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sábado, 4 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17935: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): Os "comerciantes" e os "outros"... Lá, em Angola, Guiné e Moçambique, muitas vezes mais valia um ano de tarimba do que dez de Coimbra...



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 A > Pormenor; quatro funcionários dos correios (à esquerda), seguidos de quatro comerciantes, o libanês José Saad (e filha), o Mota, o Dantas (e filha) e o Barros.


 Foto (e legenda) do nosso saudoso Victor Condeço (1943/2010) / Edição e legendagem complementar:  © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.



I. Três comentários do nosso amigo e camarada António Rosinha, ao poste P17920 (*):


1. No início da Guerra do Ultramar houve sempre uma enorme falta de diálogo entre quem chegava ("tropa") e quem residia ("brancos").

Nunca houve diálogo entre os "brancos" e "tropa", antes pelo contrário. A mentalidade de quem chegava para combater os "turras", diziam os oficiais milicianos, e não só, que estavam ali por culpa dos "brancos" que trataram mal os "pretos" e estes revoltaram-se.

Testemunhei isto em Angola, ao vivo e a cores.

E insistia-se,  e ainda hoje se ilude muita gente, que os comerciantes ("brancos") roubavam os "pretos", quando na realidade, para quem viu por dentro,os comerciantes eram os únicos brancos que se entendiam em várias línguas com o povo.

O comerciante que não tivesse uma afinidade e confiança total com o povo, (várias etnias) podia fazer as malas e mudar de vida,  pois falia muito rapidamente

Nem os missionários nem chefes de posto, (metropolitanos, indianos ou cabo-verdianos) tinham o conhecimento e o relacionamento com os povos, igual ao dos comerciantes.

Foi esta gente o grosso dos "brancos", colonialistas, exploradores e futuros retornados,  que nem Spínola, nem Lobo Antunes, nem os alferes-de-coimbra, chegaram a compreender.

E gente como os estudantes do império, Pedro Pires, Amílcar Cabral, Lúcio Lara,  etc. souberam explorar maravilhosamente esse desentendimento, "tropa"  versus "brancos".

Se em Angola, não na Guiné, a "vitória era certa" contra os "turras", u ma das razões que ninguém menciona, era um entendimento mútuo dos comerciantes,  e mesmo capatazes de fazendas, poliglotas, e sua prole, com os povos, que formavam uma barreira onde o adversário era naturalmente repelido.

Claro que muitos comerciantes ficaram reféns, como este Rendeiro, pois tinham família para cuidar.
Só falo do que vi.

2. A maioria dos comerciantes oriundos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e gradualmente por aí abaixo, com dezenas de anos de trópicos, com famílias constituidas lá, brancas ou mestiças, tinham opinião bem mais formada do que qualquer Governador, com comissões de 4 anos, ou Generais e Intendentes de passagem como cão por vinha vindimada ?

E que «antiguidade" devia ser um posto?

É que aquela gente sabia bem mais que qualquer PIDE, que mais que evidente, tiveram pouco sucesso, deviam ser aproveitados inteligentemente, como em muitos casos aconteceu em Angola, para na língua materna dos povos se fazer em directo, a tal luta da psico-social.

Falar os idiomas nativos era sucesso garantido para aquela guerra, comprovadíssimo em Angola.

Só eles mesmo é que tinham esse trunfo nas colónias africanas, a tropa nunca entendeu completamente esse pormenor, e em Angola, só a partir de certa altura (1966 mais ou menos)é que aproveitou os imensos poliglotas que eram esses comerciantes e sua prole.

Atenção que, se olharmos para o PAIGC, MPLA e FRELIMO, tinham na sua direcção, filhos ou netos dessa estirpe de gente, (brancos ou mestiços)e vejam quem ficou no "poleiro" em todas as colónias.

No entanto, havia muitos movimentos que ficaram todos a ver navios, eram os tribais.

O  "pau de dois bicos" dos comerciantes não era propriamente dar informações militares aos "turras", até porque a maioria pouco saberiam do que se passava nos quarteis mais do que qualquer garoto que vivia à volta dos quarteis.

O pau de dois bicos constava em simplesmente em fazer aviados de mantimentos aos "turras" sem os denunciar, caso não pudessem evitar. Eram casos conhecidos publicamente, caso de madeireiros em Angola.

E pelo que se deduzia na Guiné em conversas entre velhos comerciantes, após a luta, com Luís Cabral a mandar, aconteceria esse "fenómeno", era o desenrascanço.

Os únicos que já não eram periquitos, eram esses velhos comerciantes do mato, porque até os da cidade nunca chegaram a saber bem o que se passava no cabeça dos indígenas e dos brancos.

Ao fim de 30 anos nos trópicos, sou um periquito, porque nunca falei com um indígena na sua língua.

3. É natural que da maioria dos militares que passaram pelas colónias, mesmo aqueles que tinham papéis de comando, a nível quer de pelotão ou companhia  ou quer a nível de  batalhão, só poucos se teriam debruçado sobre o que era o "comércio de permuta", que se praticava no interior, não nas cidades, no caso da Guiné, Bissau apenas.

Mesmo em Gabu e Bafatá, quer comerciantes fulas ou caboverdeanos que ficaram com as lojas dos europeus, retornados, alugadas ou usurpadas a estes, ainda praticavam em alguns casos , o comércio de permuta.

Isto em 1987, residi um ano em Gabu onde fui inquilino numa casa de um desses antigos portugueses.

Por exemplo uma simples bola de cera de mel de Canjadude, para ser negociada entre a família vendedora e o comerciante, requeria um diálogo em que se discutia o que podia valer de coisas das prateleiras que podiam interessar aos elementos da família.

Desde óleo, sal, panos, chinelos chineses, arroz...e isto tudo usando argumentos em que na colheita anterior bola de cera idêntica ainda estava na memória de todos, o que tinha rendido.

Quem diz uma bola de cera, diz um carneiro, uma vaca, ou o  mesmo saco ou bacia ou balaio de arroz ou mancarra após cada safra.

Quando se diz que o comerciante "roubava na balança", ou no rol, isso era conversa de merceeiro das nossas velhas aldeias, ali essa da balança podia contar para o controle do próprio comerciante, mas não contava nada para o cliente, aliás, na permuta, eram clientes quem estava do lado de dentro ou de fora do balcão.

Quero com isto dizer que para ganhar dinheiro naquele tipo de negócio, era preciso uma especialização para quem saía das nossas terrinhas, algumas destas que arderam agora, nem com coimbra-e-tarimba se chegava lá.

Nem com comissões de dois ou quatro anos de função pública, e canudo universitário se chegava a entender o que era aquele trabalho.

Quando se fala em «periquitos», esta gente seriam aqueles que na realidade não eram periquitos.

E alguns desses comerciantes tinham uma particularidade. é  que chegavam a dominar dois e mais idiomas tribais, porque era-lhes necessário, o que lhe granjeava o respeito muito particular entre os populares.

No caso da Guiné, todos os comerciantes que quiseram ficar, continuavam, após o 25 de Abril, e até com protecção mais ou menos garantida, embora fossem sapos que alguns dirigentes tiveram que engolir.

Só que com o regime comunista/cabralista instalado, já nada compensava insistir em tanta incongruência e desordem económica e a maioria foi saindo de vez.

Além de Spínola, eram os comerciantes aquilo que os guinenses tinham mais lembranças nos primórdios da libertação.

A independência tinha que ser, e o que tem que ser...!

Mas tenhamos mais respeito pela inteligência daqueles povos, já que os vencedores, alguns "Estudantes do Império", se esqueceram tanto desse mesmo povo.  (**)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de outubro de 017 > Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...

(**) Último poste da série > 15 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17862: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (52): Das pequenas recordações dos vários quartéis a mais artística que ficou lá a "apodrecer", foi o memorial na ponte de Caium

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5389: Da Suécia com saudade (17): Os fuzilamentos... e as sublimações (José Belo)

1. Mensagem de José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, desde 1976 (*)

Assunto - Os fuzilamentos... e as sublimações (**)

Muito se tem escrito sobre os fuzilamentos que se efectuaram na Guiné. Alguns, com sincera revolta pela maneira como antigos Camaradas de armas foram abandonados à sua sorte. Outros, utilizando esta tragédia como bandeira de agendas políticas.  É assunto passível de algumas reflexões, não de VALORES, mas circunstanciais.

Muitos acreditam firmemente não ser possivel construir uma sociedade livre sobre alicerces coloniais, ou mesmo neo-coloniais. Quererá isto dizer que, por "razões ideológicas", tudo se deverá aceitar? Sentir orgulho na tal "descolonização exemplar" citada por alguns? Não terá sido antes a descolonização POSSÍVEL dentro do caos político vigente, e resultante das lutas pelo poder que imediatamente surgiram, no próprio dia 25 de Abril, entre Spinolistas e outros?

E,mais uma vez, descolonização possível, tendo em conta os interesses das duas grandes potencias mundiais que então se degladiavam à volta dos espólios coloniais, utilizando abertamente centros de influência disponíveis dentro do País. Mas, e voltando à Guiné, será dificil de aceitar que homens como Spínola, Fabião (com mais de uma década de estadia nas zonas operacionais da Guiné, e responsável pelas Milícias), assim como alguns outros que por lá tinham estado,  terão planeado, considerado, ou mesmo aceite os fuzilamentos como algo de inexorável e justo ?

Sei terem sido feitas, pelo menos no caso de Fabião, tentativas de encontrar países africanos próximos dispostos a receber estes militares, ou uma possível vinda dos mesmos para Portugal. O mesmo Niassa que tantos milhares de soldados transportou rumo à Guiné, poderia ter, facilmente, transportado umas centenas em sentido inversso.

Como teriam sido recebidos no Portugal de então?  No meio de tais, e tão profundas lutas políticas internas,  quem se teria atrevido a recebê-los nos seus Quartéis? Ou, simplesmente,  vir a público defendê-los? Os complexos e más consciências eram ainda muitos. Não se tinham, ainda, convenientemente "esbatido". (Já terá sido esquecida a triste e vergonhosa experiência passada por Marcelino da Mata às maos de alguns maoístas no RALIS?) .

Onde estavam então os que hoje tão convenientemente pretendem utilizar os fuzilamentos como bandeira política? Hoje, com o passar das décadas, tudo se torna, para alguns, tão nítido, tão simplista.  Mas, como poderia ter sido fácil, e sem tragédias indesculpáveis, o difícil momento de profundos conflitos sociais então vivido?

A infeliz sorte daquelas centenas de guinéus não terá, tragicamente, sido em parte diluída na opinião pública de então, nas tragédias humanas de muitos milhares de refugiados que iam chegando de Angola e Mocambique?  Ao falar-se dos Comandos Africanos, convenientemente fora do contexto que então os envolvia, e o mesmo se poderá dizer em respeito aos Milícias, não se estará a dar uma imagem um pouco deturpada pois eles não seriam propriamente "ingénuos/românticos/idealistas" sem a mínima consciência do que estava em jogo ao decidirem participar na luta armada contra uma rebelião na sua própria terra, combatendo gentes das mesmas etnias que os olhavam,  não como patriotas portugueses, mas sim como colaboradores dos colonialistas ? Tinham mesmo como "ajuda de memória" as independências dos países vizinhos.

Em todos os conflitos, ao fazer-se a paz, a sorte dos, pelos SEUS considerados como colaboradores, não tem sido feliz. Porque haveria de esperar algo de diferente por parte dos guerrilheiros do PAIGC? Terá a Administração Colonial de séculos lhes ensinado a... tolerância? Quantos sacrifícios humanos terá a guerra causado aos que contra nós lutavam? O ajuste de contas surgiu na primeira oportunidade,ma não teria sido possível algo de semelhante se alguns dos fuzilados tivessem, noutras circunstâncias, tido a mesma oportunidade em relação aos guerrilheiros?

É uma pergunta menos conveniente, mas de considerar, tendo em conta que alguns de nós conheceram pessoalmente muitos dos fuzilados. Para nós,os que não pretendem utilizar estes CAMARADAS que ao nosso lado (tantas vezes à nossa frente!)  lutaram, carregaram aos ombros os seus/nossos mortos, comungaram literalmente a mesma terra vermelha de sangue......não existem "agendas políticas", como não deverão existir complexos colectivos de culpas.

Isto, quanto a mim, não significa que se deve esquecer que algo se poderia/deveria ter feito por aqueles que acreditaram no que por NÓS lhes foi dito.

PS - Quero salientar aos Camaradas que se trata de simples reflexões circunstanciais sobre um assunto de tal modo sério e triste, para o qual tenho plena consciência de não possuir as "respostas" que alguns talvez tenham.

Estocolmo 1/12/09
José Belo

[Revisão / fixação / bold / título: L.G.]

______

Notas de L.G.:


(*) Vd. poste anterior > 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5307: Da Suécia com saudade (16): É neste caldo de cultura que o nosso blogue é grande (José Belo)

(**) Sublimação= Acto ou efeito de sublimar...(v. tr. 1. Exaltar; tornar sublime; engrandecer;  2. Volatilizar quimicamente; 3. Purificar, expurgar de tudo o que é estranho ou impuro). Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura: Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 14 - Eu e o carregador de granadas de RPG 7" [ guerrilheiro do PAIGC; foto tirada já depois de 25 de Abril de 1974]
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 4 - "Viatura [, Berliet,] minada na emboscada de 7 de Janeiro de 1974"

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 6 - O Furriel Ventura em ambulância capturada ao PAIGC" [, entre Copá e a fronteira, em Março de 1974, pelo Grupo do Marcelino da Mata e o Astérix, nome de guerra do Cap Pára-quedista do BCP 12, António Ramos, já falecido]

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 7 - Ambulância capturada ao PAIGC"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 1 - Vista aérea de Bajocunda" [que ficava a 11 km de Pirada, sede do batalhão].

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 5 - Evacuação do Capitão Ângelo Cruz" [, que accionou uma mina antipessoal, e ficou sem uma perna no Natal de 1973].
Guiné > Zona leste > Pirada > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 8 - Restos de foguetão [122 mm] do PAIGC" [, presume-se que tenha sido no ataque a Pirada, no dia 25 de Abril de 1974]


Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > Foto 9 - "Poço com água para beber e cozinhar"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 10 - Crianças amigas [ , em primeiro plano o Mulai Baldé, que mais tarde viria para Portugal]
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 11 - Alunos da escola de Bajocunda"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 15 - Eu e alguns dos meus condutores"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 12 - Eu e o polícia de Amedalai"
Guiné > Zona leste >
Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 2 - Amedalai ardida no ataque de [18 de] Dezembro de 1973" [Amedalai ficava a sul de Bajocunda]

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 3 - Crianças procurando comida depois do ataque a Amedalai"

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 13 - Encontro das Altas Chefias de Pirada depois do 25 de Abril [de 1974]"

Fotos (e legendas): © Amilcar Ventura (2009). Direitos reservados


1. Texto, enviado em 20 do corrente, peo Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323/73, Bajocunda, 1973/74, natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde Maio último (*)


Camaradas

Apesar de me terem advertido para a eventual polémica a propósito da revelação da entrega de gasóleo ao PAIGC , surpreendeu-me a quantidade e agressividade dos comentários produzidos (**).

Vou tentar clarificar as coisas.

Desde muito novo que a polícia política entrava casa adentro, revistava e levava o meu Pai sob prisão. O meu Pai era comunista, não tinha grande cultura, mas tinha capacidade para identificar as injustiças e a arrogância de actos praticados por indivíduos protegidos, que roubavam aos pobres sem castigo, enquanto os pobres, se roubassem aos patrões uma fruta ou um bocado de peixe seco, eram despedidos sem dó nem piedade.

Também eu, ainda jovem, sofri essa experiência amarga de ser privado do meu Pai. Essas e outras levaram-me a ter um espírito crtico, a escolher com cuidado os amigos, e a conter o riso perante os que desenvergonhadamente zombeteavam dos humildes. A minha infância e juventude foram dificeis.

Por acaso tornei-me membro de uma conhecida organização que actuava contra o regime. Tal como o meu Pai, não era intelectual, agia em função da confiança que me inspirava, e das ideias de justiça e solidariedade que, acreditava, trariam a felicidade aos portugueses.

Na Guiné, mais propriamente em Bajocunda, expressei os meus critérios de justiça e relações entre os povos, de cada vez que se proporcionava. Por isso fui informado da ligação de um mecânico-auxiliar ao PAIGC. Era um óptimo rapaz, competente e de delicado no trato. Nutri uma especial atenção por ele, que tinha sido recomendado pelos camaradas que rendemos.

Um dia tive que lhe adiantar o salário que a Companhia estava relutante em pagar, apesar do compromisso. Também os pequenos que ali cirandavam e nos faziam recados, a quem dava petróleo para ajudar as moranças, tornaram-se elos de uma relação
de afecto com a população.

Vim a saber da existência da ambulância [do PAIGC], que evacuava para um hospital distante doentes e feridos, militares e civis, e por vezes não servia de nada por falta de combustível. Foi por isso que dei o gasóleo quando me pediram. Caprichosamente fui eu quem conduziu a ambulância depois da captura, com escolta do Marcelino da Mata que me valeu quando fomos emboscados.

Naturalmente tive informações ou fui avisado para ter cuidado que o IN andaria na zona,e uma vez, sobre a hora, relativamente a um ataque em Bajocunda, o que me levou a dar volta aos abrigos para alertar. Não tinha informações relativamente a Copá e Canquelifá, porque era outro grupo [do PAIGC]que ali actuava.

Reparem, não estive a ajudar o IN a fazer fornilhos, nem me consta de algum rebentamento por essa via.
A minha Companhia sofreu baixas numa emboscada, mas não tive qualquer conhecimento prévio. Quando dei gasóleo só pus uma condição, através dos dois jovens militares com quem me encontrei, que deixassem livre a estrada entre Bajocunda e Pirada, meio fundamental para reabastecimentos e outras ligações eventuais.

E sobre Bajocunda, o nosso quartel, desde que lá chegámos até o dia vinte cinco de Abril 74, só tivemos um único ataque [ a 18 de Dezembro de 1973].

Não contribui para o fim da guerra, mas para minorar o esforço das NT e para ajudar os aflitos do outro lado. Não sei se eles perceberam alguma coisa [do meu gesto de] solidariedade, e, apesar disso, se usaram o gasóleo para outro fim, coisa que remotamente pensava controlar pelas informações que tinha, pois acreditava que lutavam com honra e dignidade por um ideal.

Declaro ainda que mantinha excelentes relações com os meus camaradas e que seria incapaz de os atraiçoar. Eu vivo de consciência tranquila.

Espero que os camaradas, mais cultos do que eu, continuem a manifestar tolerância por aqueles que têm alguma coisa para contar das suas experiências, mesmo que, aparentemente, não sejam histórias dos manuais de guerra, nem do culto xenófobo ao PAIGC, como decorre das frequentes manifestações de solidariedade dos nossos tertulianos em ajudas ao povo da Guiné, (que, pela independência, imaginava lograr a liberdade e a felicidade), contribuindo para que a Tabanca Grande seja um lugar de sentimento, paz, verdade, e construção.

UM ABRAÇO AMIGO PARA TODOS OS CAMARADAS

Amílcar Ventura

[Revisão / fixação de texto / selecção e edição de fotos / título do poste / bold a cor: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

9 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4308: Tabanca Grande (137): Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74

(...) Alguns factos e datas sobre o 1ª CCAV / BCAV 8323/73

(i) Mobilizada pelo RC 3, embarcou, no dia 22 de Setembro de 1973, no navio Niassa com destino a Bissau;

(ii) Foi colocada em Bajocunda, na zona leste, junto à fronteira, a 11 km de Pirada (sede do BCAV 8323/73, comandado pelo Ten Cor Cav Jorge Eduardo Rdorigues y Tenório Correia Matias);

(iii) Teve dois comandantes: Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz (ferido em combate), e Cap Mil Cav Fernando Júlio Campos Loureiro;

(iv) Em 13 de Dezembro de 1973, o sapador de minas Fernando Almeida morre num rebentamento;

(v) Cinco dias depois, a 18, a tabanca de Amedalai, nas imediações de Bajocunda, a sul, é atacada e destruída pelo PAIGC;

(vi) No dia de Natal, o Cap Cav Ângelo Cruz ficou sem uma perna abaixo do joelho, no rebentamento de uma mina, numa patrulha, entre Bajocunda e Amedalai: ficaram ainda feridos o guia e três soldados;

(vii) No dia 7 de Janeiro de 1974, numa emboscada a uma coluna de viaturas, que ia levar comida a um pelotão da companhia, que estava em Copá, a 21 km de Bajocunda, a oeste, morreram o Sebastião Dias e o José Correia; e duas Berliets foram destruídas;

(viii) Em Março de 1974, Copá é abandonada; numa operação mais a norte, é apreendida uma ambulância, de origem russa, ao PAIGC; a viatura, conduzida pelo Amílcar Ventura, sob protecção de helicanhão, foi trazida para Bajocunda;

(ix) A 22 Agosto de 1974 Bajocunda é entregue ao PAIGC;

(x) Partida para Bissau e regressa a Portugal no dia 9 de Setembro. (...)


26 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4740: Estórias do Amílcar Ventura (1): O meu eterno Amigo Mulai Baldé...
...) Como eu era mecânico, essa minha lavadeira estava-me sempre a pedir petróleo para as suas lamparinas, que eram a única forma de iluminação naquelas bandas. A minha missão decorria normalmente, até que um dia acabei por descobrir que o comerciante local, que vendia o petróleo aos civis, chamado Silva, explorava a população na sua venda.

Não vou perder o meu, e o vosso rico tempo, a falar deste comerciante ,, natural de Braga, pois teria muita coisa a dizer, até porque segundo sei ele já faleceu. Dizia eu, que dei então comigo a dar petróleo a toda a tabanca ao ponto de, em alguns finais de meses, me ter visto aflito para fazer os mapas das existências em armazém.

Sempre me senti bem com esta minha faceta que, por um lado foi muito bom para mim, pois caí nas boas graças da população, não me faltando nada sem eu pedir, dando-me ovos, galinhas, carne de gazela, de cabrito, etc. Mas o mais valioso, para mim, foi o carinho com que fui tratado por toda a população, e jamais esquecerei os seus generosos e amáveis convites, para ir comer às suas tabancas.

Conforme vim a constatar, eu que era o único branco que frequentava os seus bailes e podia andar, à noite, livre e sossegadamente pela tabanca sem ter qualquer problema, enquanto alguns dos meus camaradas (por actos que desconheço) chegaram a ser apedrejados.

Nm dos meus dias de rotina descobri, surpreendentemente, que um Grande Amigo meu da tabanca era guerrilheiro do PAIGC. Como uma das minhas assumidas qualidades é: “Amigo não traí Amigo”, guardei penosamente este segredo apenas para mim. (...)

Mal eu sonhava, que se ainda hoje estou cá neste mundo é graças a ele, porque antes de um ataque que viemos a sofrer ao quartel, eu fui informado, por intermédio da minha lavadeira e do Mulai, que ele ia acontecer, com muito perigo para nós, pois seria executado muito perto da cerca de arame.

“Amigo não trai Amigo”, pensei eu, muito menos os meus camaradas-de-armas, pelo que meti-me numa Berliet e dei comigo a andar à volta dos nossos abrigos, a avisar o pessoal de que íamos ser atacados. A certo momento, quando complementava essa volta, um guerrilheiro do PAIGC apontou-me um lança-granadas RPG7 e estava prestes a atingir-me com uma das suas mortíferas granadas. A minha sorte foi esse meu Amigo, que viu quem estava dentro da Berliet, e não permitiu que o seu camarada lançasse a terrível granada, cujo disparo esteve eminente, pois vi bem a orientação do tubo e o seu dedo sobre o gatilho da sua arma. (...)


(**) Vd. postes de:

11 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

11 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (IV): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura

14 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4949: (Ex)citações (43): O exorcismo dos nossos fantasmas... (António Matos)

15 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4953: (Ex)citações (45): Resposta ao Mário Fitas: Luís, deixa sair de vez em quando as G3...(Luís Graça)

Vd. também o poste mais recente > 23 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4996: Controvérsias (28): O caso do Amílcar Ventura... Resistência ou colaboracionismo ? (Vitor Junqueira)

Vd. também postes anteriores desta série O Segredo de...

30 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

30 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

6 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato

11 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite

4 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4996: Controvérsias (35): O caso do Amílcar Ventura... Resistência ou colaboracionismo ? (Vitor Junqueira)

1. Texto do Vitor Junqueira (*), com data de 17 do corrente (Aqui, na foto à esquerda, a receber das mãos de outro senador do nosso blogue, o A. Marques Lopes, em 2007, no nosso II Encontro Nacional, em Pombal, mais de trinta anos depois, a condecoração que não lhe chegou a ser oficialmente dada em 10 de Junho de 1974, por causa das partidas da História):

Amigos Luís Graça e Carlos Vinhal,

O Texto que se segue está pronto há uns dias. Pela falta de oportunidade, estive numa de manda-não-manda até que hoje constatei que, embora de forma indirecta, se voltava ao tema. Decidi-me e agora é convosco. Se houver necessidade de poda, força! Peço a vossa atenção para os itálicos que agora, também na qualidade de editor (**), sei que não passam para o blog!

Um especial abraço para vocês,
VJ



2. Colaboracionismo (***)
por Vitor Junqueiro


Pessoal amigo, desta e doutras guerras, bloggers militantes, gente de sentimentos e coração ao pé da boca... e na ponta dos dedos.

Cheguei há pouco da Pérola do Atlântico que não visitava havia já duas legislaturas – é a nova medida do tempo na região – e nesta volta, em que esquadrinhei montes e vales, concluí: O Homem é um génio! Não sei quem pagou ou vai pagar. Algum do nosso, certamente já escorregou, mas o que vi deixou-me de boca aberta e acreditem que com a minha idade, uma pessoa já não se deixa deslumbrar facilmente. Rendo-me, e apesar da minha simpatia pela bola com o A lá dentro, até estava capaz de lhe oferecer uma cruzita se soubesse que ele se adaptava ao clima do Contnente.

Boca aberta, nem sempre significa iminência de disparate. Assim o espero, ao meter a colherada numa polémica que tem assanhado ânimos e desencadeado fúrias literárias e à qual, por uma questão de princípio, não poderia ficar alheio.

Uma pessoa vira as costas e é no que dá. Palavras desembainhadas, G3 na rua, (e as bazucas?), pelotões de fuzilamento! Parece que os camaradas não ficaram fartos. (****)

Como quem não quer a coisa, lá veio o patrão tentar meter ordem na caserna (post 4953, excitação 45). E não é que o homem escreve bem e explica-se ainda melhor!? Nunca entenderei porque é que dizem aquilo das pessoas da Lourinhã! (*****) Eu até gostava de encontrar um pintelhinho que desse para aquecer (ainda mais…) o debate, já que é disso que o meu povo gosta. Mas não, aquilo vai ao encontro da minha própria visão sobre a matéria e portanto, o Luís disse e está dito. E no entanto...

Eu gosto muito de contos da carochinha. Até já escrevi alguns que passaram no blog. Mas por natureza, prefiro os do Lobo Mau. Gosto especialmente daquela cena em que o dentuças pergunta ao capuchinho o que faz abaixada à beira do rio.
- Então não vê que estou a lavar a minha c…, senhor lobo?
Ao que o malino responde confuso:
- Ai porra, agora é que chegaste para mim. Eu não conheço essa versão da história …!

Neste palco, têm sido contadas muitas histórias, com maior ou menor brilho consoante a arte do narrador. Algumas deixam-me tão confuso como o pobre lobo. Como esta tanga do gasoil, que pura e simplesmente nunca aconteceu por flagrante impossibilidade material. Ou se calhar o meu cerbo está a ficar cansadito, com diz a minha paciente D. Joaquina!

De facto, já tinha lido uma resma de comentários ao post do Vasco da Gama, e atendendo à qualidade dos comentadores, nem deveria atrever-me a abrir o bico. Pois atrevo, e ainda por cima para dizer, “basta de porrada no ceguinho, chiça!”.

Brincadeira e ironias à parte, até nem seria má ideia abrir um canal novo para falar dessa questão tabu chamada colaboracionismo. No caso de Angola e Moçambique, parece não restarem muitas dúvidas de que existiram ajudas que podem configurar efectiva colaboração com o IN. Cantineiros isolados no mato, missões religiosas, empresas do ramo agro-industrial (madeireiras), possivelmente transportadores, colaboraram. Com dinheiro, géneros, informações, oferecendo guarida, tratando feridos etc. Uns, tê-lo-ão feito por convicção. Outros, assertivamente, compraram o sossego pagando um tributo.

Até aqui, não há qualquer novidade. Quem esteve atento ao recente trabalho do Joaquim Furtado sobre a Guerra de África, teve oportunidade de ouvir contados na primeira pessoa, relatos de antigos colaboradores. E na Guiné, o que é que se sabe para além dos casos conhecidos de deserção para o lado do PAIGC e algumas bem urdidas fugas de informação?

Durante a minha comissão, ouvia-se dizer que aqui ou acolá actuariam agentes infiltrados do IN, outros comiam dos dois lados e alguns até tinham nome. Ao meu conhecimento nunca chegou qualquer confirmação. Põe-se então a questão de avaliar, quem o quiser fazer, se as cervejolas, os cigarritos e tantas, mas tantas outras tentativas de chegar à fala com a guerrilha da respectiva ZA [, Zona de Acção], através da oferta de roncos, consubstanciam alguma forma de colaboracionismo. Não, segundo o meu critério. Eu próprio, em determinada altura, dactilografei uma carta mais ou menos nestes termos:

"Caros camaradas do PAIGC, sabemos que a guerra nos proíbe de sermos amigos. No entanto, nada nos impede de fazer um intervalo na missão que nos foi atribuída de nos liquidarmos mutuamente. Por isso, aguardo que me façam saber se estão dispostos a participar numa futebolada com a nossa malta e com a garantia de total segurança para o vosso regresso etc. e tal, despedidas e assinatura".


A cartinha foi deixada num trilho muito batido, andou por lá meses e reapareceu espetada num galho com uma alfarroba por perto. O caso teve como testemunhas, o ex-capitão Cupido, oficiais e sargentos da CCaç 2753. (Se necessário envio lista com endereços e números de telefone).

Uma curta história, da qual nada se pode concluir quanto às diferentes formas que o colaboracionismo pode assumir, esta não terá sido uma delas. A mim, importa-me sobretudo frisar que se tivesse aparecido alguém para uns toques na bola, nem num pêlo lhes teríamos tocado! No dia seguinte, se os céus me facilitassem tal desígnio, ter-lhes-ia limpo o sebo com a maior das satisfações. No mato, de canhota na mão.

Agora, que me responda quem sabe: quantas guarnições isoladas e sem qualquer hipótese de defesa, não se aguentaram mercê de um fechar de olhos a certos intercâmbios que se operavam nas suas redondezas? E quantas destas, não foram poupadas pelo facto de o próprio IN ter interesse na sua permanência em determinadas áreas? Que parte da nossa logística foi parar às mãos do PAIGC?

Em qualquer destas situações, nada houve que possa confundir-se com actos de colaboracionismo formal ou informal. Falta-lhes um elemento caracterizador, o desejo ou a vontade de ver o IN consagrar-se militarmente vitorioso.

E porque é que somos como somos, na Guiné, nos Balcãs ou em Timor? Desconheço, mas tenho uma ideia! Esta é a maneira de ser do soldado português desde há séculos, espírito prático, adaptável, filho de um povo de brandos costumes que colonizou continentes com a Bíblia numa mão e a espada na outra. Se for preciso, matamos o nosso irmão mas não o odiamos.

Quem passou pela experiência de caçar algum elemento da guerrilha à unha ou assistiu à sua entrega voluntária, sabe do que estou a falar. Não desconheço Wiriamu ou as façanhas de um tal alferes R. em Angola ou certas formas de destruir o inimigo na Guiné, que a maioria de nós, ex-combatentes, jamais aprovaria. Mas esses casos foram a excepção que confirma a regra. Acho eu, ou estarei tótó de todo?

Retomando o caso do nosso camarada que disse o que disse a propósito do bidonzito de gasoil, estou convencido de que ele não é ceguinho e também não será tonto nem mentiroso. A sua inteligência até lhe permitiu entender que neste palco onde todos têm podido dizer o que lhes vai na alma, parece e sublinho o parece, existir uma matriz ideológica prevalecente, que sempre se manifestou contra a guerra. A decisão de defender pelas armas o que pelos vistos, não muitos, consideravam territórios portugueses do ultramar, tem sido aqui profusamente criticada.

Não raras vezes, essas críticas têm-se feito acompanhar de considerações enaltecendo a razão histórica e a superioridade moral da luta do PAIGC contra as forças de ocupação – nós! Foram publicadas dezenas (centenas?) de páginas glorificando as acções do IN ou pelo menos gabando-lhe tanto a estratégia como a astúcia. Defendeu-se até à exaustão a versão da derrota militar das FA portuguesas, implicando nesse desfecho a ineficiência do dispositivo militar, a impreparação dos comandos, a desmotivação generalizada das tropas que não reconheciam ao regime legitimidade para envolver o país numa guerra injusta, assassina e contra os ventos da história, etc., etc., etc.

Foi tal a torrente de documentação carreada para o debate – citações de personalidades de indiscutível peso na política nacional e internacional de então, textos retirados de diversos livros e outras publicações, documentos, transcrições de discursos, reportagens e entrevistas –, que eu próprio, embora continue a afirmar que o retrato não condiz minimamente com a paisagem no espaço e no tempo em que lá estive, só por uma unha negra não fiquei também (con)vencido … quanto ao vencimento dessa tese!

O que eu acho, e estou-me nas tintas se o mundo inteiro se está cagando para aquilo que eu acho, é que o camarada Amílcar, a quem envio um abraço de solidariedade tertuliana, apenas terá querido ir ao encontro do que julgava ser “politicamente correcto”. Alinhar com essa corrente de pensamento supostamente dominante no seio da Tabanca, exigiria algum tipo de ritual, uma espécie de prova de fogo sem a qual o nosso iniciado acha que não apresenta as necessárias credenciais para ser admitido pelo grupo dos mais vanguardistas. E vai daí, como não desertou, não passou informações ao IN nem sabotou coisa alguma, resolveu oferecer-lhes um bidon de combustível, que era o que tinha à mão. Se bem que, ajudar materialmente o outro lado até pode ter justificação, em caso de catástrofe humanitária, por exemplo. O que nunca poderia ser o caso.

Na sua (minha) perspectiva, dar uma mãozinha à rapaziada da outra banda, teria apenas o significado de estar muito avançado para o seu tempo, ter o sentido da premonição e antecipar que daí a pouco … dá cá um abraço pá, e agora somos todos camaradas e amigos.

Ora uma coisa é a análise que podemos fazer deste conturbado período da história e das nossas vidas no plano político-filosófico, se assim o quisermos. Questão bem diferente é a da coesão do sistema baseada no pragmatismo das relações entre indivíduos, nas lealdades de sangue ou de grupo, na sobrevivência da matilha, onde qualquer traição se paga caro. E nem toda a gente possui as armas para fazer essa destrinça, se me faço entender, limitando-se a ensaiar o salto teórico para o outro lado da barreira e esperar ser aceite. E foi o que aconteceu, tratou-se apenas um ensaio e nada mais.

Naturalmente, não quis nem teria competência para desmontar um processo mental complexo, ainda para mais, desconhecendo o substrato psicológico do visado. O que sei, e disso tenho obrigação, é que em determinadas circunstâncias, a nossa cachimónia prega-nos partidas, levando-nos a acreditar em quimeras.

Se esta é uma forma simplista de desvalorizar uma história que a ter fundamento, seria um acto muito grave só comparável à prática de espionagem a favor do inimigo, não deixa também de ser um apelo à razoabilidade e um lembrete acerca do perigo dos julgamentos serôdios.

E aqui volto à velha questão da legitimidade para aferir comportamentos passados correlacionados com matérias acerca das quais, a sociedade portuguesa continua tão profundamente dividida.

Quanto aos reparos, foram no mínimo oportunos, se não mesmo pedagógicos! Vão certamente ter o mérito de arrefecer certas derivas para a confabulação. A seriedade do Blog deve ser um valor para nós que o fazemos, e para os milhares que lá vão beber a informação de que necessitam. Assumir a possibilidade de a qualquer momento se ser confrontado com a crítica severa ou o contraditório, é um excelente estímulo para cultivar a objectividade, penso eu de que. Relativamente à explicação do Luís, achei-a fundamental para que todos percebam que determinadas matérias (textos), pela sua forma ou conteúdo, necessitam mesmo de nota prévia e da perguntinha à Fernando Mendes: Fica assim mesmo ou quer pensar melhor?

E agora venha a porrada!

Paletes de abraços,

V. Junqueira

PS (não é esse!)- Falei em histórias da carochinha e do lobo mau. Quis dizer que as aprecio imenso, mas de vez em quando necessitamos de um prato de substância capaz de provocar uma certa agitação das águas. Tenho reparado que são publicadas páginas e páginas de muito interesse, sem dúvida, mas que não suscitam uma singela observação. Já quando o tema é fracturante – está na moda, o fracturante! – logo aparecem os comentadores de serviço e os outros. Por isso, faço um apelo à querida cambada para que não se fique pelo comentarizito de postagem directa. Simples e curto, não é, malandragem?

[ Revisão / fixação de texto / bold a cor: L.G.]


2. Nota de L.G. enviada ao autor, no dia seguinte

Muy preciosa... a prosa. Fica a aboborar. Talvez saia mais logo ou sábado... Tenho tido pouco tempo esta semana, estou em júris de selecção de candidatos aos nossos cursos...

Vitor, fazes sempre muita falta cá na caserna... Dás pica e sabes temperar as tuas intervenções com um sentido de humor, muito especial, que eu aprecio de sobremaneira...

Só não concordo contigo quando dás a entender que há um main stream , uma corrente de fundo, na Tabanca Grande, pró-PAIGC... A maior parte dos textos que publicámos sobre o PAIGC até são de fontes nossas... Outros são documentos com interesse historiográfico (PAIGC Actualités, por ex.)... Pessoalmente gostaria de triangular a informação, como fazem os historiadores... Infelizmente são raros os depoimentos do outro lado... Ficaram de me arranjar histórias de vida de guerrilheiros... Espero um dia poder também inseri-las aqui, para serem objecto de análise crítica da nossa parte... como foi a história (mal contada, também concordo...) do Amílcar Ventura (Ele prometeu responder dentro de dias a algumas críticas, não fugiu...).

Aquele abraço. Luís

3. Resposta do Vitor:

Luís,

A tua apreciação sobre o meu trabalho é que é preciosa para mim. Estimulante e encorajadora.

Permite-me desfazer um equívoco de que serei, eventualmente, o primeiro responsável. No blog existe de facto um main stream anti-guerra e não pró-PAIGC. Uma coisa não tem forçosamente que ver com a outra. De outra forma o que é que eu estaria a fazer no seio desta tertúlia? Se ando por aqui, é porque me sinto confortável e muito bem acompanhado!

Abraço,
VJ

__________

Notas de L.G.:

(*) Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso II Encontro Nacional (Pombal, 2007).

(**) Referência ao seu blogue pessoal, "Kurt" - Amizade, Viagens, Aventura e muito mais!... ("O Blog onde se ligam amigos e companheiros de viagem para 'curtir' o que a vida tem de melhor. Porque só temos uma, há que aproveitá-la!"). Um blogue andarilho...onde também colabora o nosso Paulo Santiago, de Águeda.

(***) O colaboracionismo dos guineenses (que estiveram do nosso lado), foi já aqui - no Blogue, I Série - objecto de debate... vd. postes de:

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCC: O colaboracionismo sempre teve uma paga ( 5) (Carlos Vinhal)

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCIX: O colaboracionismo sempre teve uma paga (4) (Pepito)

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCVIII: O colaboracionismo sempre teve uma paga (3): Paulo Raposo

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (2) (Zé Teixeirq)

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCV: O colaboracionismo sempre teve uma paga (1) (A. Marques Lopes)

(...) Notas de L.G.:

(...) Colaboracionismo: Actividade, comportamento, atitude ou interesse de colaboracionista, ou seja, de pessoa que colabora com ou apoia o inimigo que ocupa, total ou parcialmente, o território do seu país (Dicionário Houaiss da Lígua Portuguesa, 2002).

O termo fancês collaborationniste surgiu em 1940, na sequência da ocupação da França pelo exército alemão e a constituição do Governo de Vichy, presidido pelo Marechal Pétain (1851-1951), o herói de Verdun na I Guerra Mundial. Depois da libertação, Pétain foi condenado à morte por alta traição, sentença comutada em prisão perpétua. Houve outros governos colaboracionistas durante a II Guerra Mundial: Bélgica, Holanda, Noruega (com o famigerado Vidkun Quisling, abertamente favorável aos nazis), Croácia, Hungria bem como noutras partes da Europa de Leste...

Ao colaboracismo contrapõe-se a resistência: por exemplo, a resistência francesa, La Résistance (1940-1944) à ocupação nazi e ao regime de Vichy... Em Portugal, também se fala de Oposição ou Resistência à Ditadura (leia-se: Ditadura Militar, instaurada em 28 de Maio de 1926 e depois, a partir de 1933, Estado Novo, deposto em 25 de Abril de 1974).

(****) Vd. postes de:

15 de Setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P4953: (Ex)citações (45): Resposta ao Mário Fitas: Luís, deixa sair de vez em quando as G3...(Luís Graça)


11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (IV): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura


11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

(****) Sobre este tópico, vd. A HISTÓRIA DA LOBA (excerto, com a devida vénia, de Papagovas > Página pessoal de Fernando Silva)

“Pensas que sou da Lourinhã???”

Eis uma expressão por muitos sobejamente conhecida, e que significa: “Julgas que sou estúpido?”, mas a maioria desconhece a sua origem.

No seu livro "A Extremadura Portuguesa”, Alberto Pimentel escreveu o seguinte:

"O Diccionario ’Popular, de Pinheiro Chagas, remata o seu ligeiro artigo sobre a Lourinhã, dizendo : 'Não sabemos qual a origem do proloquio vulgar, que faz com que se diga de um homem lorpa e que tudo ignora: Parece que veio da Lourinhã.' Este proloquio tem ainda outras modalidades, taes como : – E’ da Lourinhã! – Não se faça da Lourinhã! todas ellas batendo no mesmo sentido. E’ provavel que alguma anecdota explique a procedencia do proloquio, como synthese da boçalidade do camponez da Lourinhã. Ignoramol-a. Mas o que sabemos é que o povo d’este concelho conserva uma rudeza primitiva e aquella ignorancia tradicional que os saloios herdaram dos seus antepassados. Assim nos affirmam pessoas que de perto o conhecem."

Na década de 1930, Dona Amélia do Perdigão tinha, na sua quinta, um corpulento animalejo de raça canina que metia respeito e mantinha à distância quem ousasse aproximar-se do palacete ou do trem onde se fazia transportar.

Um dia o animal desapareceu da Quinta do Perdigão e a partir daí, deu muito que falar na região devido ás muitas histórias que sobre ele foram inventadas.

Uns chamavam-lhe LOBA, outros RAPOSA, e que esta devorava animais com as suas garras, dizimava rebanhos, coelhos, galinhas, matava vitelos, e havia quem dissesse que, no Vale Côvo (Conselho do Bombarral), chegou a matar um burro.

Formaram-se grupos populares, Milícias e até chegaram reforços Militares de Lisboa, com o intuito de abaterem a Loba. Chegou-se mesmo a pensar em evacuar a Vila, tal era o pânico da população.

Quando finalmente o animal foi abatido, verificou-se tratar-se “apenas” de uma cadela assustada e esfomeada.

Daí surgir a expressão: 'Pensas que sou da Lourinhã???', devido a este infeliz incidente. (...)".

Felizmente, meu caro Vitor, a minha terra deixou há 25 anos de ser a Terra da Loba, para se tornar a Capital dos Dinossauros... No Oeste estremenho, há outras terras que continuam a ser objecto de troça (ou até de insulto), por causa de anedotas históricas como esta... É o caso de Peniche ("Amigos de Peniche"...), de Rio Maior ("O Leão de Rio Maior")... Tu próprio fazes questão de sublinhar que és de Pombal, ou vives em Pombal (e não do Pombal, no Pombal)... Preciosismos literários ? De modo algum... É como os alentejanos de Cuba: não se vai a Cuba, vai-se à Cuba... Cada terra e cada povo tem a sua idiossincrasia... e as suas susceptibilidades...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4950: (Ex)citações (44): O direito de cada de um de nós fazer as pazes consigo e com os outros (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem, com data de 1 do corrente, do Joaquim Mexia Alves , ex-Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa),:


Caros camarigos editores

Não pretendo de forma nenhuma levantar uma polémica! Tenho mais que fazer! Abro na Segunda feira as Termas, finalmente depois das obras e por isso estou muito ocupado.

Deixo-vos no entanto um texto de 'resposta' ao comentário do meu amigo Eduardo Magalhães Ribeiro (*) que, na vossa douta opinião, publicarão ou não conforme entenderem.

Sou um homem de paz de de conciliação e pretendo na minha vida nunca fazer julgamentos de ninguém, embora por vezes falhe nesse meu desejo.

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves



Meu caro camarigo Eduardo Magalhães Ribeiro (*)

Li o teu comentário, percebo-o e concordo com ele em parte. Tirando algumas palavras mais duras, julgo que os comentários indignados ao texto em causa, não têm a ver com reacções a quente, mas antes pelo contrário com reacções pensadas.

Pelo menos falo por mim.

Ao ler a primeira vez o texto a minha reacção foi de tentar nem sequer me incomodar com ele! Não me interessava, não queria saber, incomodava-me demais e eu não estava para isso!

Mas à medida que o ia lendo e relendo vinham-me à memória os tempos passados na Guiné, a camaradagem entre todos, esquerda e direita, centro, alto e baixo, defendendo as suas vidas e defendendo as vidas dos que estavam ao seu lado e imaginei o que seria, eu ou outro qualquer, depois de uma emboscada com mortos e feridos, saber que havia um de nós que andava a dar gasóleo ao inimigo para ele se deslocar para o serviço de nos atacar.

Já agora, para acabar com a guerra de vez, era dar ao PAIGC uns mísseis de cruzeiro e uma força aérea potente!

Meu caro camarigo é lógico, (pelo menos da minha parte), que ninguém quer crucificar ninguém, apenas queremos dar vazão à nossa indignação, mas mais do que isso tentar mostrar ao autor da acção que ele está redondamente enganado, e que não contribuiu coisíssima nenhuma para o fim da guerra, mas muito provavelmente para a deslocação de tropas do PAIGC para atacar quartéis e tropas portuguesas.

Como já disse num comentário, não está, digamos assim, tanto em causa a acção, (já passaram trinta e tal anos), mas o tom do relato da mesma.

Parece não haver a consciência de que o acto praticado teve com certeza consequências que, digo eu, felizmente agora não podem ser medidas e repito felizmente, porque se não o trauma seria bem maior.

Mas também entendi sempre que na leitura franca das opiniões dos outros, às vezes difíceis de aceitar, acontecia aquilo que todos ou pelo menos parte de nós desejávamos e que é entendermos melhor o que vivemos e o que fizemos, aceitando os nossos erros e partilhando os nossos êxitos, para assim podermos fazer a paz dentro de nós e a paz com os outros.

Não me admirava que a insistência do Amílcar Ventura em querer contar a sua história seja uma forma de fazer as pazes consigo mesmo e com os outros, (mesmo que no seu subconsciente), para, percebendo o que os outros pensam sobre o que fez, também ele finalmente perceber que afinal a sua acção, que ele pode ter pensado ser boa e meritória, não o foi, e antes pelo contrário foi um acto altamente condenável de consequências imprevisíveis para os seus camaradas de armas.

Resumindo, e sem me armar em melhor do que ninguém, seria importante que ele percebesse isso mesmo, e retratando-se fizesse finalmente as pazes consigo, com os seus camaradas de armas e com o passado que tantas vezes nos persegue.

Por mim, e perante essa assumpção do erro cometido, não tenho problema nenhum em lhe dar um abraço franco e compreensivo.

A ti, meu camarigo do coração e a todos os camarigos abraço com a emoção de sempre.

Joaquim Mexia Alves

2. Resposta (imediata, pessoal e bem-humorada...) do nosso Eduardo MR (que eu tomo a liberdade de publicar aqui, esperando que ele me perdoe o possível abuso, porque nem tudo o que circula pelas ruas e vielas da Tabanca Grande pode e deve aparecer na blogosfera):

Boa tarde Camarada, Amigo e RANGER J.M.A.,

És sempre o mesmo pá, mesmo doendo-te qualquer coisa, devido a ferimento grave estás sempre na linha da frente condescendente e fraterno. É de RANGER!

É claro que aquilo do A.V. foi ALTA traição. Eu só quis abrandar um pouco o fogachal sobre o desgraçado do A.V.

O meu velhote, sargento do exército (já falecido), mal soubesse, lá no mato, que o gajo tinha feito aquilo, primeiro dáva-lhe logo 2 ou 3 tiros e depois arranjava uma explicação.

Eu, na minha qualidade de entregar TUDO ao PAIGC - instalações, veículos, refeitórios, armas e munições excedentes, etc. - nem me sinto no direito de piar... muito menos fuzilar...

Agora se eu tivesse andado por lá aos tiros sujeito a ser abatido, ou a ver os meus camaradas a morrer ao meu lado...

Um abraço Amigo do teu Amigo MR

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. comentário do Eduardo MR, como anónimo, ao poste de 11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda

Guiné 63/74 - P4949: (Ex)citações (43): O exorcismo dos nossos fantasmas... (António Matos)

1. Comentário do António Matos (ex-Alf Mil Minas e Armadilhas,)CCAÇ 2790, Bula, 1970/72), ao poste de 11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda

Para ser franco, tenho alguma dificuldade em começar este comentário pela catadupa de sentimentos antagónicos que me assaltam o espírito quer pelo delito propriamente dito, quer pelo desassombro do seu autor quer ainda pelas manifestações de repúdio algumas das quais a merecerem os mais vivos reparos por pessoas de bem.

Ainda que desde 1852 (10 de Março) tenha começado a discussão da abolição da pena de morte em Portugal, a verdade é que só em 1976 (!!) a Constituição (nº 2 do artigo 24) estabeleceu objectivamente o seu fim para todos os crimes. Torna-se, portanto, extemporâneo vir agora acicatar os ânimos com alarvidades de pseudo carrascos !

Do ponto de vista filosófico e ético a defesa da pena de morte enferma da irreversibilidade do acto o que, nos tempos modernos não augura nada de bom para os seus defensores tantos são os casos de, ao fim de 20 ou 30 anos de cativeiro, virem a ser considerados inocentes aqueles que tinham sido considerados culpados.

Peço, pois, e com a autoridade que me confere o estatuto de ex-combatente que nunca pactuou com habilidades que pudessem prejudicar a segurança dos que comigo palmilharam a merda daquelas picadas, matas ou bolanhas, que sejamos suficientemente open minded [, abertos de espírito,] de modo a darmos o nosso veredicto depois de muito bem explicada toda a situação envolvente do Ventura.

A ti, Ventura, dirijo-te agora a palavra em discurso directo: acredito que te safaste de uma boa polinheira em não teres sido descoberto naquela altura! Mas também aceito que, por ingenuidade (independentemente das razões pessoais que omites) ou mera estupidez, não tenhas quantificado minimamente as consequências dessa atitude e isso, não te ilibando, servirá de atenuante. Assim tu assumas com humildade essa postura perante eventuais camaradas sacrificados por via dessa tua acção e eu a levarei a crédito da tua inimputabilidade.

O tão apregoado conceito de roubo do gasóleo que o Ventura oferecia ao inimigo não era mais pecaminoso do que o aproveitamento da dispensa dos víveres que era alvo de desvios para fins inconfessáveis da oficialidade gestora das CCS [dos batalhões] ! E ninguém se manifesta ?

Longe de branquear a atitude do Ventura, julgo poder haver espaço para lhe compreender a tentativa de passar incólume no horror da guerra (outros tentavam baldar-se ao mato besuntando as entranhas anais com alho provocando acessos febris imensos !!! ). O cagaço manifestava-se de muitas maneiras e às vezes até provocava fugas para a frente dando origem a falsos heróis que ainda hoje lhes dão referências honoríficas FALSAS !

E tanto que se poderia dizer, a bem e a mal deste tipo de atitudes e de quem as assume...

Finalmente, acho que a actual atitude do Ventura em vir a terreiro exorcisar a sua culpa (é uma conclusão lógica) é um pouco como o Descascar a Cebola do Günter Grass. Também este mereceu a crítica contundente do mundo mas nem por isso o deixámos de admirar.

Talvez valha a pena pensar nisto.

António Matos


[Revisão / fixação de texto / título: L.G.] (*)

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4900: (Ex)citações (41): Resposta ao P4813 (J. Mexia Alves)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (V): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura

1. Mensagem do nosso querio amigo e camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, que regressa assim ao nosso convívio, depois de uma 'sabática terapêutica' (demasiado longa, porvetura, para aqueles que apreciam a alta qualidade literária e a inteligência emocional dos seus textos, aqui no blogue)...

Camaradas Editores, Camarada Editor Carlos Vinhal: Escrevi num ápice o texto que agora envio.Voltarei em breve.Saúde para todos e um abraço amigo do Vasco



BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO (Vasco da Gama) (V) > A MINHA GUERRA FOI OUTRA


Remetido há já algum tempo ao silêncio, por conselho de um editor sábio e amigo, perdendo a regularidade da leitura do nosso Blogue, dadas as férias no reino dos Algarves durante o mês de Agosto, coloquei agora em Setembro toda a minha disponibilidade de tempo a ler tudo o que havia deixado para trás, como o fazia quando era estudante e tinha os exames à porta, tentando recuperar dia e noite o tempo consumido nas jogatanas de lerpa, nas intermináveis discussões políticas, no acompanhamento constante do meu Glorioso S.L.B. aquando das suas deslocações ao norte, nos tempos em que, calmamente, se vestia a camisola vermelha, sem medo de qualquer enxovalho, estivesse na Póvoa, em Guimarães, em Braga, em Matosinhos ou mesmo na maravilhosa cidade do Porto, essa cidade invicta que me marcou para sempre e que ainda hoje adoro, com as suas gentes simpáticas, solidárias, genuínas e vernáculas.

Tal como nos finais da década de sessenta, quando estudante, era invadido por um nervoso miudinho pois eram tantos os assuntos e matérias a reter, que começava a estudar determinada cadeira já com o pensamento numa outra que se avizinhava, não conseguindo por vezes a concentração necessária para levar a bom porto toda a panóplia de teorias e teses e temas que me permitissem uma época de exames descansado, também agora em finais da primeira década do século XXI, tostado pelo sol quente do sul, regressado do enxameado Algarve, onde o nosso camarada da Guiné e do Blogue, António Manuel Conceição Santos me proporcionou uma caminhada maravilhosa pela Ria Formosa, já comecei a escrevinhar tanta coisa ao mesmo tempo com o mesmo nervosismo o mesmo frenesi e a mesma “desorganização” de há quarenta anos, que me obrigou a dizer de mim para mim, BASTA, começa e termina qualquer coisa!

Assim decidi, assim o faço neste momento, começando pela análise de um poste publicado pelo nosso camarada Amílcar Ventura com o nº 4936 (*), intitulado a bomba de gasóleo do P.A.I.G.C., com uma introdução do editor M.R.

Respeitador dos princípios que norteiam o nosso Blogue, coerente com a formação recebida ao longo da vida, incapaz de, penso eu, beliscar quem quer que seja, gostaria de tecer algumas considerações baseadas única e exclusivamente no exposto pelo nosso Camarada.

Camarada Amílcar Ventura,

A tua confissão que entendeste partilhar com todos os Combatentes da Guiné e que, estou por certo, terá aliviado a tua consciência, causou em mim um sentimento de tristeza e mal estar, pois relembrou-me de uma forma mais pungente e dolorosa as agruras que a minha Companhia de Cavalaria 8351 se viu obrigada a viver nos matos profundos do sul da Guiné no Cumbijã e Nhacobá, a escassos quilómetros de Guileje e cito Guileje, pois voltarei a esse assunto quando conseguir alinhar ideias.

Não tenho, era o que mais faltava!, capacidade para julgar quem quer que seja e sei bem que a as acções ficam com quem as pratica, mas nunca opinarei contra a minha consciência.

Há limites inultrapassáveis para qualquer cedência e colocarei sempre acima do interesse de pessoas ou de grupos a minha sinceridade, daí que gostaria de te dizer como combatente na Guine o seguinte:

Vivemos sempre no mato, sem qualquer população, sem nunca termos tido luz, vivendo em barracas de lona e construindo com as nossas mãos as casernas feitas com blocos que os meus Tigres amassavam com os pés, isto depois de regressarem das operações/patrulhamentos que DIARIAMENTE fazíamos fora do arame. Não tivemos depósito de géneros durante muitos meses, nem água nem pão quente. Fazíamos uma coluna diária a Aldeia Formosa para abastecimentos e também trazíamos bidões de gasóleo…

Tínhamos entre nós gajos de direita e de esquerda e do centro e de cima e de baixo e outros que não eram nada, mas nunca a porra da política nos separou. Os que defendiam o tal Portugal de Trás–Os-Montes a Timor, que não era o meu caso, eram irmãos dos que murmuravam contra a guerra colonial e que eram a favor da solução política para uma guerra estúpida. Sabes, tínhamos em comum as lágrimas que derramávamos pelos nossos camaradas mortos e feridos, pela impotência de não regressarmos todos juntos ao nosso e teu Portugal, estávamos irmanados nos embrulhanços que sofríamos e a nossa raiva, por que não dizê-lo?, ia toda no mesmo sentido – dirigia-se ao P.A.I.G.C.

Estranho, eventualmente por ignorância, que se fale no comentário introdutório ao teu texto em “intercâmbios” entre as N.T. e o P.A.I.G.C. de "prendinhas e cervejas colocadas na picada”. As prendinhas trocadas entre a Companhia de Cavalaria 8351 e o P.A.I.G.C., foram, que eu saiba, arraiais de fogachada, minas q.b. e manga de porrada. Talvez noutros sítios, noutras circunstâncias, com outros comandos. Nunca pertenci à psico.

Camarada, dizes e passo a citar “nunca pus em perigo de vida os meus camaradas mas que ao contrário salvei alguns por ter antecipado a informação que ia haver ataque”, fim de citação. Discordo frontalmente. Quem, como os Tigres do Cumbijã, e tantas outras Companhias apanharam na tarraqueta, sabem perfeitamente que os mísseis ou as morteiradas ou as canhoadas que nos caíam dentro do arame, não traziam olhinhos para se desviarem “da malta que estava avisada”.

Lá no meu mato profundo, interrogo-me como era possível um militar português sair do seu aquartelamento na companhia de um nativo, com uma viatura e duzentos litros de gasóleo. Que controlo era esse? Que sítio era esse? Que comando era esse? Não duvido do que dizes, mas estranho! A minha guerra, Camarada, a minha guerra teve outros contornos, a minha guerra foi outra.

Sabes, uma vez num ataque ao arame, sim num ataque ao arame, Camaradas meus dizem ter visto um cubano. Nesse dia, por motivos diferentes dos teus, também nós gostaríamos de ter conversado com ele e podes ter a certeza que não era para lhe dar gasóleo.

Quase quarenta anos volvidos ainda me emociono com a Guiné. Quem diria!!!

Tive apenas e só a vontade de dar a minha opinião relativamente a algo de totalmente novo para mim. Gostaria imenso, acredita, de contigo debater este assunto, quem sabe
se quando voltar à tua maravilhosa terra de Silves. Ouvir-te-ei mais detalhadamente e eu apresentar-te-ei outros argumentos que não cabem aqui.

Com a conversa todos aprendemos, mas, caro Camarada Amílcar Ventura, mesmo para alguém com a preparação ideológica que então terias, a tua atitude, sem qualquer espécie de julgamento, foi de uma INGENUIDADE muito grande.


Para todos os meus Camaradas um abraço amigo e sincero do,

Vasco A.R.da Gama

[Revisão / fixação de texto / bold, a vermelho: L.G.]

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. último poste desta série:

15 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4532: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (IV): Desertores

(**) Vd. poste de 11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

sábado, 27 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P807: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

Texto do João Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)

Caro Luís Graça:

Simplesmente enviei a lista de alguns dos executados depois da independência (1), sem tecer quaisquer comentários.

Julgo que os Guineenses no nosso tempo só tinham três opções:

(i) ou fugiam da Província;

(ii) ou se juntavam às nossas tropas, voluntariamente;

(iii) ou eram forçados a combater ao lado dos guerrilheiros.

Duvido que muitos deles pensassem em ideologias naquela altura, a não ser olharem para o seu bem estar.

Brevemente irei enviar mais nomes de outros fuzilados já depois da guerra terminar, que não assassinos dos comandos.

Um abraço.
João Parreira
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 23 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

sexta-feira, 26 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P801: O colaboracionismo sempre teve uma paga (5) (Carlos Vinhal)

Texto do Carlos Vinhal, ex-furriel miliciano da CART 2732 (Mansabá, 1970/72):

Ainda sobre o tema O colaboracionismo sempre teve uma paga (1)

Tenho acompanhado atentamente a troca de impressões entre os camaradas que mais de perto conviveram ou comandaram tropas nativas da Guiné e que por isso mais sentiram os fuzilamentos perpetrados. Admiro os sentimentos expressos.

Queria dar a minha opinião, talvez coincidente com outros camaradas de blogue, sobre os acontecimentos pós-independência. Assim sou a expor:

(i) Foi mais fácil perdoar a Alpoim Calvão e outras personalidades portuguesas congéneres do que aos próprios guineenses. Porquê? Em causa esteve a cor da pele e a rivalidade existente entre etnias. Uma coisa foi ter-se combatido contra um inimigo branco considerado estrangeiro, ocupante e opressor. O abandono da luta e regresso ao país de origem, como foi o nosso caso, foi considerado para os guineenses uma vitória e isso bastou. Outra coisa foi combater contra um irmão da mesma cor, natural do mesmo chão e falando a mesma língua - pondo de parte o português que só oficialmente é língua da Guiné - que no pós guerra continuou a ocupar o mesmo espaço – no caso a Guiné-Bissau. O desejo de vingança foi naturalmente mais forte e o inimigo continuava ali mesmo à mão. Não esqueçamos também as rivalidades ancestrais entre as diversas etnias. Olhai, a propósito, para o triste exemplo de Timor, hoje [24 de Maio de 2006] mesmo notícia nos telejornais.

(ii) Os Comandos africanos seriam os principais alvos, porque eles foram os mais sanguinários. Mataram a torto e a direito os seus verdadeiros compatriotas, indistintamente mulheres e crianças, civis ou militares. Não se pode desmentir ou branquear esta verdade. Lembro-me de uma operação helitransportada feita a partir de Mansabá, era Comandante o então Major Almeida Bruno. Aquilo demorou dois ou três dias e, na volta, um dos militares, que trazia pendurada a tiracolo uma lata, dizia cheio de orgulho e apontando para ela: Manga de orelhas, manga de orelhas. Nunca percebi se aquilo eram troféus de caça ou se se destinava a fazer algum petisco.

(iii) Pergunto: Aqueles que combateram pelo nosso lado, fizeram-no por convicção política e/ou patriótica ou, pelo dinheiro e condições de vida que a luta lhes proporcionava a eles e às respectivas famílias? Estariam eles convencidos que a guerra era interminável e por isso nunca se preocuparam com o seu futuro?

(iv) Foi notória a dificuldade que o país teve para receber e integrar todos os retornados e refugiados -filhos de colonos lá nascidos - vindos das ex-colónias. Como se integrariam cá os ex-combatentes que só sabiam de guerra, porque nunca tinham feito outra coisa na vida?

(v) Finalmente, com a devida vénia, faço minhas as palavras do nosso camarada João Tunes no Post 777 (2) do nosso Blogue.

Carlos Vinhal
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 25 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCV: O colaboracionismo sempre teve uma paga (1) (A. Marques Lopes)

(2) Vd. pots de 24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: Fazer a catarse antes de vestir a toga de juiz (João Tunes)

Guiné 63/74 - P800: O colaboracionismo sempre teve uma paga (4) (Pepito)

Mensagem do nosso amigo Pepito:

Caro Paulo:

Uma muito breve resposta:

1. Dificilmente compreenderei que não se queira matar uma pessoa, bombardeando a sua casa. O Mar Verde fez isso e só a posteriori é que souberam que Cabral não estava lá.

2. Aceito sem nenhuma dificuldade que, mais tarde, o Spinola tenha alterado a estratégia e preferido ter Cabral vivo como troféu de guerra, do que morto e sem serventia para ele. Daí que aceite sem reservas a sua afirmação quando tomou conhecimento do assassinato de Cabral: "Lá me mataram o homem".

3. Acredito que o plano era o de prenderem Cabral, aliás como fizeram ao Aristides Pereira, e trazê-los para Bissau. Para um chefe militar seria uma vitória rotunda. Só que os executantes ou porque apavorados (explicação para a qual mais me inclino) ou porque mandatados, não aguentaram a pressão do momento e mataram-no.

4. O tiro saiu pela culatra. Os aliados de dentro do PAIGC ficaram, uns sem margem de manobra, outros foram passados pelas armas. Nessa ocasião foram feitos muitos ajustes de contas dos quais ainda hoje estamos a pagar a factura e que leva grande parte dos combatentes a não ousar tirar cá para fora os segredos de então. Mas isto é outra conversa, para outra altura. O resultado do assassinato fez a luta endurecer e acelerar o 25 de Abril.

5. Com sinceridade, no caso vertente, não procuro saber de que lado está a razão (o acesso à independência é hoje um direito reconhecido por todos, independentemente do que se fez, ou não, com ela). Gostaria de continuar a conhecer toda a história e tenho uma pena enorme de ver partir compatriotas meus com tantas estórias para contar que nos ajudariam a perceber melhor o que hoje se passa.

abraços
pepito

Guiné 63/74 - P799: O colaboracionismo sempre teve uma paga (3): Paulo Raposo

Mensagem de Paulo Raposo:

Caro Pepito:

Daquilo que eu sei, Spínola foi para a Guiné com a missão de entregar o governo do território a Amílcar Cabral e em consequência desviar o esforço de guerra da Guiné para Moçambique, e assim o nosso problema em África ficava resolvido.

A eliminação de Amílcar não nos interessava, bem antes pelo contrário. Com a assassinato dos três Majores que estavam em negociações com o PAIGC, é que veio a deitar por terra a ponte que se estava a estabelecer.

Com esta porta de saída fechada os militares do quadro na Guiné começam a revoltarem-se pois não havia solução da crise à vista. Revolta ou onda que se começou a crescer levou ao 25 de Abril.

A ida de Alpoim a Conacri foi numa de última tentativa de aí tentar um golpe de Estado, para colocar um governo que não nos fosse hostil. Tudo correu mal.
Vieram os nossos rapazes que ali estavam presos e destrui-se muito material de guerra, que trouxe um pouco de acalmia às nossas tropas, mas por pouco tempo.

Sobre esta matéria ainda há muita história para se escrever. Há muita matéria que nós não conhecemos. Mas a razão fica sempre do lado do vencedor.

Um abraço para todo o pessoal
Paulo Lage Raposo

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P796: O colaboracionismo sempre teve uma paga (1) (A. Marques Lopes / José Teixeira)


Guiné >Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968> Um prisioneiro do PAIGC.

Foto: © A. Marques Lopes (2005)

Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...

O colaboracionismo sempre teve uma paga (1)
Caros camaradas e amigos:

Tenho lido tudo o que têm escrito sobre os fuzilamentos e outras mortes dos comandos africanos e outros guineenses que estiveram a combater do lado da tropa portuguesa durante a luta de libertação na Guiné. Já escrevi, em tempos, sobre isso para o blogue. Porque o tema está aceso, vou ver se me lembro do que disse na altura e acrescentar mais algumas coisas.

Também sei de alguns dos meus jagudis que foram mortos após a independência, e de outros que tiveram de fugir para o Senegal. Falei-vos já, no blogue, do Braima Seidi, o meu guia em Barro, conhecedor dos trilhos e das zonas do tarrafe por onde os guerrilheiros passavam, tendo resultado da sua colaboração muitas e pesadas baixas para o outro lado.

Contei-vos que, em 1998, quando perguntei ao Cacuto Seidi por ele, este chefe da tabanca de Barro me disse, um pouco atrapalhado:
- Mataram ele depois da independência...

Também vos falei da filosofia de vida dos meus soldados da CCAÇ 3, da sua atitude perante os feridos que o PAIGC deixava no terreno, e que era:
- Deixa estar, alfero, vem jagudi e come...

O Braima Seidi, caçador conhecedor da zona, recebia 2.000 escudos por mês por essa sua colaboração, vivia bem na tabanca, com quatro mulheres. Um cabo daquela companhia recebia 1.400 escudos mensalmente (não me lembro quanto recebiam os soldados) (2), com comida, bebidas sempre à disposição, e assistência médica em Bigene, quando necessário. Apesar de também andarem na guerra, uma vida muito diferente do pessoal da guerrilha que vivia no mato.

No final da segunda grande guerra, a resistência francesa matou muitos colaboracionistas, a italiana assim fez, no Vietname, após a vitória, fizeram o mesmo, os franquistas fuzilaram muitos republicanos...
- Vae victis! Ai dos vencidos! - já os romanos diziam.

Não estou a fazer a apologia desses procedimentos, estou a dizer que eles sempre fizeram parte da história dos vencedores. Claro que também houve os Nurembergas em que os vencedores, muitos também com culpas no cartório, fizeram o julgamento daqueles que venceram. Mas foi diferente, evidentemente.

Tenho pena e gostava que as coisas não se tivessem passado assim na Guiné, porque, como vós, vivi e convivi com aqueles guineenses que lutaram ao meu lado. Não sei dos meandros das conversações em Londres para formalizar a independência, espero que o Paulo Reis um dia me esclareça sobre isso. Mas parece-me que a solução desse problema, o futuro dos que estiveram do nosso lado, não teria sido tarefa fácil.

Num país saído de uma revolução, como foi nosso, em ebulição em 1974, perto da guerra civil em 1975, que poderia ter sido feito? Embarcar toda essa tropa guineense, habituada à guerra e a matar, misturá-los com os muitos milhares de retornados que cá estavam já, acasalá-los com os vários grupos políticos que se degladiavam, às vezes de forma violenta, encostá-los ao MDLP...? Tentar que fossem para outro país africano, tentar passar a batata quente? Mas qual dos países africanos, já com gente da mesma estirpe, os aceitaria?

Outra hipótese, que me disseram ter existido, seria negociar a integração deles nas Forças Armadas da nova Guiné-Bissau. Mas, há que admitir, isto também terá sido demasiado complicado conseguir. Com os ódios todos ao de cima (que é natural que houvesse entre guineenses que se combateram mutuamente, embora connosco isso não sucedesse), não os estou a ver em conjunto numa caserna, não estou a ver um capitão dos comandos africanos a comandar uma companhia de ex-guerrilheiros... Não estou a ver o Marcelino da Mata em convívio com o comandante Lúcio Soares.

Gostaria que tivesse havido uma solução. Mas não foi fácil, acredito. Não por cobardia, nem pusilanimismo, nem por abandono dos responsáveis portugueses da altura, governo, MFA ou Conselho da Revolução. Num país em agitação revolucionária, mesmo em polvorosa, com militares politicamente inexperientes, terá sido extremamente difícil manobrar de forma ardilosa e segura, havendo tantas coisas de difícil tratamento por cá.

Está visto que o problema teve que ficar nas mãos dos vencedores, donos da Guiné. Estes poderiam, se com uma mão firme e esclarecida a dirigi-los, ter optado pelo menos chocante e, na situação, aceitável até para nós: deixá-los estar, remetendo-os ao abandono. O tempo traria outra soluções (ou outros problemas, sabe-se lá...). Mas o caboverdeano Luís Cabral, como me disse o ex-paraquedista Camará, não conseguiu ter pulso e foi ultrapassado pelas iniciativas dos ex-comandantes das guerrilhas locais, pelas iniciativas das figuras históricas do PAIGC naturais da Guiné, como o Nino Vieira, o Gazela e o Chico Té. E foram estes que incentivaram à vingança dos vencedores... a outra paga. E, como se sabe, o próprio Luís Cabral teve de ir embora.

Mas cada um tem a sua visão pessoal desta questão, é claro. Acontece em tudo. Sobre o outro lado da moeda, isto é, as atrocidades cometidas pelos comandos africanos, pela PIDE e outros que tais, não vou acrescentar mais ao que o João Tunes e o Pepito já disseram. Estou completamente de acordo com eles.

Um abraço
A. Marques Lopes

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2. Texto do de José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Luís e camaradas tertulianos.

Não posso ficar indiferente ao tema que ultimamente (e ainda bem) enche as páginas do blogue – Os comandos Africanos do exército português abandonados à sua sorte e, quantos deles, assassinados pelo PAIGC.

Todos nós que por lá passámos, vimos, ouvimos e até lemos os actos heróicos que os comandos e os soldados da milícia africanos cometeram contra os seus irmãos. Eles gabavam-se, mostravam os seus trunfos de guerra (orelhas, cabeças, roncos, etc.) e quantos de nós batiam palmas e incentivavam. Era menos um inimigo, mais uma chance para nós, que queríamos voltar sãos e salvos. Esta é a verdade.

Em O Meu Diário expressei o horror que senti, quando o já falado Candé, Alferes comando que chefiava o grupo que estava estacionado em Aldeia Formosa, num encontro com o IN, que tinha emboscado a minha Companhia apareceu com as orelhas dos IN que o seu grupo tinha abatido. Foi um choque horrível para quem estava há 3 meses na guerra.

Certo é, que com o grupo do Candé no terreno nós sentíamo-nos mais seguros e o IN mantinha distância.

Creio que se o Comandante da força estacionada, ou o Comando Chefe de quem diziam dependia directamente, não alimentasse com alvíssaras estas atitudes ou as reprimisse por não serem de modo algum enquadráveis na Convenção de Genebra, o Candé teria de tomar outra atitude. Isto é, ele e o seu grupo foram treinados e instrumentalizados para cometer actos indignos do ser humano e eram pagos para isso.

Quantos de nós (não pretendo acusar nem desculpabilizar ninguém) fomos levados a cometer actos dos quais, após a terminar da Comissão e regressados sãos e salvos sentimos quanto fomos instrumentalizados para o fazer ?

Quantos de nós, pessoas de bem, educados numa religião que premeia a paz como objectivo, nos dispúnhamos apenas a tentar safar a pele, logo evitar fazer guerra, quer dizer matar para sobreviver e face ao perigo, reagíamos de forma tão diferente, forma que desconhecíamos em nós e nos tornávamos insensíveis ao sofrimento e à dor que poderíamos provocar ?

Quantos de nós, (des)politizados, víamos a ida para a guerra como uma missão patriótica a cumprir cegamente ? A Pátria chamava . . .

A quem culpalizar ? A quem desculpar ?

O ambiente gerado e bem alimentado pelo poder politico militar de exploração da divisão étnica dos autotóctenes resultou em crimes graves de parte a parte.
Não creio que o PAIGC, fosse mais meigo, quando apanhava comandos ou milícias africanos.

Não está em causa desculpabilizar os actos cometidos por essa gente, como não podemos culpabilizar os actos condenáveis pela Convenção de Genebra (que creio só poucos de nós à data tinham conhecimento) cometidos por camaradas nossos sem causa justa ou seja sem que fosse em legítima defesa.

Todos sabemos que quando se entrava numa tabanca considerada IN, tudo o que aparecesse à frente era IN para abater e era ronco, enviar no comunicado para o Comando Chefe, tantos IN abatidos. Mulheres, crianças, velhos, homens desarmados. Quantos ?

Eram colegas nossos, a quem lhes fora inculcado que eram filhos da mesma Pátria, embora o poder político, sempre os considerasse e tratasse portugueses de segunda, o que a meu ver não pode ter perdão.

Combateram a nosso lado, quantos de nós lhe devemos a vida. A sua prática e conhecimentos de guerra, o conhecimento do terreno, das armadilhas que o IN colocava, a temeridade que provocavam ao IN, foram ou não factores que nos facilitaram o regresso ?

Por esta razão se mais não houvera, não podiam ser abandonados à sua sorte, sabendo os nossos comandantes, seus ordenantes, que, naturalmente, ficariam com a cabeça a prémio. O esforço que se fez (e o mérito vai para o Carlos Fabião) foi demasiado pequeno para quem tanto deu a Portugal.

Tenhamos consciência, no entanto, que quem estava na frente da guerra eram os milicianos, gente que de algum modo estava forçada e logo que vislumbrou uma frecha para eliminar o perigo de morte para os seus homens, baixou os braços, entregando o seu espaço de manobra ao até então IN, agora companheiro. Há quem chame a isso cobardia, sobretudo os saudosos do passado.

Eu que vivi uma guerra com o propósito de não dar um tiro e consegui-o, tendo por isso já ouvido essa palavra feia de cobarde, consciente da realidade no terreno, aceito essa atitude como um acto normal de quem não queria fazer guerra e tinha sido empurrado para ela.

As altas esferas militares e políticas, os dos gabinetes com ar condicionado, os responsáveis que aplaudiam e alimentavam os seus actos, esses sim tinham o dever de acautelar as vidas e o futuro desta gente generosa.

Creio que faltou a comunicação, o diálogo com as nossas forças no terreno, já que o sistema implantado até então, de ordens de comando, com a queda do regime, se esfumou. Foi um salve-se quem puder. Os grandes foram os primeiros a dar o pira à procura de novos tachos. Os desgraçados que não puderam, que não tinham para onde ir, esses pagaram caro. Para muitos a fuga para o mato, para o Senegal na tentativa de agarrar Lisboa. Outros ou não tiveram tempo, ou acreditaram nas falinhas mansas do lobo. Pagaram com a vida. As vidas que nós, os antigos combatentes, agora choramos e lamentamos.

A culpa, aqui não morreu solteira. São o Estado Português e o PAICG.

O PAIGC, servia-se, a meu ver, exactamente das mesmas técnicas, em que a exploração da divisão étnica era naturalmente alimentada. Tal como Portugal, controlava as tabancas nas suas áreas de influência e condicionava os habitantes. Servia-se destes, desde a produção de produtos alimentares para os guerrilheiros, o transporte de equipamento, para os ataques, o arrebanhar de crianças e jovens para as suas fileiras, tal como nós com a milícia e os Comandos africanos.

Era uma terra dividida. De qual lado estavam os bons ou os maus ? O diabo que escolha! O ódio era alimentado e explorado por todos os comandos das forças no terreno. Era a guerra.

Nós, os Portugueses, de um momento para o outro parámos. Esta guerra perdera toda a razão de ser. Não tinha lógica, era contra natura. O PAIGC, entendeu esta atitude como uma derrota nossa, logo uma grande vitória, o que não foi verdade. Assumiram-se como vencedores e ai dos vencidos , como diziam os romanos.

Os seus heróis apareceram na ribalta como os novos senhores. A sua verdade era a única possível. Os seus conhecimentos de gestão política eram nulos, para não falar na económica e na social, que talvez nunca tinham ouvido falar. Eles não acreditavam numa vitória tão fácil. O poder caiu-lhe nas mãos. Tinham a obrigação de procurar entender o povo que se colocou na outra banda da barricada, eram seus irmãos de pátria. Da Pátria que afirmavam querer construir. Não eram os seus heróis, bem pelo contrário, mas eram parte do seu povo.

Podiam proceder a julgamentos e eventualmente condenar, pois os crimes praticados foram realidades concretas, mas . . . ( O raio do mas aparece sempre). Quantos dos vencedores estavam e estão isentos de culpas ? Quantos dos seus homens, senão eles próprios, não cometeram actos idênticos ?

Não posso aceitar, julgamentos sumários sem defesa, ou condenações à morte sem julgamento. Foram assassinatos puros, quantos deles de forma violenta como a do Candé de Aldeia Formosa. Foram perseguições às famílias dos que se refugiaram no mato ou no estrangeiro. Foi a caça ao homem, meu irmão.

Como gostava de reencontrar hoje o Candé, como encontrei o Braima, Kebá o Ussumane e tantos outros que combateram a meu lado, que me defenderam a vida.

Como gostava de reencontrar o Abdulai Djaló de Mampatá Forea, com quem passei noites em conversa até adormecer na sua esteira, eu, ele e a mudjer dele. Sei que fugiu para o mato com destino ao Senegal. Nunca mais se soube onde foi parar.

Há tantas coisas em comum para partilhar, tal como entre nós os tertulianos da Luisiana ideia, que apesar de não nos conhecermos pessoalmente parece que até estivemos juntos naquela aventura, tal é a ligação afectiva que nos une.

Creio que era a melhor forma de afastarmos os fantasmas que povoam o nosso imaginário.

Bem hajam os tertulianos que levantaram e estão a provocar este debate.

Um fraternal abraço

Zé Teixeira
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Notas de L.G.:

(1) Colaboracionismo: Actividade, comportamento, atitude ou interesse de colaboracionista, ou seja, de pessoa que colabora com ou apoia o inimigo que ocupa, total ou parcialmente, o território do seu país (Dicionário Houaiss da Lígua Portuguesa, 2002).

O termo fancês collaborationniste surgiu em 1940, na sequência da ocupação da França pelo exército alemão e a constituição do Governo de Vichy, presidido pelo Marechal Pétain (1851-1951), o herói de Verdun na I Guerra Mundial. Depois da libertação, Pétain foi condenado à morte por alta traição, sentença comutada em prisão perpétua. HGouve outrois governos colaboracionistas durante a II Guerra Mundial: Bélgica, Holanda, Noruega (com o famigerado Vidkun Quisling, abertamente favorável aos nazis), Croácia, Hungría bem como noutras partes da Europa de Leste...

(2) Vd. pst de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)

"(...) E os nossos soldados africanos, que eram praças de 2ª ? Tenho ideia que ganhavam seiscentos pesos, mais outro tanto (25 pesos / dia) por serem desarranchados... Como eram islamizados, não podiam comer a comida do tuga, pelo que foram mais tarde autorizados a receber o subsídio de alimentação... Mandaram-me isso à cara, no Xime, quando morreu o Cunha e o restante pessoal da CART 2715... Os sacanas tiveram um momento de hesitação, antes de aceitarem ir comigo resgatar os corpos dos nossos camaradas mortos, à cabeça da coluna (vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970):- Pessoal africano só ganha seiscentos pesos! - Que é como quem diz: vai lá tu, que os mortos são do vosso sangue, são do vosso chão, são da vossa terra, são tugas... Foi o único momento, em toda a minha comissão, em que vi os nossos soldados terem medo"...