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sábado, 26 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22319: Estórias avulsas (107): Nem sempre aquilo que parece, é (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 23 de Junho de 2021:


Nem sempre aquilo que parece é!

Nos tempos que correm, não raramente somos confrontados com certas informações em que a dúvida quanto à sua autenticidade leva muita gente não só a duvidar, mas a julgar ter a certeza que aquilo não passa de uma mentira. É verdade que existem certas notícias que aparecem um pouco por todo lado que apenas tem em vista gerar confusão, ou obter proveitos para os seus promotores. Mas isso não nos pode levar a pensar que estamos perante uma fraude sempre que somos confrontados com tais situações.

Já lá vão muitos anos que esteve para acontecer comigo algo, que se não tenho conseguido evitar, e não foi fácil, provavelmente algumas pessoas apesar de já ter passado muito tempo, ainda hoje guardavam na mente que aquilo teria sido, mentira, uma invenção minha. Isso passou-se na véspera do dia da minha partida para a guerra, para a então província da Guiné, que teve lugar no já longínquo dia 24 de janeiro de 1972.

Eram três horas da tarde quando me apresentei no Quartel dos Adidos, em Lisboa, onde depois de cumpridas as formalidades indispensáveis fui informado que só sairíamos por volta das quatro horas da manhã para o aeroporto de Figo Maduro onde íamos apanhar o avião que nos iria levar. Até a essa hora, se quisesse, podia ir passear pela cidade.

Eu tinha umas pessoas de família que moravam na rua Dr. Gama Barros… fui ter com eles onde estive até próximo da meia noite. Uma dessas pessoas tinha um irmão, enfermeiro, a prestar serviço no Hospital Militar em Bissau, pediu-me se eu lhe levava dois frangos assados para lhe entregar quando lá chegasse. Eu disse-lhe que sim, ele foi mandar assar os frangos a uma casa que existia lá próximo.

Chegada a hora de voltar para os adidos, era ainda cedo… decidi ir algum tempo a pé, quando caminhava na avenida João XXI estava muito frio, com temperatura negativa. Não havia por ali nenhum movimento, nem pessoas nem veículos, outros tempos. Ao passar junto a um prédio que tinha a porta aberta saiu de lá um cão enorme, um pastor alemão a ladrar e a aproximar-se de mim, eu parava e ele parava também mas sempre muito perto, eu começava a andar e ele voltava a aproximar-se e a ladrar de forma ameaçadora, foram três as vezes que ele teve tal comportamento, e eu cheio de medo sem saber o que fazer, sempre que ele se aproximava eu sentia uma vontade enorme de lhe dar os frangos, se fossem meus não tinha hesitado… talvez assim me deixasse seguir enquanto ficava entretido a comer. Mas ao mesmo tempo pensava, quando disser a alguém que dei os frangos a um cão ninguém vai acreditar. Foram momentos de enorme confusão e medo à mistura aqueles porque passei.

Como se já não bastasse a situação que estava a viver! Quando decidi que lhe ia dar os frangos se continuasse a não me deixar andar, o pastor alemão calou-se e voltou para casa enquanto eu suspirava de alívio, e assim com alguma sorte, o enfermeiro, o primeiro-sargento Canha, lá recebeu os frangos pouco tempo depois da aeronave em que viajei ter aterrado no aeroporto de Bissalanca.

Ainda hoje, algumas vezes, dou comigo a pensar… se eu tivesse dado os frangos ao cão, como foi naquele momento a minha vontade, seriam poucos os que teriam acreditado que isso era verdade.
Em situações assim, embora possa parecer mentira, é sempre bom pensar que existem coisas por demasiado duvidosas e estranhas que possam parecer, podem ser verdade.
E aquela, teria sido uma dessas!

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22253: Estórias avulsas (106): O Aspirante Carvalho e a nossa (in)sanidade mental (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535/BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22253: Estórias avulsas (106): O Aspirante Carvalho e a nossa (in)sanidade mental (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535/BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973.  


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), do BCAÇ 3880; é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão no lugar n.º 780; tem 2 dezenas de referências no blogue.]
 
Date: terça, 1/06/2021 à(s) 18:22
Subject: Mais um texto meu (o último) (*)
 

Caro Luís,

Tenho mais um texto a partilhar contigo, e que poderás publicar no teu blogue se quiseres, relativo a um aspirante que conheci em Angola e que era doente mental. O texto não faz parte do meu livro, porque eu não tenho qualquer intervenção na história. O meu estatuto foi unicamente de observador. Posso, contudo, assegurar-te que os casos narrados no texto se passaram tal como os descrevo, nomeadamente o incidente com a granada de mão. A versão do incidente que o próprio agressor pessoalmente me contou é coincidente, quase palavra por palavra, com a versão que a vítima me tinha contado antes. Garanto, por isso, que o incidente se passou tal como o descrevo. 

Eu não tenho em minha posse qualquer fotografia do aspirante, nem sei onde poderei encontrar uma. Nesta situação, só posso descrever-to, dizendo que ele era um indivíduo relativamente baixo e entroncado e que usava óculos, uns óculos bastante redondos, que apropriadamente lhe davam um aspeto um tanto ou quanto alucinado.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano, 
CCaç. 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74


2. Estórias avulsas > O Aspirane

No meu tempo de tropa, os muitos capitães milicianos que tiveram a responsabilidade de comandar companhias operacionais na guerra colonial eram habitualmente selecionados para esse posto em função da idade. Seguia para capitão, e não apenas para alferes, quem estivesse indicado para vir a ser oficial miliciano com uma especialidade operacional e tivesse uma idade superior a um determinado limite. Não me lembro ao certo de qual era esse limite, mas julgo que devia ser à volta de 23 ou 24 anos. Olhe-se para os jovens que agora têm 23 ou 24 anos, repare-se nas criançolas que quase todos eles ainda são e compare-se com as brutais responsabilidades que foram exigidas aos capitães milicianos na guerra. 

Depois de frequentarem o COM (Curso de Oficiais Milicianos) em Mafra, tal e qual como acontecia com os militares que iriam ser alferes milicianos de Infantaria, os futuros capitães milicianos frequentavam o chamado CCC (Curso de Comandantes de Companhia). 

Eu não estou em condições de descrever em que é que consistia o CCC mas calculo que os futuros capitães teriam que aprender a lidar com as diversas questões relacionadas com o comando de uma companhia, nas quais se incluiam as questões operacionais, administrativas, contabilísticas, logísticas, disciplinares, etc. 

No âmbito do CCC e em jeito de estágio, já com o posto de alferes, os futuros capitães milicianos eram enviados para África por cerca de quatro meses, para que, integrados numa companhia real, pudessem aprender como é que as coisas se faziam na prática. Na minha própria companhia, a Companhia de Caçadores 3535, em Zemba, esteve durante algum tempo um destes alferes, que tinha ido para lá estagiar junto do capitão Lamas da Silva, que era então o comandante da mesma. O próprio Lamas da Silva já tinha tido um estágio deste tipo, antes de se tornar capitão miliciano. O estágio do Lamas deve ter acontecido no ano de 1971 e ocorreu na cidade do Luso (agora chamada Luena), no leste de Angola. 

Quando o Lamas da Silva (Foto n.º 1, acima) chegou ao Luso para o seu estágio, estava lá colocado um aspirante a oficial miliciano que sofria de sérias perturbações mentais. Era o aspirante Carvalho. Nalgumas unidades chamavam-lhe Meireles, mas Carvalho é que era o seu último apelido. Este aspirante, porém, nunca assinava Carvalho com todas as letras; sempre e sistematicamente assinava Carvalho sem V! Até no bilhete de identidade ele tinha assinado Carvalho sem V… 

Enquanto esteve no Luso, este aspirante fez diversas tropelias, algumas inocentes, mas outras perigosas. Por exemplo, uma noite ele foi visto a correr completamente nu pelas ruas da cidade, com a malta atrás dele para o agarrar! 

Este indivíduo mantinha-se no posto de aspirante sem ser promovido a alferes, por causa das asneiras que ia fazendo e das sucessivas punições que estas lhe iam valendo. Ele não tinha um comportamento que lhe permitisse ser promovido. Na verdade, ele nem aspirante deveria ser. A sua doença mental era tal, que ele deveria ter sido isentado de todo o serviço militar e submetido a um tratamento psiquiátrico em condições. Mas não foi isso o que lhe fizeram. Limitaram-se a passá-lo aos auxiliares. 

De vez em quando, ele era enviado para o Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Luanda, onde ficava internado. O Serviço de Psiquiatria era uma coisa verdadeiramente tenebrosa. Nem os campos de concentração nazis conseguiam ser piores do que aquilo. O Serviço ficava numas instalações situadas na zona da Samba, longe do centro da cidade. Estas instalações eram constituidas por alguns pavilhões muito próximos uns dos outros e estavam rodeadas por muros altíssimos e coroados de arame farpado. Lá dentro, era impossível estabelecer todo e qualquer contacto com o mundo exterior, a não ser que alguém abrisse o portão, a única ocasião em que os doentes lá internados poderiam ver uma nesga do largo fronteiro às instalações. De resto, o isolamento do mundo para quem estava internado era total. Lá dentro, não se via outra coisa que não fossem muros e paredes, nas quais se roçavam os doentes de olhar perdido, encharcados em drogas. Estar internado em tais condições implicava ficar doido varrido para o resto da vida. 

No entanto, o aspirante Carvalho não se deixava amarfanhar por aquilo e, por mais sedativos que lhe dessem e por mais tratamentos que lhe fizessem, ele conseguia sempre fugir dali para fora. Como fugia só com a roupa que trazia no corpo e sem dinheiro, acabava depois por ser encontrado a dormir na rua... 

O incidente mais grave que o aspirante protagonizou no Luso envolveu o então alferes Lamas da Silva. Por razões que desconheço ou sem razão alguma, o aspirante ganhou um ódio de morte a um certo sargento que estava lá no Luso. Uma noite, depois de jantar, enquanto o resto do pessoal que estava na messe de oficiais ia conversando e bebendo as suas cervejas e os seus whiskies, o aspirante levantou-se de repente e afirmou: 

— Vou matar o filho da puta do sargento Fulano. 

Foi ao seu quarto, saiu de lá com uma G3 nas mãos e dirigiu-se à messe de sargentos. Logo se gerou uma enorme confusão, com o pessoal a procurar demovê-lo dos seus intentos, mas a medo, porque aquele maluco estava armado. No meio da confusão, o Lamas da Silva conseguiu arrancar a arma das mãos dele. 

O incidente parecia ter terminado desta forma, mas não terminou. Quando foi para a cama, o Lamas levou consigo a espingarda do aspirante, colocou-a debaixo do travesseiro e deitou-se. 

A dado momento, o aspirante apareceu à porta do quarto do Lamas com uma granada na mão, dizendo: 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Não dou — respondeu o Lamas da Silva. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada — repetiu o aspirante.

 — Não dou. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Já disse que não dou!... 

O aspirante lançou a granada para dentro do quarto do Lamas da Silva.  Este só teve tempo de saltar para debaixo da cama e proteger-se o melhor possível, antes de a granada explodir. Se a granada fosse defensiva, daquelas que espalham estilhaços de ferro quando rebentam, o Lamas não teria saído dali com vida. 

Mas a granada era ofensiva. Não espalhava estilhaços de ferro, mas tinha um grande poder explosivo. Ao rebentar, a granada destruiu o recheio do quarto e o Lamas da Silva ficou ferido por estilhaços. Foi evacuado e ficou internado no hospital. Mesmo quando, mais tarde, comandou a companhia 3535, o Lamas ainda tinha no corpo alguns estilhaços, que os  médicos não tinham podido tirar-lhe. Ele valeu-se disso para conseguir sair definitivamente de Zemba e abandonar o comando da companhia. 

Um dia, quando o capitão Lamas da Silva ainda estava em Zemba, quem foi que desembarcou lá, chegado numa coluna vinda de Santa Eulália, a fim de cumprir uma pena de prisão de um mês? O aspirante Carvalho! 

Quando o viu, o Lamas da Silva ficou branco como a cal da parede. 

— Tu aqui?... — balbuciou o Lamas, espantado. 

— É a vida! — respondeu o aspirante, encolhendo os ombros. 

E nunca mais se falaram. Mais do que isso, até. Não só não se falaram, como nem sequer se cruzaram mais. Se o Lamas da Silva ia para um lado, o aspirante ia para outro e vice-versa. O aspirante tinha ido para Zemba cumprir uma pena de um mês de prisão por causa de um incidente que ele tinha provocado em Santa Eulália, onde estivera colocado ultimamente. 

Uma noite, encontrando-se ele de serviço como oficial de dia ao Comando de Agrupamento 3952, a que então pertencia, o aspirante abandonou o seu posto e foi para a sanzala, onde andou aos tiros com a pistola de serviço. Felizmente não acertou em ninguém. O coronel de Infantaria Carlos Lacerda, que com o posto de major foi segundo-comandante do Batalhão de Caçadores 3880. Como não podia deixar de ser, quando chegou a Zemba, o aspirante foi apresentar-se ao comandante da unidade, que naquele momento era o major Carlos Lacerda, porque o tenente-coronel estava de férias. O major, ao observar os papéis que o aspirante tinha trazido, comentou: 

— Você tem aqui um currículo impressionante! São porradas e mais porradas... E agora vem aqui cumprir mais um mês de prisão... Pois olhe, a única prisão que temos aqui em Zemba é uma coisa que há ali num torreão. Mas aquilo não tem condições nenhumas, não é prisão nem é nada. Este quartel aqui em Zemba é que é todo ele uma prisão, isso sim! Isto é um autêntico campo de concentração. Até eu, que não cometi crime nenhum, estou aqui preso. Se eu quiser sair daqui, só posso ir com uma escolta. Portanto, considere-se preso e ande por aí... Mas veja lá como é que se comporta! Ao mais pequeno incidente, eu abato-o, ouviu? Abato-o! 

— O meu major abate-me?! — admirou-se o aspirante. 

— Abato-o, já disse! 

— Ó meu major, se isto aqui em Zemba é assim à Texas, então o melhor é irmos os dois ali para o meio da parada, para ver quem é que dispara primeiro... 

— O quê? Você não se assustou com o que eu lhe disse? — perguntou o major, surpreendido com a reação do aspirante. 

— Eu não — respondeu este. 

— Não teve medo? A sério? 

— A sério. 

— Eh, pá! — exclamou o major. — Você é dos meus! É de gajos assim que eu gosto! Gajos de tomates, sem medo... Acho que nos vamos dar bem. Venha daí beber um whisky. 

E assim nasceu uma grande amizade entre o major Lacerda e o aspirante Carvalho. Como poderão confirmar todos quantos estiveram em Zemba nessa altura, o aspirante nunca causou qualquer problema, fosse de que ordem fosse, enquanto lá esteve. Quem o visse em Zemba, diria que ele era um indivíduo perfeitamente normal, alegre e bem disposto e que se dava bem com toda a gente (menos com o Lamas, claro). Fartou-se de jogar matraquilhos com a malta. 

— Aqui em Zemba é que me sinto bem — confessou ele uma vez. — Sinto-me tão bem, que até já deixei de tomar os medicamentos para a cachimónia. Não sinto falta nenhuma deles. 

Quando terminou a pena de prisão, o aspirante, em vez de voltar para Santa Eulália, foi transferido para o Batalhão de Artilharia 3860, sediado na Damba, a cerca de 100 km a sul de Maquela do Zombo. Foi a sorte dele, e já vamos ver porquê. Na Damba, as condições mentais do aspirante voltaram a deteriorar-se. Os incidentes que ele provocava eram cada mais frequentes e cada vez mais graves. O comandante do batalhão da Damba já estava pelos cabelos, já não podia aturá-lo mais. O aspirante arriscava-se a apanhar mais uma punição de um momento para o outro. 

Um dia, chegou à Damba a notícia de que tinha mudado para Maquela do Zombo um tal Batalhão de Caçadores 3880... Logo o aspirante pediu licença ao comandante para integrar a próxima coluna que se deslocasse a Maquela, para fazer uma visita ao seu amigalhaço Lacerda. Talvez para se ver livre dele por umas horas, o comandante deu-lhe autorização e o aspirante lá foi. Quando voltou à Damba, o aspirante vinha mais bem disposto e passou a comportar-se melhor. A visita ao major Lacerda tinha-lhe feito bem. 

Então o comandante da Damba passou a ter o seguinte procedimento para com o aspirante: sempre que este começasse a fazer muitas asneiras, era metido numa viatura e levado para Maquela. Mais tarde, quando ficasse mais calmo, voltava para a Damba. 

E assim se passaram alguns meses, sem que o aspirante voltasse a sofrer qualquer punição. Por volta de janeiro de 1974, o batalhão da Damba chegou ao fim da sua comissão militar e o aspirante Carvalho (ou Meireles, como era chamado na Damba) regressou finalmente à Metrópole, juntamente com o batalhão. 

Ao todo, o aspirante fez cerca de quatro anos de comissão. E nunca foi promovido a alferes; ficou aspirante até ao fim. (**)

 [Tíitulo do poste,  da resposnsabilidade do editor: LG ]
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Notas do editor:

terça-feira, 27 de abril de 2021

Guiné 63/74 – P22145: Estórias avulsas (105): Pequemo almoço às 2 horas da manhã (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Arm Pes Inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

Tavira > Quartel da Atalaia > Antigo CISMI. Belo exemplar da nossa arquitetura militar, fica situado na Rua Isidoro Pais. Imóvel classificado como de interesse público, segundo o excelente síio da Câmara Municipald e Tavira


1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Abril de 2021, trazendo mais uma das suas estórias que bem caracterizam as nossas atribulações enquanto instruendos do CSM.


Pequeno almoço às 2 horas da manhã

Nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1971, estive no CISMI em Tavira a fazer a especialidade de Armas Pesadas. Aplicação militar, marchas, crosses, muitos crosses, instrução e formação teórica e prática de regulação de tiro era intensa, o desgaste físico era directamente proporcional á intensidade do esforço despendido.

Tudo isto ia aguentando mas o que me fazia “saltar a tampa“ era:
1 - dormir ou tentar dormir ouvindo discursos de políticos da época ou ao da música “Angola é nossa”.
2 - formar na parada às 2 ou 3 da manhã para ouvir uma dissertação militar do Major-Comandante de Instrução.
3 - formar para saber as missões para o dia.


A alvorada era todos os dias às 06,30 horas da manhã e a formatura para o pequeno almoço às 7,15. Já não estou seguro deste horário. Para esta formatura todos os formandos levavam dependurado no cinto o copo do cantil no qual era servido o café com leite.
Quem passou por lá sabe os pormenores
.

Até que um dia o motivo desta história aconteceu.
Regra geral a primeira formatura era para o pequeno almoço, mas naquele dia era para uma das palestra noturnas. Eu, um homem sempre prevenido, cheio de sono e fome, vou com o copo do cantil ao cinto para a formatura preparado para o pequeno almoço.
Quando estava na formatura cumprindo as ordens de:
Firme!
Sentido!
À vontade!


Com o movimento do corpo deixei cair o copo do cantil o que provocou uma curta gargalhada geral.
Quando terminou a palestra fiquei à espera de levar nas orelhas mas nada aconteceu. Fui para a caserna meio cheio de medo esperando pelo início da instrução para saber o que me iria acontecer, mas mais uma vez nada aconteceu nem veio a acontecer.
Assim se passou uma história da minha vida de militar em formação.


Cumprimentos
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 63/74 – P22052: Estórias avulsas (104): O melhor brunch da minha vida, numa longa viagem de 21 horas de comboio, entre Leandro e Tavira, já lá vão 50 anos (Joaquim Ascenção, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

terça-feira, 30 de março de 2021

Guiné 63/74 – P22052: Estórias avulsas (104): O melhor brunch da minha vida, numa longa viagem de 21 horas de comboio, entre Leandro e Tavira, já lá vão 50 anos (Joaquim Ascenção, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 27 de Março de 2021, trazendo uma estória que bem caracteriza as dificuldades que sentíamos quando tínhamos de atravessar Portugal de lés-a-lés nas deslocações entre quartéis.


O melhor brunch

No início de Janeiro de 1971 (já lá vão 50 anos),  fiz a minha primeira grande viagem.

Fui colocado para a segunda fase da minha formação militar no CISMI em Tavira. Munido das respectivas guias de marcha iniciei a viagem no apeadeiro de Leandro na linha do Minho cerca das 22 horas e cheguei a Tavira cerca das 19 horas do dia seguinte.

As etapas foram:

Leandro - Campanhã (comboio)
Campanhã - Santa Apolónia (comboio)
Santa Apolónia - Terreiro do Paço, a pé
Terreiro do Paço - Barreiro (de barco)
Barreiro - Tavira (comboio)

A ração de combate (caseira) resumia-se a 2 pães e 1 ou 2 ovos cozidos e um pouco de chouriça.

Ao fim da manhã já não tinha nada para comer nem onde comprar, o comboio a que a guia dava acesso eram comboios que paravam em todas as estações e apeadeiros e não dispunham dessas mordomias.

Ao início da tarde a fome apertava, entretanto uma senhora que viajava no mesmo compartimento que tinha entrado,  já eu tinha para aí uma hora de viagem, abriu um baú e um pequeno garrafão de vinho e começou a comer pão e presunto, acompanhado  com um copinho de vinho... e eu a ver e a salivar... 

A té que a senhora olha para mim e pergunta:
 - Oh menino, tens fome? Serve-te, come e bebe que chega para os dois.

Eu assim fiz, comi e bebi e matei a fome. No fim agradeci.

Recordo este gesto para toda a minha vida. Que Deus tenha reservado um lugar no céu para ela.

Mais tarde, já em África, passei por momentos semelhantes mas sem ter quem me socorresse.

A tantos sacrifícios fomos submetidos, tanto desgaste físico e psicológico ao longo de tantos meses, e para quê?

Uma pergunta que fica e ficará sempre sem resposta.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2021 > Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

terça-feira, 9 de março de 2021

Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Fevereiro de 2021:

Boa tarde camarada
Mais uma estória da minha vida.
Se achares que tenha interesse, podes publicar.
Se achares que algo deve ser corrigido, tens a liberdade para o fazer.

Um abraço
Joaquim Ascenção



Enfermeiro por uma noite

Decorria o fim de Dezembro de 1970.

No final do CSM um momento de grande ansiedade para todos era saber qual a especialidade.
Estávamos nós na semana de campo debaixo de chuva e um frio terrível a dormir em tendas miseráveis, cansados e mal alimentados quando toca a formar durante a noite para comunicar a especialidade que nos tinha sido atribuída, a mim calhou-me nada mais nada menos, enfermeiro, considerada uma boa especialidade.

Houve festa e tristezas porque os que sonhavam em escriturário iam para sapadores, tudo ao contrário do sonhado... pura psico.

A mim pareceu-me estranho, tendo o curso de Serralheiro Mecânico e a frequentar o 3.º ano do ISEP [, Instituto Superior de Engenharia do Porto,] quando fui chamado para a tropa, o lógico seria engenharia, artilharia, manutenção auto ou afins, procurei descansar e aguardar.

Na tropa normalmente a lógica não era seguida.

Ao toque de alvorada havia uns tristes, outros assim assim.

Segue-se o toque para o pequeno-almoço e nova formatura para comunicar as especialidades.
Foi-me atribuída Armas Pesadas de Infantaria, morteiros médios e grandes, canhões sem recuo 5,7; 7,5; 10,6 e metralhadoras pesadas, especialidade normalmente de retaguarda e apoio a grandes operações.

Uma especialidade de risco moderado, de grande rigor porque o tiro era regulado na base de um mapa em que o erro do azimute podia ser fatal. Mapa, bússola, transferidor de tiro em grados e tabelas de tiro eram as ferramentas principais, não havia GPS.
O CSR M40 10,6 cm colocado num Jipe. Buruntuma 1973

Foto: Com a devida vénia ao camarada Luís Dias - HISTÓRIAS DA GUINÉ 71-74 - A C.CAC 3491-DULOMBI


Assim passou a noite que não me via ser enfermeiro.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 63/74 – P21938: Estórias avulsas (102): Um frango que voou depois de morto (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Guiné 63/74 – P21938: Estórias avulsas (102): Um frango que voou depois de morto (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)



1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Fevereiro de 2021:


Um frango que voou depois de morto

Esta história passou-se em dezembro de 1970.

Finda a cerimónia de Juramento de Bandeira nas Caldas da Rainha eu o meu amigo José Alves Martins, natural de Almeida, apanhámos o comboio para o Porto.
Este meu amigo e colega já do tempo de estudante no ISEP teve a assistir à cerimónia de juramento de bandeira um irmão que no fim lhe deu um frango e uma garrafa de vinho, muito bem acondicionado, que seria um óptimo almoço.

Entrámos no comboio e ao arrumar a nossa bagagem na bagageira por cima das nossas cabeças, no momento que o meu amigo procurava arrumar o precioso almoço, o comboio ao passar nas agulhas de acesso à linha começou a oscilar violentamente provocando o desequilíbrio do meu amigo, por azar a janela estava aberta, resultando que o frango voou pela janela direitinho para a berma da linha.
Lá foi o almoço que iríamos partilhar!

Passámos uma fome de rato até sairmos para mudar da Linha do Oeste para a Linha do Norte, o dinheiro era pouco mas lá nos safamos enquanto esperávamos por novo comboio.

Nunca mais vi este meu amigo, sei que foi para a Escola de Oficiais e posteriormente para Moçambique.
Gostava muito de lhe dar um abraço, tem conta no Facebook mas parece-me que não visita a página.

Os meus cumprimentos.
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2021 > Guiné 63/74 – P21780: Estórias avulsas (101): Um petisco indegesto para o jantar (Acácio Mares, ex-Fur Mil Inf)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Guiné 63/74 – P21780: Estórias avulsas (101): Um petisco indegesto para o jantar (Acácio Mares, ex-Fur Mil Inf)


1. Mensagem do nosso camarada Acácio Mares (ex-Fur Mil Inf da 1.ª Comp/BCAÇ 4612/72, Porto Gole, 1972/74), com data de 27 de Junho de 2020:

Camaradas e amigos cumprimentos a todos
Em determinado dia, foi um grupo de combate fazer uma patrulha. No regresso ao quartel, os soldados foram tomar um banho numa poça de água no chão, onde um rebanho de cabras e um cabrito bebiam. Um dos soldados resolveu apanhar o cabrito para fazer um petisco para o jantar.
Fizemos uma fogueira no chão e, quando estávamos a fritar o cabrito, algum maroto lançou munições para a fogueira que de imediato começaram a rebentar.
Lá se foi o cabrito, a fogueira e a frigideira pelo ar (malandros).
E lá se foi o petisco.

Abraços para todos um bom Ano
Acácio Mares

Porto Gole
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de janeiro de 2021 > Guiné 63/74 – P21761: Estórias avulsas (100): Como substitui o comandante de operações de patrulhamento em Jumbembem (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp 2ª CCAÇ/BCAÇ 4512)

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Guiné 63/74 – P21761: Estórias avulsas (100): Como substitui o comandante de operações de patrulhamento em Jumbembem (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp 2ª CCAÇ/BCAÇ 4512)



1. O nosso Camarada Fernando Costa Gomes de Araújo* (ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 10 de Janeiro 2021:

Camaradas, 

Conforme conversa com o Magalhães Ribeiro, pelo telefone, e por pensar ser uma matéria interessante, envio algumas fotos e um texto, narrando como um Fur. Mil. substituiu o comandante de operações de patrulhamento, em Jumbembem. 

Substituição do comandante de operações de patrulhamento em Jumbembem 

Em 24-07-1973, no “Teatro de Operações da Guiné,” tive o ensejo e a honra, como “Furriel”, de ter comandado numa operação de patrulhamento, os oficiais e furriéis que integravam os dois grupos de combate: 1º e 2º pelotão. 

Um motivo de grande orgulho para mim, ao guiar todos estes homens (+/- 40 a 50) e pela confiança depositada pelo Capitão, comandante de companhia .


Convenções:

Cuntima ---------------  E

JBB --------------------  D

Curva da areia --------- C

Norobanta -------------- B

Entrada ------------------ A


Em 07-08-1973, comandei dois grupos de combate, mas faltam as convenções.   Em 09-08-1973, tive novamente o ensejo, como “Furriel”, de ter comandado noutra operação com maior risco, os oficiais e furriéis que integravam os três grupos de combate: 1º; 2º e 4º pelotão. 

Um orgulho ainda maior, pela confiança que o comandante da companhia mais uma vez depositava nas minhas mãos, (+/- 70 a 80 homens). Convenções assinadas pelo (Capitão) comandante da 2ª Compª.Bat.4512. 


 



          Convenções:

JBB ----------------------- C

Farim --------------------- A

Estrada Fambanta ------- D

Alto Lamel --------------- F

Lamel --------------------- R

Entrada -------------------- E

Isto traduz bem o que representa um militar de Operações Especiais e da segurança e força anímica que consegue transmitir a terceiros. Desde o primeiro dia, após a minha integração no 2º pelotão da 2ª Companhia do BCAÇ 4512, que os homens ficaram mais motivados no teatro de operações quando comigo começaram a actuar. A disciplina, o rigor a lealdade e a dignidade com que sempre os tratei e habituei, fizeram com que o sacrifício por eles dispendido fosse atenuado com uma firme vontade de vencer, porque sabiam por quem estavam a ser guiados e sentiam-se mais confiantes.


Audácia; Abnegação; Coragem; Decisão; Disciplina; Entusiasmo; Generosidade; Lealdade; Resistência e Sobriedade, foram os aços com que fui forjado, no centro de Instrução de Operações Especiais e que humildemente fui e vou transmitindo. 

Chamavam-me “Chicalhão” quando apresentava o pelotão, a companhia, ou quando exigia que melhor se ataviassem, para se apresentarem na formatura. Julgo que estas situações que relato dispensam comentários, pelo treino militar adquirido no Centro de Instrução de Operações Especiais não havendo por isso comparação possível com os outros militares do contingente do exército. 

Um abraço,
Fernando Araújo
Fur Mil OpEsp/RANGER da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4512

Fotos: © Fernando Araújo (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

SÁBADO, 25 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21198: Estórias avulsas (99): Achado misterioso (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

domingo, 10 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20961: Estórias avulsas (98): Histórias do vovô Zé (2): História da Carochinha, contada em confinamento, em homenagem à D. Virgínia Teixeira e ao Senhor Jotex (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

1. Em mensagem do dia 9 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta versão bem a seu modo da conhecida História da Carochinha, dedicada à esposa do Jotex e ao marido da esposa do Jotex.


Histórias do vovô Zé

História da Carochinha, contada em confinamento

Em Homenagem
À Dona Virgínia Teixeira e ao Senhor Jotex


Era uma vez uma jovem cadela chamada Carochinha, vinda duma família respeitável dos confins de Vila Nova de Gaia, onde vivia abastadamente junto de seus entes mais queridos. Rebelde e muito fogosa, ela vivia, na ânsia do luxo e da boémia. Sempre contrariada, fugiu de casa, atravessou a ponte e logo se deixou embrenhar nos esquemas e prazeres da noite.

Iludida com o seu poderio social e económico, apaixonou-se por um “Cão Grande”, tipo “Papa do Norte”, já maduro e bem conhecido pelos seus dotes desportivos e culturais (muito querido no seio das raças pobres e minoritárias) e, também, pelo negócio de frutas e chocolates. Foram tempos breves, mas vividos muito intensamente. Rapidamente se familiarizou com o luxuoso ambiente de cães poderosos, onde se destacavam “Tóbi” e o “Tabeco”, investigadores de prestígio. Foram tempos de ouro. A Carochinha passeou pelo Mundo inteiro. Chegou a ir ver o Papa a Roma, onde foi abençoada e acarinhada.
Porém, insaciável nos seus desejos, a Carochinha, a quem nada faltava, da sua sorte muito abusava. Por isso, viu-se repentinamente, controlada e insatisfeita.


Expulsa do condomínio das Antas, a despeitada, incentivada por cães e cadelas de Lisboa sem pedigree, veio para a praça pública acusar o “Cão Grande” de práticas sociais pouco correctas e, até, das suas fraquezas físicas, nomeadamente da sua excessiva produção de flatulência malcheirosa.

No Real Canil do Império, a Carochinha virou vedeta do Jet Set e do Show Business. Colaborou em tudo que lhe pediram, cuspindo ódio e rancor no “prato de quem tanto lhe deu de comer”, sem um mínimo de vergonha ou de respeito. Utilizada abusivamente pelos cobardes e invejosos nas suas investidas habituais contra a naçon tripeira, cedo se apercebeu que ali, o seu reinado terminara. As honrarias e amizades que lhe prestaram esfumaram-se em pouco tempo.

Voltou ao norte. Trouxe, como paga de uma história mal contada e de um filme de mau gosto, apenas um cãozinho criado pelo “Grande Chefão”, que era alegadamente ligado à corrupção, à droga e ao mundo dos pneus. Tudo bem compensado com uma rede de padres, missas e macumbas ao redor de uma catedral dominadora do mundo da política, da Justiça e da Comunicação Social.

Veio à boleia e passou pelas Caldas, onde a reconheceram e lhe deram um souvenir local.
Regressou à baixa Portuense onde, numa noite louca, o seu cãozinho se excedera a lamber as botas de um Ilustre Jurista nortenho, por sinal cliente assíduo daquela rua e daquela zona, muito activa no métier (e no tirer). Diríamos que aquela atracção se identifica com a célebre frase do “amor à primeira vista”.
Coincidências do diabo! Não é que a senhora esposa desse Ilustre Doutor, se havia condoído pela situação de uma vizinha que acolhera dois outros cães expulsos recentemente? Nada mais nada menos que os ex-influentes “Tóbi” e “Tabeco”, cuja nova patroa do condomínio das Antas (uma jovem brazuca), deles se desfizera cruelmente.

A Senhora, que era uma Rainha no lar e uma Santa na sociedade, impôs desde logo uma habitação condigna aos seus protegidos (camas, colchões e cobertores, em pequenos quartos climatizados etc., etc.). Para gente de posses, não havia problemas.
Porém, havia uma pequena questão: - Que fazer do cãozinho que o seu marido, alegadamente encontrou à saída do seu escritório?
(Coitadinho, tão pequenino e tão desprotegido!)
“Tóbi” e “Tabeco” foram logo para a casa de férias no campo e o cãozinho protegido assumiu o seu manhoso papel de meiguice, sabiamente fingida junto do seu patrão. Condicionado pela sua presença, o Doutor dava a ideia que vivia com medo que o cãozinho falasse.


Como andava sempre dentro do carro, um dia “chateou-se” com a boleia dada a um amigo que, ao vê-lo de coletezinho vermelho, chamou-lhe “Orelhas”.

Ao ouvir esse nome, que lhe era muito familiar, o “Orelhas” ripostou agressivamente com o tal amigo e, perante alguma achega do patrão, ele peidou-se sonorosa e malcheirosamente e… descaradamente. Não contente com tudo isto e analisados outros pormenores, o Doutor, resolveu atribuir-lhe um nome mais compatível. Passou a chamar-lhe Dr. Simplício Merdinhas. Mais tarde, os filhos do patrão, só o tratavam por Rex. Mas não levou muito tempo para lhe ser corrigido o tal apelido para Rex Fodelhão.
Como a bondosa patroa tem muitos afazeres, nem se apercebe do quanto é chocante ver-se a diferença de tratamento dado pelo dono ao tal “inocente” cãozinho “Orelhas” e aos outros.

Com a cobertura do patrão, o “Orelhas” impõe-se vergonhosamente

A Carochinha foi apanhada numa ronda (Ramona), mas foi salva por uma associação protectora dos animais e ficou à guarda de uma sensível senhora da Rua da Alegria.
A Carochinha descobriu, lá em casa, um saco azul com dinheiro. Não se pode falar nisso, mas é voz comum que o marido da senhora é chefe de um “Bando” qualquer. Agora, menos viciada na vida fácil e desejosa de se submeter ao aconchego de um lar, a Carochinha só pensa em libertar-se. Quer casar. Então vem para a janela apregoar para todos os cães que lá passam:
 - Quem quer casar com a Carochinha, tão rica e bonitinha?


Num dia desses, o senhor seu dono, acordou mais cedo e, ao ouvir o pregão, veio observar o desfile de cães que iam passando por baixo da janela.


Eram cães com bom aspecto. Porém, com poucas hipóteses de conquistar a Carochinha. Aquela passagem por Lisboa, a humilhação de voltar às origens e a necessidade de constituir uma família séria, moldaram-na para uma nova vida.


E foi assim que a Carochinha escolheu o cão mais rafeiro que passou por baixo da janela. E como ele estava ferido, mereceu ainda mais carinho por parte da patroa, que o tratou e curou com muito amor.

Estão a ser felizes e vamos ver se têm muitos cãezinhos e… cadelinhas.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Vd. poste de 4 DE MARÇO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vovô Zé (1): As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

Último poste da série de 23 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20006: Estórias avulsas (97): quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão s/r, 82-B10, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal, ainda não tinha chegado a minha hora! (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)

terça-feira, 23 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20006: Estórias avulsas (97): quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão s/r, 82-B10, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal, ainda não tinha chegado a minha hora! (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)


Guiné > Região de Bafatá > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > Destacamento de Contabane  (reordenamento) > Pel Caç Nat 53 (1970/72) > O Paulo Santiago com o canhão sem recuo 82 B-10, russo,  que esteve na origem do acidente que provocaria a morte do 2.º Sargento Parente (, apanhado pelo "cone de fogo" do canhão s/r disparado inadvertidamente por alguém)... A tragédia deu-se no dia 13/05/70, quando já se encontrava naquele quartel a CCAÇ 2701, que rendeu a a CCAÇ 2406, "Os Tigres do Saltinho" (1968/70). O 2.º Sarg Parente não pertencia a nenhuma daquelas companhias, era um dos graduados do Pel Caç Nat 53, comandado naquela data pelo alf mil  António Mota que eu fui substituir em outubro de 1970. O canhão s/r, apreendido ao PAIGC; foi mais tarde transferido do Saltinho para o reordenamento de Contabane (hoje, Sinchã Sambel).

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Estórias avulsas > Quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão sem recuo, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal,. ainda não tinha chegado a minha hora!

por Martins Julião 
Brasão da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)

[ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72), membro da nossa Tabanca Grande desde 23 de julho de 2006 (*), e um dos "históricos" do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo; empreário em Oliveira de Azeméis; espantosamente, ainda não temos nenhuma foto dele, à civil ou à militar, como mandam as NEP do blogue]

O almoço decorreu, como habitualmente, na nossa messe de oficiais e sargentos, onde o ambiente de camaradagem e de bom convívio era exemplar.

Após a refeição normalmente bebia-se um café com uma(s) dose(s) generosa(s) de whisky, mas era ao jantar que as libações eram superiores.

Como sempre estava o calor infernal da Guiné, abafado, húmido, dificultando a respiração e, entre as 12 e as 15 horas ninguém, em seu perfeito juízo, se atrevia a expor-se às suas violentas carícias, excepto quando as operações o exigiam.

Resolvi fazer uma sesta procurando fugir a este período de enorme desgaste.

Dirigi-me a um abrigo pequeno, chamado abrigo do canhão, onde na anterior companhia passava a noite a equipa que tinha por responsabilidade manusear um canhão sem recuo de fabrico russo, que fazia parte das nossas armas mais pesadas de defesa do aquartelamento e, que, provavelmente, participou no ataque a Conacri, pois durante um período de alguns meses foi-nos retirado, exactamente, no mesmo período em que decorreu a preparação e o referido ataque à capital da República da Guiné-Conacri.

Embora nos tenha deixado bastante apreensivos, durante esse período, uma vez que o armamento mais pesado era muito escassos , quando o recebemos ele vinha reparado e em muito melhor estado do que anteriormente. O canhão tinha imensas folgas o que tornava perigoso as operações de fogo, uma vez que provocavam fugas de chamas laterais, obrigando a sua guarnição a rigorosos cuidados de posicionamento.

O abrigo era pequeno: descia-se uma escada de cerca de 2 a 3 metros e no seu interior havia um beliche duplo e uma outra cama, ficando todo o espaço quase totalmente ocupado. O tecto era uma cobertura com troncos de árvores, flexíveis, duras e resistentes (cibes: um tipo de palmeira), terra e cimento a fechar o exterior.

Havia a pretensão de se afirmar que estes abrigos resistiam ao impactos das granadas inimigas, mas dificilmente se poderia acreditar nessa total segurança. Eu nunca acreditei , sobretudo após a terrível experiência por que passei.

Tirei a parte superior do camuflado e, em tronco nu, estiquei-me na cama paralela ao beliche ( 2 camas militares sobrepostas).

Lá dentro a temperatura não era tão fresca e agradável como se possa supor, mas era melhor estar debaixo de terra do que estar noutro local mais exposto. Talvez por esta razão não adormeci ou então não estava marcada a minha morte para esse dia.

Mantive-me acordado mas procurando relaxar e deixando a minha imaginação a vaguear por caminhos longínquos.

Num dado momento, ao passar a mão pelo peito nu, verifico que tinha uma muito pequena camada de areia sobre a pele. Passei a um estado vigilante e compreendi que caia uma fina camada de areia e terra sobre o meu peito, mas uma camada muito fina e intermitente.

Reagi de imediato; saltei da cama, peguei na parte superior do meu camuflado e corri para as escadas. Estava quase a chegar aos últimos degraus quando uma pancada violenta me atirou contra as escadas, ficando de barriga para baixo, quase esmagado, pelo peso da terra e dos troncos em cima das minhas costas. Apenas fiquei com a cabeça de fora e o braço esquerdo meio coberto.

Senti as primeiras dores sobre uma das pernas, que estava a ser submetida a uma pressão muito violenta,  comprimidas entre os degraus, suportando o peso pressionante dos escombros.

Tentei ver no exterior se alguém aparecia, mas seria muito difícil haver deslocações de soldados àquela hora, pois toda a gente disponível teria providenciado uma solução de abrigo do calor.

Não valia a pena gritar por socorro, pois ninguém me iria ouvir, dadas as distâncias entre a posição em que me encontrava e outros abrigos. Optei por esperar e ver se alguém passaria no meu campo de visão ou se dariam pelo colapso do abrigo.

Nesse período em que me encontrava imobilizado, naquela dolorosa posição, dei por mim a pensar se teria havido um milagre que levou à minha reacção ou se teria sido o meu rápido raciocínio a prever a derrocada em curso e me teria permitido escapar, no limite dos limites, para aquela posição, qual purgatório antes de uma libertação final.

Quando já não acreditava numa ajuda e as dores subiam de intensidade, eis que surge uma soldado mecânico, homem bom, de físico possante, mas francamente para o pesado. Quando me viu entrou em pânico e disse que ia procurar ajuda. A custo, consegui acalmá-lo e pedir-lhe para não chamar ninguém e fosse buscar uma pá, pois se aparecesse muita gente, na ânsia de ajudarem e de me tirarem debaixo dos escombros podiam partir-me a perna que se encontrava no limite da resistência e do sofrimento.

Lá o convenci e ele cumpriu escrupulosamente o meu pedido. Pouco tempo passado,  estava de regresso com a pá e, para cumulo da situação, passou sobre mim e posicionou-se sobre a terra e os escombros que me esmagavam.

Dei um berro valente, umas tantas asneiradas e gritei-lhe para sair de cima de mim. Expliquei-lhe que, com muito cuidado, procedesse à remoção da terra que cobria uma parte do meu braço esquerdo.

Concluído esse trabalho e libertado o meu braço, pedi-lhe que me desse a pá. Retirei cautelosamente uma parte da terra que me cobria permitindo assim poder-lhe dar indicações para ele, agora de novo com a posse da pá, me ir destapando e aliviando da terra e dos escombros.

Passado um bom bocado,  fiquei a salvo e pude-me levantar.  Nessa altura deu para ver que a minha perna esquerda estava muito maltratada e com ferimentos diversos, embora, felizmente, não muito profundos.

Agradeci ao meu salvador e dirigi-me ao balneário onde no chuveiro me limpei da terra agarrada à pele e de algum sangue. Depois dirigi-me ao posto médico, meio nu, e onde o nosso médico Drº Faria, bem como o furriel enfermeiro trataram das escoriações.

A perna inchou bastante nos dias seguintes e chegou-se a pensar que teria de ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau, uma vez que, naquele clima as infecções , causadas por qualquer tipo de ferimentos, tendem a fazer perigosas patologias mas acabou por não ser necessário e passado alguns dias estava pronto para o meu dia a dia habitual.

Não tinha chegado a minha hora!

NOTA: O nosso capitão, na companhia do aguerrido e ilustre alferes ranger, chegaram um pouco depois, regressados do Xitole.
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Notas do editor:

domingo, 16 de junho de 2019

Guiné 61/74 – P19896: Estórias avulsas (96): Numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”. Uma cena que fez tremer o meu amigo Otílio. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

Numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”
Uma cena que fez tremer o meu amigo Otílio

Comecemos pelo princípio de uma história a que tive oportunidade em assistir. Recém chegado à Guiné, envergando o rótulo de “piriquito”, eis a malta a caminho do centro nefrálgico da cidade de Bissau. Na altura, creio, que o meu companheiro de aventura era o camarada ranger Ramos, um rapaz de Cabo Verde e cuja façanha por ele protagonizada um dia aqui já comentei. 

Relembro, só num curto atalho de foice, que o Ramos, um dos meus camaradas nas instalações do QG, o Biafra como era apelidado pela malta, foi um rapaz que a certa altura rumou para o PAIGC e que após a Revolução dos Cravos, 25 de Abril de 1974, regressou a Bissau e logicamente ao seu torrão sagrado. 

Passeávamos pela “baixa” de Bissau, neste caso nas proximidades do imenso Oceano, sendo que ali por perto se localizava o cais de Pindjiguiti, local onde se concentravam alguns dos muitos cafés e cervejarias, quando a dada altura nos deparámos com uma enorme algazarra.

Um soldado comando que estava sentado numa das mesas dessas esplanadas, travou-se de razões com o empregado, um rapaz de cor, e a zanga resvalou para o torto, tendo o fim da cena terminado com cadeiras e mesas pelo ar e de vidros partidos, de entre o emaranhado pugilato por nós observado.

Nós, com as divisas ainda luzidias, assistimos impávidos e seremos ao acontecimento que meteu a PM, a ida do soldado comando, já cacimbado devido ao tempo de guerra e de tanta porrada travada nos matagais da Guiné, para o posto policial militar num dos jipes da força da ordem, onde terá sido depois interrogado e mandado embora, penso eu. 

Sei que a cena ficou-me na memória e que no final da minha comissão, reduzida face ao histórico acontecimento de Abril, me vi envolvido numa situação parecida como aquela que tinha visualizado aquando da minha chegada à Guiné.

Numa tarde e noite de copos predispus-me a visitar o meu grande amigo Otílio Costa Guerreiro, meu companheiro dos bancos da Escola Industrial e Comercial de Beja, um rapaz que estava sediado em Bissau como elemento da Marinha Portuguesa e desafiei-o para uma visita à casa das ostras.

Claro que o Otílio, meu camarada da boémia nas noites de Beja, não se fez rogado e caminhámos rumo ao objetivo previamente traçado. Começámos nas ostras, seguiram-se outras viagens de estroinice e terminámos já noite dentro numa marisqueira a saborear o famoso camarão tigre grelhado.

Escusado será dizer que a embriaguez resvalou para uma ocorrência de pancadaria que fez tremer o meu camarada Otílio. Sei que o empregado, rapaz de cor, ter-me-á mandado uma “boca” que não suou bem aos meus tímpanos e a partir dali deu-se um grande desaguisado. 

Lembro-me que em princípio a discussão fora apenas entre os dois, só que o evoluir da agudizada conversa resvalou para o ajuntamento de mais dois ou três amigos do meu rival, sendo que as minhas forças físicas e mentais se tornaram então ferozes perante a quantidade de álcool já ingerido.

Não me importou o número de sujeitos com os quais lutei, sei que saquei do cinturão, enfrentei com audácia os “adversários”, descarreguei umas fortes cinturadas nas costas dos “inimigos”, os rapazes perante a minha agilidade não desarmaram e deram-me de facto luta à séria.

O meu amigo Otílio entrou em pânico, não estava à espera do sucedido e nem tão-pouco conhecia os meandros da “postura” guerrilheira, quer ela fosse no mato, quer ela mourejasse na cidade e só me pedia para ter calma. Eu, qual desenfreado leão à solta, não parava o combate e nem me acomodei diante daqueles rapazolas que me terão tirado do sério.

Recordo ouvir pequenas provocações durante a ocorrência, sendo uma delas do tipo: “o gajo é maluco e é ranger, olhem a placa no ombro que diz operações especiais!”. Tudo dito num português atabalhoado. Fixei a finalidade do palavreado. 

Mas não estava em causa a especialidade, fosse ela qual fosse, todas me mereceram respeito, em causa esteve a forma agreste como fora tratado como cliente a que acresce o efeito da bebida já ingerida e que era já muita.

Tudo porém acalmou e no final pagámos a despesa, os rapazes desobstruíram a nossa saída, aliás, decidiram rumar, quiçá envergonhadamente, aos seus poisos, ficando nos registos que nessa luta deveras titânica não houve vencidos nem vencedores, mas sim um jovem militar que sozinho conseguiu dominar uma situação que bem poderia ter resvalado para males bem piores. 

Ainda hoje Otílio comenta, amiúde, esse acontecimento onde diz “que dentro daquela marisqueira poder-nos-iam ter matado”. Eu, conscientemente, respondo: “Matado? Não! Lembra-te “quem tem cu tem medo” e naquela situação prevaleceu o meu ar cacimbado e o arrojo como enfrentei o inimigo a exemplo, aliás, como a ocorrência observada no início da minha estadia na Guiné.

A cena que relato numa tarde e noite de copos onde tudo acabou à “molhada”, passou-se quando já aguardava transporte que me enviasse de regresso a Lisboa.

Para trás ficaram imensas histórias que são hoje meras lembranças “encaixotadas” numa prateleira já impregnada de corucho, mas que reúne um rol de acontecimentos numa Guiné onde me foi ofertada a possibilidade de conhecer a guerra e a paz.

Num profícuo apronto final sobre o moral de uma história, história esta incentivada com um post de Luís Graça no nosso blogue acerca de uma cena onde a pancada imperou, remeto-vos camaradas para os paradigmas de uma guerra que trouxe dissabores de diversa ordem.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19761: Estórias avulsas (95): O meu atribulado começo de comissão: eu, alguns homens e três viaturas carregadas de géneros alimentícios, desembarcados no Xime, e deixados para trás, com destino ao Saltinho (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 3 de março de 2008 > A margem direita do Rio Corubal vista da antiga ponte Craveiro Lopes. Nesta margem, e sobranceira ao rio e à ponte, ficava o aquartelamento do Saltinho, a cerca de 75 km do Xime.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [€dição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 2 de maio de 2019, do Martins Julião (ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho,  1970/72), membro da nossa Tabanca Grande desde 23 de julho de 2006 (*), e  um dos "históricos" do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo (**), mas de quem, espantosamente, não temos nenhuma foto, à civil ou à militar...

Caro camarada Luis,

Ainda estou vivo por enquanto, mas com alguns problemas de saúde e outros que me têm mantido afastado dos convívios anuais.


Sou o ex-alferes Martins Julião da antiga Caç 2701 - Saltinho (1970/72). 
Aqui te envio uma memória desses tempos.

Um enorme abraço par ti e para todos os camaradas do Blogue. 

Martins Julião


2. UMA ESQUECIDA MEMÓRIA SUBITAMENTE LEMBRADA (***)

por Martins Julião

O calor era o da Guiné: quente, abafado, húmido, pegajoso e quase irrespirável, para os soldados acabados de chegar.

A navegação entre Bissau e o Xime, escondia para todos o que se poderia passar; apenas sabíamos que íamos a caminho do nosso destino operacional: Saltinho.

Estávamos nos primeiros dias do distante mês de Maio de 1970.

Na LDG (Lancha de Desembarque Grande) da nossa Armada , apenas a popa era “habitável”.

O castelo da popa, onde se situava a ponte de comando da LDG, era ornado, perto das amuradas, por duas Bosfords de 40mm. O resto era um fundo chato, largo e cheio de tudo um pouco e de homens, no maior dos amontoados: viaturas, géneros alimentares e outros, munições, outras tralhas e muitas centenas de homens armados de espingarda G3, quatro cartucheiras de munições e cantil.

Tínhamos pois saído de Bissau, após as sete horas da manhã, com a maré enchente e chegámos, cerca do meio dia ao Xime. A LDG seria a Montante ou a Bombarda, mas a memória já não me permite ser preciso, neste particular.

A nossa chegada foi festiva pois a artilharia do Xime estrondava os ares com a sua voz estridente e pesada, o que nos deu a entender que estávamos a chegar a uma das portas de entrada da guerra.

A nossa companhia, a CCaç 2701, desembarcou e de forma organizada aprontou-se para embarcar na coluna militar que nos levaria ao nosso destino.

A coluna era composta por um enorme número de viaturas, a maioria militar mas, também algumas civis, acompanhadas por uma escolta militar de cavalaria oriunda de Bafatá, comandada por um capitão.

Eu era, para meu azar, o Alferes mais velho e, portanto, tinha formalmente o comando, uma vez que o nosso capitão tinha ficado retido em Bissau num briefing com o nosso General Spínola, Comandante- Chefe.

Quando todos tinham tomado acento nas viaturas eis que sou abordado por dois cabos da Manutenção Militar que me estendem uns papeis, pedindo que os assinasse. Logicamente, perguntei-lhes de que se tratava ao que me informaram que, ainda dentro da LDG, se encontrava a primeira tranche de víveres para o nosso isolamento.

Espanto dos espantos!

Primeiro não fora informado desses géneros com destino ao Saltinho, depois nem sabia que teríamos de ficar isolados cerca de 4 meses, em virtude das chuvas e do estado intransitável em que ficariam as famosas “picadas”.

Tomei, de imediato, uma decisão que os meus já 17 meses de permanência no Exercito me aconselhavam : nada assinarei aqui no Xime.

Os rapazes da Manutenção Militar iriam seguir na coluna acompanhando a carga. A companhia iria proceder à sua descarga da LDG e carregaria na coluna e a conferência final seria no destino, onde então se assinariam os papeis.

Os cabos tentaram reagir a esta decisão, mas sem possibilidades de fuga e ordenei aos graduados, que mais perto de mim se encontravam, para mobilizarem uma “força” de “estivadores”, que teriam de alombar às costas o equivalente a carga para, pelo menos, três viaturas pesadas.

 Imaginem a hora de calor máximo, rapazes acabados de chegar a esta torreira e a violência do trabalho a efectuar, em correria sem nexo, uma vez que o comandante da LDG berrava que iria perder o momento da partida óptima, face à mudança da maré e o comandante da escolta berrava furibundo que tinha de dar ordem de partida à coluna.

Chamei o meu furriel vagomestre, que quando se apercebe da situação e do que pode resultar, simplesmente roda sobre os calcanhares e cai desamparado no chão, desmaiado.

Decidi nomear um novo vagomestre e um furriel operacional que ajudava nesta confusa manobra, ofereceu-se para coordenar esta operação logística. Naquele momento, deixou de ser operacional e passou à intendência da companhia, embora interinamente.

A operação muito penosa e necessariamente demorada, levou o capitão de cavalaria, comandante da escolta, a perder o norte. Para além de bater com um chicote num graduado da companhia ( furriel Santos) e me ter ameaçado com todo o tipo de arrazoados indignos de um oficial que deveria ter percebido ou deveria ter tido o bom senso de conhecer melhor a situação anómala e imprevista que se desenrolava à sua frente, preferiu ignorar atirar com todo o tipo de culpas para cima do Alferes “piriquito”.

Então, para meu espanto o senhor capitão de cavalaria dá ordem de avançar a coluna, sem termos tido tempo de finalizar a operação de “estiva”.

Ficamos sós no cais do Xime, eu alguns graduados de enorme sentido de dever e responsabilidade e os meus magníficos e esgotados rapazes , cheios de sede, uma sede que leva à loucura. Terminada a tarefa, pusemo-nos a caminho, na esteira da coluna que há muito tinha partido, sem qualquer escolta de acompanhamento.

As três ou quatro viaturas em que seguíamos estavam carregadas até cima e os homens amontoados por cima da carga, em situação de enorme perigo, quer porque não tinham estabilidade , quer porque não estavam em posição de saltar das viaturas se houvesse um ataque. Iam bebendo Coca-Cola e Fanta ferventes o que os deixava ainda com mais cede e, mais tarde, com problemas intestinais.

Ao longo do percurso fomos encontrando as forças de segurança apeadas que protegiam a passagem da coluna, emboscadas ao longo da picada, e que iam regressando às suas bases.

A noite aproximava-se e a nossa pequena coluna alcançou o Xitole, pernoitando aí, sabendo então que a coluna principal já estava no Saltinho.

Dormimos junto dos camiões para que não tivéssemos maiores desvios dos bens que transportávamos.

De manhã, bem cedo, seguimos para o Saltinho onde chegamos sem mais sobressaltos.

O Alferes, algum tempo depois foi contemplado com dois Autos de Averiguações, um vindo da Manutenção Militar, acusando-me de abuso e de “rapto” de dois cabos daquele serviço, outro resultante de uma queixa do valoroso capitão de cavalaria.

Mais tarde, mas isso é outra história recebeu um terceiro Auto, este dos Reordenamentos e dum Major, completamente parvo, que me acusava de não ter sabido construir correctamente uma escola, cuja cobertura voou com o primeiro tornado na região. Segundo sua Excelência,  o Manual de Construção era tão claro que qualquer soldado saberia como proceder, quanto mais um Alferes.

Um começo de comissão na Guiné promissor…

Martins Julião
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  23 de julho de  2006 > Guiné 63/74 - P981: Tabanca Grande: Martins Julião, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72

(...) "Só há pouco tempo conheci este espaço de encontro. O Paulo Santiago (Pel Caç Nat 53, Saltinho), foi o camarada responsável pela minha apresentação aos camaradas de tertúlia.Chamo-me Martins Julião, fui Alferes Miliciano de Infantaria da CCAÇ 2701 (Saltinho, Abril de 1970/Abril de 72).Hoje sou um pequeno empresário e gerente de uma unidade industrial, após mais de 20 anos como professor do Ensino Secundário" (...).