Mostrar mensagens com a etiqueta ex-combatentes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta ex-combatentes. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 6 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24374: (In)citações (246): O regresso dos Soldados (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Foto: © Luís Graça

1. Em mensagem de 3 de Junho de 2023, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto que intitulou:


O Regresso dos Soldados


Nós os homens dos vinte anos feitos ou a fazer nas décadas de 60 e 70 do século passado, sonhámos com o dia 25 de Abril de 1974, mais do que os hebreus com o dia da libertação do Egipto.

Soldados em formação ou soldados prontos, milicianos, forçados a combater em savanas, matas e bolanhas, de Angola, Moçambique e Guiné, contra a sua consciência ou sem entenderem as razões dessas batalhas, a defenderem territórios habitados por africanos, gentes de outras cores, outras raças, de outras crenças e colonos brancos, tão longe das suas aldeias, dos seus bairros, das suas vilas e cidades, nessa África quente e desconhecida, que a alguns matavam e a outros feriam no corpo e na alma.

Muita da alegria de viver, que ficou por lá, entre sonhos e pesadelos de juventude perdida, os ex-combatentes procuram hoje recuperá-la, em convívios e almoços, em conversas longas só entre eles, sobre picadas, emboscadas, ataques, balas, rebentamentos, colunas, bajudas, homens grandes, mortos e feridos para libertarem o espírito e ganharem alento para fazerem a última caminhada com dignidade. Com o clarão das bombas ao rebentar, o cheiro da pólvora, o matraquear das espingardas e das metralhadoras todos transportam o desgosto imenso dos anos perdidos da juventude, quando outros da sua idade, os mais infelizes, perdiam a saúde e a vida, imolados no altar da Pátria, que nunca reconheceu o seu sacrifício supremo. Todos os que sobreviveram transportam a raiva pelo esquecimento a que foram votados pela sociedade civil e pelos governos depois da ditadura, os feridos e mortos em combate, que heróis ou não, foram seus amigos e seus irmãos, como se a Nação ao condenar o ditador e as suas políticas coloniais, devesse também condenar os ex-combatentes que foram forçados a fazer a guerra colonial.

Fomos nós que fechamos o ciclo penoso dos descobrimentos e da expansão marítima, que os gloriosos marinheiros portugueses iniciaram no século XV, com a morte de muitos por tempestades nos mares que destruíam as frágeis caravelas, pela fome, pelo escorbuto, doença terrível, por incursões em sítios onde aportavam. Entre nós, os últimos soldados do Império e os soldados e marinheiros lançados a desbravar caminhos dos mares de terras distantes, muitos outros soldados se sacrificaram até à morte, nos séculos que medeiam, a tentar dominar revoltas de reinos e tribos indígenas e na Primeira Guerra Mundial, contra grandes potências colonizadoras. O Velho do Restelo, a consciência crítica dos Lusíadas, por muitos interpretado como a consciência de Luís de Camões alertava para todas as desgraças e horrores que iriam acontecer, que nada de bom trariam a Portugal.

Ao reflectir sobre o meu passado procuro interpretar os pensamentos e sentimentos da minha geração e tentar desfazer o novelo, da teia de incompreensão, com que fomos recebidos, como se tivéssemos que corrigir todos os erros da nossa História antiga e recente.

"Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inacção". "Tenho mais sono íntimo do que cabe em mim. E não quero nada, não prefiro nada , não há nada a que fugir".

Bernardo Soares, do "Livro do Desassossego".

Somos o princípio e o fim de uma ilusão que se esvai num curto espaço, a que se chama vida.

Francisco Baptista

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24365: (In)citações (245): "Pequena conversa com a Arte", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23589: Notas de leitura (1488): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
O livro de Joana Pontes lê-se com fervor, é percetível, do princípio ao fim, a singularidade do projeto, tomar a correspondência trocada para ir assinalando a mudança dos homens e a mudança da época em Portugal. As conclusões da autora são para ter em consideração, já que estão envolvidos todos os anos da guerra: a ânsia em regressar, a alegria de receber a tropa que nos vem render, informar a família de que tudo se faz para que o tempo passe sem incidentes, a ausência de compreensão de um grande ecrã em que se situe toda a questão colonial, fala-se de um período de tempo, de um local, ninguém assume que é o todo, porque não se conhece o todo; e com o passar dos anos o sacrifício que é exigido para defender a pátria esbate-se e contesta-se intimamente. Se alguma lacuna significativa encontro neste belo trabalho é exatamente a desproporção no tratamento dos três teatros de guerra: a Guiné tem a porção menor, quase residual, quando se sabe que nada foi assim, a despeito do acervo de correspondência talvez seja minguado quanto às terras de bolanha e tarrafo. Paciência.

Um abraço do
Mário



A correspondência da guerra colonial: uma amostra de mudanças em Portugal (2)

Mário Beja Santos

Como se disse no texto anterior, trata-se de um belíssimo trabalho, de uma fecunda investigação, é uma das obras mais originais que até hoje se produziu em torno dos olhares sobre a guerra colonial, documento a partir de agora indispensável: Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974, por Joana Pontes, Tinta-da-China, 2020. Joana Pontes é doutora em História na especialidade de Impérios, Colonialismo e Pós-Colonialismo, tem currículo firmado no jornalismo televisivo e foi membro da Direção da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar. Colaboradora no Projeto Recolha, destinado a evitar o desaparecimento da memória escrita da guerra, acompanhou de perto a chegada de um arquivo fecundíssimo, pois foram contabilizadas cerca de 4400 cartas e aerogramas, aproximadamente 11300 páginas, operação que decorreu entre 2003 e 2010.

No seguimento da recruta e da especialidade, em que os militares traziam produtos de fumeiro, queijos, vinho e aguardente, mimos com valor identitário, provas de zelo dos pais, já que corria fama universal que a comida da tropa não era muito atrativa, os cuidados agora, em que há uma separação de milhares de quilómetros, mudam de registo: quem está na guerra fala nos mosquitos, nos perigos da bicharada, nos enlatados das rações de combate, na dobrada liofilizada, no esparguete com salsicha. As mães, mulheres e namoradas não se esquecem de transmitir essa preocupação: Também estou ralada que passes mal de comer. Mas dão conselhos de outro género: Não te deites com a roupa molhada; agasalha-te bem para não te constipares; não tires o soustento ao teu corpo vaite alimentando que tu aí não tens quem olhe por ti. Há de facto a lavadeira e costureiros, mas o grau de dependência destes jovens militares reduz-se significativamente, um deles escreve à mãe: Quando for para aí, serei um outro homem talvez um pouco mais bruto, mas muito mais homem. Se eu tivesse sempre debaixo das suas saias seria menino, e hoje não o sou. Estamos dentro do paradigma de que a tropa ensina a ser homem. As doenças não são esquecidas e os animais perigosos muito menos, fala-se em febres, formigas que mordem, paludismo, clima doentio. Há quem confesse à mulher que está a tomar Librium, para tratar a ansiedade.

As informações sobre a vida nas colónias é uma constante: Luanda é muito cara, o dinheiro desaparece rapidamente, entre amigos há comentários sobre as belas mulheres que circulam nas ruas ou nas praias. Surge um novo léxico, e explica-se para a metrópole o que é ser maçarico, o significado de “checas”, “peluda”, “puto”, “jinguba”, “mainato”, “alfaiates”, “maningue”, “cacimbado”, “água de Lisboa”. Há a descrição das belezas naturais, do que é o Ramadão, fala-se dos filmes que é possível ver, estrangeiros e internacionais. Pedem-se livros às famílias, mas também se podem comprar nas cidades. Nota curiosa que registo de Bissau: na livraria da 5.ª Repartição (Café Bento) podiam ser adquiridos livros recolhidos pela censura na metrópole.

Como observa Joana Pontes, o facto de a situação de guerra ter levado a um corte abrupto com a vida anterior, os ingredientes da narrativa também mudaram de registo e ganham ênfase com o passar dos meses. Mas os episódios mais brutais não são contados às famílias de um modo geral, escolhem-se os amigos para falar de emboscadas, de rebentamentos, de evacuações por helicóptero, das destruições dentro do aquartelamento por obra das flagelações. Mas há casos em que não falta pejo para dar notícias às famílias sobre os episódios da guerra: eu matei um Turra com dois tiros na cabeça e um nas costas e não tive medo nem nonjo. Há quem apele, do lado de cá, para a prudência, do género: Vê se te resguardas. Cumpre o teu dever mas nada de heroísmos mas sim salvar a pele, que é o que mais precioso temos; Fiquei muito contente por saber que ultimamente não tens saído para o mato. Deus queira que isso não aconteça nestes tempos mais próximos, nem nunca mais se possível fosse.

Conta-se o tempo, põem-se cruzes em cada dia do calendário. Do lado de cá, dão-se novidades sobre as mudanças, e não se esconde que se leva uma vida dura: me doi as pernas de Domingo ter ido para o rio da manga lavar estava habituada a lavar na arca-d’água as pedras são mais altas e por esse motivo é que me custa a andar. As transformações são lentas mas sentidas a olhos vistos. A autora recorda que em 1963 o valor da produção industrial se tornou superior ao da produção agrícola. O produto interno bruto português era no final da década de 1950, o mais baixo dos países da OCDE. A abertura económica ao exterior, as poupanças que os emigrantes enviavam para Portugal e as receitas do turismo que, nessa altura, chegava finalmente em massa a Portugal, contribuíam de forma clara para que as taxas de crescimento da economia portuguesa fossem superiores à média da Europa Ocidental. Surgiu a contestação universitária, crescia a presença feminina nos estudos universitários, apareceu o planeamento familiar, o ideal da esposa doméstica deixou de ser um objetivo em si para a maioria das mulheres, expandiu-se a escolaridade, a telescola arrancou em 1965, as cidades cresciam, os campos iam ficando ao abandono. Esta transição insinua-se claramente na correspondência de cá para lá.

Na segunda parte da obra, a vivência da guerra propriamente dita, Joana Pontes repertoria os acontecimentos em Angola, 1961-1963 e 1963-1965, depois Moçambique 1964-1966, voltamos a Angola, agora 1966-1967, e também Angola-Moçambique 1966-1968 (correspondência de um paraquedista que se alistou como voluntário aos 18 anos), o único testemunho da Guiné é referente ao período 1967-1970; segue-se Angola 1967-1969 e vem a seguir Moçambique 1970-1972; caminhamos para o fim, temos agora correspondência em Angola, 1973-1974. A autora tira conclusões sobre a evolução do pensamento dos militares ao longo destes anos de guerra: a vontade expressa de regressar à metrópole, a ânsia permanente; a vontade de não arriscar e fazer o possível para que o tempo passe sem incidentes, procurar só fazer o estritamente necessário; a manifesta falta de compreensão, em sentido lato, da questão colonial; a observação de que a crença na virtude do sacrifício exigido a todos para defender a Pátria se vai esbatendo ao longo da guerra; a ausência de entendimento geral da evolução do conflito, os relatos dos militares assinalam episódios pontuais, podem dar informações privilegiadas, mas nada mais; a insistência em falar no modo de vida precário e falta de condições, a dureza das operações e mesmo a saturação que se atingiu; a descrição do inimigo e do equipamento, à medida que o tempo passa diz-se que os guerrilheiros se apresentam bem armados e enquadrados; e temos ainda a constante da vivência monótona e com diferentes matizes a confissão de estar só, independentemente dos vínculos da camaradagem.

Em termos de epílogo, a autora regista que falta um trabalho de integração destas memórias na narrativa histórica da guerra. “A não existir esta integração, haverá condições mais favoráveis para o aparecimento de uma reelaboração e reinterpretação histórica enviesada, porque desligada de contexto e da realidade social da época”.

Imagem da guerra, retirada do blogue Galeria dos Goeses Ilustres, com a devida vénia
Gil Manuel Pereira Francisco, combatente na Guiné, imagem retirada do site do Instituto Politécnico de Viseu, onde ele foi entrevistado, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23578: Notas de leitura (1487): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23578: Notas de leitura (1487): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui um olhar singular sobre a correspondência trocada entre militares e família e amigos, uma sala de conversa onde cabem namorados, pais e filhos, amigos e camaradas de armas e muitas madrinhas de guerra. Joana Pontes disseca admiravelmente as mentalidades, o papel do homem ainda cheio de autoridade, o mundo rural a caminho do abandono, os sinais de desenvolvimento, a muita gente que parte para o estrangeiro à procura de melhores condições de vida. E ver-se-á à frente, quando a abordagem for o modo de viver a guerra, que até se ultrapassam os limites impostos pela censura, há quem se vanglorie das suas façanhas, quem chore os amigos mortos e feridos. Enfim, um olhar sobre documentos, necessariamente de valor limitado, mas que podem contribuir para entender como estes jovens mudaram lá fora numa sociedade que mudava cá dentro.

Um abraço do
Mário



A correspondência da guerra colonial: uma amostra de mudanças em Portugal (1)

Mário Beja Santos

Trata-se de um belíssimo trabalho, de uma fecunda investigação, é uma das obras mais originais que até hoje se produziu em torno dos olhares sobre a guerra colonial, documento a partir de agora indispensável: "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes, Tinta-da-China, 2020. 

Joana Pontes é doutora em História na especialidade de Impérios, Colonialismo e Pós-Colonialismo, tem currículo firmado no jornalismo televisivo e foi membro da Direção da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico-Militar. Colaboradora no Projeto Recolha, destinado a evitar o desaparecimento da memória escrita da guerra, acompanhou de perto a chegada de um arquivo fecundíssimo, pois foram contabilizadas cerca de 4400 cartas e aerogramas, aproximadamente 11300 páginas, operação que decorreu entre 2003 e 2010. 

Recordo que ainda hoje não é difícil encontrar aerogramas e cartas deste período na Feira da Ladra, o artista Manuel Botelho adquiriu na Feira da Ladra um acervo da correspondência de um casal, ele fazia a sua comissão no Bachil, a 25 km de Cacheu, deu origem a uma instalação. Uma correspondência espantosa, há os entusiasmos iniciais, os projetos que ficaram adiados dois anos, em dado momento há sinais de desalento, parágrafos onde se manifesta o acabrunhamento, a dúvida, o fogo lento da solidão, por vezes pavorosa. Quantos casais não partilharam esta esfera sentimental?

No prefácio da obra, Aniceto Afonso dá-nos uma explicação comportamental dos ex-combatentes:

“A relação dos ex-combatentes com a sua memória da guerra teve um percurso complexo. Começou timidamente após o 25 de Abril, estagnou por vários anos e acabou por florescer em torno da passagem do século. A partir daí, multiplicaram-se os fóruns, os livros de memórias (ficcionados ou não), as entrevistas, as publicações individuais ou mesmo coletivas. A abundância de depoimentos, de regressos escritos ou falados, de despreocupadas ou penosas intervenções nas redes sociais, onde tantos têm tido oportunidade de contar a sua história, toda esta corrente de informação, de lembranças, de opiniões, vêm colocando, como sempre colocaria, um sério problema aos estudiosos que se dispõem a analisar todo este imenso material, que todos os dias se acrescenta”

E o investigador refere igualmente o interesse manifestado na esfera universitária pelo universo da guerra colonial, nas suas múltiplas vertentes.

Joana Pontes estrutura o seu trabalho em dois enormes módulos: o primeiro intitula-se “As palavras escritas no papel e na alma”, com o subcapítulo “A vida por mensagem”; o segundo “Viver a guerra”.

Confesso que valorizo mais este primeiro módulo, a investigadora é rigorosa nos enquadramentos de um Portugal que caminha para o modelo industrializado e abandona a agricultura. Ela não tem ilusões e escreve:

“A visão de conjunto dada por estas narrativas individuais é necessariamente uma visão incompleta e imperfeita da guerra, mas permite encontrar respostas a questões que são políticas no sentido lato e que se colocam relativamente a este acontecimento: o que é que aconteceu, que importância e consequências teve?”

Elenca os intervenientes, na sua maioria de origem rural, também a maioria pertenceu ao Exército, e apresenta microbiografias dos intervenientes. O aerograma é a principal ferramenta de comunicação; aliás, escasseia o papel, os envelopes e os selos no mato, as chamadas telefónicas eram dispendiosas, qualquer telefonema era marcado com antecedência. Há correspondência que leva desenhos e até poemas. Quando se mandam cartas, escolhe-se geralmente papel fino. Luís, destacado no extremo norte de Moçambique, escreve à mulher o espaço em que está confinado e a importância do correio para os militares:

“Existe em Nangade um retângulo de terra batida onde aterram aviões. Às sextas e terças-feiras sentimo-nos como que impulsionados para junto desse pedaço de terra lisa e barrenta. Todos, iguais, soldados e chefes, são nivelados pela mesma ansiedade e palpitar de emoção. E poucos são aqueles que têm o privilégio de ainda dentro do edifício onde se abrem os sacos de correio receberem o pedaço de papel que lhes revigora a alma e lhes faz sentir menos penoso o calvário. Mas são também poucos aqueles que têm que esconder duas lágrimas quando este privilégio os coloca na situação de simples espetadores…”

E desfilam as emoções, o momento da distribuição do correio, o desalento e até algum desespero de quem não recebe notícias, é o amor de mãe, são as notícias da mulher ou da namorada, é o perceber que a milhares de quilómetros de distância existem raízes e alguém que informa o que por ali se passa, até os falecimentos de outros jovens. É bom que alguém nos escreva lá nosso fim do mundo, aquela frase cala fundo: quando recebo carta tua é uma alegria tão grande que tenho e ajuda-me a viver. Quem está na guerra procura explicar o terreno, o tempo, as tarefas, faz perguntas, vem completamente à tona o quadro de mentalidades: o meter a cunha, o querer a mulher recatada, os códigos cifrados em matéria sexual, a conversa variegada com as madrinhas de guerra. 

As fotografias são da maior importância, o ausente é classificado como ícone: “A tua fotografia está em todos os cantos da casa”. A ânsia por novidades cabe nesta frase, vinda da guerra: “Se souberes novidades manda dizer que eu gosto de saber”. Há famílias em extrema dificuldade financeira, há as fugas a salto para França e outras paragens, em dado momento vão pululando informações sobre o dinheiro da França, o turismo no Algarve, os apoios sociais, o subsídio de Natal. A imagem do homem que manda aparece com muita nitidez, quem está na guerra pede recato, há mesmo saudades de autoridade do macho: tu chegavas os sábados vinhas ainda me batias mas eu tenho tudo guardado quanto passei contigo.

A religião pesa e muito:

“Encontramos inúmeras referências às figuras de devoção a quem se fazem estas promessas: São Lázaro, São Judas Tadeu, São Roque, Anjos da Guarda, Senhora da Hora, Santa Maria Adelaide, Santa Maria Madalena, Santa Sãozinha, Nossa Senhora da Paz, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora dos Aflitos, que acode a quem vai ter filhos, São José, São Veríssimo, São Sebastião, advogado dos soldados, Santo Amaro, advogado dos ossos e Santa Rita, advogada das coisas impossíveis”

O culto mariano é uma constante nesta correspondência. A Igreja e o Movimento Nacional Feminino não esqueciam a necessidade de manter o moral em alta e levar os militares a um comprometimento maior com o esforço de guerra, patriótico e cristão.

Mas ainda há mais algumas coisas a dizer sobre a experiência da distância de casa, o que chega à guerra e o que da guerra parte para a família e para os amigos.
Exposição/instalação de Manuel Botelho intitulada Cartas de Amor e Saudade, Centro Cultural de Cascais, 2011

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1486): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

sábado, 24 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22133: Blogpoesia (730): "Os ex-Combatentes são fixes" de Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)


1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Bom dia Carlos Vinhal
Pelo facto de ter andado bastante ocupado, pouco tempo tenho tido para te enviar alguns dos meus trabalhos, sempre dedicados à malta e à Tabanca Grande.
Desta vez, o que escrevi é; PARA TI CAMARADA.

Um grande abraço para todos os Tertulianos e em especial para os Chefes de Tabanca.
Albino Silva



OS EX-COMBATENTES SÃO FIXES

Eu era o 01100467
Sou o autor desta escrita
Esperando agora passar
Sempre que haja revista.


Não precisas de formatura
Para estas coisas ler
Podes ler desde manhã
Até ao toque de recolher.


Tudo o que aqui escrevo
Bem à tropa me refiro
Pois podes ler descansado
Pois não darei mais um tiro.


Ao escrever tudo isto
Não pude fazer mais nada
Eu não gastei munições
Nem descavilhei a granada.


Com muito mais para dizer
Tenho mais para contar
Mas com o carregador vazio
A G3 não vai mais disparar.


Não falei de muitas coisas
O que fiz foi às ajudas
Sem guerra não disparo mais
Nem ataco mais bajudas.


Camaradas meu amigos
Se disparei eu sei bem
Mas aqui no que escrevo
Não foi para atingir ninguém.


Os Ex-Combatentes são fixes
Pois de mal não tem nada
Por isso eu não disparei
Nem sequer uma rajada.


Não se espantem com a escrita
Nem de coisas como esta
Pois o Bino não é escritor
E muito menos poeta.


Eu não sou bom a escrever
E qualquer erro que passe
Não se espantei por favor
Pois só tenho a quarta classe.


Gosto de escrever em versos
E tenho mais para escrever
Com a certeza porém
Que serei o primeiro a ler.


Por vezes vou escrevendo
Para depois tudo guardar
São livros que vou escrevendo
Mas sem nenhum editar.


Agora vou sim disparar
E deste fogo não foges não
Para todos um bom abraço
Disparado do coração.


É assim que eu disparo
E sem querer ferir alguém
Já entreguei minha G3
Não disparo a mais ninguém.


Albino Silva
01100467
CCS/BCAÇ 2845 - Teixeira Pinto
Guiné - 1968/70

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22113: Blogpoesia (729): "Arroz doce"; O brilho dos brasões"; "Gradeadas as portas e janelas" e "Bom rasto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19884: Efemérides (304): O meu dia de Portugal, 10 de junho de 2019 (Virgílio Teixeira, Vila do Conde)


Foto nº 9

Foto nº 8


Foto nº 3

Foto nº 1 

Foto nº 4


Foto nº 10


Foto nº 6


Foto nº 11

Vila do Conde > 10 de Junho de 2019 > Homenagem aos vilacondenses, ex-combatentes da guerra do ultramar

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O MEU DIA DE PORTUGAL – 10 DE JUNHO DE 2019

por Virgílio Teixeira


Ontem, como de costume todos os anos, nestes últimos, como habitante desta terra que me foi adoptando – Vila do Conde – comecei o dia a ver na TV as comemorações oficiais do Dia de Portugal, este ano, em Portalegre.

Fiquei logo totalmente ‘pregado’ no discurso de João Miguel Tavares, indigitado para ser o mandatário das comemorações na sua terra. Segundo ele, ficou muito admirado e agradado por este PR escolher ‘Um Zé Ninguém – segundo as suas palavras – ‘para levar a cabo tão grande tarefa. E saiu-se muito bem, o seu discurso foi diferente de tudo o que se tem visto por aí fora. Portanto se me perguntarem qual é o meu Curriculum, respondo apenas que ‘sou Português’, e com muito orgulho, nada mais.

Mas o dia ainda estava no inicio:

1 - Por volta do meio dia, saímos de casa, coloquei a minha medalha na lapela e fui ao fim da missa que antecede as comemorações, aqui, nesta terra tão pequena. Juntei-me ao cortejo na direcção do monumento ao Combatente e seu Anexo, uma Estátua daquela mãe que espera junto ao Rio, o seu filho ‘vindo do outro lado do mar…’ [Foto nº 10]

A cerimónia, organizada pela Associação dos Combatentes cá do sitio [, Associação Social e Cultural dos Vilacondenses Ex-Combatenets do Ultramar, com págin ano Facebook,] presidida pelo já cansado Nascimento Rodrigues, foi mais do mesmo, e cada vez mais pobre e com menos gente. Antes havia uma força militar com uma secção, para fazer as honras militares, agora nem um Bombeiro lá temos. Uma tristeza.

Alguma gente da Politica, Presidente da Camara, Vereadores, uns convidados, o nosso Padre Bártolo [Paiva Gonçalves Perereira] – com 83 anos, ainda trabalha, foi capelão militar nos 3 cenários de guerra, com 3 comissões - e pouco mais. [Foto nº 3]

As flores, os discursos cada vez mais sem um fundo novo, esgotados, até fazer sono. Mas pelo menos fazem alguma coisa e eu não faço nada. Bem hajam.

Leite Rodrigues e Virgílio Teixeira, na Tabanca
de Matosinhos em 5/9/2018 (*)
Tirei umas fotos, encontrei lá um dos nossos camaradas , ‘Capitão',  não me lembro o nome, esteve no almoço em Matosinhos de homenagem a um camarada falecido [, o Joaquim Peixeoto], ele tem uma foto comigo no almoço, mas não encontro o Poste para ver o nome dele.  [Leite Rodrigues] [Foto nº 1] (*)

Ainda o cumprimentei, mas percebi que ele não me reconheceu, porque me tratou por senhor. Ele foi apanhado de surpresa para fazer um discurso e lá se safou, eu nem isso faria.

Não havia corneteiro para o toque a finados, apenas um som da rádio, no final com o Hino Nacional e fecho das cerimónias, muito pouco, mesmo pouquinho…. (**)

Ainda falei com o Nascimento, ele queria que eu fizesse parte da Associação, porque falta lá, segundo ele, gente mais letrada, com outras ‘patentes’, mas eu não sirvo para isso, e como sempre lhe disse, eu não pertenço a esta terra, estou por cá de passagem, a ver o tempo a passar.

Ele em 1973, juntamente com outros irmãos, abriu em Vila do Conde, a primeira coisa fora de série, Restaurante – Snack Chez Nous. Andava há tempos para lhe perguntar se o nome foi importado da Guiné adaptado ao Chez Toi, mas não, foi um irmão que lhe deu o nome, mas este importado de Angola. Fiquei desiludido, pois ainda lhe ia perguntar mais sobre o Chez Toi, ele diz que ouviu falar disso, mas nunca lá foi, é da geração de 68-70, na Guiné.

2 – Como estamos na época de São João, as festas da Vila fazem-se por aí muitos ‘eventos’

À frente de quase tudo, anda a minha Nora, directora dos Museus, Ivone, que é ‘pau para toda a colher’, uma mulher de garra nestas coisas da sua terra, e no final quem paga a factura é o meu filho.

- Havia uma concentração, ou passagem, de motards sob a sigla de ‘lés a lés’, com paragem obrigatória na nossa Nau,  na doca do Rio. Mais umas fotos e vamos almoçar, que está na hora.

- De tarde, e junto à Nau, houve fado pela Tuna académica, não sei de onde, talvez do Porto, foi bonito, porque a minha mulher gosta, e levou-me a velhos tempos, mas acabou cedo. [Foto nº 6]

O dia sempre frio, vento gelado, a minha mulher não aguenta, andamos vestidos como no Inverno, apesar do Sol espreitar, mas esta terra não me serve, já disse.

- Enquanto estivemos ali, já no final, eu ia olhando para o céu, e contava os aviões que passavam, vindos do aeroporto do Porto – Pedras Rubras. De dois  em dois minutos passava um, no final já ia quase em 20, então lembrei-me de outro programa.

- Vamos então ver os aviões no aeroporto de Pedras Rubras - agora chamam de Sá Carneiro, mas para mim é sempre o velho nome, daquele barraco que eu nos anos 50 vi a construir naquele descampado chamado então de Pedras Rubras, e assim ficou. Depois ergueu-se novo edifício e pista, e já lá aterrei quando vim de férias em 1969, era já um aeroporto, mas hoje, é um Super-Aeroporto, o mais belo de todo o mundo, que também assisti à sua construção, bem como a todas as grandes obras realizadas neste Milénio.

- Para quem não saiba, assisti à construção de raiz do Hospital São João do Porto, ainda a Asprela era um enorme campo cheio de nada, e hoje não cabe lá mais nada.

- Assisti à construção do Estádio das Antas, à sua inauguração, lá vi muitos jogos, quer nacionais quer internacionais, e por fim à sua demolição.

- Assisti, já neste milénio a todas as grandes obras que se fizeram no Porto, palmilhei a pé as linhas do metro em construção, estive nas profundezas das linhas subterrâneas, vi com alguma tristeza á demolição do Museu do elétrico na Rotunda da Boavista, e depois à construção da Casa da Musica nesse local.

- E tanta coisa, eu era um perfeito ‘fiscal de obras’ seria esta a minha tendência profissional, meto o nariz em tudo que está a ser demolido e a ser construído, especialmente as grandes obras. Posso dizer que não havia Auto Estrada, IC, IP e outras, onde eu não estivesse lá a ver, e a inauguração era imprescindível.

- Fui dos primeiros a fazer a viagem inaugural do Metro do Porto, em finais de 2001, com um bilhete oferecido, ainda sem valor, uma amostra do que seria o futuro ‘andante’.

- E fico por aqui, o resto da história está nas minhas memórias, que agora vou passar a fotografias, ainda não sei bem como, mas vou arranjar uma forma.

- Li nas minhas andanças pelo Google, na procura dos meus icónicos Cafés do Porto, que o antigo Café Imperial na Praça da Liberdade, por onde andei nos passados anos 60, hoje mais uma loja da cadeia McDonald’s, foi considerado ‘O mais bonito do Mundo’ de toda a cadeia da McDonald’s, e fiquei surpreendido e feliz por isso.

- Chegados mais uma vez ao nosso maior e mais bonito aeroporto do país – tenho de dizer isto senão fica tudo lá para outros locais -, fica-se impressionado com a quantidade enorme de pessoas e malas, os Metros de 2 carruagens chegam carregados de Turistas, e logo vão cheios com aqueles que chegam.

- Fui ver se filmava a pista, mas é difícil agora, tem várias paredes de vidros e nem o som se consegue ouvir, só a pista e eles a chegarem e levantarem. Fiquei ali 10 minutos, e contava pelo relógio, cada minuto estava preenchido, levantava um, e atrás aterrava outro, minuto a minuto, era impressionante, bem como as filas para o check-in.

- Lanchamos qualquer coisa a preços de turista, dava quase para um jantar aí numa tasca, e comia-se e ali só se cheirava, mas bom e eficiente serviço, limpeza quanto baste, eficácia por todos os lados, nada de confusões nem discussões, um bom lugar para passar um Domingo chato de chuva ou trovoada.

- Ainda fiz umas fotos minúsculas aos aviões, pois a minha máquina não dá para mais, reparei que são todos pequenos aviões dessas empresas de Low Cost. Lá chegam os novos turistas que se dirigem logo para a Estação do Metro, sabem disto melhor que a maioria dos moradores lá do sitio, que só andam de carro.

Às 8 horas fomos embora, o frio cada vez apertava mais, já nem as roupas de inverno chegam, mas parece-me que, segundo me disse a minha filha, que já noite o vento amainou e já puderam sair um pouco à rua a passear o cão. Eu andava em casa vestido à inverno.

- Como a minha mulher já deixa tudo adiantado, quando chegamos a casa, passado meia hora já tínhamos um ‘bom cozido à Portuguesa’ pois não como muito ao almoço, prefiro ao jantar.

As fotos:

Foto 1 – O discurso do Capitão  Falta-me o nome, mas acho que está ligado à equitação, e representante da Liga dos Combatentes. [Trata-se do capitão da GNR, reformado, o cavaleiro Leite Rodrigues, que tem uma escola de equitação em Leça da Palmeira (e que esteve na Guiné, como alferes miliciano, onde foi gravemente ferido em combate, em Sinchã Jobel),  O Leite Rodrigues sabe dar valor à solidariedade na dor e na perda, uma vez que já pssou por isto: em 2006, perdeu a sua filha, Filipa, de 14 anos, num trágico acidente com um dos seus cavalos.. A Filipa era uma promissora atleta da equitação portuguesa, tal como o pai (que foi atleta olímpico) vd. poste de

Foto 2 [Não incluída] – Estátua, a gravação dos nomes dos mortos do concelho de Vila do Conde, e agora também as fotos de cada um, os locais, as datas, de nascimento e morte.

Foto 3 – O Presidente da Associação, ao lado o Padre Bártolo, e a Presidente da Camara [, draª Maria Elisa de Carvalho Ferraz], de branco, o de boina é um elemento da associação.

Foto 4 – Eu, como assistente da cerimónia, fotografado pela minha filha

Foto 5  [Não reproduzida[ – As motas de parte dos mil Motards que passaram por Vila do Conde.

Foto 6 – A Tuna académica junto à Nau a tocar e cantar os seus fados

Foto 7 [Não reproduzida] – Aeroporto de Pedras Rubras. A chegada de um dos imensos aviões que por ali passaram, acho que está longe demais, mas não dá para chegar mais perto.

Foto 8 – O Cortejo, finda a missa, com as suas bandeiras, já em direcção ao local das cerimónias

Foto 9 – A estátua do combatente, tem cerca de 10 anos. Para o meu gosto não me agrada, mas não fui eu que a projectei.

Foto 10 – A ‘Menina dos olhos tristes’ a receber um ramo de flores. Este nome é de minha autoria, passei a designar assim, em homenagem à canção de Adriano Correia de Oliveira [, Porto, 1942 - Avintes, 1982],  chamada ‘a menina dos olhos tristes’ e a sua letra que nunca esqueci.

Foto 11 – Uma vista geral de uma das salas interiores do aeroporto, de grande luxo. [Do lado esquerdo, a esposa do autor. ]

Direitos reservados. Texto e imagens legendadas hoje, dia

2019-06-11

Virgilio Teixeira

[ ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economista e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde; tem mais de 130 referências no nosso blogue]
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de  2018 > Guiné 61/74 - P18994: Convívios (873): Tabanca de Matosinhos, 4ª feira, dia 5, com 35 camaradas e amigos/as: Joaquim Peixoto (1949-2018), presente ! (Parte II)

(**) Último poste da série >  10 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19877: Efemérides (303): a Tabanca Grande marca presença, hoje, 10 de junho de 2019, às 12h00, em Belém, Lisboa, junto ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, debaixo do "poilão" mais frondoso que lá houver... Juntamo-nos todos, os que puderem aparecer, para uma "foto de família"...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19310: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (5): Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); entrou para o nosso blogue há um ano.



Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >  Dezembro de 1967 >  "Feliz Natal: Noite de Natal, Noite Fria, tão gelada / Tocam os sinos / É noite de Consoada... Guiné 67".

[Cartaz com uma mensagem de Natal, obra produzida e realizada pelo furriel miliciano Rocha, ‘o "Algarvio" . Fez várias de outros formatos, ele desenhava, escrevia o poema, depois arranjava os cenários. Da minha parte fiz pelo menos uma centena de fotos destas, e de outros formatos, mudava apenas o personagem o resto era igual. Depois cada um mandou para as suas famílias um postal ilustrado. Coloquei esta, mas há muitas mais. O fotógrafo era eu.Foto captada em Nova Lamego, provavelmente na primeira ou segunda semana do Dezembro 67].

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira  (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 14 de dezembro de 2018, do nosso camarada Virgílio Teixeira, 

(i) ex-alf mil, SAM - Serviço de Administração Militar;

(ii) fez parte da CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69);

(iii) tem mais de um centena de referências no nosso blogue:

(iv) é economista e gestor de empresas, reformado;

(v) natural do Porto, vive em Vila do Conde;

(vi) entrou para o nosso blogue em 19/12/2017, é o nosso grã-tabanqueiro nº 763 (*);
 
(vii) foto acima, à esquerda, com a esposa, Manuela, na Tabanca de Matosinhos, Restaurante Espigueiro (ex-Milho Rei), 5 de setembro de 2018 (Foto: LG).


"Camaradas, estou vivo!...
Aqui vai a minha prova de vida!"

Mensagem de Natal 2018

GUINÉ 1968/2018 – Aniversário dos 50 anos
GUINÉ 1967/2018 – Aniversário dos 51 anos

A toda a minha família, por ainda me conseguirem aturar ao longo de 51 anos;

Aos ex-militares do meu batalhão (BCAÇ 1933) que ainda estão vivos, e aos familiares daqueles que já partiram para a sua derradeira comissão de serviço;


A todos os militares e famílias daqueles que passaram pelo terrível  cenário da Guiné, em particular para aqueles 47 homens que morreram na travessia da jangada do Rio Corubal, nas margens de Cheche, em 6 de fevereiro de 1969, da CCAÇ 1790, do meu batalhão (e da CCAÇ 2405, do BCAÇ 2852);

A todos os militares e famílias daqueles que de algum modo participaram na nossa 'Grande Guerra' de África;

A todos os camaradas e famílias do Blogue  que é a nossa história que nunca vamos esquecer;

Ao povo da Guiné que também sofreu por causa desta guerra;

A todos quero expressar, sincera e humildemente, a minha solidariedade desinteressada, pelo sofrimento de que ainda somos vítimas, com desejos de muita saúde, felicidade e amor, e que Deus nos recompense a todos, já que o Homem e o Estado não são capazes de o fazer.


Bom Natal de 2018
Feliz Ano Novo de 2019 (**)


Virgílio Teixeira
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de dezembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18107: Tabanca Grande (454): Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); economista reformado, vive entre Vila do Conde e o Porto; grã-tabanqueiro nº 763

(**) Último poste da série > 19 de dezembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19306: Estou vivo, camaradas, e desejo-vos festas felizes de Natal e Ano Novo (4): Jorge Picado (ex-cap mil, CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá, e o CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19188: A galeria dos meus heróis (14): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – IV (e última) parte (Luís Graça)



Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]




Luís Graça, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12,
junho de 1969
A Galeria dos Meus Heróis (14): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – IV (e última) Parte  (Luís Graça) (*)



[Continuação...

Sinopse das Partes I, II e III:

Belmiro Mateus, advogado, que não fez o serviço militar obrigatório, e António Mota, ex-seminarista, professor de história, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, numa das companhias da "nova força africana" do Spínola, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, numa LFG, entre 1973 e 1974. A conversa prossegue num bar a 500 metros do cemitério, incidindo nomeamente sobre o passado dos três amigos e condiscípulos, a infância, a terra, a tropa, a guerra colonial, o 25 de Abril, mas também o fado, a morte, Deus, a fé...]




O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da Simonov.

− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.

− Mas era um puto, Belmiro!


− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.

− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono ?

− Sim?!...

− É que
aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo, ) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...

− Para mim, é chinês, mas continua...

− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV , quer dizer Posto de Comando Volante)... Com a história dos mísseis Strela, de que te já te falei, as aeronaves tinham que passar a voar alto ou, então, caso dos helicópteros, a rasar a copa das árvores… Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...

− Mas houve resistência!?...

− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e de uma "formiga" de um  T6 a dez mil pés de altura, três quilómetros ou coisa assim...


Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.

Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo. 

− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.

O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos,  da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer lá amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.

− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se,  no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus velhotes, os meus pais e os meus avós. Combinamos uma almoçarada no Afonso, se tiveres disponível...


− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio...

A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...

− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril ?

− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.

O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas  da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado,  as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam  uma miserável insensibilidade sociocultural…

− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas  tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...

− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...


O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.

− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!

Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:

− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura ?

− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.

− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…

− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...

− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.

− Refratários... ou faltosos ? Tenho ideia, como jurista, que há uma diferença semântica e concetual... Mas não tinha  ideia desses números... 

− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...

− Sim, Tony, a guerra era impopular... Apercebi-me disso quando entrei na universidade...

− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...).  Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!...

− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.

− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia...

− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...

− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano...


− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do Império... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.

- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais,  veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização. 

− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.

− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra... 

- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.

− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Europa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio.  Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.

− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista,  fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes e do grande  educador da classe operária, o Arnaldo de Matos...

− Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo,  uma solução (política) para ela...

− Daqui a 10 anos estamos a debater o 1º centenário do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.

− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…

− Foi o pai da Pátria, o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.

−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.

E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos... 


Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio ?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.

O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e  a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...

O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)...O gesto era simbólico: o Tony já foi e veio nos TAM - Transportes Aéreos Militares.

O Belmiro ainda chegou a abordar o presidente da Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante:

− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...

− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.

− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente,  já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma rua dos Heróis do Ultramar, construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...

O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... Por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...


Luís Graça
Lourinhã, 11/11/2018, 5h00

[Costuma-se prevenir o leitor de textos 'literários´como este, de que qualquer semelhança destas histórias com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados  inspiram-se em factos que aconteceram ou podiam ter acontecido. Uns vividos pelo autor, outros partilhados por camaradas e amigos da Guiné... Se no final tu, leitor,  te sentires desconfortável, peço-te que voltes para a cama e continues a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós, ex-combatentes. Boa dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o lugar em que me estiveres a ler.]

____________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)

(...) − Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo. (...)


7 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19174. A galeria dos meus heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II Luís Graça)

(...) − O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos… As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. (...)

8 de novembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19175: A galeria dos meus heróis (13): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte III Luís Graça)

(...) E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado,à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, porque era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. Hoje não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a democratização do ensino… Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra… (...)

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18171: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (6): Petição enviada para o Ministro da Defesa Nacional e envio do Relatório para o Presidente da Assembleia da República para agendamento da discussão em Plenário (Inácio Silva)

1. Mensagem do nosso camarada, e meu particular amigo, Inácio Silva (ex-1.º Cabo Apontador de Armas Pesadas da CART 2732, Mansabá, 1970/72), fundador e editor da página Relembrar para não esquecer, com data de 3 de Janeiro de 2018, trazendo notícias da Petição que ele próprio colocou em 2011 no site "Petição Pública":

Caro Carlos Vinhal
Envio-te, em anexo, o ofício que recebi hoje mesmo da Assembleia da República, com o Relatório Final da Comissão de Defesa Nacional, a propósito da Petição que coloquei no site "Petição Pública", já há alguns anitos[1], e que foi profusamente divulgada pelo blogue de que és co-editor.
Como poderás verificar, na última folha, para além de estar referido o envio da Petição para o Ministro da Defesa Nacional, está, também, referido o envio do Relatório para o Presidente da Assembleia da República, para agendamento da discussão em Plenário.
Mais uma vez venho pedir-te que a divulgues no teu blogue e do Luís Graça.

Aquando da discussão na Assembleia da República, gostaria que estivessem presentes alguns camaradas nossos, se possível, de todos os ramos das Forças Armadas.

Ofício e Relatório Final da Comissão de Defesa Nacional

Os meus sinceros agradecimentos.
Inácio Silva


____________

Nota do editor:

[1] - Sobre esta petição vd. postes de:

11 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7591: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (1): Meta, recolha de 4000 assinaturas (Inácio Silva)

17 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7625: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (2): Informação e incentivo (Inácio Silva / Amaro Samúdio)

19 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7641: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (3): Alerta aos camaradas que subscreveram, mas não confirmaram a assinatura (Inácio Silva)

1 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7703: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (4): "Eu servi a minha Pátria. É justo que a minha Pátria reconheça isso" (Cândido J. R. Pimenta)
e
30 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17410: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (5): A petição "Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios", foi admitida (Inácio Silva, ex-1.º Cabo Ap AP da CART 2732)