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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24106: (In)citações (231): Caraças, andamos nós p'ráqui, a pensar no "fim da picada"!... Corações ao alto!... Pensemos antes que até aos cem... é sempre em frente! (João Crisóstomo, Nova Iorque)


oferta, ao João Crisóstomo, 
 da família do Eduardo Jorge Ferreira
(1953-2019)... Em lembrança
de um muito querido amigo comum
que morte levou prematuramente,
ao km 67 da sua picada da vida.
 
Foto: LG 
 
1. Mensagem de João Crisóstomo (Nova Iorque), com data de 21 do corrente, transformada em comentário ao postes P24081 (*):


Caros Luís Graça, Pinto Carvalho e demais amigos, incluindo o meu caro amigo Valdemar Queiroz cujo nome juntei, já que ao ler o seu comentário ao poema do Pinto Carvalho decidi logo responder.

Mas entretanto, aliás imediatamente, li o último blogue, P24085: In Memoriam (471): José António Paradela. Se achei o poema do Pinto Carvalho emocionante, verifico pelo pequeno comentário do Valdemar Queiroz que não fui o  
único a ficar “abalado".

Mas agora este “adeus" do António Paradela, ""(...) Querido Facebook, o destino levou-me para um local etéreo, onde descanso agora. 
Como última paragem despeço-me de todos os meus amigos" (**),  foi mesmo de arrasar.

Ainda recentemente, pela ocasião do Natal e Ano Novo eu tive ocasião de falar pelo telefone com vários amigos, alguns deles “camaradas da Guiné” e outros não. Mas se alguns, em comparação, eram ainda jovens, a idade da maior parte deles não estava muito longe da minha que já vou nos 79. E dizia-me um deles: "Oh João isto agora é assim… ninguém nos pergunta se somos voluntários ou não... estamos todos na fila da frente!"

E portanto não é de admirar que este tema de “fim da picada” seja tão pessoal para tantos de nós. É a vida: “corações ao alto”,  como me ensinaram e aprendi a dizer em momentos de pouca motivação.

Mas para não causar depressões a ninguém, deixem-me contar uma experiência bem diferente que vivi ontem mesmo.

Telefonei a um amigo meu que fez 91 anos recentemente. É que ele vive sozinho, em Nova Iorque num 5.º andar, se me não engano, sem elevador. Eu vivo nos arredores, em Queens, a cerca de 40 minutos a uma hora.

Por mais que eu queira, não fico sossegado, sabendo-o sozinho e de vez em quando ligo-lhe , para lhe dizer que em qualquer momento me pode ligar e eu vou logo ter com ele se for preciso. 

E ele sempre me tranquiliza que não é preciso: que "devagar lá vai fazendo as suas comprinhas" quando precisa e que de vez em quando tem uma pessoa ou outra que o vai visitar. E contou-me então que "ainda ontem esteve aqui o (?) — (não me lembro do nome) — ele é mais velho do que eu , mas não me esquece", disse ele. 

Mas quando ele me disse que o amigo era mais velho do que ele, eu fiquei alarmado e quis saber mais. Disse-me então que esse indivíduo tem 98 anos e que o vem visitar de vez em quando e lhe "traz umas coisinhas" quando ele precisa. E perante o meu espanto ele esclareceu que esse seu amigo está em muita boa forma, que vai fazer os cem anos a brincar. Que até já tem bilhetes para o Brasil onde vai agora passar uns meses. Que volta em Maio, disse-me ele.

Bom , creio que não preciso de dizer mais. Caraças, andamos nós para aqui a pensar no fim da picada, quando esta pode estar ainda a vinte anos de nós…

Corações ao alto, meus caros.(***)

Um grande abraço do João
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24081: In Memoriam (470): António Torres e Arquimínio Silva, recentemente falecidos: pertenciam à CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 (Buba, 1971/73) (Joaquim Pinto Carvalho)

quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23128: Notas de leitura (1432): "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 184 pp.), do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos... Uma pedrada no charco da nossa educação judaico-cristã...


Capa do livro do nosso camarada António José Pereira da Costa, cor art ref, "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 2020, 184 pp.)



Feira do Livro de Lisboa > Lisboa > Feira do Livro > 6 de Setembro de 2020 > O autor, António José Pereira da Costa, e a representante da editora Alfarroba, na apresentação do livro "Os Velhotes" (*).

Na altura, o autor comentoum no poste P21133, de 7/9/2020 (*):

Olá Camaradas. Efectivamente, se não fossem os ex-combatentes tudo teria sido um fracasso. O Armando Pereira e a esposa são meus colegas na "Associação dos Velhos" onde eu milito e até já aprendi como se encaderna um livro.

O livro é perigoso. Falar de erotismo na 3.ª idade não é fácil e é extremamente difícil penetrar nas atitudes farisaicas e hipócritas de quem varre para baixo do tapete e consequência da nossa educação judaico-cristã. Mas isso já são outros mitos, outras lendas e futuros assuntos para debate para que para tal tiver coragem..



Foto (e legenda): © Carlos Silva (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. C
omentário do autor, inserido no poste P23117 (**)


Olá, Camaradas: Pelo rumo dos "debates", parece que estou entre os meus.

Quem quer comprar o meu livro badalhoco "Os Velhotes", sexo na 3.ª Idade ?!

Na impossibilidade de o exibir aqui (capa e foto do lançamento da obra, na Feira do Livro de Lisboa, em 6 de setebro de 2020),  peço aos editores autorização para fazer um anúncio nos posts do blog.
Dado o tema,  não me atrevi a tentar divulgá-lo. Aqui vai um "método de ataque":

1. Começar pelo prefácio. Ler atentamente. É a parte séria do livro e ela permitirá desembaraçarmo-nos de ideias a que teremos de chamar preconcebidas, à falta de um termo melhor. Na nossa idade, não temos contas a prestar a ninguém. Podemos ser "amorais" à nossa vontade. Se calhar nem a nós mesmos teremos de as prestar. Com os mais novos será diferente? Talvez...

2. Ler devagar. Um conto de cada vez e, depois... uma pausa, para o analisar e pensar. É um rico exercício mental. Nada de exploração do sucesso, a menos que… se proporcione.

3. Poderá haver alguns contos que firam a sensibilidade, dadas as situações pouco ortodoxas que descrevo. Se tal suceder, é abrir a mentalidade e a tolerância e ler com mais cuidado, mas não deixar de os ler.

4. No início de cada conto, está desenhada uma combinação dos símbolos, masculino e feminino, que permite ter uma ideia do teor do conto que se segue. Assim, o leitor não corre o risco de ser surpreendido.

5. Como se vê, não há violência no livro e nas situações que imaginei.

6. Só os personagens – às vezes – usam linguagem desbragada, mas o leitor não ouve o que eles dizem... e, além disso, é/são sempre a/as senhora(s) que toma/m a iniciativa e controlam as situações mais embaraçosas. E assim é que deve ser. São mais sensíveis, digo eu, claro.

7. Chamo a especial atenção para os contos que mais me marcaram: "Os Velhotes" (inspirado num casal com quem nunca falei, mas que decorre numa praia que bem conheço), "Velhos e Libertinos" (dois velhotes suburbanos reservados q. b. mas...) e "Aqueles Dois" (um acto de resistência num sítio onde, como se vai vendo, é cada vez mais necessário resistir). Parece-me o mais bem conseguido, embora com poucas possibilidade de acontecer. Não conheço nenhum conto deste tipo em que um dos personagens morra e o outro o chore, com saudades dos tempos passados juntos. Claro que há "A Viúva" que escrevi de um fôlego e à medida que as ideias surgiam. Só o reli, depois de "pronto". Creio que será um dos mais realistas.

8. Todas as personagens derivam de um trabalho de colagem de características físicas e pessoais(?) de pessoas que conheço. As situações provêm, como não poderia deixar de ser, da experiência da vida, da imaginação à solta e de "histórias" que ouvi contar. Falsas, normalmente ou nem tanto…

9. Está autorizado o açambarcamento para revenda. É possível dizer bem ou mal e eu agradeço uma coisa ou outra. A crítica, mesmo destrutiva é bem-vinda!...

10. Depois, é divulgar no Facebook, Twitter, Instagram, e entre o pessoal cujos e-mails, eu não tenho, mas tu tens.

Um Ab.
António J. P. Costa 

29 de março de 2022 às 23:13

II. Sinopse do livro (***):


Dália é viúva. Casada durante quase cinquenta anos, a perda do marido foi um golpe […] que a vida lhe vibrou. Há umas noites sucedeu o inevitável: sentiu vontade de sexo. Já tinha sentido umas sensações, mas recusara, esmagando a necessidade e reprimindo o desejo. Porém, ontem, ao fim da tarde, aconteceu…

Maria ganhou coragem e foi procurar a bancada de carpinteiro. O coração bateu‑lhe fortemente quando a encontrou. Passou as mãos pelo tampo bem liso [...]. Então, não pôde conter‑se e chorou, chorou muito. Soluçou mesmo. Era ali que se possuíam num abraço violentamente delicioso. Num exercício de forças combinadas, Adriano sentava‑a na bancada e […] penetrava‑a com aquela gentileza que ela sempre tinha apreciado. Depois, vinha o abraço, bem apertado, e o beijo terno e constante…

Ao acordar, olharam‑se bem nos olhos e Pikenina não se conteve e beijou os lábios da amiga, ao de leve, mas de modo a senti‑los bem. Fofa pegou‑lhe nas faces e retribuiu. Não, não eram nenhuns devassos.

Eram um vulgar casal de sexagenários.

(Fonte: Alfarroba editora)


O livro pode ser adquiro diretamente através de pedido ao autor:

email: toze.pereiradacosta@gmail.com

Preço de capa  (inclindo portes do correio):
12,78 €

O leitor interessado terá de indicar a morada para onde enviar a obra. O autor, por sua vez,  comunicará depois a conta bancária para efeitos do pagamento.



III. Sobre o Autor 
(foto à direita, cortesia da editora

(i) é natural da Amadora (1947);

(ii) cor art ref; terminou  a sua carreira activa como Director da Biblioteca do Exército, em Dezembro de 2011;

(iii) ex-alf art, na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art e cmd das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74); 

(iv) é um histórico do nosso blogue, tem 175 referências;

(v)  é membro da Tabanca Grande  desde 13/12/2007; 

(vi) é autor da série "A minha guerra a petróleo"(, depois transformada em livro, editado pela Chiado Books, Lisboa, 2019, 192 pp.) tem um belíssima e valiosa colecão de arte e artesanato guineenses (fula, mandinda, bijagó...) e tem-na partilhado connosco (*): base para copos, bases para copos, pratos e terrina, cachimbos, "cirans", "cafalas", chapéu fula, cinto fula, garrafas forradas a couro, tabuinha com caracteres árabes...

(vii) é autor de vários livros sobre história e arquitetura militares, de um modo geral, indisponíveis no mercado:  A cidadela de Cascais (2003); O Palacete do Camarista Real (2011); Castro Marim: Dos Forets não reza a história (2012)... Os dois primeiros são edições do Estado Maior do Exército.



domingo, 21 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20001: (In)citações (136): Fatemá (ou Fatumatá), a mulher grande, viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do atual régulo, Suleimane Baldé, que foi soldado do exército português... Morreu em 2010, centenária... Um exemplo espantoso da arte de bem envelhecer (Paulo Santiago / José Teixeira / José Brás / Cherno Baldé / Mário Miguéis da Silva)




Guiné-Bissau > Sinchã Sambel > 2005 > Fatemá ( ou Fatumatá) e Paulo Santiago, ladeados por familiares e amigos. Por de trás, João Santiago, filho do Paulo, que também quis sentir as emoções de seu pai ao voltar à Guiné da sua juventude.

Fotos (e legendas): © Paulo Santiago  (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]


1. A propósito da mulher grande, Fatemá ou Fatumatá, de Contabane (*),  volta-se aqui a reproduzir mensagem de Paulo Santiago  (ex-alf mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72, que voltou à Guiné em 2005, 2008 e 2010), com data de 8 de Novembro de 2010 (*)


Telefonema que recebi, às 23.00 horas de ontem, do Zé Teixeira, que recebera a mesma notícia do Carlos Nery [, ex-cap mil, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), que, por sua vez, a recebera de um antigo milícia: "Morreu a Fatemá"!

Fatemá (ou Fatumatá), Mulher Grande, Grande Senhora, que conheci há 40 anos, tendo-a visitado em 2005 e 2008, era viúva do régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do actual régulo, Suleimane Baldé, ex-1.º cabo do Pel Caç Nat 53, que tive a honra de comandar.

A Fatemá ficou na memória de inúmeros militares que foram passando por Contabane, Aldeia Formosa e Saltinho, onde, na outra margem do rio Corubal, nos anos de 1970-71, foi construído o reordenamento de Contabane, hoje chamado Sinchã Sambel. O meu convívio, mais intenso, com a Fatemá decorreu no período em que vivi naquele reordenamento, de maio a agosto de 1972. Nos dias em que não havia saídas para o mato, quase sempre, a seguir ao jantar, tinha longas conversas com o Sambel e a Fatemá. 

Ela lembrava-me a minha avó Clementina que me enviou o bolo-rei mais delicioso que até hoje comi, apesar de muito duro quando o recebi em Bambadinca, história que já contei aqui no blogue.
 
A Fatemá era dotada de grande jovialidade e simpatia. Ainda hoje quando encontro algum ex-militar da CCAÇ 2701, a que estive adido, sabendo que estive recentemente na Guiné, em 2008, vem a pergunta : "W a Fatemá ainda é viva? Como é que ela está?"

Em fevereiro de 2005, acompanhado pelo meu filho João, apareci de surpresa em Sinchã Sambel, a Fatemá fez-nos uma recepção que jamais esqueceremos. Sem o saber desencontrara-me do Suleimane que tinha vindo, dias antes para Lisboa, e a Fatemá, naquele dia foi régulo e chefe de tabanca. Ela mobilizou toda a aldeia para receber os visitantes. Foi uma tarde, prolongou-se pela noite, de fortes emoções onde pontificava aquela figura matriarcal que no final nos ofereceu um cabrito.
Na Guiné, onde a esperança de vida é muito baixa, a Fatemá era uma excepção notável, e com certeza única, tempos atrás ultrapassara os cem anos. O Suleimane, ontem, quando lhe telefonei,  disse-me que a mãe tinha 114  anos (?!), e,  sendo assim, nasceu no séc XIX, passou pelo séc XX e vem morrer no séc XXI. 

Soube envelhecer com dignidade, para quem nunca soube o que era botox ou pilling, a Fatemá tinha uma pele lisa, com muito poucas rugas, e,  para além deste aspecto exterior, possuía uma cabeça cheia de memórias. Em 2005, falou-me dos militares portugueses que foi conhecendo ao longo dos anos da guerra, uns que eu conhecia, outros não. Curiosamente, esqueceu o comandante da CCAÇ 3490, ou fez por bem não o mencionar.

Em Março de 2008, encontrei-a  já muito prostrada, muito apática, e já não me reconheceu
Ontem à tarde, segundo o Suleimane, "ficou-se"... morreu de velhice. Hoje, às 10.00 horas, seria enterrada. Que Alá a tenha em descanso.

Águeda, Aguada de Cima, 8 de novembro de 2010

2. Comentários ao poste P7249:

(i) Luís Graça, editor:

Paulo: A ternura com que falas desta mulher, que bem podia ter sido tua avó ou bisavó... Os laços de afecto que deixaste por onde passaste... Eu não sei se isto é muito "português", só sei que é de um grande português, cidadão e homem, de sue nome Paulo Santiago e cuja presença, entre nós, muito honra a Tabanca Grande...

Há mais postes onde evocas a Fatemá... Por exemplo, fui buscar este excerto:

"Jamil [ Nasser, comerciante libanês do Saltinho,] desistiu da abertura de uma casa em Mampatá, mas a ideia foi aproveitada por um outro comerciante do Xitole, o Rachid. Passou-se para o reordenamento de Contabane, na outra margem do rio, e estou a ver a Fatemá, mulher do régulo Sambel, mãe do meu 1º Cabo Suleimane, a 'pendurar-se' ao pescoço do Spínola e a cobri-lo de beijos."(...) (**)


(ii) José Brás (**):

[ex-fur mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68); nasceu em Alenquer; trabalhou na TAP como tripulante comercial de 1972 a 1997; foi sindicatista e autarca; mora em Montemor-o-Novo; tem mais de 130 referências no nosso blogue; é autor de “Vindimas no Capim”, 2.ª Edição, Lisboa, Publicações Europa América, 1987, e também de "Lugares de Passagem", Chiado Editora, Lisboa, 2010].

A minha memória sobre a Fatemá  não é tão objectivamente clara como a que aqui aparece do camarada Santiago.

Há coisas da Guiné que me escapam hoje e penso mesmo que me escaparam sempre, para minha desgraça pessoal,  porque tenho isso como uma lástima que não me aumenta razões para a consideração de outros nem de mim por mim próprio.

Tentando entender porque terá sido isso, quero crer que se deve a uma certa rejeição pela guerra e pelas razões da guerra e, nesse tempo, mesmo pelos seus intérpretes no terreno, apesar de também eu a ter assumido.

Por isso Fatemá era apenas a mais prestigiada das mulheres de Sambel. tenente de segunda linha, homem que permaneceu a nosso lado, creio que até ao fim da guerra. Dele, lembro cartas que escrevi para um seu filho que estava em Lisboa e que ele queria em Contabane para casar com uma mulher "negociada" pelo pai, coisa que gerou conflito de posturas porque o filho, tendo escolhido mulher, outra, já não aceitava a decisão do pai.

Lembro também do posto rádio que montei em sua casa, com AN-GRC9,  para apoiar uma incursão da minha companhia na estrada que ligava a Madina do Boé, operação que deu apenas uma vítima, uma cobra com mais de 4 metros apanhada pelos soldados e cozinhada em Aldeia Formosa.

E também me lembro do embaraço desse dia, obrigado a partilhar o arroz de chabéu com galinha na mesma malga de madeira onde comiam Sambel e as suas mulheres da forma tradicional da Guiné.
Sei que muito soldado português partilhou experiências destas sem quaisquer dificuldades, mas para mim não foi agradável, coisa que, como disse já, sinto hoje como postura verdadeiramente lamentável na medida em demonstra a pouca adaptação que terei tido nesta experiência.

 (iii) José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; tem mais de 340 referências no nosso blogue; régulo da Tabanca de Matosinhos) (**)

 Não me lembro da Fatemá (...), quando trilhei as picadas de Quebo e Mampatá [, em 1968/70].

Recordo o régulo Sambel, seu marido, e a sua dedicação e fidelidade a Portugal. O seu filho, o nosso amigo Suleimane, actual régulo de Contabane, esse sim, como soldado milícia partilhou comigo algumas...  aventuras em Mampatá. Hoje prezo muito a sua amizade e a da sua esposa, a Ádada, que conheci ainda bajuda. Que bonita que era e ainda é!

Tal como o Paulo Santiago, tive a felicidade de conviver com a Fátemá em 2005, quando a Ádada (...) me reconheceu, passados trinta e cinco anos (que belo e feliz momento!).

Estava a saborear este encontro, quando vejo surgir à porta da sua morança a velhinha Fatemá, que se dirige a mim com um sorriso, para logo me abraçar e,  com as lágrimas nos olhos,  me pedir "Branco na volta, branco na volta !"

Por mais que lhe dissesse que agora só lá íamos para matar saudades, ela insistia "Branco na volta!"... Seguiu-se uma amena conversa, interrompida aqui e além pelos seus bisnetos, que queriam brincar comigo ao fotógrafo.

Voltei em 2008. Notei que estava mais parada, porque os anos não perdoam. Retenho a imagem de uma mulher linda, apesar da idade, lúcida e,  sobretudo, tal como o filho e outros familiares que conheço, muito ligada a Portugal e aos portugueses que por lá passaram.

Com a sua morte perdeu-se um forte elo de ligação, com os portugueses que pisaram aqueles trilhos do regulado de Contabane.

3. Comentários  ao poste P19995 (*)

(i) Mário Miguéis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, BissauBambadinca e Saltinho, 1970/72; bancário reformado, cartunista,  vive em Esposende)

Na entrevista (pág. 10 e 11) feita por mim e pelo ex-alferes Rocha  ao respeitável Sambel Baldé, régulo de Contabane (pai do atual régulo, Suleimane Baldé) [, e publicada no jornald e caserba, "O Saltitão"], perguntávamos, a certa altura, ao entrevistado "quantas chuvas tinha"...."Cinquenta e sete", respondeu Sambel, com convicção. 

Ora, tendo sido referido aqui no blogue, aquando do falecimento da Fatumata (senhora de uma simpatia e gentileza inexcedíveis, mulher mais velha de Sambel e mãe do atual régulo) que esta deveria ter a proveta idade de 114 anos e,  tendo ainda em atenção que a Fatumata, para quem a conheceu e ao Sambel, não era mais velha que este, antes pelo contrário, das duas uma: ou o Sambel tinha mais que 57 anos em 1971 (data da entrevista) ou a Fatumata não tinha assim tantas chuvas quando faleceu [, em 2010]... (Experimentem fazer as contas).

Para os menos familiarizados com a guerra no sul e leste da Guiné, o Sambel alude, na entrevista, ao ataque do PAIGC à tabanca de Contabane (nas proximidades de Aldeia Formosa), que destruiu completamente (disso se falou já abundantemente aqui no nosso blogue). 

Madina-Contabane foi edificada na margem esquerda do Corubal, junto ao Saltinho, pelas tropas da CCAÇ 2701, em 1971, para recolher, em definitivo, a população, algo dispersa durante dois anos, da antiga Contabane. 

O capitão André, a certa altura da entrevista referido pelo Sambel, era o comandante da CCAÇ 2406 ("Os Tigres"), que precederam a CCAÇ 2701 no Saltinho (já publiquei uma foto no blogue, montando o tigre da CCAÇ 2406, "escultura" que tem na sua base uma lápide alusiva aos vários mortos da Companhia).

(ii) Cherno Baldé, Bissau (*):

(...) A segunda hipótese deve ser a mais provável, pois 114 anos são "muitas chuvas" para as condições reais em que nós vivemos, mesmo sendo uma mulher. O método da contagem (chuvas) e a ausência de registos escritos fazem mais que complicar a contagem. E, para piorar, no meio tradicional fula, a idade não era importante senão no momento e em função do beneficio que dai poderia resultar. Convinha ser jovem e forte nos momentos de recrutamento para tarefas mais ou menos bem remuneradas, e mais velho quando isso permitia beneficiar de alguma herança ou deixar de pagar impostos.

Gostei muito da lenda sobre a origem do cavalo e da entrevista ao Régulo Sambel Baldé. A lenda do cavalo retrata a epopeia das guerras com o reino Bambará de Segou, de onde é originária a maior parte dos primeiros fulas que povoaram o actual territorio da Senegambia (Guiné, GBissau, Senegal e a Gambia).

O verbo "firmar" é uma tradução directa da lingua fula, o mesmo que dizer "estar vs morar". Fez-me lembrar o meu velho pai que falava igualzinho, e bem vistas as coisas, com muito mérito e inteligência se tivermos em conta as suas origens e histórias de vida. Queria ver qualquer um de vocês a falar fula com a mesma desenvoltura de espirito e clareza no sentido. Caso para dizer: Mesmo se nunca mereceram o devido respeito e confiança da parte de muitos portugueses, mormente administradores coloniais e comandantes de companhias do exercito, os nossos pais e avôs foram extraordinários e dignos de admiração. (...)

(iii) Paulo Santiago (*):

Foi o Suleimane que me falou nos 114 anos da mãe, pode haver exagero, talvez...Ela teria uns sessenta e picos quando por lá andámos, mais os quarenta que ainda viveu. O Suleimane,é mais velho que eu doze anos,tem agora oitenta e três.

(iv) Mário Miguéis da Silva:

Caro Cherno Baldé, as tuas palavras alusivas aos vossos pais e avôs conseguiram comover-me. Tive com as populações de etnia fula, com as quais convivi ao longo dos dois anos da minha comissão de serviço, uma relação da maior cordialidade. Percebi, desde cedo, as carências de que padeciam e a delicadeza da sua posição. Embora suportassem tudo com elevação, com a maior das dignidades, não me passava ao lado o seu sofrimento, a sua preocupação com o futuro dos seus. Isto, apesar do seu passado de guerreiros altivos e indomáveis. 

De um modo geral, procurei ser muito amigo de todos, acarinhando as crianças e fazendo o que estava ao meu alcance para ajudar pais e mães. Mas, os Homens-Grandes, gente humilde no seu comportamento exterior, mas sábia e altiva como nenhuma outra no território, sempre me infundiram o maior respeito e mereceram grande amizade. Quando, como agora, dou comigo a recordar algumas vetustas personalidades, que tive a honra de conhecer no seio das suas tabancas disseminadas pelo leste e sul da Guiné, e embora não tenha quaisquer problemas de consciência quanto ao meu comportamento em relação às mesmas, não deixo de me sentir algo entristecido por não ter podido ser tão generoso com elas quanto desejaria.

Obrigado pelo teu comentário ao poste e um grande abraço. (*****)

__________


(*****) Último poste da série > 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19968: (In)citações (135): Achega II - E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau (Manuel Luís Lomba)

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19947: Os nossos seres, saberes e lazeres (336): As minhas loucuras no Porto... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Porto > Ponte da Arrábida > 17 de junho de 2019, 17h35 >  A subida às entranhas da Ponte da Arrábida - 65 metros, 162 escadas, 18 andares


Porto > Ponte da Arrábida > 17 de junho de 2019, 17h16 > O cimbre da ponte


Porto > Bairro do Aleixo > 17 de junho de 2019, 16h38 >  A demolição da torre 1


Porto > Bairro do Aleixo > 17 de junho de 2019, 16h42 > Um das "sala de chuto"...

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do Virgílio Teixeira, com data de 17 de junho de que se publicam alguns excertos, dada a sua extensão, e a diversidade do seu conteúdo, tocando em vários pontos, incluindo um comentário ao poste P19894 (*):

[Foto à direita, o nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economista e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde; tem mais de 130 referências no nosso blogue] 

Caro Luís,

Está esclarecida a minha duvida, só mesmo quem já tivesse experiência de trás poderia ter tantos conhecimentos, e depois a História da Unidade completou tudo o resto. Já poderia ter dito, eu não sabia dessa faceta. Ias preparado para contar a tua história na Guiné. (*)

Eu fiz fotos, iniciei a minha aprendizagem ali na Guiné, e deixa que te diga, o meu Álbum não é assim tão raro, pois tenho visto ao longo deste tempo, fotografias de lhes tirar o chapéu, não vou aqui agora personalizar, eu acho as outras melhores, mas tenho consciência de que tenho algumas também inéditas, embora a maioria tenha como personagem principal, eu próprio.

Ao longo dos dois anos, digamos líquidos 700 dias, devo ter escrito, a uma média de uma carta diária, por vezes eram duas, e em média cada carta levava umas 10-20 folhas escritas à mão, só de um lado, pois o papel fino, escrito com caneta de tinta não permitia escrever no verso, isto no mínimo serão umas 7000 folhas, isto por defeito. Cada carta levava depois algumas fotos que eu ia despachando para mãos seguras, a minha namorada.

As minhas cartas eram enviadas em envelopes de avião, até não caber mais nada, por isso por vezes iam dois envelopes cheios. Acho que nunca escrevi mais do que um aerograma, só para ficar de lembrança, não havia aerogramas que chegassem.

Todos os dias, não havendo nada de especial para ‘namorar’ por carta, eu escrevia tudo o que se passava na minha Unidade, os pormenores de tudo, e com certeza até nomes que não me lembro. Este valiosíssimo espólio, foi por mim ‘esquecido’ estava todo guardado e bem guardado, foi pena não o preservar como devia, assim por um acidente doméstico, não de nossa conta, acabou quase tudo de ir para um grande bidon numa grande fogueira de São João, na década de 70, bem como inúmeras fotos e slides que nem me lembro dos temas.

Fiquei com 1000 fotos, e meia dúzia de cartas, e é agora que lendo algumas fui buscar assuntos que de outra forma nunca me lembraria. Ficou uma carta de Mafra, uma carta de Lisboa EPAM, outra carta de Chaves do BC 10, uma carta de Santa Margarida durante o IAO, e umas 3 a 4 cartas da Guiné, com datas e anos diferentes. Agora tenho estas bem guardadas.

Partilhar agora como dizes as nossas lembranças, para todo o mundo ler, não é bem assim, eu acho até que já me estiquei demais a escrever certas coisas, que faço ao correr da pena, sem nunca ler depois o que escrevo, por isso tenho levado ‘porrada’ de certos leitores [...].

Este fim de semana realizou-se aqui, em Vila do Conde, o 42º encontro nacional dos homens da Marinha, com direito a um concerto pela Banda da Armada, que gostei imenso. Depois a nossa fadista Mariza, deu um espectáculo fenomenal, não a conhecia ao vivo, carrega atrás dela um camião TIR com material e montes de colaboradores, foi pena ter de a ver de esguelha, com direito a estar de pé e lugar apenas para um pé, ao ar livre, sem pagar. Eu acho que com familiares na Vereação da Camara poderia ter lugar nas cadeiras dos convidados especiais, mas não, não sei porquê.

No Domingo, ontem, fui parar a um sítio por onde comecei a minha verdadeira carreira, há precisamente quase 50 anos, estamos nos arredores de Vila do Conde, 6 a 7 km, e à distância de 40 km do Porto, uma freguesia que não vou descrever o nome para não ferir ninguém. Há lá uma igreja, que é dominada por um sacerdote negro, a minha empregada que mora por ali, conseguiu convencer a minha mulher a ir lá, pois eles dizem, que em certos Domingos, na missa das 7 horas da tarde é ‘muito bonita’. A verdade é que estava lá uma camioneta de Fátima, cheia de fieis. [...]

Hoje, segunda feira,   de tarde vou carregar com a minha máquina, e vou fotografar as Torres do Aleixo, o Santuário da Droga do Porto, que eles começaram a derrubar sem eu saber, vi ontem na Televisão. E quero deixar isto para a posteridade. Ali vai nascer um empreendimento de luxo com maravilhosas vistas para o Douro e para a Foz.

Já lá tinha ido há uns anos, ver com os meus olhos, de fato e gravata, pasta de executivo nas mãos, passei pelo meio de tudo, não me agradou nada aquele cenário degradante a céu aberto, onde só passam os clientes, e a Polícia com vários carros e pessoal armado. Passei e ninguém me chateou, algumas pessoas quase não me deixavam passar, que era uma loucura e ainda com a agravante de ir de pasta… eu disse que não me metem medo, tinha de ver com os meus olhos aquilo tudo. Ainda bem que vai tudo abaixo, agora a questão é para onde vão assentar a sua praça e comércio.

Depois ainda voltarei a este assunto. (**)

Abraço,

Virgilio

PS - Acabei de 'sacar' algumas das 80 fotos feitas hoje no Porto nas 3 horas a andar a pé. Para mais tarde recordar.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19894: A galeria dos meus heróis (31): Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá (Luís Graça)

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis >  Os caminheiros do Parque da Cidade (Parte I)

por Luís Graça





Às quintas-feiras encontram-se no Parque da Cidade, têm lá um grupo e amigos e conhecidos que gostam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas.

“Duas voltas ao bilhar grande”, dizem eles e elas. Desenferruja-se as pernas, desentaramela-se a língua, massaja-se os neurónios, tonifica-se o coração, estreita-se os laços sociais e afetivos, limpa-se a vista (com o azul do mar, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultiva-se a boa disposição e o humor, desliga-se o malfadado telemóvel…

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dizas, é quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, reformados, gente com tempo e vagar, e algumas economias no banco. No essencial, e em comum, têm o gosto por conviver, conversar e andar a pé. É a “tertúlia dos caminheiros do Parque da Cidade”… Já são populares entre os demais utentes e os trabalhadores do Parque e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona.

Há de tudo um pouco: professores, talvez a maioria, engenheiros, bancários, magistrados, advogados, secretárias, domésticas, uma médica, uma enfermeira, uma jornalista, e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vêm do Porto e de Matosinhos, e até de mais longe.

É a primeira geração de portugueses de que se pode dizer que são filhos da abundância, do Estado-Providência, e que podem aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (, contrariamente ao que se passou com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número , variável, dos que vão aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acaba por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não há solidariedade com os fracos que vêm na cauda do pelotão. A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, faz-se uma pausa, de dez minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. É então que o pelotão se reagrupa, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa são os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (, há gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas, das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se divorciam e os netos que vão para a escola…

Vêm também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos e parentes)… Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se fala em sexo nem em dinheiro”, segundo me confidenciou a minha amiga “Nucha”. Percebe-se: muitos tiveram uma formação puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor…

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejei eu.

O telemóvel e o tabaco são, agora, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” é uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores são, nesse ponto, os mais intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel é “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”. E, tanto quanto me apercebo, quando por lá ando, não há fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” vai, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes, o liceu, a mocidade portuguesa, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império… Alguns passaram por África e têm memórias desse tempo, umas boas, outras más. Há retornados e ex-combatentes…

Chegam por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que é o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino”, do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim nascida no Estado Novo.

No caso de alguns, os mais velhos, quando nasceram, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

São quase todos portistas, mas também não se fala de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficam lá fora as “redes sociais, a par da “política partidária”. São quase todos “desalinhados”, à esquerda e à direita, mas alguns/algumas têm um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até é compreensível.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidencia-me a “Nucha”, uma mulher nortenha de grande generosidade.

Quando chove (e aqui chove mais do que no Sul…), ficam a cavaquear no café até próximo do meio-dia, altura em que cada um vai às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ?

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa o “Filósofo”, a caminhar ao lado do “Mister” e da “Poetisa”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio dos dois:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Focinho de Porco”,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Poetisa”.

Transmontana, a “Poetisa” é uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade é um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamam-lhe a “Poetisa” porque dá ares da Natália Correia… e também escreve… “versos”. Tanto quanto julgo saber, foi professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciam e toleram o seu “génio”. Tem fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gosta de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"...

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?! – acrescentou o “Filósofo”.

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as estafadíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… – interveio o “Mister”.

− Ah!, o Portugal plural no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e branco – lembrou a “Poetisa”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e a censura – acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje são “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar mais um exemplo:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, ó “Mister”, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Poetisa”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu 1º marido… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

− E sem “airbag”, que era coisa que, nesse tempo, os carros ainda não tinham! – galhofou o “Filósofo”.

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar os três amigos.

Na Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade quase toda a gente parece ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que me disseram, faz parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratam por tu, o que ajuda a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores.

E também me parece que, pelo convívio que vou tendo(, irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém leva a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, é mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da(s) história(s) de vida.  Enfim, um ou outro, no início, pode não ter gostado lá muito ou ter até rangido os dentes. Os novatos, que têm sido poucos nos últimos dois ou três anos, são sujeitos, como eu, à incontornável praxe de integração.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-me a “Nucha”, uma velha amiga de há, pelo menos uns 20 anos.

Em rigor, não há regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, vai criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo trabalho de um grupo de mulheres, de que restam duas ou três, a quem chamam carinhosamente as “abelhas mestras”. São uma espécie de “mães fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas, e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?!

Foi assim que nasceu a Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade, com a intenção mais ou menos explícita (mas não expressa) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo me contou a minha amiga “Nucha”, que foi professora de biologia… São mais as mulheres do que os homens, o que até é natural neste grupo etário de gente sexagenária e septuagenária… Em dez anos, o grupo sobreviveu e renovou-se. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também há a “Viúva Alegre” (que já despachou para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos…), a “Papa-Léguas” (também conhecida por “Rosa Mota”, por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva…), a “Facebook…eira” (que se vangloria de ter “cinco mil amigos”), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, sempre muito calado), o “Morcão” (ex-autarca, que vem de Gondomar), a “Dina” (ou “Adrenalina”, por ser uma das mais “stressadas” do grupo…) e o “Coronel”, enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequenta o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos arrelvados que, no passado, devem ter dado muitos carros de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister” – retomou o “Filósofo” o fio à meada.

E continuou:

− Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – ironizou a “Poetisa”, que gosta de “picar” tanto o “Mister” como o “Filósofo”.

Prosseguiu este, que tem sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha teoria… 


− Então, avança lá!...Somos todos ouvidos.

− Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou o “Mister”.

− Há uma economia de meios, de energia, de recursos ! – concorda o “Filósofo”. – Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como alguém disse – continuou o “Mister” – somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade… − interrompeu o “Filósofo”.

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do criador – comentou, com sarcasmo, a “Poetisa”.

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Ou então são confrangedoras! – ripostou a “Poetisa”.

− Sim, repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nas sextas-feiras treze, ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

− A minha teoria – volta à carga o “Filósofo – é a seguinte: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Poetisa”− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças… Aponta aí, ó “Filósofo”.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – diz a “Poetisa”.

− E quanto mais velhos, pior! – sentenciou o “Mister”. − Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Poetisa” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.


(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19208: A Galeria dos Meus Heróis (15): O "Bate-chapas" que queria ser fotocine... (Luís Graça)

domingo, 31 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18160: (In)citações (113): Os Sexalescentes do Século XXI, por Miriam Goldenberg (Artur Conceição)

Com a devida vénia à sua autora, Miriam Goldenberg, reproduzimos este seu artigo que nos enviou o nosso camarada Artur Conceição, um incentivo para que em 2018 continuemos activos, ocupando o corpo e a mente, por exemplo enviando para o Blogue as memórias de guerra e as fotos que "preguiçosamente" vamos guardando só para nós.


Os Sexalescentes do Século XXI

Por Miriam Goldenberg

"Se estivermos atentos, podemos notar que está surgindo uma nova faixa social, a das pessoas que estão em torno dos sessenta/setenta anos de idade, os sexalescentes é a geração que rejeita a palavra "sexagenário", porque simplesmente não está nos seus planos deixar-se envelhecer.

Trata-se de uma verdadeira novidade demográfica, parecida com a que em meados do século XX, se deu com a consciência da idade da adolescência, que deu identidade a uma massa de jovens oprimidos em corpos desenvolvidos, que até então não sabiam onde meter-se nem como vestir-se.

Este novo grupo humano, que hoje ronda os sessenta/setenta anos, teve uma vida razoavelmente satisfatória.

São homens e mulheres independentes, que trabalham há muitos anos e conseguiram mudar o significado tétrico que tantos autores deram, durante décadas, ao conceito de trabalho.

Procuraram e encontraram, há muito, a actividade de que mais gostavam e com ela ganharam a vida.

Talvez seja por isso que se sentem realizados! Alguns nem sonham em aposentar-se. E os que já se aposentaram gozam plenamente cada dia, sem medo do ócio ou solidão. Desfrutam a situação, porque depois de anos de trabalho, criação dos filhos, preocupações, fracassos e sucessos, sabem olhar para o mar sem pensar em mais nada, ou seguir o voo de um pássaro da janela de um 5.º andar...

Algumas coisas podem dar-se por adquiridas.

Por exemplo: não são pessoas que estejam paradas no tempo: a geração dos "sessenta/setenta", homens e mulheres, maneja o computador como se o tivesse feito toda a vida. Escrevem aos filhos que estão longe e até se esquecem do velho telefone fixo para contactar os amigos - mandam WhatsApp ou e-mails com as suas notícias, ideias e vivências.

De uma maneira geral estão satisfeitos com o seu estado civil, e, quando não estão, procuram mudá-lo. Raramente se desfazem em prantos sentimentais.

Ao contrário dos jovens, os sexalescentes conhecem e pesam todos os riscos. Ninguém se põe a chorar quando perde: apenas reflecte, toma nota e parte para outra...

Os homens não invejam a aparência das jovens estrelas do desporto, ou dos que ostentam um traje Armani, nem as mulheres sonham em ter as formas perfeitas de uma modelo.

Em vez disso, conhecem a importância de um olhar cúmplice, uma frase inteligente ou um sorriso iluminado pela experiência.

Hoje, as pessoas na idade dos sessenta/setenta, estão estreando uma idade que não tem nome. Antes seriam velhos e agora já não o são.

Hoje estão com boa saúde física e mental; recordam a juventude mas sem nostalgias parvas, porque a juventude, ela própria também está cheia de nostalgias e de problemas.

Celebram o sol a cada manhã e sorriem para si próprios. Talvez por alguma razão secreta, que só sabem e saberão os que chegarem aos 60/70 no século XXI"
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18152: (In)citações (112): Sobre a banda "Melech Mechaya": "Não fora a vertente cultural do blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné e eu teria perdido cerca de hora e meia de êxtase musical. Por serendipidade"... (Ernestino Caniço, médico, ex-alf mil cav, cmdt Pel Rec Daimler 2208, Mansabá, Mansoa e Bissau, 1970/71)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17010: Manuscrito(s) (Luís Graça) (111): O editor do blogue, artesão da palavra e da imagem, autor desta série, jubilou-se no dia 29 de janeiro de 2017, de tudo, exceto da vida, do amor, da amizade, da camaradagem... (Parte II)



Obrigado, a todos/as



por  Luís Graça (texto e fotos)



Tirando os narcísicos,
ninguém gosta de falar de si,
mas eu tenho a obrigação de dizer duas palavrinhas,
a quem teve a gentileza de me dar os parabéns
ao passar ao km 70 da minha autoestrada da vida.
Não só por educação, 
como sobretudo por amor, amizade ou camaradagem.


Todos gostam e não gostam de fazer anos.
No dia dos anos,
somos alvo de atenções, mimados, apaparicados, infantilizados,
voltamos a ser meninos…
Em contrapartida, é mais uma folha do calendário da vida
que, física e simbolicamente, arrancamos…
Setenta anos não é só um número redondo,
tem implicações na vida dos  aniversariantes, ou dos passantes.
O mais vulgar comentário que se ouve,
ao passar ao quilómetro 70, é:
“Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida”…





Diz a bioestatística 
que os felizardos, homens, com 70 anos,
a viver nesta parte do hemisfério norte,
têm ainda uns bons aninhos à sua frente…
Em Portugal, em 2014, a esperança média de vida, aos 65 anos,
era então de 17,3 e 20,7 anos,
para os homens e para as mulheres respetivamente…
Como a minha mulher, a "Chita",
é um pouco mais velha do que eu,
se as contas estiverem bem feitas,
podemos comprar o bilhete juntos,
para irmos juntos no barco de Caronte,
o tal que atravessa o rio na viagem sem regresso…
(Há uma exceção: os deuses e os heróis,
os tais que, não sendo deuses, são mais do que homens, 
podem comprar bilhete de ida e volta…)


A desvantagem de se fazer 70 anos 
é pensarmos mais vezes
no raio da viagem…
a que ninguém escapa.
Mas mais do que a morte física, é a "morte social"
que pode afligir quem faz 70 anos e se jubila…
A primeira vez que ouvi o termo, "morte social",
foi da boca de um saudoso amigo, psiquiatra,
meu companheiro da saúde pública, João Sennfelft.
A reforma é, para muitos, também a perda de estatuto,
de referências, de colegas de trabalho,
e sobretudo de trabalho. 
Em contrapartida, ganha-se a ilusão 
de se ser dono do tempo, 
das 24 hora do dia
a que se resume a nossa vida,
já que somos seres circadianos.
Na realidade, estamos a envelhecer
desde que nascemos: 
o relógio biológico está em nós, 
foi o que nos coube na lotaria genética,
já ao "relógio social", a esse, ainda lhe podemos dar alguma corda...








A minha querida Chita queixa-se 
de que está há 10 anos
à espera de mim…
para dar a volta ao mundo,
no tempo que nos resta.
Vamos lá a ver se o mundo, em contrapartida, 
não nos prega a partida
de fechar as portas aos “globetrotters”,
agora que os muros estão de volta,
para tentar travar, em vão, a globalização,
começada pelos portugueses há cerca de 600 anos…


Aos 70 anos os professores jubilam-se…
e vão para casa
(, tirando os heróis, que esses vão para o Olimpo).
Estranha ironia, a da origem etimológica da palavra:
Jubilar (-se) significa encher(-se) de júbilo ou de grande alegria.
Palavra que vem do latim “jubilaeus, jubilaei”, 
o ano do jubileu judaico...
E que era o jubileu entre os antigos hebreus ?
Era a remissão de servidão e e o perdão das dívidas,
que ocorria de 50 em 50 anos,
numa época em que a esperança média de vida deveria ser de 30,
na melhor das hipóteses.
Em suma, ao fim de 50 anos, eu deixava de ser escravo ou servo
e passava a ser um homem livre.
E, no caso de ainda estar endividado,
o usurário perdoava-me o resto da dívida e dos juros...
(Era bom que isto também se pudesse aplicar aos países, 
esmagados com a dívida pública...).


Por extensão, jubileu quer dizer: 
(i) quinquagésimo aniversário;
(ii) aniversário solene;
(iii) grande período de tempo;
e, entre os católicos, a (iv) indulgência plenária concedida pelo papa
em épocas fixas, e sob certas condições.



Querida Chita,
meus queridos filhos, 
meus irmãos, 
meus amigos, 
meus colegas,
meus camaradas:
reformado, jubilado, passo a estar perdoado,
de todos os meus pecados,
exceto do pecado original
de que carregarei a culpa, por toda a vida,
sendo também eu filho de Adão e Eva…
Jubilado, estou perdoado:
se fui mau pai ou amante, 
mau professor ou colega,
mau amigo ou camarada...
não me voltem, por favor, a relembrar o passado,
o meu cadastro hoje está limpo
e de certo modo posso pensar em começar
um outra vida, uma nova vida…
Por isso falamos hoje, na saúde pública,
no envelhecimento saudável,
e, mais do que ativo, proativo, produtivo…


Na véspera de fazer 70 anos,
podia dizer, com humor e propriedade,
que era o último dia da minha vida… profissional.
Hoje, jubilado, liberto do ónus da profissão,
posso descobrir que há mais vida
para além do que fazemos por obrigação
(e, nalguns casos, com satisfação)
que é trabalhar…
Se virmos a reforma por este prisma,
por esta janela larga (para outros, porta estreita),
então diremos que ela  é mais um tempo de oportunidade(s),
que não podemos desperdiçar…






Não basta dizer que passamos a ter mais tempo,
pelo contrário temos que aprender a saborear o tempo,
que é o único recurso que os seres humanos
não podem poupar, guardar, amealhar, mercantilizar…
Era bom que houvesse um disciplina de economia do tempo,
a par da economia da saúde,
para a gente, individual e socialmente, 
podermos dar mais valor ao único recurso que conta,
para quem, como nós, somos sermos finitos:
isto é, estamos aqui a prazo, 
e esta "terra da alegria", como diz o meu poeta Ruy Belo,
este planeta que habitamos,  não é nosso,
pertence aos nossos filhos e netos.


Aos 70 podemos acho que ganhamos o privilégio de poder dizer, 
como os velhos edonistas da antiguidade,
“carpe diem”, 
goza os dias…
Ora,  uma das coisas de que gosto, é, seguramente, escrever…
pois prometo escrever mais e melhor.
Gosto da vida... e das coisas boas da vida, 
pois prometo continuar a viver, e a gostar de viver,
e a transportar o fogo sagrado da vida...
Seguramente com outra filosofia de vida,
em que importa mais o ser do que o ter...
Prometo, enfim,  continuar a amar,
e a  tê-los/as, a vocês todos/as, no meu coração.



Não, não precisa, felizmente, 
de obras de remodelação e ampliação
este coração que ainda bate forte: 
tem assoalhadas para todos vocês,
meus amores, meus amigos, meus camaradas...
Está aberto para quem mais quiser entrar…


Last but not the least,
por fim e não menos importante,
deixem-me dizer-vos 
que a gratidão é das coisas mais belas no ser humano. 
E eu estou-vos grato,
comovidamente grato,
pelo amor, amizade, companheirismo 
que me têm manifestado
ao longo da minha vida,
nos bons e nos maus momentos da vida…








PS1 - Para os meus bravos camaradas de guerra,
permito-me acrescentar:
até ao fim da picada,
até ao quilómetro 100,
é sempre em frente,
só é preciso é ter  cuidado 
com as p... das minas e armadilhas da vida!


PS2 - Caros/as amigos/as da saúde pública:


No dia 29 de janeiro, atingi o km 70 km da minha autoestrada da vida...  Quiseram-me fazer uma festinha (a família e alguns amigos no próprio dia; uma boa parte de vocês, ontem, dia 31). Foi uma agradável surpresa, e eu fiquei feliz pela vossa manifestação de carinho e de amizade (, que é a melhor prenda que alguém me pode dar).


Do ponto de vista legal, deixo, a partir de agora, de ter um vínculo (laboral) à Escola, mas o mais importante é o património de memórias e de afetos que trago comigo (e que também fica convosco)... Sem nunca esquecer a missão principal dessa Escola, que é a de formar gente e produzir conhecimento no campo da arte e da ciência da saúde pública, permito-me chamar a atenção para aquilo que é (ou deve ser) o nosso traço de distinção na universidade: a educação (tal como a saúde) é uma coatividade relacional... E por isso que gostamos dizer: as pessoas, em primeiro lugar...


Um dia, um qualquer "Big Brother" vai ter a tentação (totalitária) de nos substituir por robôs, ou máquinas superinteligentes, a nós, professores, médicos, enfermeiros, e outros terapeutas... Quiçá mesmo, aos políticos, aos gestores, aos decisores, aos economistas... Nesse cenário (bastante verosímil), só restará fazer apelo à nossa condição de "homo sapiens sapiens" e lembrar-nos que só fomos bem sucedidos, enquanto espécie, porque tínhamos (temos tido) a enorme capacidade de aprender e sobretudo de aprender uns com os outros... Somos animais, primatas, terrivelmente territoriais e predadores, mas também, e sobretudo, sociais...

Não é um adeus, é um "até já"... Com um pé dentro e outro fora, continuaremos juntos a lutar para que a saúde pública não perca o "suplemento de alma" que faz toda a diferença.... Foi também a pensar em pessoas como vocês, mulheres e homens da saúde pública, generosos e talentosos, que me ajudaram a ser um melhor ser humano, que eu escrevi e publiquei, neste blogue, este texto singelo: "Obrigado, a todos/as". 

Luís Graça

Adapt. das palavras que disse em duas festinhas 
em que tive de apagar o bolo dos 70,
Hotel do Vimeiro, 29 de janeiro de 2017 / ENSP/NOVA, 31 de janeiro de 2017

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Nota do editor: