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sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22754: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XX: outras guerras, outros protagonistas: os mosquitos, as abelhas, as formigas, as matacanhas...



Foto nº 1


Foto nº 2 


Foto nº 3

Legendas: Foto nº 1 >  Bagabaga Baga Baga – Uma excelente proteção nos contactos no mato com o IN (e vice-versa!). Foto de autor desconhecido

Foto nº 2 > O Soldado Covas brincando com um dos habitantes do Cumbijã.  Cortesia do soldado Covas

Foto nº 3 > O cão rafeiro “Tigre” e a cabra “Joana”



 Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74 > A hortinha do José Carlos, estrategicamente plantada junto aos nossos chuveiros aproveitando a rega automática. 

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]







O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem pronto o seu livro de memórias (, a sua história de vida),
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua. Tem um pósfácio da autoria do nosso editor



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)




Parte XX -  OUTRAS GUERRAS, OUTROS PROTAGONISTA



Para além dos perigos inerentes a um conflito militar, outros, também difíceis de ultrapassar, nos eram colocados:

Os mosquitos (**)

Um inimigo duro, resiliente e nunca vencido. Muitas vezes nos atirando para a cama de um hospital com o paludismo. Lutávamos contra este inimigo implacável utilizando todas as armas disponíveis: rede mosquiteira, repelente, álcool, etc.

Desde muito cedo nos ensinaram que a melhor forma de os combater era... o álcool.

Um sargento, tarimbado e porventura já imune, depois de uma noite bem bebida, dormiu sem rede mosquiteira e de manhã era vê-los todos mortos, os mosquitos,... de “coma alcoólico”!

Tal como o IN, atacava, principalmente, ao cair da noite.

Com este inimigo nunca houve tréguas, nem mesmo depois do 25 de Abril (estavam-se “marimbando” para as revoluções!). A luta foi, implacável, do primeiro até ao último dia de Guiné.

As formigas Bagabaga (**)

Segundo estudo do camarada  Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), eram “térmitas (cupim) que construíam montículos de terra endurecida onde habitava toda a comunidade.  Estes montículos podem atingir até cerca de 8 metros de altura. Espécie de formiga esbranquiçada e de contornos e cabeça avermelhados que vive numa comunidade, aos milhares, uma comunidade organizada com Rei, Rainha, operárias e soldados, e que constrói o bagabaga com a secreção de saliva misturada principalmente com pó de terra fazendo daquela obra de engenharia, arejamento, climatização e arrumação, o seu habitáculo. Desconheço se foi a formiga bagabaga que deu o nome ao montículo ou se o bagabaga (montículo daquela formiga) é que deu nome à formiga”.

Atacavam pela calada, em silêncio, principalmente quando adormecíamos na mata. Entravam por todas as aberturas: Pernas das calças, mangas da camisa e pelo pescoço. Muitas vezes assisti ao desespero de camaradas a tirar toda a roupa e a coçar violentamente os “coisos” (e não só). Depois de se instalarem, era muito difícil desalojá-las. Muito mais difícil do que desalojar o IN na operação “Balanço Final”. Já “calejado”, sempre que dormia na mata, atava um nagalho nas calças e nas mangas e apertava o último botão da camisa.

As abelhas

Estas foram o único adversário que conseguiram desbaratar todo um grupo de combate que fugiu “covardemente” do terreno de batalha. 

O lema deste temível adversário era: Juntos somos invencíveis. Ouve-se lá ao longe em pequeno zumbido (o enxame), que se vai aproximando à medida que aumenta o pânico no grupo de combate, experimentado e disponível para outras guerras que não esta.

Tudo fica em silêncio para não denunciar a sua presença, não conseguindo disfarçar o “cagaço” que reina nas hostes.

De um momento para o outro, militares experimentados, com grande espírito de grupo (cujo lema é ninguém fica para trás), que colocados em situações de grande dificuldade nunca vacilaram ou fugiram, começam a gritar como crianças mimadas e assustadas, a chorar e a chamar pela mãezinha, largando a arma, mochila e tudo o que dificulta a fuga, sem saber para onde, procurando safar-se daquele horror, sem nunca pensar nos que ficam para trás, cada um por si.

Estavam já perto do destacamento, pelo que a maioria alcança-o em corrida louca com dezenas de abelhas coladas na cara e braços, com a estupefação do pessoal que os via chegar, sem arma, sem cinto, sem bornal e sem cantil, olhando para a orla da mata a confirmar se o IN vinha em perseguição. 

Felizmente não participei nesta cena “degradante” que atirou por terra todo o prestígio e respeito conquistado no teatro de operações

Um grupo de combate saiu para recolher todo o equipamento deixado na fuga e ajudar os que ficaram para trás (um militar nunca deixa outro militar para trás!) a regressarem ao quartel.


A Matacanha (**)

A matacanha é uma pulga minúscula, que penetra nos dedos dos pés e se desenvolve produzindo um saco de ovos que pode chegar a atingir o tamanho de um grão de milho. Tem de ser removida com habilidade, utilizando uma agulha fina. Alguns africanos eram de tal forma atacados pelas matacanhas, que acabavam por quase não conseguir andar. Eram então apelidados de calonjandas.

Depois de vários patrulhamentos, na época das chuvas, em bolanhas inundadas, comecei a sentir uma comichão no dedo grande do meu pé direito. Fui coçando supondo tratar-se de uma ligeira micose, comum nestas regiões. A comichão não passava e começou a afetar a minha marcha.

Tomei a decisão de consultar o nosso furriel enfermeiro, numa altura em que este estava a folhear, se a memória não me falha, uma revista de medicina, da especialidade de “anatomia” (penthouse) que o Martins lhe tinha emprestado. Mostrei-lhe o pé e, sem um Raio X, sem uma ressonância magnética ou análises à urina, atira-me, numa fração de segundos, o diagnóstico à cara:

- Temos aqui uma matacanha que precisamos de remover. 

Pensei, é desta que vou passar umas férias a Bissau, tratar de tal coisa que nunca tinha ouvido falar. 

 Ó Caetano! trata lá disso para ser operado o quanto antes em Bissau.
 Está bem  – dise  o Caetano–  dá cá o pé para eu fazer o relatório que te acompanhará até Bissau. 

Dou-lhe o pé e logo ele com a  da faca de mato, que desinfetou com uísque (creio que Ballantines) escarafunchou até encontrar o dito bicho que me colocou na palma da mão a “rabiar”. Ainda não foi desta que fui comer umas ostras a Bissau…

Nota: O Caetano afirma que me tirou a matacanha não com a faca de mato mas com uma agulha bem desinfetada com Whisky. É a palavra dele contra a minha…

Outros protagonistas bem mais pacíficos:

O Macaco-cão

Não havia saída para o mato em que não encontrássemos estes amigos babuínos, vítimas indefesas de uma guerra que que não era a sua. Eu ficava maravilhado com as suas acrobacias de árvore para árvore, alguns com os seus filhotes às costas. Eram grandes observadores repetindo gestos e procedimentos que viam nas nossas tropas. Cheguei a ver ao longe um grupo caminhando na picada mais parecendo um grupo de combate, descortinando um ou outro com um pau mais parecendo picadores.

Em emboscadas noturnas quando pressentiam um ruído estranho,  ladravam como uma matilha de cães. Era nossa convicção que estavam do nosso lado, “ladrando” quanto pressentiam que o perigo espreitava.

Há relatos de muitas vezes serem confundidos por grupos de IN com o descarregar de todas as munições sobre estas indefesas criaturas por tropa periquita ainda num processo de aprendizagem

Como era comum em quase todos os destacamentos, havia dois pequenos macacos no Cumbijã, sendo um deles companhia inseparável do furriel França, ainda periquito, do meu pelotão.

Da grande colónia de macacos com os quais convivíamos diariamente na altura, e que faziam as nossas delícias, de acordo com as informações que chegam de alguns cooperantes, com o consumo nas zonas rurais como subsistência e com o comércio organizado, já é muito raro encontrar esta espécie nas matas da Guiné.

Ainda hoje me repugna o facto de, com alguma probabilidade, ter comido em Aldeia Formosa macaco cão,

Como já referi num post anterior, fui convidado, por um Furriel africano, para comer uma cabra de mato (que estava divinal), que vomitei, depois do anfitrião ter declarado, no final do repasto: “Ainda bem que gostaram do macaco cão preparado por mim!”

Ainda hoje não sei se comi cabra de mato  ou macaca cão..

 O "Tigre" (***)

O nosso cão rafeiro e fiel amigo. Era o primeiro a dar sinal que algo ia acontecer, seja ataque ao arame ou flagelação. Era um “come e dorme” mas não deixava de estar presente sempre que alguém saía para o mato, assim como era o primeiro na “porta de armas” a receber-nos no regresso.

Habituado às carícias de toda a companhia não reagiu bem à chegada da cabra Joana que trouxemos de Nhacobá no dia da operação “Balanço final”

A "Joana" (***)

A simpática cabra que trouxemos de Nhacobá, no dia do assalto, passou a ser a dona do destacamento. Manteve até ao fim um relacionamento conflituoso com o rafeiro "Tigre", numa luta de “titãs” pelo poder.

No dia de abandonar o Cumbijã,  não deixamos de verter uma lágrima por deixar estes dois grandes e fieis amigos entregues à sua sorte.

Continua ...
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22711: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIX: As hortinhas... dos "durões"

(**) Vd. postes de 

20 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7012: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (1): Paludismo (Rui Silva)

26 de novembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7342: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (3): Formiga baga-baga (Rui Silva)

26 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7674: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (4): As abelhas (Rui Silva)

(***) Vd. poste de 1 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)

terça-feira, 4 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17205: "Expedicionários do Onze a Cabo Verde (1941/1943)", da autoria do capitão SGE José Rebelo (Setúbal, Assembleia Distrital de Setúbal, 1983, 76 pp) - Parte X: Foram mil e regressaram menos de quinhentos... Recordações do Fernando Pais, emigrado nos Estados Unidos da América





[44]


[42]



[43]


[45]

1. Continuação da publicação da brochura "Expedicionários do Onze a Cabo Verde (1941/1943)", da autoria do capitão SGE ref José Rebelo (Setúbal, Assembleia Distrital de Setúbal, 1983, 76 pp. inumeradas, il.) [, imagem da capa, à direita].(*)

José Rebelo, capitão SGE reformado, foi em plena II Guerra Mundial um dos jovens expedicionários do RI I1, que partiu para Cabo Verde, em missão de soberania, então com o posto de furriel (1º batalhão, RI 11, Ilha de São Vicente, ilha do Sal e ilha de Santo Antão, junho de 1941/ dezembro de 1943).

O nosso camarada Manuel Amaro diz do José Rebelo:

(...) "Por volta de 1960, fez a Escola de Sargentos, em Águeda e, após promoção a alferes, comandou a Guarda Nacional Republicana em Tavira, até 1968. Como homem de cultura, colaborava semanalmente, no jornal "Povo Algarvio", onde o conheci, pessoalmente. Em 1969, já capitão, era o Comandante da Companhia da Formação no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa." (...).

Não temos informações atualizadas sobre este nosso velho camarada que é credor de toda a nossa simpatia, apreço e gratidão. É pouco provável que ainda hoje seja vivo, mas oxalá que sim, tendo então a bonita idade de 96 ou 97 anos. No caso de já ter morrido, estamos a honrar a sua memória e a dos seus camaradas, onde se incluiram os pais de alguns de nós, mobilizados para Cabo Verde, por este e por outros regimentos.

A brochura, de grande interesse documental, e que estamos a reproduzir, é uma cópia, digitalizada, em formato pdf, de um exemplar que fazia parte do espólio do Feliciano Delfim Santos (1922-1989), que foi 1.º cabo da 1.ª companhia do 1.º batalhão expedicionário do RI 11, pai do nosso camarada e grã-tabanqueiro Augusto Silva dos Santos (que reside em Almada e foi fur mil da CCAÇ 3306 / BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73).


[Foto, à direita,  do então furriel José Rebelo, expedicionário do 1º batalhão do RI 11]


Trata-se de um conjunto de crónicas publicadas originalmente no jornal "O Distrito de Setúbal", e depois editadas em livro, por iniciativa da Assembleia Distrital de Setúbal, em 1983, ao tempo do Governador Civil Victor Manuel Quintão Caldeira. A brochura, ilustrada com diversas fotos, dos antigos expedicionários ainda vivos, tem 76 páginas, inumeradas. Por se tratar de zincogravuras, a qualidade das imagens que reproduzimos, infelizmente, é fraca ou muito fraca.

O batalhão expedicionário do RI 11, Setúbal, com pessoal basicamente originário do distrito, partiu de Lisboa em 16 de junho de 1941 e desembarcou na Praia, ilha de Santiago, no dia 23. Esteve em missão de soberania na ilha do Sal cerca de 20 meses (até 15 de março de 1943), cumprindo o resto da comissão de serviço (até dezembro de 1943) na ilha de Santo Antão.

As páginas que publicamos hoje [de 42 a 45] não vêm numeradas no livro. Destaque para a transcrição de um excerto do diário de um dos expedicionários, Fernando Pais (, entretanto emigrado na América):

"(...) A Ilha [do Sal] é seca, árida e arienta, outras vezes parece terra queimada, da sua origem vulcânica; andamos mil metros, temos a visão da miragem; depois essa miragem desaparece. Aqui não há hortaliças, nem legumes nem frutas, pois que ela não possui água, dado que não chove. A que existe  em pequena quantidade é salobra e salgada; os meus companheiros diziam que ela era boa, digestiva e purgativa, mas no fim de uns três dias tivemos que a deixar, pois as diarreias  de sangue e as fortes dores intestinais e depois as baixas à Enfermaria, onde os medicamentos próprios não abundavan, a tal nos obrigavam.

"Parece que a desolação e a morte caíram sobre algumas palhotas que enconteri num pequeno morro ao norte da Terra Boa, isto entre a Palmeira e a Pedra Lume" (...)

Para além de 16 mortos, o batalhão expedicionário do RI 11 terá tido um número impressionante de baixas por doença, cerca de metade, segundo o depoimento do nosso autor, o José Rebelo.Ao fim de 20 meses de permanência na Ilha do Sal, e na véspera de partir para a Ilha de Santo Antão, os expedicionários doOnze estavam reduzido a 16 oficiais, 22 sargentos e 460 praças...

Hoje quem escolhe a "ilha paradisíaca do Sal" como destino turístico, não faz a mínima ideia do que era esta "terra do demo" (José Rebelo) há três quartos de século atrás...

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Nota do editor:

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15778: Historiografia da presença portuguesa em África (69): evocação, na Assembleia Nacional, do 60.º aniversário da eliminação da doença do sono e erradicação das glossinas na ilha do Príncipe; intervenção, antes da ordem do dia, dos deputados Castro Salazar, Cancella de Abreu e Gardette Correia, em 16 de março de 1974



1. Portugal > Estado Novo > Assembleia Nacional > XI Legislatura > Sessão nº 40 > 15 de março de 1974 >

O sr. deputado [por São Tomé e Príncipe, José Maria de] Castro Salazar, médico,  do quadro comum médico do ultramar, com carreira em São Tomé e Príncipe e em Angola, n. 1922, em Guimarães], referiu.-se ao 60.º aniversário da eliminação da doença do sono e erradicação das glossinas na ilha do Príncipe. (*)


851 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 42

O Sr. Castro Salazar:

- Sr. Presidente, Srs Deputados. A doença do sono foi no século passado e no primeiro quartel do actual o flagelo que mais duramente atingiu as populações da África tropical e a responsável pelo despovoamento de extensas regiões e decadência de muitas outras, até então florescentes e prósperas
A tripanossomíase humana, vulgarmente conhecida por doença do sono, fez o seu aparecimento em África nos fins do século XVIII, sendo em 1803 assinalada pela primeira vez por Winterboton entre os escravos oriundos de Benin.  Em 1840 Clarke detectou a existência da doença na Costa do Ouro e na Serra Leoa, e em 1864 Kral e Bellay observaram-na entre os indígenas do Congo.

Supõe-se que só a partir de 1871 a afecção atingiu a província de Angola, tendo-se registado os primeiros casos nas margens do Cuanza, na região de Muxima e Quissama, foco inicial donde irradiou para outras regiões de Angola.

Na ilha do Príncipe a tripanossomíase fez o seu aparecimento em 1895, calculando-se que a mosca tsé-tsé, seu vector biológico, se tivesse introduzido na ilha trinta anos antes, proveniente da costa do Gabão, e por esse motivo é conhecida entre os seus habitantes como «mosca do Gabão». Foi contudo a partir de 1877, a seguir à chegada de serviçais oriundos da região de Cazengo e das margens do Cuanza, que a doença do sono começou a manifestar-se na ilha de forma epidémica, sendo já assustadora em 1885 a mortalidade por ela causada entre os serviçais das propriedades agrícolas, convertendo-se a breve prazo em autêntico flagelo para todos os habitantes da pequena ilha.

A população nativa, que em 1885 era constituída por 3000 pessoas, foi duramente atingida pela doença, ficando reduzida a 800 habitantes em 1900 e não contando em 1907 mais do que 350, pelo que se chegou a admitir a hipótese de um abandono total da ilha.

Entretanto, várias missões médicas se deslocaram ao Príncipe a fim de estudar e combater a doença Saliento a primeira dessas missões, constituída em 1901, na qual participaram, entre outros, dois eminentes médicos, os Drs Aníbal Bettencourt e Ayres Kopke, a qual desenvolveu obra meritória tanto nesta ilha como em Angola, onde se deslocou também. As investigações que os seus cientistas efectuaram no campo da etiopatogenia da doença do sono, muito embora não culminassem com a descoberta do agente infeccioso - este viria a ser descoberto um ano mais tarde por Castellani no sangue e líquido cefalo-raquidiano de indivíduos portadores da moléstia -, revestiram-se contudo de inegável valor científico

O Sr. Cancella de Abreu [, Lopo Cancela de Abreu, 1913-1990, médico, antigo ministro da saúde e assistência, set 1968 / jan 1970, no I Governo de Marcelo Caetano]: 

- Muito bem!

O Orador: 

- Foi, no entanto, para me referir, em breves palavras, à última missão enviada ao Príncipe para combater o terrível flagelo que tantas vítimas causou que eu pedi a palavra. Chefiada pelo Dr. [Bernardo Francisco] Bruto da Costa (**), actuou no Príncipe entre 1911 e 1914 e dela fizeram parte, além deste ilustre médico, os Drs Correia dos Santos, Firmino Santana e Araújo Álvares. 

A missão realizou uma notável, difícil e muitas vezes incompreendida campanha, cujo êxito foi absoluto, não só porque conseguiu debelar uma doença que por pouco não conduziu ao extermínio total da população, como levou à erradicação do insecto vector da doença - a mosca tsé-tsé ou glossina -, eliminando-se o perigo latente de futuras epidemias da terrível afecção Pela primeira vez no Mundo se conseguiu eliminar uma população glossínica no seu próprio habitat, facto verdadeiramente notável que muito prestigiou os nossos serviços médico-sanitários e honrou o País. 

Tal acontecimento teve lugar justamente há sessenta anos, e eu não queria deixar de o lembrar perante VV. Ex.ªs e, ao mesmo tempo, prestar justa homenagem a quem, com invulgar inteligência, saber e determinação, tornou possível o perfeito êxito da campanha - o médico dos serviços de saúde do ultramar Dr Bruto da Costa.

O Sr Gardette Correia [ , Manuel Gardette Correia, natural de Bissorã, deputado pela Guiné, médico]: 

- Muito bem!

O Orador: 

- Há dias, na Academia das Ciências, o Prof [João] Fraga de Azevedo, em oportuna comunicação, louvou a actividade enérgica e modelar do Dr Bruto da Costa e seus colaboradores, que levou com a maior originalidade a uma das mais brilhantes campanhas sanitárias em África, realizada por Portugal no campo da medicina tropical.  Também em livro recentemente publicado, Man Against Tse Tse - Strugle for África  , Cornell University Press; First Edition edition, December 1973], o seu autor, John J McKelvey Jr, presta homenagem ao esforço desenvolvido pelos cientistas portugueses no estudo e combate às tripanossomíases, pondo em realce o trabalho levado a cabo pelo Dr. Bruto da Costa na eliminação da doença do sono e erradicação das glossinas na ilha do Príncipe.

O Sr Cancella de Abreu: 

- V Ex.ª dá-me licença?

O Orador: 

- Com muito gosto.

O Sr Cancella de Abreu: 

- Associo-me plenamente à homenagem que V. Ex.ª está prestando aos cientistas nacionais que deram um contributo tão válido para o combate à doença do sono. Essa homenagem é não só devida por nós, nacionais, mas teve também uma repercussão internacional, que não é demasiado aqui referir neste momento

O interruptor não reviu

Vozes: 

- Muito bem!

O Orador: 

- Muito obrigado, Sr. Deputado Cancella de Abreu, pela sua achega, que veio, de certa maneira, valorizar esta minha comunicação.

A propósito, seja-me permitido dizer que o autor se refere larga e elogiosamente à segunda campanha de erradicação da mosca do sono na mesma ilha - reintroduzida muito provavelmente a partir da Guiné Equatorial, quarenta anos após ter sido capturada a última glossina no Príncipe, em 1914 -, realizada pela Missão de Combate às Glossinas da Ilha do Príncipe no curto espaço de dois anos (1956-1958) e utilizando métodos que não coincidiram com os da campanha anterior.


852 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 42

O Sr. Gardette Correia: 

- V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: 

- Com certeza.

O Sr. Gardette Correia: 

- Eu, como guineense e chefe da Missão de Combate às Tripanossomíases da Guiné, não poderia de forma alguma ficar insensível ao seu discurso e sobretudo às grandes referências que vem fazendo acerca da erradicação da doença do sono na ilha do Príncipe.

No que diz respeito a esta afecção, gostaria de esclarecer a Câmara de que não conheço em toda a África uma campanha semelhante à que Portugal vem fazendo em todo o território ultramarino.

Vozes: 

- Muito bem!

O Sr Gardette Correia: 

- Na realidade, e eu posso dar números, na Guiné, em 1945 foram apanhados dois mil quinhentos e tal doentes e em 1973 apenas encontrámos quinze doentes, dos quais cinco da República da Guiné, do Senegal e da Zâmbia.

Isto quer dizer que apenas temos dez doentes, os quais não foram tratados ou não se submeteram ao tratamento que nós temos vindo a fazer. Essa é a grande vitória de Portugal no ultramar, precisamente no campo da doença do sono, que conseguiu dominar na ilha do Príncipe e em S. Tomé. Contudo, na Guiné é impossível falarmos na erradicação, temos de falar antes num controle, e podemos dizer que a doença hoje está absolutamente controlada, absolutamente dominada.

Quanto aos cientistas que realmente contribuíram para a erradicação desta doença, V. Ex.ª falou no nome de Fraga de Azevedo, mas não nos podemos esquecer dos nomes do Sr. Prof. Cruz Ferreira, do Sr. Prof. Salazar Leite, Profs. [Janz ] [e não Ians, Guilherme Jorge Janz] e [Francisco] Cambournac, que realmente muita contribuição deram para a erradicação e controle desta doença em África.

O interruptor não reviu.

Vozes: 

- Muito bem!

O Orador:

 - Muito obrigado, Sr Deputado. Eu associo-me à homenagem que está a prestar aos cientistas que enumerou. Eles estavam realmente no meu pensamento, mas a índole do trabalho não permitia que a eles me referisse.



A mosca Glossina palpalis (conhecida como "mosca tsé-tsé"), vector da doença-do-sono. Por Mr. Tam Nguyen - American Museum of Natural History, in New York City, USA., CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=215445 [in Wikipédia > Doença do sono]


A Missão limitou os seus trabalhos ao estudo da biologia das glossinas e sua erradicação do território,
já que o exame clínico e laboratorial de toda a população levara à conclusão da não existência de tripanossomíase humana. No entanto, a permanência na ilha do vector biológico da doença do sono constituía indubitavelmente uma séria ameaça que tinha de ser eliminada. Não cabe aqui descrever os trabalhos que conduziram pela segunda vez à erradicação das glossinas no território, mas sim lembrar que o êxito da missão se ficou devendo ao eminente professor do Instituto de Medicina Tropical Fraga de Azevedo (***), que chefiou, e ao Dr. Manuel da Costa Mourão, seu mais directo colaborador, nomes que, com o do Dr. Bruto da Costa, são credores da gratidão do povo, que nesta Câmara represento, e da admiração de todos nós.

Vozes: 

- Muito bem!

Fonte: Excerto, com a devida vénia > República Portuguesa > Secretaria-Geral da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa > Diário das Sessões > Nº 42 > 16 de março de 1974, pp. 851-852

[ Seleção / revisão / fixação de texto / notas: LG]
_______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15569: Historiografia da presença portuguesa em África (68): As colónias portuguesas: a província da Guiné, vista em 1884, em livro da biblioteca do povo e das escolas (Lisboa, David Corazzi, Lisboa, 2ª ed.) - II (e última) parte (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

(**)  Vd. COSTA, Bernardo Francisco Bruto daVinte e três anos ao serviço do país no combate às doenças em África / Bernardo Francisco Bruto da Costa. - Lisboa, 1939. - XIV, 208 p.

(***) Vd.  AZEVEDO, João Fraga deA erradicação da Glossina palpalis palpalis da Ilha do Príncipe (1956-1958) / J. Fraga de Azevedo, M. da Costa Mourão, J. M. de Castro Salazar. - Lisboa : Junta de Investigações do Ultramar, 1962. - 181 p. : il. ; 23 cm. - Estudos ensaios e documentos. 91)

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12528: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (17): Doença do sono: investigação sobre conhecimentos, atitudes e comportamentos (Luís Costa, Universidade de Coimbra)


A mosca tsé-tsé  (vocábulo que vem do banto), transmissora da Doença do Sono. Fonte: Wikipédia (reproduzida com a devida vénia...)


1. Do investigador da Universidade de Coimbra, o antrópologo Luís Costa, com datas de  3 e 4 do corente:


(i) Bom dia.

Sou investigador da universidade de Coimbra a realizar investigação sobre a doença do sono na Guiné no tempo colonial.

Pedia se tem conhecimento ou conhece alguém no seu circulo de antigos combatentes na Guiné (enfermeiros, médicos, ou outros militares) que pudessem falar sobre a doença, a Missão do Sono, e os serviços de saúde (militares e civis) na Guiné colonial.

Peço-Lhe AJUDA, para poder aceder ao testemunho importante de pessoas importante para a minha investigação.

Cumprimentos, Luís Costa


(ii) Obrigado pela Vossa ajuda.

Esta investigação é de cariz histórico/ antropológico, pelo que todas as informações são importantes.

Prof. Luis Graça, sabe de alguma documentação/ arquivo onde possa ter acesso a como eram os serviços de saúde no tempo da Guiné colonial?

Agradecia a divulgação no vosso blogue, pois talvez encontre pessoas que me possam dar informações preciosas.
Muito obrigado, Luis Costa

2. Respostas do nosso editor L.G.:

(i) Luís Costa: OK. Obrigado. Vou ver o que há (**)...Podemos fazer um apelo à malta do blogue. Em Bambadinca, havia a "Missão do Sono", desativada. Passei lá muitas noites... com os meus soldados africanos... Depois do ataque a Bambadinca, em 28/5/1969, a "Missão do Sono" (uma morança, no reordenamento de Bambadincazinho) passou a ser, de noite, guarnecida por um Grupo de Combate, funcionando como segurança imediata do quartel de Bambadinca (que ficava a menos de 1 km)... Um abraço. Luis

(ii) Luís: Eu nessa altura não estava... na saúde. Mas vamos fazer o nosso melhor para encontrar fotos e documentos que são relevantes para o seu trabalho ou deem algumas pistas... Para já fica a saber que havia em certas circunscrições e postos administrativos, no chão fula (caso de Bambadinca) "Missõesdo Sono" (... mas já desativadas quando eu lá cheguei, em Julho de 1969)... Os fulas, como sabe, são grandes criadores de gado...

Um abraço. Luis Graça

3. Comentário final de Luis Costa

Bom dia Prof. Luis,

Bambadinca deveria ser o caso de uma Tabanca-Enfermaria, como outras existentes na Guiné. No que diz respeito aos antigos militares, interessam-me muito especialmente questões como: 

(i) o que sabiam da doença quando partiam de Portugal? tinham alguma preparação prévia? (já houve um militar que me disse que eram todos vacinados contra a mosca tsétsé...) (***):

(ii)  representações, medos e receios da doença no terreno;

(iii) se alguém teve/ ou viu a experiência da doença, etc, etc...

Devo ir no próximo ano à Guiné fazer investigação no terreno e decerto a zona dos fulas e mandingas (Bafatá e Gabú) será uma das minhas atenções, não só por a doença atingir as pessoas, mas também os animais....

Numa investigação antropológica, são todas estas representações sociais e práticas culturais em torno da doença que me interessam.

Muito obrigado pela sua ajuda, Luis Costa

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Notas de leitura:

(*) Último poste da série > 11 de novembro de  2013 > Guiné 63/74 - P12277: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (16): Foto(s) do antigo edifício da Casa Gouveia, no Cacheu, precisa(m)-se... Agora em recuperação, nele será instalado o futuro Memorial da Escravatura... Cacheu foi também o berço do crioulo.

(**) Vd. postes de:

27 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12511: Notas de leitura (547): "Portugal em África", por Richard Pattee (Mário Beja Santos)

30 de junho de  2011 >  Guiné 63/74 - P8492: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (6): A Doença do Sono (Rui Silva)
(***) Para saber mais sobre a doença do sono, procurar aqui, no sítio do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa

domingo, 12 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > "No Saltinho, as bajudas continuam lindas, ontem, como hoje", escreveu o José Teixeira, quando lá voltou em Abril de 2005. Mas esta é (ou era, no nosso tempo) também uma região palúdica, devido à existência de rios e charcos de água, acrescenta o nosso David Guimarães, vítima do paludismo, como quase todos nós...

Foto: © José Teixeira (2005).Todos os direitos reseravdos


1. Texto do David Guimarães (ex-fur mul, at inf, minas e armadilhas,  da CART 2716, Xitole, 1970/1972),  um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?). Este que reproduzimos a seguir foi o 480 (*). É mais uma das suas estórias do Xitole, escritas no seu português castiço, e que retratam bem o quotidiano de um operacional de uma unidade de quadrícula (**).



Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir?

Claro que não vou explicar o que é picar - não será necessário, antes fosse... O picar na tabanca era bem melhor, maravilha mesmo... Agora picar aquela estrada toda até ao Jagarajá, porra, que grande merda!... Na tabanca sempre era melhor, era pelo menos algo bem diferente do que ir a servir de rebenta minas...

Pois é, a grande operação, a saída da rotina. Depois havia que manter a guarda de manhã até à noite... É que, quando a coluna vinha para o Xitole, então também se ia ao Saltinho. Ufa, que grande merda, mas tinha que ser...

O Quaresma, o Santos e eu vivíamos os três na altura no mesmo apartamento do Xitole - um à esquerda, outro à direita e eu ao centro... Sempre simples e amigo da brincadeira, eu via os dois desgraçados com uma camada de paludismo a vomitarem e eu lá no meio a acalmá-los:
- Vocês são uns merdas, não valem nada... Pois, não fazem o que eu digo!.. Apanham isto por que não bebem. Quem bebe bem, safa-se!

E eles, coitados, riam e choravam ao mesmo tempo, e seguir lá vomitavam o que não tinham no estômago. O paludismo era assim... Bem, lá me levantava eu de manhã e lá ficavam eles na cama... Eles já tinham o cu como um crivo, só das injecções.
- Porra!, - dizia eu - quem dera nunca me dê esta merda...

Bem, mas eles melhoravam e eu estava bom, antes assim. São meus amigos, faço-lhes companhia e trago-lhes o correio... É verdade e lá parto de manhã, um belo dia, para a dita operação de segurança à coluna que vinha de Bambadinca...

- Ai, que bom não ser eu a picar, ainda bem!

Nos revezávamo-nos entre os três grupos de combate em cada coluna: ia um até ao Jagarajá, outro ficava no ponto intermédio e o outro adiante da Ponte dos Fulas, aquela ponte a 3 Km do Xitole onde estava sempre um grupo de combate. Esse limitava-se a ver passar o comboio... e a tomar conta da ponte, claro...

Bem, lá fomos nós por ali adiante, os três grupos, o meu no meio. Eu, como sempre levei duas Fantas -cerveja só no Xitole - enfim uma ou outra coisita da ração de reserva e doces, nem vê-los... É que aquelas geleias e coisas mais doces da ração atraía a nós uns mosquitos chatos e sobretudo umas formigas que ferravam e não nos largavam. Quantas vezes tivemos que as tirar das zonas púbicas - que bem que está a falar um ex-militar!... Quantas vezes tivemos que arrear as calças, para essa aflitiva operação!... Mas essa era outra guerra, paralela à coluna...

Lá progredimos e começámos a instalarmo-nos, ao lado da estrada, metidos uns 20 a 30 metros dentro do mato... Depois ali era esperar, esperar que os motores se começassem a ouvir e as viaturas a surgir, envoltas em nuvens de poeira:
- Aí vem a coluna!...

Já tínhamos morto umas centenas de moscas pequeninas que vinham fazer cócegas onde havia mais suor. O pulso era um dos seus alvos preferidos, mesmo na zona da correia do relógio...

Uma vez instalado, eis que me deu sede... Bebi uma Fanta, quase de um só gole. Ao mesmo tempo deu-me um frio danado, vomitei a bebida de imediato e tiveram que me cobrir com um camuflado. Comecei a tremer como varas verdes - não, dessa vez não era com medo, era com frio, arrepios de frio, no meio de um calor do caraças... Tive ainda forças para dizer:
- Lopes (era um cabo da minha secção), comande esta merda e meta-me na primeira viatura que aparecer... Estou com paludismo...

Porra, que eu nem forças tinha para me pôr de pé. Lá vim para a estrada, apoiado no cabo, até que enfim se ouve o trabalhar dos motores, as viaturas das colunas... O cabo mete-me na primeira...
- Sobe, diz o oficial.



Guiné > Zona Leste >Ector L1 >Xitole > 1970 > A coluna logística mensal de Bambadinca chega ao Xitole... Em cima da Daimler, ao centro o alferes miliciano de cavalaria Vacas de Carvalho, comandante do pelotão Pel Rec Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71); à sua direita, o furrriel miliciano Reis, da CCAÇ 12, à sua esquerda o furriel miliciano enfermeiro Godinho, da CCS do BART 2917, mais o furriel miliciano Roda, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados


E lá fui eu a tremer até ao Xitole, a bordo o de uma viatura... de Cavalaria, a autometralhadora Daimler do Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler... Esse mesmo, o da fotografia, espero que não tenha sido nesse dia mesmo que eu fiquei doente; julgo que na altura lhe agradeci a boleia, mas se o não fiz, devido ao estado febril em que eu me encontrava, ainda vou a tempo, trinta e seis anos depois:
- Obrigado, meu alferes! Foi a melhor boleia, a mais oportuna, a mais rápida, que eu apanhei na puta da vida! Mesmo à justa!...
Bom, o resto da estória é fácil de imaginar: enfermaria, uns comprimidos e cama -  uma semana de baixa!... Ai que bom, nem precisei de injecções... Aí naquele quarto de hotel de cinco estrelas, o que o Santos e o Quaresma - falecido pouco depois, uma história negra que hei-de aqui contar  -  me disseram!
- Então, seu caralho, tu é que eras o bom!...
- Por favor, deixem-me em paz! - pedia-lhes eu...

A guerra naquela zona sempre foi tremendamente difícil. Sei que o Xitole era das zonas da Guiné que mais problemas tinha com o caraças do paludismo: tínhamos muito charcos de água e dois rios bem perto, o Corubal e o Poulom, aquele da ponte dos Fulas... Chegámos a ter muita gente acamada ao mesmo tempo e não dávamos descanso à enfermaria...

Como estão a ver na guerra apanhava-se de tudo: boleias de Daimler, picadas de formigas, moscas e mosquitos, paludismo, além da porrada... Em matéria de picadas, também as fiz, picadas à pista de aviação de Bambadinca... Mas isso é outra estória, que fica para uma próxima...

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Notas do editor:

(*) Originalmente publicad na I Série > 27 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXX [480]: Uma boleia na Daimler do Vacas de Carvalho (Xitole, David Guimarães)

(**) Último poste da série > 24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ   > Um enfermeiro "rigoroso e... despachado"...



1. Continuação do texto publicado anteontem, da autoria do Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) (*) [, foto atual à direita,]:

Já era noite fechada em Bula quando o Teixeira, meu soldado maqueiro, veio ao bar dizer-me:
– Furriel, está uma mulher à porta de armas a pedir para tratarmos o filho.
– Já lá vou.
– Mas, ó furriel, olhe que o miúdo se não está morto, parece.
– Leva-a para a enfermaria que eu é só acabar o café.

 Fui de seguida. Em Bula, a enfermaria ficava muito próximo da porta de armas. O bar de sargentos era lá mais para os fundos do aquartelamento. Quando cheguei lá acima, os olhos muito brancos e muito abertos da mulher mandinga, agitavam-se numa correria, ora na minha direcção, ora na do filho que apertava contra o peito. Estendi-lhe os braços pedindo-lhe que me o entregasse. Aquele corpo quase inerte ardia em febre.
– Teixeirinha, vai lá abaixo chamar o doutor e tu, João, arranja-me aí alguém que me ponha a falar com a mulher.

Não lhe conseguimos arrancar uma palavra. Só olhava para o filho, em desesperado silêncio. Chegou o doutor, o alferes miliciano Chaves Ferreira.
– Ó doutor, ela não disse nada mas aqui o Braima, que a conhece, diz que o rapaz tem aí uns cinco ou seis anos e que já deve estar com uma carrada de paludismo há vários dias. Devem ter-lhe feito as mezinhas todas, mas como não resultou trouxe-o aqui.

O doutor Chaves Ferreira era um homem alto que falava em voz baixa.
– O puto está bera, pá – disse-me ele depois de o ter examinado.
– E o que lhe fazemos ? – perguntei-lhe.
– Para já temos que lhe baixar a febre e metê-lo a soro. Depois deitamo-nos a inventar porque para tratar pneumonias é que nós não temos aqui nada. E para um puto desta idade, ainda menos.

Uma pneumonia. Bonito sarilho. Aquele peito franzino nem parecia respirar. Antipirético LM (laboratório militar) partido aos quartos e diluído em água, com uma seringa metido na boca aos poucos e devagar, e a agulha mais fina do tacho de esterilização, capaz de pegar a veia onde entrasse o soro.

E agora?
– Ó doutor – disse-lhe eu – devíamos levar o miúdo para Bissau.
– Pois devíamos – concordou ele – mas a esta hora como é que o levas, a nado?

Entre Bula e Bissau interpunha-se, como sabemos, o rio Mansoa.
– Se o doutor der uma palavrinha ao nosso Comandante, talvez ele concorde em pedir uma evacuação.
Vou lá a baixo falar com ele e tu põe-te de olho no rapaz e vê se lhe baixas a febre.
– Se não baixar com o LM, o que faço?
– Lava-o com água fria.

O Chaves Ferreira saiu e eu pedi ao João, outro dos meus maqueiros, que fosse ao bar buscar um balde com gelo. Enchi de água a tina esmaltada que na enfermaria servia para lavar as mãos e lá dentro meti o gelo que o João trouxera. Na água fria ensopámos um lençol e com ele lavámos o corpo do miúdo.

Quando o doutor regressou foi para me dizer que estavam a tentar a evacuação. Ficámos ali, com o doutor a conjecturar no que mais podia fazer, quando o Machado, o meu cabo-enfermeiro, quase gritou:
– Ó doutor, o miúdo apagou-se.

Saltámos que nem molas. Aquele peito frágil desapareceu no interior das mãos do doutor, que o pressionou, e uma, e duas, e três, “já o tenho”, disse ele, ao mesmo tempo que o miúdo parecia bolsar, “é especturação, vê lá se a tiras que o está a impedir de respirar”, pediu-me enquanto lhe comprimia o peito, como se de dentro dele quisesse expulsar o mal. Tentei um estilete de punção com compressa na ponta, mas o resultado foi fraco. Lembrei-me, então, de ir buscar um tubo de plástico, daqueles para administrar soro, abri-lhe uma ponta a sugerir maior espaço de sucção, na outra ponta do tubo introduzi aquelas borrachas que serviam para lavar os ouvidos, e fui aspirando, aspirando, enquanto o doutor, com o rapaz deitado de lado, ajudava com secas palmadas nas costas.

E disse então o médico:
– Calma, pá, deixa lá agora o gajo descansar.

Foram momentos de grande aflição. Apareceu o [João] Vinagre, alferes miliciano de informações, da CCS [, BCAÇ 2861], para nos dizer que havia a possibilidade de evacuar o miúdo na DO que de manhã iria distribuir o correio pelo sector.
– Ó alferes, mas isso só lá para o meio dia é que o puto vai para Bissau.
– É o mais certo  – retorquiu-me ele.
– E, entretanto, apaga-se-lhe o maçarico.
– O que é que queres que eu faça?
– Se o meu alferes pedisse uma secção à [CCAÇ] 2466 e ao capitão Monge [, do EREC 2454
que disponibiliza-se uma Panhard, a gente logo às seis horas levava o miúdo para Bissau.
– Ó doutor – disse o Vinagre para o Chaves Ferreira – aqui para o seu enfermeiro é tudo facilidades.
– É, pá – foi a vez do doutor falar ao Vinagre  – mas olha que a ideia do gajo não está mal vista.
– Pois, talvez, mas falta convencer o homem da jangada a vir buscá-los a João Landim.
– Aí, falo eu outra vez com o Comandante.


Saíram os dois e eu também. Fui à procura da malta da 66 [, CCAÇ 2466,] e o primeiro a encontrar foi o Furriel Gomes.
–  Ó Gomes, preciso de ti, pá.

Expliquei-lhe o que se estava a preparar e ele respondeu-me que, desde que o capitão autorizasse, com a equipa dele podia contar. Fui ao comando, lancei ao Vinagre  o polegar virado para cima, “secção já temos”, correspondendo-me ele com a informação de que Panhard também. Estava o Comandante a tratar de resolver o problema da jangada.

Reunimo-nos, de novo, na enfermaria. A febre do rapaz baixara, enfim. A barriga parecia menos apressada na sua tarefa de ajudar os pulmões a trabalhar. Sentada na mesma cadeira onde eu a mandei sentar quando chegou, estava a mulher mandinga, a mãe do rapaz. Aquele rosto era só angústia. Chamei o Braima, que cuidava das limpezas e arrumações da enfermaria, pedi-lhe para dar água à mulher e me traduzir. Disse-lhe o que o filho tinha, o que fizemos e o que íamos fazer. Só ela não disse nada. Ela só queria o filho, de novo, encostado ao peito e a respirar com ela.

Adicionar legenda
Veio o alferes Vinagre para nos dizer que a jangada estava garantida. Era só chegar a João Landim [, foto à esquerda], enviar o sinal e ela vinha logo buscar-nos. Até lá, foi continuar a lavar o rapaz com a água fresca, mais um quarto de LM, o doutor Chaves Ferreira a dar-lhe umas palmadas nas costas e eu, com o meu improvisado instrumento, a tirar-lhe a especturação possível da garganta.

Às seis da manhã, eu, o soldado maqueiro Teixeira, e a mãe do rapaz, entrámos com ele para a ambulância. Com a Panhard à nossa frente e a secção do Gomes atrás, fizemo-nos ao caminho, em direcção a João Landim. Mal lá chegados ouvimos o roncar do motor da jangada a iniciar a travessia do Mansoa. Logo que acostou, subiu apenas a ambulância porque do lado de lá era só andar depressa.

Entreguei o jovem mandinga no Hospital Civil de Bissau, talvez não fossem ainda oito horas da manhã.

Muitos dias passados, o Machado, com um sorriso de orelha a orelha, veio ter comigo e disse-me:
– Furriel, sabe quem é que está ali à porta para falar consigo? A mãe do miúdo que a gente levou para Bissau.

Lá estava ela, à porta da enfermaria, com o filho pela mão. Tirou o safeu que o rapaz trazia cruzado no peito e entregou-mo.
– Para furriel ter sorte.

Foi a primeira vez que a ouvi falar e, julgo, foi a primeira vez que lhe vi uma lágrima nos olhos.

Dou comigo a pensar como foi possível, com todos estes acontecimentos, nem o nome da mãe, nem o nome do filho, terem ficado registados na memória. Presente na memória dos meus dias, ficou apenas o safeu. Quando abro a minha caixa dos segredos e o vejo lá dentro, gosto de lhe sorrir.


De ontem e para sempre, o meu safeu

Texto, fotos (e legendas): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.

[Com este relato,  quero homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Vinagre, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.]

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Nota do editor:

(*) Último poste da sério > 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9130: Se bem me lembro... O baú de memórias do José Ferraz (12): Os azares de um Primeiro, periquito, que apanhou a Flor do Congo, na sua primeira viagem a África...

1. Outra história do Zé Ferraz, português radicado nos EUA desde 1970 (vive atualmente em Austin, Texas), ex-Fur Mil Op Esp, CART 1746 (Xime, 1969; CCS/QG, Bissau, 1969/70)(*)


Durante os fins de semana trabalho dois turnos por dia,  sábados e domingos,  16 horas respectivamente, num centro de reabilitação (para homens) a que clinicamente se chama aqui Men's Intensive Residential Treatment,  com uma duração  de 28/30 dias por paciente. Portanto tenho tempo para me entreter.

O Blogue ajuda-me psicologicamente a distanciar-me emocionalmente destes doentes e evitar as chamas Transfer and countertransfer issues... E é evidente que, à medida que me embrenho a ler os postes,  a minha memória acorda e é um ver se te avias...

Lembrei-me hoje de outra anedota nos meus tempos do QG-CTIG...

Apareceu na messe de sargentos  um Primeiro,  periquito,  recém chegado de Lisboa. Aparentemente ninguém conhecia; nem os outros Primeiros porquanto este pobre tipo tinha passado a maior para do seu serviço na Guarda Nacional Republicana que eu detestava por experiências passadas quando nós,  como estudantes,  nos anos 60,  fazíamos manifestações contra a ditadura do Salas... Enfim essa e outra história...

Ora bem,  o nosso Primeiro nunca tinha estado em África e muito menos com a nossa malta... Era como um camelo a olhar para um palácio...

Um dia, à conversa,  ele pergunta-me, em tom de confidência:
- Ó nosso Furriel, eu tenho um problema e não sei o que fazer...
- Ó meu Primeiro - disse-lhe eu - conte-me lá o que se passa a ver se eu o posso ajudar...

Diz-me ele:
- É que nestes últimos dias me apareceu esta merda nos sovacos e nas virilhas que me dá muita comichão e cheira mal,  há tres dias que não tomo banho...
- Ó meu Primeiro - respondi-lhe eu - o que o senhor apanhou é o que nos chamamos a Flor do Congo... É uma micose...
_ E, o nosso Furriel,  isso é perigoso?...
- Muito! - disse eu...
E agora pergunta o Primeiro:
- O que é que eu faço ?...
- Bom - disse-lheu - a Flor do Congo é um fungo e o que o senhor precisa é de lavar o corpo todo com água pura... Por exemplo,  o senhor compra o sabão encarnado e, como estamos na época da chuva,  quando estiver chover bem,  o primeiro ensaboa o seu corpo com o sabão e depois deixa que a chuva lave o corpo....

Passados uns dias aí estava o Primeiro,  nu em pelota,  fora do seu quarto,  na rua que passava em frente da messe de sargentos e ia para a messe de oficiais,  a lavar o corpo com o sabão encarnado e a malta na messe,  todos a rir...
- Ó Furriel como é que eu lavo a rego do cu ?... - Dizia-lhe eu:
- Meu Primeiro,  dobre-se prá frente,  ponha-se de cu pró ar e deixe que chuva lhe lave o cu ...

Mais gargalhas e o Primeiro nem se quer se deu conta .... Nisto, era noite, aí vem um carro, dá a curva e os farois batem no cu branquinho do Primeiro,  periquito ...
Mais gargalhas... O problema,  ouvimos mais tarde,  foi que a esposa de um oficial era passageira nessa viatura e aparentemente ficou mal impressionada com a brancura do cu do Primeiro e,  possivelmente o resto que viu,  porque o Primeiro não se perturbou com nada,  o que ele queria era ver-se livre da comichão...
Um forte abraço, Zé.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 1 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9123: Se bem me lembro... O baú de memórias do José Ferraz (11): Uma cena do Júlio, em combate: Furriel, os meus t... ?!

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8492: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (6): A Doença do Sono (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 16 de Abril de 2011:

Caros Luís e Vinhal
Envio em anexo o meu último capítulo da série “Doenças e outros problemas de saúde…”, desta feita tratando-se da Doença do sono.


Recebam um grande abraço extensivo ao nosso querido amigo Magalhães Ribeiro e a outros co-editores e colaboradores do Blogue.

Para toda a Tertúlia também.
Rui Silva

2. Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

DOENÇAS E OUTROS PROBLEMAS DE SAÚDE (ou de integridade física) QUE A CCAÇ 816 TEVE DE ENFRENTAR DURANTE A SUA CAMPANHA NA GUINÉ PORTUGUESA (Bissorã – Olossato – Mansoa 1965/67)

(I) Paludismo (P7012)
(II) Matacanha (P7138)
(III) Formiga “baga-baga” (P7342)
(IV) Abelhas (P7674)
(V) Lepra (P8133)
(VI) Doença do sono

Não é minha intenção ao “falar” aqui de doenças e outros problemas de saúde que afligiam os militares da 816 na ex-Guiné Portuguesa imiscuir-me em áreas para as quais não estou habilitado (áreas de Medicina Geral, Medicina Tropical, Biologia, etc.) mas, tão só, contar aquilo, como eu, e enquanto leigo em tais matérias, vi, ajuizei e senti.

Assim:

As 4 primeiras, a Companhia sentiu-as bem na pele (ou no corpo). As 2 últimas (Lepra e Doença do sono), embora as constatássemos - houve mesmo contactos directos de elementos da Companhia com leprosos (foram leprosos transportados às costas, do mato para Olossato nas tais operações de recolha de população acoitada no mato para as povoações com protecção de tropa) –, não houve qualquer caso com o pessoal da Companhia, ou porque estas doenças estavam em fase de erradicação (?), ou porque a higiene e a profilaxia praticadas pela Companhia eram o suficiente para as obstar.


DOENÇA DO SONO - VI

Era uma das doenças mais faladas, sempre que vinham à conversa as doenças na Guiné, quer ainda em Santa Margarida aonde estivemos algumas semanas antes de embarcar, quer durante a viagem no Niassa. Sabíamos também que era a mosca Tsé-Tsé (mosca já ouvida e falada nos bancos da escola) o portador do parasita que provocava a doença.

Pessoalmente não conheci caso algum na Companhia, mas, já na população indígena deparávamo-nos com situações que nos diziam serem portadores daquela doença. Em Olossato apercebemo-nos de um ou outro caso de nativos, alguns já com alguma idade, sentados às portas das suas moranças, muito magros e de cor amarelecenta e quais múmias, e que, pelo menos, e por si só, indiciavam logo doença grave. Dizia-se então por ali que tinham a Doença do Sono. O aspecto…

Sabíamos também que era a mosca Tsé-Tsé que a provocava e, ao princípio, quando víamos uma mosca poisada na nossa pele, principalmente uma que fosse diferente das conhecidas, ficávamos a temer por tal. A fase de “Periquitos” era de receio em tudo quanto mexesse…

Com o tempo só um crocodilo, e tinha que ser grande, é que nos assustava.

Lembro-me em Bissorã e estávamos ali à meia dúzia de dias (JUN65), uma vez sentir uma picada forte no braço e ao olhar ver uma mosca estranha, comprida, a picar-me. Como era uma mosca de fisionomia diferente das comuns fiquei apreensivo (pensei logo ser a Tsé-Tsé), mas ao ver a malta passar com a bola esqueci logo. Que a mosca deixou uma boa marca lembro-me bem!

A Mosca Tsé-Tsé (Glossina palpalis) causadora da Doença do sono

Mas depressa habituaríamo-nos a ver moscas e outros insectos voadores das mais variadas espécies.

Insectos voadores, terrestres, rastejantes, anfíbeos, passando por aquela formiga grande e avermelhada que numa fase da sua metamorfose ganhava e perdia as asas (eram às milhares à volta de tudo que fizesse luz na escuridão da noite e quando ainda tinham asas), cobras e lagartos e passarada, Santo Deus havia ali de tudo e parecia que tudo estava ali na Guiné.

Quando nos deitávamos no mato e em qualquer sítio e na mais completa escuridão a fazer tempo para o assalto a uma casa-de-mato, que era ao alvorecer, nem nos lembrávamos do que poderia estar por baixo.

A cada passo surgia um novo e estranho ser vivo, para curiosidade da malta, que se juntava logo ao alerta deste ou daquele. Consoante o porte e as características do animal aproximávamo-nos mais ou menos para ver aquele pequeno monstro. Mexia-se virava-se e… logo também aparecia alguém de máquina fotográfica na mão.

Os nativos sabiam como ninguém se o bicho era de brincar ou se era de pormo-nos à “distância regulamentar de nove metros e quinze, como dizia muitas vezes o Sargento Correia, camarada da 816, o do “Mar Eterno” (passava o tempo a cantar isto), já falecido. Paz à sua alma!

Mas o que mais nos atacava, e logo cedo, eram as alergias, bem denunciadas na pele.

Alergias também para todos os gostos: borbulhas, manchas, rosetas maiores ou menores, com ou sem cor e outras erupções cutâneas; era no peito, nos braços, na cara, ou em todo o corpo.

Lá funcionava a maior parte das vezes o Cálcio-Luvistina em forma de pomada e, julgo, para actuação mais rápida, em injectável também, nas veias. Sei que em situações mais agressivas (naquelas que parecíamos um Cristo era-nos dado um injectável nas veias pareceu-me com o mesmo nome daquele medicamento.

Quando vim da primeira vez de férias com os meus amigos, também Furrieis Milicianos da 816, Coutinho, Piedade e Baião, passamos grande parte da véspera do embarque a esfregar as virilhas de uma irritação assanhada que nos fazia andar de pernas abertas. Diziam que aquela vermelhidão, que a muitos poucos poupava, era da água das bolanhas - não raras vezes andávamos nela e com ela bem acima das virilhas. Molha, seca; molha, seca…, havia quem lhe desse o nome de "flor do congo", e via-se por ali muito militar do mato de perna aberta.

Flor do Congo
Certamente que há em Angola muitas e variadas flores, tudo floresce naquela terra tão fértil. Esta foto com três lindos malmequeres foi tomada em 1972 no Luvo, no jardim da Casa do Administrador de Posto.

Mas hoje quero falar de outra flor, a denominada “flor do congo”, uma flor que dura muito, que porventura só os militares conhecem, porque muitos ainda hoje a possuem passados tantos anos desde que a “colheram”.

Aquilo a que os militares chamam “flor do congo” é uma doença de pele (micose) que ataca as virilhas e partes genitais, fruto do suor acumulado por longas caminhadas e dormidas no mato sem possibilidade de tomar banho.

É mais uma das muitas sequelas que muitos carregam para o resto da vida, e então depois comer umas azeitonas ou beber um digestivo é certo e sabido que  a dita clama por  “carícias”.
Mário Mendes
In http://cc3413.wordpress.com/2009/12/07/flor-do-congo/

Aplicávamos então o Astérol em líquido (o 1214 pouco servia) e aquilo ardia que nos fazia saltar, mas a vontade de chegar à metrópole sem aquele incómodo era grande. Daí, cada um saltava para o seu lado.
Foi assim no princípio e pela noite dentro no Hotel Internacional em Bissau onde estávamos alojados.

Voltando à Doença do Sono esta tinha alguma assistência nas chamadas “Missões de Sono”.














Foto da esquerda - Crianças vítimas da doença do sono. Foto extraída de Jornal de Angola, com a devida vénia.
Foto da direita - O gado (principal hospedeiro do parasita) também era vítima da doença. Foto extraída da página BBC Brasil.com.

Soube mais tarde que havia uma Missão em Bissorã que também dava assistência a leprosos e houve militares que recorreram àquela instituição para resolver algum problema sanitário, não soube se por falta episódica do clínico militar na altura, se o problema que o militar enfrentava era do foro daquele estabelecimento.

Selo de S. Tomé e Príncipe emitido em 1966 por altura também que o Clube Militar Naval comemorava 100 anos da sua existência, referindo a erradicação da Doença do Sono naquela também província ultramarina. Na Guiné não terá sido assim…


Doença do sono
(transcrito, com a devida vénia, do site www.medipedia.pt)

CAUSAS
A doença do sono é provocada pelo Trypanosoma brucei gambiense e pelo Trypanosoma brucei rhodesiense, protozoários presentes no organismo de diversos animais mamíferos e de seres humanos parasitados. Estes protozoários desenvolvem parte do seu ciclo biológico no aparelho digestivo das moscas do género Glossina, conhecidas como moscas tsé-tsé, que vivem em habitats húmidos e nos bosques da África tropical, onde a doença do sono é endémica. O contágio ao ser humano efectua-se através das picadas das moscas tsé-tsé, que actuam como vectores dos agentes causadores.

MANIFESTAÇÕES E EVOLUÇÃO
Uma ou duas semanas após o contágio, começa a evidenciar-se uma lesão característica na zona da pele por onde os tripanossomas se inocularam: uma elevação ou pequeno tumor vermelho, muito doloroso, que desaparece espontaneamente ao fim de alguns dias ou semanas. Todavia, na maioria dos casos, esta lesão inicial cutânea acaba por não se manifestar ou até passar despercebida. De qualquer forma, algumas semanas após a produção do contágio, começa a manifestar-se febre, com uma notória subida da temperatura do corpo acompanhada por intensos arrepios e suores que, embora de início se repitam várias vezes ao longo de cada dia, posteriormente adoptam um padrão mais irregular. Uma outra manifestação muito habitual desta fase inicial do problema é a inflamação dos gânglios linfáticos, particularmente evidente nos que se situam na nuca e na região supraclavicular.

Numa segunda fase, normalmente ao fim de alguns meses, evidenciam-se as típicas manifestações neurológicas que designam a doença: alterações no comportamento e personalidade, indiferença face ao que o rodeia, debilidade, tremores, dificuldade em realizar os movimentos mais comuns, como a locomoção, dificuldades na linguagem, alterações de humor, intensa sonolência e letargia. Caso não se proceda ao devido tratamento, os casos mais graves evoluem para um estado de coma, que muitas vezes provoca a morte do paciente por paralisia respiratória.

TRATAMENTO
O tratamento baseia-se na administração de medicamentos activos contra os protozoários responsáveis pela doença e, caso se proceda ao mesmo na fase inicial, consegue-se obter a eliminação dos protozoários em poucos dias, enquanto que nas fases avançadas é necessário uma terapêutica mais prolongada. Para além disso, deve-se igualmente administrar outros medicamentos que aliviem os eventuais sinais e sintomas e, caso seja necessário, deve-se proceder à hospitalização do paciente para prevenir ou tratar as complicações das fases mais avançadas.

PREVENÇÃO
Dado ainda não existir uma vacina eficaz contra a doença do sono, a prevenção consiste na eliminação da mosca tsé-tsé através da fumigação e em evitar as suas picadas através da utilização de mosquiteiras e repelentes ambientais ou de aplicação local. Por outro lado, as pessoas que habitam nas zonas endémicas e as que planeiam viajar para as mesmas devem proceder à administração de medicamentos antiparasitários específicos. Como é óbvio, a prescrição deve ser efectuada por um médico e rigorosamente cumprida, pois caso não o seja, essas pessoas correm o risco de não estarem devidamente protegidas contra um eventual contágio.
Interessante o ciclo Tsé-Tsé-homem, homem Tsé-Tsé, com o parasita pelo meio, e há semelhança do que acontece com o mosquito Anopheles causador do Paludismo, observado na figura seguinte:

Com a devida vénia, figura transcrita do site www.dpd.cdc.gov/dpdx


Depois de tudo isto e como já aconteceu com o Anopheles (o tal que provoca o Paludismo) constata-se que o insecto infecta o homem mas também pode ser o homem a infectar (?) o insecto. Afinal quem infecta quem? Ressalvando, no entanto, alguma ingenuidade no assunto, isto faz-me lembrar a história do ovo e da galinha.

Rui Silva
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 – P8354: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (12): Baile de Fim de Ano na Associação Comercial, mesmo ao lado do Palácio do Governador

Vd. postes da série de:

20 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7012: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (1): Paludismo (Rui Silva)

17 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7138: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (2): Matacanha (Rui Silva)

26 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7342: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (3): Formiga baga-baga (Rui Silva)

26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7674: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (4): As abelhas (Rui Silva)

19 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8133: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (5): A lepra (Rui Silva)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8133: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (5): A lepra (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva* (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 16 de Abril de 2011:

Caros amigos Luís e Vinhal.
Em anexo, envio mais um trabalho na sequência dos anteriores (“Doenças e outros problemas de saúde…”), desta vez sobre a Lepra (V).

Recebam um grande abraço mais votos da melhor saúde.
Rui Silva



2. Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

DOENÇAS E OUTROS PROBLEMAS DE SAÚDE (ou de integridade física) QUE A CCAÇ 816 TEVE DE ENFRENTAR DURANTE A SUA CAMPANHA NA GUINÉ PORTUGUESA (Bissorã – Olossato – Mansoa 1965/67)

(I) Paludismo (P7012)
(II) Matacanha (P7138)
(III) Formiga “baga-baga” (P7342)
(IV) Abelhas (P7674)
(V) Lepra
(VI) Doença do sono

Não é minha intenção ao “falar” aqui de doenças e outros problemas de saúde que afligiam os militares da 816 na ex-Guiné Portuguesa imiscuir-me em áreas para as quais não estou habilitado (áreas de Medicina Geral, Medicina Tropical, Biologia, etc.) mas, tão só, contar aquilo, como eu, e enquanto leigo em tais matérias, vi, ajuizei e senti.

Assim:
As 4 primeiras, a Companhia sentiu-as bem na pele (ou no corpo). As 2 últimas (Lepra e Doença do sono), embora as constatássemos - houve mesmo contactos directos de elementos da Companhia com leprosos (foram leprosos transportados às costas, do mato para Olossato nas tais operações de recolha de população acoitada no mato para as povoações com protecção de tropa) –, não houve qualquer caso com o pessoal da Companhia, ou porque estas doenças estavam em fase de erradicação (?), ou porque a higiene e a profilaxia praticadas pela Companhia eram o suficiente para as obstar.


LEPRA - V
Esta era a doença mais temível que sabíamos, ou pensávamos saber, existir na Guiné. Era a mais falada entre a malta quando ainda estávamos em Santa Margarida aonde a Companhia esteve algumas semanas antes de rumar ao cais de Alcântara para embarcar no Niassa para a Guiné. Ao falarmos das doenças que grassavam naquele território ultramarino, principalmente as contagiosas, e que teríamos de algum modo a estar expostos, a Lepra era aquela que mais temíamos, se bem que, camaradas antecessores, de nada falassem, ou até de que tivéssemos conhecimento de algum caso. Mas que ela existia sabíamos nós e, não menos, que era muito (?) contagiosa.

No entanto não conheci, nem conheço, embora leia ser uma doença de incubação muito longa, casos desta doença apanhada por militares que andaram pela Guiné, mas ela existia de facto e eu próprio vi muitos nativos, principalmente habitantes no interior do mato, que a tinham, principalmente nativos já com alguma idade avançada. Não tinham dedos nas mãos ou nos pés ou as duas coisas juntas como a foto seguinte ilustra. (Foto reproduzida com a devida vénia ao seu autor ou legítimo proprietário)

Os braços e as pernas acabavam em cotos, em alguns casos, embora não se vissem quaisquer feridas abertas ou úlceras.

Militares da 816 transportava-os às costas, quando trazíamos população encontrada isolada, nas chamadas operações de recolha de pessoal, algures no mato, para as povoações, (passava pelo trabalho da Companhia também esta tarefa de trazer gente do mato para as povoações, pois para além de ficarem sob a nossa jurisdição, portanto fora da alçada do inimigo, era ali que eles tinham meios de uma melhor sobrevivência e qualidade de vida, incluindo assistência médico-medicamentosa), no caso para Bissorã ou para o Olossato que foram, principalmente, as povoações aonde a Companhia esteve temporariamente aquartelada. Sabíamos também que estas povoações “clandestinas” colaboravam, obviamente, com o inimigo Ninguém era abandonado, quer fosse idoso, doente ou deficiente. Era ponto de honra para o Comandante da Companhia.

A miséria e a promiscuidade era muita, principalmente no interior e nas povoações, agora e para nós clandestinas, aonde a assistência sanitária era nula.

Embora nas povoações com tropa, aonde habitualmente havia uma enfermaria militar, os indígenas tinham medo ou relutância ou ainda por convicções religiosas de recorrer àquelas. Só à força ou à ordem do Chefe de Posto ou da Administração a isso os obrigava.

Lembro-me de ver um nativo à porta da enfermaria em Mansoa, que ali foi levado compulsivamente para ser tratado adequadamente, que tinha um buraco numa perna com o tamanho de uma bola de ténis.

O enfermeiro tirou daquele buraco toda a espécie de ervas e terra lamacenta.

Os nativos viam-se assim sujeitos a confiarem nas propriedades terapêuticas de ervas, mezinhas e outras coisas tais, que a natureza, pelo menos esta, lhes dava, embora não fosse bem para aquilo que o referido nativo necessitava para o seu caso.

Cozer um profundo golpe numa perna a um rapazinho nativo, em Bissorã, foi, para este e família, o fim do mundo, mas, passados uns dias, com uma leve cicatriz, ele já saltava com os outros ali mesmo na cara do enfermeiro milagreiro.

Afinal há pouco tempo é que soube, que a cerca de 10-12 quilómetros de Bissau existia uma Leprosaria, mais tarde assistida por abnegados missionários italianos, isto nos anos cinquenta e, depois, mais tarde, é então edificado um hospital, já nos anos 60.

Portanto a Lepra era uma doença na Guiné com assistência, no possível, para a época e no sítio que era, há mais de 50 anos.

Também sobre a Leprosaria de Bissau, o estimado camarigo Correia Nunes poderá acrescentar algo, pois colaborou lá na construção de uma Escola de Carpintaria para ensinar as crianças.

Posição geográfica de Cumura – entre Bissau e Prábis, a cerca de 12 quilómetros de Bissau.
Imagem do Google


Seguem dois interessantes artigos sobre a Leprosaria de Cumura. Um, o primeiro, reproduzido do site www.uniao-missionaria-franciscana.org e o outro, com data de 2009, também reproduzido, este da Gazeta de Notícias (www.gaznot.com).

Reproduções aqui feitas com a devida vénia para com tais entidades.

LEPROSARIA DE CUMURA

CUMURA: A Lepra não é maldição dos céus!

1. Local:

A 10 quilómetros de Bissau, na estrada de Prábis, situa-se a Missão Católica de Cumura, bem conhecida em toda a Guiné-Bissau, sobretudo pela sua leprosaria, que neste momento é referência única para o país de Amílcar Cabral e referência assinalada para alguns países vizinhos (Senegal, Guiné-Conakry, Gana), já que também de alguns deles acorrem doentes do Mal de Hansen a procurar tratamento conveniente.



2. Categoria da actividade:

Esta actividade enquadra-se na categoria de projectos de intervenção social na área da saúde, educação e formação.


3. Finalidades e objectivos:

A missão de Cumura tem uma actividade multi-facetada (leprosaria, hospital geral ambulatório, escolas primária e liceal, actividades paroquiais, etc.), mas é conhecida sobretudo pelo seu valioso trabalho com os leprosos. Este trabalho teve um salto qualitativo após a vinda dos Franciscanos italianos de Veneza (1955), que ampliaram em muito os inícios de assistência aos leprosos em Cumura, tentada pela administração colonial portuguesa.

Actualmente, a leprosaria de Cumura dispõe dum conveniente laboratório de análises, bem como dos serviços de fisioterapia, oftalmologia, lavandaria, sapataria, nutrição e dietética, sempre em ligação com as necessidades dos doentes hansenianos. Assiste uns 50 internados e trata em regime ambulatório muitas dezenas de doentes.

Por razões de caridade cristã, dada a insuficiência ou incapacidade dos serviços de Saúde pública, em Cumura começou também a dar-se assistência quer a doentes terminais de SIDA (cerca de 150 internados em 2006, uns 70 admitidos para antiretrovirais e cerca de 400 seguidos em ambulatório, no mesmo ano), quer a doentes de tuberculose (em 2006 houve internamento temporário de uns 45 doentes e tratamento ambulatório de 145 doentes).

De tal modo o trabalho assistencial de Cumura se impôs à população das redondezas, que à volta da missão-leprosaria se foi implantando uma nova povoação, já que as pessoas se sentiram protegidas pela presença missionária. Hoje Cumura tem duas aldeias, contíguas mas distintas: “Cumura Pepel e Cumura-Padres”! A fixação confiante da população à volta da missão é o melhor prémio para a acção missionária aí realizada e é também uma espécie de grito silencioso mas eloquente: “ A lepra tem cura, não é uma maldição dos céus contra ninguém”!


4. Responsável:

A Custódia de S.Francisco da Guiné com o seu Custódio Frei João Dias Vicente.


5. Donativos:

A União Missionária Franciscana abraçou esta projecto desde o início e são necessários apoios a nível monetário para suprir os investimentos que vão sendo feitos de forma a melhorar as condições de tratamento dos leprosos. Os contributos monetários a este projecto podem ser feitos em vale do correio/cheque ou por transferência bancária BPI : NIB 0010 0000 26140490002 14, indicando a que fim se destina (Leprosaria de Cumura). Todos os apoios cedidos gozam de dedução fiscal, ao abrigo da “lei do mecenato” (artigos 39.º e 40.º do código do IRC e do artigo 56.º do código do IRS).

Contacto:
União Missionária Franciscana (Leprosaria de Cumura)
Convento da Portela
Rua dos Mártires, 1
Apartado 1021
2401-801 Leiria

União Missionária Franciscana

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HOSPITAL DE CUMURA : CINQUENTA E CINCO ANOS AO SERVIÇO DO POVO

(20-7-2010) O Hospital de Cumura, na vanguarda da luta contra o mal de Hansen há mais de 55 anos, hoje na luta contra tuberculose e VIH-Sida, é das estruturas hospitalares mais conhecidas da Guiné-Bissau.

Situado a 12 quilómetros de Bissau, ao longo da sua existência tem acolhido doentes de todas as partes da Guiné-Bissau e além fronteiras. As suas actividades têm sido marcadas não só pela cura das pessoas afectadas pela lepra mas também em termos de assistência social prestada pelos missionários na sua recuperação e reintegração. O falecido Bispo D. Settimio Ferrazzetta foi dos missionários que trabalharam em Cumura logo após a sua chegada a Guiné nos anos 50.

“Os missionários chegaram em Cumura, na Guiné-Bissau em 1955, enviados pelo Papa PIO XII, para tomarem conta dos doentes de lepra que viviam isolados numa grande reserva chamada Cumura, mais ou menos abandonados a si mesmo”, começou por explicar a GN, a Irmã Valéria, administradora deste estabelecimento hospitalar muito procurado por doentes de todo o país.

Esta responsável explicou ainda que com a presença dos missionários e “muito devagar” foi se iniciando uma verdadeira cobertura ao serviço da lepra “e não muito tarde depois também ao serviço das famílias dos doentes de lepra. Logo sem grande demora, começamos a sentir a necessidade de servir e proteger os grupos mais vulneráveis da população entre as quais as crianças e as mulheres sobretudo em idade fértil ou durante o período da gestação, parto e pós-parto”.


Especialidades

Solicitada a falar sobre as especialidades que o hospital atende, a Irmã explicou que as suas intervenções são muito amplas.

“Como disse, tudo se iniciou em torno dos doentes de lepra que naquele tempo tinha uma incidência muito menor”, adiantando que devagar foi surgindo a necessidade da consulta geral aos adultos. Daí começaram a desenvolver a assistência pediátrica e assistência da maternidade, pré-natal e pós-parto.

Para responder a procura de que o hospital era alvo, foram criadas duas estruturas sanitárias, uma para atender a lepra e outra para a clínica geral “onde tínhamos a maternidade, a pediatria e algumas camas para adultos. Assim fomos adiante por algumas décadas.”

Na ultima década, 2000 para cá, quando foi avançando o VIH/Sida e a tuberculose, foram obrigados, de acordo com as necessidades das populações, a se abrirem para algumas emergências e uma melhor cobertura da maternidade.

A irmã Valéria assegurou no entanto que a assistência ao parto, pós-parto e pré-natal quadruplicou nos últimos anos, “ o que nos levou a organizar para dar assistência de guarda aos doentes de VIH/ Sida e da tuberculose.” Revelou que actualmente estão com um movimento “talvez seja o maior no país, que alberga doentes de sida seguidos regularmente em tratamento ambulatório e, igualmente, um grande número de doentes de tuberculose seguidos anualmente.”

Em primeiro plano, julgo tratar-se da irmã Valéria


No concernente ainda a matéria de HIV/sida, a Irmã explicou que vão se organizando na assistência as crianças com HIV/sida congénita e a tuberculose. Segundo esta responsável, “o serviço que está produzindo muito bons frutos é o PTNF (prevenção de transmissão vertical), na qual entram todos os gestantes diagnosticados como seropositivos que são colocados no programa de facilitação da defesa da criança de forma a não ser contaminada pelo HIV/sida. Esta intervenção vai de quatro meses da gestação até os dezoito meses depois do parto.”


Estrutura

Quando solicitada a falar da forma como se organizam para atender os pacientes e manter um funcionamento adequado às diferentes especialidades, a administradora do hospital de Cumura disse que “hoje o movimento é grande”, têm um grande volume “não só de doenças agudas como também de doenças crónicas” que exige uma verdadeira organização e seguimento bem conduzido. Por isso estruturaram o hospital da seguinte forma: direcção clínica, serviço da enfermagem e médica e o serviço de apoio e diagnóstico. Dentre eles figuram o laboratório de análise clínica, serviços da radiografia e da ecografia e a administração. Também contam com outros serviços de apoio como a lavandaria, serviços de refeições, limpeza e jardinagem.

“Todos são serviços correlatos a necessidade de uma organização de forma a oferecer as condições essenciais adequadas”, enfatizou.


Dificuldades

Instada a falar sobre os constrangimentos com que se deparam nas suas actividades, a Irmã foi peremptória: “é bom saber que há grandes dificuldades em se organizar, no controlo dos serviços sociais, mas à medida das necessidades, da saúde e a educação, por exemplo. É claro que não será possível levar adiante esta máquina com tantas dificuldades”.

Apontou que a primeira dificuldade é que não podem contar com o apoio das autoridades que não dão conta e não estão conseguindo enfrentar estas dificuldades nas estruturas hospitalares estatais muito menos nos privados.

Explicou que têm enormes dificuldades que vão desde os parcos recursos financeiros, materiais, até aos medicamentos. Adiantou que na Guiné-Bissau, as grandes dificuldades são de abastecimento a curto prazo. Para conseguir os materiais, têm que ter uma previsão de três, quatro a cinco meses. “É uma situação bastante difícil”, lamenta Irmã Valéria. “Procuramos nos organizar para podermos contar com os seguimentos necessários para garantir uma continuidade de assistência aos doentes” informa a Irmã para concluir que isso é lhes não permite ter uma “ruptura de stock”.

Quanto aos recursos financeiros, disse que contam bastante com os seus voluntários, com a Direcção-geral dos Padres Menores e também com Irmãs e alguns organismos.

Esta responsável sublinha que uma das organizações que tem “apoiado muito” o Hospital de Cumura é a Cooperação Portuguesa. No entanto aponta que “ao longo destes anos começa a se fazer presente com alguma ajuda, o Secretariado Nacional de Luta contra a Sida, com aquilo que se refere ao VIH/sida que hoje abrange a maior parte dos nossos serviços aqui em Cumura”.


Medicamentos

Actualmente o maior fornecedor de medicamentos a este hospital é a IDA Fundation da Holanda.


Evacuação

No tocante a evacuação dos doentes para o exterior do país, a Irmã Valéria conta que “nós não temos programas de evacuação dos pacientes. Particularmente, não trabalhamos com isso”.


Pessoal e camas

Falando dos recursos humanos, ela diz que “quanto ao número de pessoal, estamos com 110 elementos, contando com os profissionais dos serviços de apoio.”

Em termos de capacidade de internamento, a Irmã assegura que na primeira estrutura, que é o hospital do mal de Hansen (lepra), que hoje não é mais a leprosaria mas sim uma parte aberta aos doentes de lepra e que pode ser chamada também de estrutura ao serviço de doenças infecto-contagiosas, “estamos em torno de 90 camas”.

A segunda estrutura onde atendem o maior número de gestantes e crianças, tem 45 camas.

Nautaram Marcos Có
Gazeta de Notícias

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LEPRA - Explicação científica da doença
- extraído, com a devida vénia, de: www.manualmerck.net

A lepra (doença de Hansen) é uma infecção crónica, causada pela bactéria Micobacterium leprae, que lesa principalmente os nervos periféricos (aqueles nervos localizados fora do cérebro e da espinal medula), a pele, a menbrana mucosa do nariz, os testículos e os olhos.

A forma de transmissão da lepra não é conhecida. Quando um enfermo não tratado e gravemente doente espirra, as bactérias Mycobacterium leprae dispersam-se no ar. Cerca de metade das pessoas com lepra contraíram-na, provavelmente, através do contacto estreito com uma pessoa infectada. A infecção com Micobacterium leprae provavelmente também provirá da terra, do contacto com tatus e mesmo com mosquitos e percevejos.

Cerca de 95% dos indivíduos expostos ao Mycobacterium leprae não contraem a doença porque o seu sistema imunitário combate a infecção. Naqueles em que isso acontece, a infecção pode ser de carácter ligeiro (lepra tuberculóide) ou grave (lepra lepromatosa. A forma ligeira, ou seja a lepra tuberculóide, não é contagiosa.

Mais de 5 milhões de pessoas em todo o mundo estão infectadas pelo Mícrobacterium leprae. A lepra é mais frequente na Ásia, na África, na América Latina e nas ilhas do Pacífico. Muitos dos casos de lepra nos países desenvolvidos afectam pessoas que emigraram de países em vias de desenvolvimento. A infecção pode começar em qualquer idade, mais frequentemente entre os 20 e os 30 anos. A variedade de lepra grave, a chamada lepra lepromatosa, é duas vezes mais frequente entre os homens do que entre as mulheres, ao passo que a forma mais ligeira, denominada tuberculóide, é de igual frequência num e noutro sexo.


Sintomas

Devido ao facto de as bactérias causadoras da lepra se multiplicarem muito lentamente, os sintomas não começam habitualmente antes de um ano, pelo menos, após a pessoa se ter infectado; o usual é mesmo surgirem de 5 a 7 anos mais tarde e amiudadas vezes muitos anos depois. Os sinais e sintomas da lepra dependem da resposta imunológica do doente. O tipo de lepra determina o prognóstico a longo prazo, as possibilidades de complicações e a necessidade de um tratamento com antibióticos.

Na lepra tuberculóide, aparece uma erupção cutânea formada por uma ou várias zonas esbranquiçadas e achatadas. Estas áreas são insensíveis ao tacto porque as micobactérias lesaram os nervos.

Na lepra lepromatosa, aparecem sobre a pele pequenos nódulos ou erupções cutâneas salientes, de tamanho e forma variáveis. O revestimento piloso do corpo, incluindo as sobrancelhas e as pestanas, desaparece.

A lepra limítrofe (borderline) é uma situação instável que partilha características de ambas as formas. Nas pessoas com este tipo de lepra, a doença tanto pode melhorar, caso em que acaba por se parecer com a forma tuberculóide, como piorar, circunstância que resulta mais parecida com a forma lepromatosa.

Durante a evolução da lepra não tratada ou mesmo naquela que, pelo contrário, recebe tratamento, podem verificar-se certas reacções imunológicas que por vazes produzem febre e inflamação da pele, dos nervos periféricos e, com menor frequência, dos gânglios linfáticos, das articulações, dos testículos, dos rins e dos olhos. Dependendo do tipo de reacção e da sua intensidade, o tratamento com corticosteróides ou talidomida pode ser eficaz.

O Mycrobacterium leprae é a única bactéria que invade os nervos periféricos e quase todas as suas complicações são a consequência directa desta invasão. O cérebro e a espinal medula não são afectados. Devido ao facto de diminuir a capacidade de sentir o tacto, a dor, o frio e o calor, os doentes com lesão dos nervos periféricos podem queimar-se, cortar-se ou ferir-se sem se darem conta. Além disso, a lesão dos nervos periféricos pode causar debilidade muscular, o que por vezes faz com que os dedos adoptem a forma de garra e se verifique o fenómeno do “pé pendente”. Por tudo isso, os leprosos podem ficar desfigurados.

Os afectados por esta doença também podem ter úlceras nas plantas dos pés. A lesão que sofrem os canais nasais pode fazer com que o nariz esteja cronicamente congestionado. Em certos casos, as lesões oculares produzem cegueira. Os homens com lepra lepromatosa podem ficar impotentes e inférteis, porque a infecção reduz tanto a quantidade de testosterona como a de esperma produzido pelos testículos.


Diagnóstico

Certos sintomas, como as erupções cutâneas características que não desaparecem, a perda do sentido do tacto e as deformações particulares derivadas da debilidade muscular, constituem as chaves que permitem diagnosticar a lepra. O exame ao microscópio de uma amostra de tecido infectado confirma o diagnóstico. As análises de sangue e as culturas não se mostram úteis para estabelecer o diagnóstico.


Prevenção e tratamento

No passado, as deformações causadas pela lepra conduziam ao ostracismo e os doentes infectados costumavam ser isolados em instituições e colónias. Em alguns países esta prática continua a ser frequente. Apesar de o tratamento precoce poder evitar ou corrigir a maioria das deformações mais importantes, as pessoas com lepra estão propensas a sofrer de problemas psicológicos e sociais.

O isolamento, contudo, é desnecessário. A lepra só é contagiosa na forma lepromatosa quando não recebe tratamento, e mesmo nesses casos não se transmite facilmente. Além disso, a maioria das pessoas tem uma imunidade natural face à lepra e só aqueles que vivem próximo de um leproso durante muito tempo correm o risco de contrair a infecção. Os médicos e as enfermeiras que tratam dos doentes com lepra não parecem estar mais expostos do que as restantes pessoas.

Os antibióticos podem deter o avanço da lepra ou mesmo curá-la. Dado que algumas das micobactérias podem ser resistentes a determinados antibióticos, o médico pode prescrever mais do que um medicamento, em especial para os afectados pela lepra lepromatosa. A dapsona, o antibiótico mais frequentemente utilizado para tratar a lepra, tem um preço relativamente acessível e, em geral, não tem efeitos secundários; apenas em alguns casos produz erupções cutâneas de natureza alérgica e anemia. A rifampicina, que é mais cara, é inclusivamente mais forte que a dapsona; os seus efeitos colaterais mais graves são a lesão hepática e sintomas semelhantes aos da gripe. Outros antibióticos que podem ser administrados aos leprosos incluem a clofazimina, a etionamida, a minociclina, a claritromicina e a ofloxacina.

A antibioterapia deve ser continuada durante muito tempo, porque as bactérias são difíceis de erradicar. Dependendo da gravidade da infecção e da opinião do médico, o tratamento pode ser mantido por um período que oscila entre 6 meses e muitos anos. Muitas pessoas afectadas de lepra lepromatosa tomam dapsona o resto da sua vida.

Segue: Doença do Sono
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8073: Convívios (223): Pessoal da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, e Mansoa, 1965/67) dia 7 de Maio de 2011 em Barcelos (Rui Silva)

Vd. último poste da série de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7674: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (4): As abelhas (Rui Silva)