em Belas-Artes, por ser cábula e andar na má vida. 

Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, nem sequer o tradicional folar da Páscoa que qualquer padrinho, mesmo pobretana, oferece a um afilhado. E muito menos lhe iria pedir agora que me safasse de ir parar à Guiné. Sempre tive o meu orgulho. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha (a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele, se bem recordo a esta dostância).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei da Guiné, evacuado, no 2º semestre de 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai (como te disse, advogado no Porto, e meu putativo irmão, mais velho)... Numas férias de verão, em meados dos anos 60, o Gustavo ficou em Londres a lavar pratos. No final desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos, era dois anos e picos mais novo do que eu, já tinha dado o nome para a tropa.

Terá sido considerado  refratário pelas autoridades militares.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano, beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 

Eu sei que nessa época ninguém escapava à tropa e depois   à guerra, até filho de general era mobilizado  (era o que se dizia). Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… 

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Spínola (o Schulz já não o apanhei), mas não sei se ele tinha filhos em idade de ir para a tropa, julgo que nunca teve filhos.

O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família).
 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.

– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias no verão de 1969.
 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…

– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 

– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, e irrepetível, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus (!), e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone" (como dizem os italianos), um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que até então  pouco mudara,   apesar das mudanças de regime.

Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o SPM de Cacine.  Éramos amigos e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de investigação da paternidade "post mortem"!... (Mais por respeito pela memória da minhã mãe, tenho que o confessar; se por um lado, eu bem gostaria de ter um pai como toda a gente, por outro repugnava-me a ideia ter como meu progenitor o violador da minha mãe.)

Ou melhor, éramos "mais vizinhos do que amigos", eu e o Gustavo: tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, a idade da inocência, nas férias de verão,  Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina, na Foz, no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. De carro.

 Nessa altura (até eu entrar para a Casa Pia de Lisboa) brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais e até de idade. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados e bebia leite,  e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia,  éramos a "canalha".

Agora, em Lund, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos. refractários e desertores da guerra colonial". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas (inculcadas nas Belas Artes), desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, mesmo quixotesco, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas (e os demais que não alinhavam com eles), quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Nova Lamego até Bafatá, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta, oportunista e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do arco do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou funcionário na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. (Foram, por certo,  amores de verão.)

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!... (Bolas, qual comissão!... Eu fui para um teatro de guerra!)

Achei que o mundo não era justo.  Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Piche, Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus de todo. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros, em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. (Eram bonitas,  as libanesas.)

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia, do bairro de Benfica e, depois, do leste da Guiné … Montmartre fora apenas uma miragem... Enfim, uma deceção, a minha vida!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas-Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para a tropa, acabando,  para azar meu,  nas matas e bolanhas da Guiné.

Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição, a autopiedade, a autocompaixão... Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições "pequeno-burguesas" (dirias tu), agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu  conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1967, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira (creio que no Natal de 1969). 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, no início do ano de 1970 (já não posso precisar o mês), a dizer que ia para a Venezuela, para casar. (Estava já eu em Cacine, no sul da Guiné, sei que era a época das chuvas.) 

Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto me apercebi, seria um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos, muita cagança e estaleca a menos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. Gostava da sua companhia e do seu perfume. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. Ficou chorosa, mas não de coração destroçado. (Foi aí que me convenci que ela nunca iria esperar por mim.)

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, meu conhecido, por sinal do Funchal e das relações da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 

– Porque  há mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Viera a uma consulta de estomatologia. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 

Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (fiquei lá uma noite nos correios à espera de ligação para o Funchal). Em vão. As ligações com a Madeira (e para a Metrópole) não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar por ... um padeiro venezuelano rico! (Hoje não a condeno, nem sei  se está viva e é feliz; nenhuma mulher  ficava à espera de um gajo que ia para a Guiné e que,  se regressasse vivo, seria sempre um teso de um artista plástico!)

Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de (in)confidências...

Acabei, já em Lisboa, por não conseguir voltar a estudar  (não me perguntes porquê, não tinha cabeça ) e por tornar-me bancário (o primeiro emprego que arranjei, ali à mão, não longe da sétima colina, aonde tive a  sorte de descobrir umas águas-furtadas para morar). 

Infeliz, acabei também por me casar,   na primeira oportunidade, com uma galega de Orense, que vivia no bairro, e que nunca chegarás a conhecer, pela simples razão de que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles, o rapaz, a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe. (Ainda por cima foi ela que pediu o divórcio!, a minha ex, o que feriu o meu orgulho de pobre macho lusitano.)

Mas ainda antes de tudo isso , meu amigo,  já te devida ter falado do rol de desgraças que me aconteceram na Guiné. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud, dirias tu. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou uns largos meses para o Hospital Militar da Estrela, e que me podia ter deixado tetraplégico.  Enfim, poupo-te os pormenores macabros, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz abaixo  das costelas, e que só por milagre não me atingiu nenhum órgão vital). 

Esqueci a Guiné... até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a uma terra, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por lá, por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas duas ou três  noites, à espera do "barco turra", para Bissau quando fui de férias. 

É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. (Estarias tu ainda em Contuboel, pelo que me contaste ao telefone.) Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, na Guiné, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro ,  no 2º semestre de 1969, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado algumas vezes, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim (chama-lhe compulsão,  se quiseres), das viagens, por terra, ar e mar: só para saberes, já visitei mais de sessenta países dos cinco continentes... E ainda me faltam dois terços do planeta...

Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!... "Carpe diem", é o meu lema. Tornei-me cínico, cético e hedonista.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. (E a fingir, à noite, que era um promissor artista plástico.) Aceitei vir-me embora do banco, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto. O que foi humilhante: afinal, eu estava lá a mais!

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1967, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha e amendoins. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.  Tenho saudades de ti, da Flora e das suas amigas do Campo Grande.

Até sempre, amigo (e camarada)!


Teu F..., o Renoir de Montemuro.


PS1 -  E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste, embora mal (era um homem irascível e autoritário, quando se zanagava), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das primeiras vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, tentou cometer suicídio... Não morreu logo, ainda esteve uns dias nos cuidados intensivos do Hospital de São José.

Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto ou o sucedâneo do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um  bom homem, um amigo, um protetor... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, me ter acolhido na sua bela casa,  me ter dado uma "família normal"... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas-Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência... Era professora de liceu...

Nunca mais voltei ao Rossio para  beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensão de Deficiente das Forças Armadas, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens. (#)


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(#) Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida  pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) uma filha, casada, arquiteta, a viver nos arredores de Paris (além de um filho em Vigo, com quem não falava). Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo... Ou a descobrir novos mundos (se é que ainda os há)...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico de ex-casapiano...  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite, em 1967,  para lhe escrever o catálogo para  a exposição no SNI.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008. Conversa que reconstitui, tendo sido, tanto quanto possível, fiel à tua oralidade, tão expressiva quanto torrencial.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora)  para este meu possível livro de "contos  com  mural ao fundo"... 

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta  quando eu insisti em que escrevesses umas notas sobre esse tempo, para "memória futura"...  Percebi que és daqueles casmurros que puseram (ou gostavam de poder pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

Sabes onde vivo. Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-me uma visita, dá -me um toque. Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude e os nossos sonhos juvenis. E até pelo "carimbo da guerra no nosso passaporte da vida"...

Como a vida, afinal, também é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, mum qualquer dia do meu querido mês de agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. (Conheço algumas, mal: Alhões, Boassas, Bustelo, Gralheira, do lado de Cinfães... E gosto de ir tomar um café no parque de lazer  do rio Bestança em Pias, sitio onde  tu  seguramente nunca foste, foi inaugurado há uns anos). 

Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, deve ser  apenas a distância  de um tiro de obus 14. (...)

© Luís Graça (2009). Nova versão, revista e melhorada, em 31/10/2023. 
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Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 22 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!