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quinta-feira, 7 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25247: O nosso livro de visitas (221): O nosso camarada António Inácio Correia Nogueira pôs à disposição da tertúlia a Tese que apresentou à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia

1. Mensagem deixada no Formulário de Contacto do Blogger pelo nosso camarada António Inácio Correia Nogueira:

Caros camaradas
No contexto dos 50 anos do 25 de Abril ponho à disposição de todos no Repositório Institucional da Universidade Fernando Pessoa o documento "Capitães do Fim", na sua versão completa.
Para isso vão a http://hdl.handle.net/10284/5079

Um abraço e um obrigado do tamanho do mundo pelo magnifico trabalho que têm vindo a desenvolver.

Cumprimentos,
António Inácio Correia Nogueira


********************

Tese apresentada à Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia

"Capitães do Fim" - Resumo


Nos anos terminais da Guerra do Ultramar, a Academia Militar deixou de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Os Capitães do Quadro Permanente soçobraram. Ficou-se em presença de um Exército quase miliciano, num clima de forte contestação à guerra e de fraca motivação para lhe dar continuidade.

 No entanto, a defesa do Império, a todo o custo, era a política vigente, apesar do visível cansaço da Nação. Para ajudar a obviar este desiderato, e de forma surpreendente, foi determinada por despacho de 20 de Julho de 1970 do Ministro do Exército, Horácio José de Sá Viana Rebelo, a formação acelerada de Capitães milicianos na Escola Prática de Infantaria. Formaram-se à volta de cento e sessenta por ano. 

Em cerca de catorze meses fazia-se de um estudante universitário, quase sempre, em estádio avançado de licenciatura ou já licenciado, um Capitão combatente para actuar nos teatros de guerra mais exigentes de Angola, da Guiné e de Moçambique. O modo de selecção destas novas elites pelejadoras, e a formação apressada a que foram sujeitas, deram ensejo a que alguns as apelidassem, desdenhosamente, de “Capitães de proveta” ou “de “aviário”. Aplica-se, neste contexto, em alternativa, a expressão Capitães do Fim. 

Como foram seleccionados, formados e que desempenhos e protagonismos tiveram estes Capitães, nos teatros de Angola, da Guiné e de Moçambique, no comando de Companhias em quadrícula ou independentes de intervenção? A resposta tem enquadramento na sociologia e na história, ainda que de especificidade militar, em coerente continuum de procedimentos metodológicos qualitativos e quantitativos. Com recurso a autobiografias e a histórias de vida de guerra de muitos dos actores-Capitães ainda vivos, valorando-se dessa forma o tecido da participação-acção, entrecruzando os fios de vida das pessoas com aquilo que foi o seu terreno, o irrepetível e o individual, e contribuindo para a construção de conhecimento, procura trazer-se luz a um assunto que, no tempo, vai certamente, com reinterpretações, ter continuidade de investigação.

********************

Sobre o autor:

- António Inácio Correia Nogueira é licenciado em Ciências Físico-Químicas e professor do Ensino Secundário
- Em 1971 foi para o CTIG para integrar a CCAÇ 16 como Alferes Miliciano
- Em 1972 seguiu, como Capitão Miliciano, para a Região Militar de Angola como Comandante da CCAV 3487 / BCAV 3871, de onde regressou em 1974.

____________

Notas do editor:

Vd. poste de 24 DE AGOSTO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25200: O nosso livro de visitas (220): Leitora Marie, filha do nosso camarada Joaquim Pires Lopes da CCAÇ 312, Moçambique, 1962/64, procura documentos e fotos da unidade de seu pai

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23849: Fichas de unidades (29): BCAÇ 4616/73 (Bambadinca, 1974)

1.  O BCAÇ 4616/73 é uma daqueles unidades que podíamos pôr na série "Os nossos últimos seis meses"... ou nas "Memórias dos últimos soldados do império"...

Chegou ao CTIG já no início do ano de 1974 e regressou à metrópole oito meses depois, no início de setembro. Como  se tornou normal, nos últimos anos da guerra, o comandante da CCS era um capitão SGE (oriundo da Escola Central de Sargentos) e os comandantes das subunidades operacionais eram todos milicianos...

Lamentavelmente não tem história da unidade... Mas o livro da CECA, diz que na parte final da comissão, "adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC."

Se repararmos na ficha da unidade, a seguir reproduzida, a 2ª C/BCAÇ 4616/73 (sediada no Xitole) em oito dias "fechou a porta duas vezes", primeiro a do Xitole e depois a de Bambadinca, o mesmo é dizer, desativou e entregou ao PAIGC o  setor L1 (parte importantíssima do "chão fula" (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole):

(...) Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector. Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.(...)

Vale a pena juntar (e reflectir sobre) estes factos (*)...


Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores n.º 4616/73


Identificação: BCaç 4616/73

Unidade Mob: RI 16 - Évora

Cmdt: TCor Inf Luís Ataíde da Silva Banazol | TCor Inf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

2.° Cmdt: Maj lnf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

OInfOp/Adj: Cap lnf Bernardino Luís de Matos Pereira Torres

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Domingos Roque

1ª Comp: Cap Mil lnf Augusto Vicente Penteado

2.ª Comp: Cap Mil lnf Luís Fernando de Andrade Viegas

3.ª Comp: Cap Mil lnf João Lontra Leite Martins


Divisa: "Conduta Brava e Distinta" 
 [de acordo com a imagem do brasão, acima reproduzida, colecção Carlos Coutinho, 2009, com a devida vénia]

Partida: Embarque em 30Dez73; desembarque em 05Jan74 |  Regresso: Embarque em 12Set74 (1*  e 2*: Comp), 15Set74 (3ª Comp) e 16Set74 (Cmd e CCS)


Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 9Jan74 a 6Fev74, no CML, em Cumeré, seguiu depois, com as suas companhias, excepto a 3ª Comp, para o sector de Bambadinca, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com o BArt 3873, de 13Fev73 a 8Mar73.

Em 9Mar74, assumiu a responsabilidade do Sector LI, com a sede em Bambadinca e abrangendo os subsectores de Mansambo, Xime, Xitole e Bambadinca.

Desenvolveu a actividade operacional adequada às características do sector, com realização de várias operações, patrulhamentos, emboscadas dos reordenamentos de Nhabijões, Samba Silate e Bambadinca e de construção, manutenção e controlo dos itinerários da sua zona de acção. 

Na parte final, adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuada nos subsectores de Xitole, em 1Set74, de Mansambo, em 2Set74 e de Bambadinca e Xime, ambos em 9Set74.

Em 2Set74, após desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bambadinca, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 1ª Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3494 na região de Mansambo, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Mansambo, tendo destacado um pelotão para Bambadincazinho, este no subsector de Bambadinca, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 22Ago74, dois pelotões seguiram para Porto Gole e destacamento de Bissá, a fim de substituirem a 1ª Comp/BCaç 4612/72 a partir de 26Ago74, os quais ficaram na dependência do BCaç 4612/74, procedendo depois à desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bissá, em 1Set74 e de Porto Gole, em 2Set74, após o que recolheram a Bissau.

Em 2Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Mansambo, a companhia, então a dois pelotões, deslocou-se transitoriamente para Xime, recolhendo em 8Set4 a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 2ª  Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3492 na região de Xitole, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Xitole, com um pelotão destacado na ponte do rio Pulom, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector.

Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 3ª  Comp cedeu, a partir de 5Jan74, um pelotão para reforço da 2ª Comp/BCaç 4512/72, o qual se instalou em Jumbembém. 

Em 11Fev74, a subunidade seguiu para Farim, a fim de efectuar o treino operacional com a CCaç 4944/73, sob orientação do BCaç 4512/72 e seguidamente reforçar este batalhão, a fim de fazer face ao agravamento da situação na sua zona de acção.

Em 23Mar74, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 4512/72, foi toda colocada em Jumbembém, em reforço da actividade da guarnição local, tendo destacado um pelotão para Canjambari, também em reforço da guarnição local, de 23Mar74 a 2Jun74.

Em 6Jun74, substituindo a 1ª  Comp/BCaç 4516/73, assumiu a responsabilidade do subsector de Farim.

Em 7Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Farim, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações -  Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.195/197. (**)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23828: Notas de leitura (1525): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte V: VPV: "O grande significado do livro, de Spínola, Portugal e o Futuro, era vir a público dizer que a guerra estava perdida"...


1. Vasco Pulido Valente não gostava dos militares, nem dos capitães de Abril, nem muito menos do general Spínola. (Quanto aos antigos combatentes, ignorava-os, pura e simplesmente.) 

Nas entrevistas que dá ao jornalista João Céu e Silva não trata bem nem uns nem outros. Referimo-nos ao livro "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), de que já fizemos cinco notas de leitura (com esta) (*)

Algumas das suas declarações, que ficam agora para a posteridade, mostram como ele tinha tendência, apesar da sua formação académica (e científica), para usar e  abusar do cliché, do estereótipo, do juízo algo sumário. Talvez defeito da sua prática jornalistíca, da "escola de O Independente" (onde fez tandem com Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso e outros)  , do gosto pela parangona,  o "título de caixa alta",  a frase bombástica, as letras garrafais...  Panfletário, afinal, coisa que não deve ser um historiador.

Veja-se o que ele diz sobre o Spínola (mais o político do que o militar, e muito menos o comandante-chefe e governador-geral da Guiné): "o homem era muito estúpido, mesmo bronco" (pág. 184). (Provavelmente, ainda há hoje portugueses que  pensam assim, num juizo a preto e branco, mesmo que publicamente não o manifestem; VPM tinha fama de dizer em voz alto aquilo que alguns ou até muitos pensavam em voz baixa, da nossa elite dirigente, política, de Spínola a Cavaco, de Otelo a Cunhal, mas também social, económica e cultural).

Não tenho ideia de, ao longo do livro, ele citar outros historiadores que estudaram ou analisaram o mesmo período (o fim do marcelismo e o 25 de Abril) ou as mesmas figuras (como o Spínola e o Costa Gomes, de que há já biografias "académicas" e livros de memórias)... 

No caso do Spínola, por exemplo, poderíamos citar o Carlos Alexandre Morais, que foi seu íntimo colaborador na Guiné ("António de Spínola. O Homem. Lisboa, Editorial Estampa, 2007) (**) ou o seu biógrafo, Luís Nuno Rodrigues ("Spínola: biografia". Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010) (***).

Em suma, VPM não parecia gostar do contraditório e tinha tendência para desvalorizar o trabalho de outros historiadores, seus colegas, de "outras escolas" (teóricas ou institucionais): afinal ele vinha de Oxford ...Para ele, os historiadores portugueses, mesmo os bons, eram "amadores" e a universidade portuguesa não lhes oferecia as necessárias condições para trabalhar a sério: a biografia de Salazar, por exemplo,  para ser um trabalho sério, teria que levar uns bons... quinze anos, uma vida!...

Mas VPM não dizia sempre mal dos militares: afinal, pagavam bem quando estes o convidavam, no pós-25 de Abril. para fazer conferências (por ex., no Instituto de Altos Estudos Militares), tinham sítios seletos onde não entravam "saias",  com bares bem  recheados e requintados...

2. Vejamos então o que VPV (em final de vida, ele devia ter consciência disso, do seu "prognóstico reservado"...)  disse ao João Céu e Silva sobre Spínola e o seu livro ("Portugal e o Futuro", lançado em fevereiro de 1974),  além do seu papel no "fim do regime" e no pós-25 de Abril..

(Confesso que também li o livro, na altura, sem entender grande coisa da "solução política" que o autor propunha para as colónias..., mas tive logo a sensação  que era, pelo menos, uma pedrada no charco do marcelismo; devo tê-lo, ao livro, algures guardado no sótão, já roído pelos ratos... Sim, como diz o VPV, toda a gente foi comprar e ler o livro, sem entender patavina do que o homem dizia e sobretudo do que iria acontecer a seguir...)

Spínola e O Spínola que eu conheci são dois descritores do nosso blogue: temos cerca de 450 referências, o que é obra... Apesar de ser (ou ter sido) uma figura controversa como militar e como político.

 

(i) Spínola, Portugal e o Futuro  (1974) 




P- O livro de Spínola, Portugal e o Futuro, foi a machada final no regime ?


R- Sim, porque se o vice-comandante das Forças Armadas em todos os territórios em que se está em conflito vem a público dizer que a guerra está perdida, então a guerra está mesmo perdia.

Foi isso que Spínola fez, esse é o grande significado do livro Portugal e o Futuro [lançado a 22/2/1974] e não o que lá estava escrito, que era uma quantidade de dislates que não convenciam (pág. 150) ninguém. 

O livro não tem qualquer importância e é um dislate, pois defendia uma comunidade de estados portugueses em África governada por um centralismo democrático!

(…) Fazia-se uma federação com todas as colónias e depois, para evitar que houvesse negros independentistas nas assembleias, governava-se aquilo com centralismo democrático. Isto são ideias de um partido estalinista, à PCP.

O verdadeiro significado do livro, no entanto, era o de que a guerra estava perdida e essa verdade simples era dita pelo vice-chefe do Estado-Maior – General das Forças Armadas – portanto, estava perdida” (pág. 181).(… )

Ficou marcada a posição de Spínola, que resultou depois na presidência da Junta de Salvação Nacional – foram buscar Spínola por causa do livro. (pág. 183).

 Spínola: imagem à direita,  retirada da capa do livro de Luís Nuno Rodrigues, "Spínola: biografia",(Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010), com a devida vénia...



(ii) E depois,  o  Mário Soares ainda lhe dará uma comenda...


(…) A PIDE sabia disto tudo [a preparação do 25 de Abril] e, segundo Otelo, não investigou nada, não os seguiu, não atrapalhou a conspiração, porque, se não tinham medo dos civis, já dos militares tinham e muito, e também não sabiam como é que estes iriam reagir. Sabiam de tudo mas não tocaram em nada (pág. 183).

(…) As tropas milicianas mercenárias eram uns tipos que estavam aparafusados a nada senão a um regime que lhes pagava para combater, não eram as Forças Armadas de Portugal. Estas tinham uma legitimidade e um sentido que os milicianos nunca poderiam ter.

O Spínola é a peça principal para o fim do regime mas não tem o poder. Esse está nas mãos dos capitães desde o princípio.

(…) Os golpes do Spínola [depois do 25 de Abril] têm aquele ar de touradas: “Eu sou muito valente, eu é que pego o touro”. Foi assim no 28 de Setembro e foi assim no 11 de Março, uma exibição do marialvismo português. Eu li um relato de um capitão que lá esteve e que conta esses episódios de Spínola: “Vou eu,vou eu” (pag. 184)

(…) Aquilo era uma coisa totalmente improvisada, o homem era muito estúpido, mesmo bronco, e não havia qualquer organização… (pág. 184)

(…) Os capitães [conseguem toureá-lo], coletivamente, são mais espertos do que ele. O homem não via realmente o que estava a fazer. Pode-se dizer que ele era um exemplar que vinha de um regime caduco e que não estava no seu tempo” (pág. 185)

(…) [Soares ainda lhe deu uma comenda] , mas foi por outras razões. Quando Soares quis elimibar o poder militar que havia em Portugal, ou seja, o Conselho da Revolução, pediu ajuda aa Spínola para ver se provocava os capitães, e pô-lo nos festejos de abril. Foi a provocação máxima que se podia fazer aos capitães. (pág. 183)

João Céu e Silva recorda um escrito de VPV de 1993 (sem citar a referência bibliográfica):

(…) Quando entrei no Instituto Superior de Economia para dar umas vaguíssimas aulas no outono de 1973, compreendi, aliás sem dar grande importância à coisa, que o homem [Marcello Caetano,] estava perdido.

O retrato de Amílcar Cabral ornamentava a cantina, os “exames” consistiam em trabalhos coletivos, os professores eram marxistas-leninistas e a classe média explorava, com aplicação, os prazeres do sexo

O mundo autoritário e austero do Estado Novo morrera e com ele a guerra colonial. (pág. 185).

 [Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos e itálicos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23825: Notas de leitura (1524): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Sobre o VPV, vd a última notas de leitura de LG:


(***) Vd. poste de  6 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6329: Notas de leitura (101): Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

1. Estivémos a ler o livro de João Céu e Silva (ribatejano de Alpiarça, nascido em 1959, escritor e jornalista), "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.).

A pensar nos leitores do blogue, já fizemos duas notas de leitura (*), onde ficou patente a nossa opinião posiva sobre a obra. É um trabalho de grande fôlego e meritório, que resulta de uma verdadeira  maratona de entrevistas (42 ao todo, realizada ao longo de 2 anos, quase até ao fim da vida do entrevistado).

O protagonista desta "longa viagem" é o historiador, ensaísta, cronista, jornalista, analista político e também efémero político Vasco Pulido Valente (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes (1941-2020).

Independemente dos aspetos mais polémicos da vida e obra do entrevistado (que, no campo do jornalismo quis, de certo, certo reeditar, um século depois,  As Farpas, do Ramalho Ortigão e do Eça de Queirós),  interessa-nos destacar algumas das ideias que ele gostava de explanar sobre a história do nosso país, e nomeadamente a do período que vai dos anos 30 até ao 25 de Abril de 1974, período esse onde cabe, por inteiro,  a nossa geração, justamente a que fez  "a guerra e a paz"...

Deste livro, aos nossos leitores deverá interessar,  sobretudo, o que diz respeito, direta ou indiretamemente à guerra colonial e às forças armadas, incluindo o 25 de Abril e a descolonização. 

Vamos reproduzir e analisar mais alguns excertos, com a devida vénia: (i) Salazar e as Forças Armadas; e (ii) Marcello Caetano e o Exército. (Em itálico, as declarações do VPV. Seleção, revisão, fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue, bem como notas complementares dentro de parêntes retos: LG) (**)

 Salazar 

e as Forças Armadas


(...) O Exército tinha duas coisas na sua mão: a sua força material e o poder. Foi assim durante muito tempo com o Carmona na Presidência da República e com ele ficou a tradição de ser sempre um militar no cargo.

Seguiu-se Craveiro Lopes, que indispôs Salazar, pelo que este não lhe renovou o mandato e, depois, Thomaz. (….)

Essa autonomia [uma certa independência do Exército dentro do regime] fez com que Marcello Caetano chamasse ao regime uma ditadura bicéfala: quando uma componente falhasse, a outra não falhava.

(…) Salazar (…) sabia que a ditadura só era eficaz se fosse bicéfala e se o Exército tivesse uma certa autonomia.

Ia-lhe custando caro durante a guerra colonial, mas sempre insistiu que era presidente do Conselho e que não queria ser presidente da República (…).

Exagerou-se muito sobre o que Santos Costa fazia e não fazia, porque o Exército chegou à guerra colonial com uma enorme independência em relação ao presidente do Conselho. (pp. 188/189). (…)

O Santos Costa (Mangualde, 1899 - Mangualde, 1892), aqui citado por VPV, foi o oficial do exército que, merecendo a inteira confiança do Salazar (mesmo sendo monárquico), desempenharia um papel fundamental na ligaçao dos sectores militares mais conservadores ao Estado Novo. Exerceu funções no Governo de Salazar durane mais de duas dezenas de anos, entre 1944 e 1958, como subsecretário de Estado da Guerra e depois ministro da Guerra,

Diz a Wikipédia: "Principal factor da reestruturação das Forças Armadas Portuguesas sob o Estado Novo e da sua subordinação ao poder político, Santos Costa participou ao lado de Salazar, de modo decisivo, na formulação da política de defesa de Portugal desde o deflagrar da Guerra Civil de Espanha até ao início da Guerra Fria, incluindo o período conturbado da Segunda Guerra Mundial. Nessas funções desempenhou um relevante papel nacional e internacional, em particular nas relações com os Aliados e na entrada de Portugal na NATO."

Segundo VPV, terá favorecido os amigos nas promoções de carreira, gerando com isso mal-estar nas Forças Armadas.


Marcello Caetano, o Exército 
e os milicianos... "mercenários"

(...) [Marcello Caetano] tinha um problema com o Exército em África: os que comandavam as tropas subiam muito rapidamente até tenente, mas depois ficavam nessa patente por muitos anos. [ Ignorância do "paisano" VPM: queria dizer capitão...]

Além de que o combate era rudimentar: a tiro de espingarda, com bazuca ou metralhadora pesada, longe da imagem que tinham do exército à americana, de onde se saía para as empresas privadas com um bom salário.

O exemplo de carreira dos nossos oficiais era esse: uns anos de escola do Exército, uns anos de alferes e dos postos mais baixos e o comando de uma companhia. Estavam preparados para fazer uma ou duas comissões, mas naquela altura já iam na quarta.

Além de que o recrutamento não dava para preencher os quadros e era preciso ocupar esses postos. Ou seja, o Marcello não tinha capitães que chegassem para liderar as companhias e havia duas soluções:

(i) uma, aumentar por meio da PIDE o número de oficiais que eram retidos para comandar companhias, o que era impossível com quem estava na terceira ou quarta comissão;

(ii) outra, ainda mais perigosa, usar voluntários milicianos (que secundavam os comandos das companhias). 

 [ Ignorância do "paisano" VPM: os capitães milicianos eram "voluntários à força"... e considerá-los "mercenários" raia o insulto... perguntemos aos nossos camaradas que por lá andaram, comandantes operacionais... A menos que VPV se esteja a referir aos "capitães do fim" ou "capitães-proveta", como tabém eram co hecidos na gíria da tropa...(***)]

Essa promoção dos milicianos foi fatal para Marcello, porque criava uma reação nos militares de carreira que estavam à espera de promoção após várias comissões de serviço.

Esse foi um dos grandes argumentos para o 25 de Abril, porque não há pior para os oficiais de carreira do que ver a tropa comandada pelos que consideravam ser mercenários. (…) (pp. 177/178)
 



segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
O assunto dos Capitães do Fim não é propriamente uma novidade para ninguém, quem combateu a partir de 1970 sabe perfeitamente que em Mafra se fizeram fornadas de oficiais milicianos, fazia a recruta e a especialidade, eram promovidos alferes, lançados num teatro de guerra durante quatro meses, regressavam como tenentes e iam formar companhia.
A radiografia estatística que António Nogueira publica traz uma maior claridade sobre as origens, a escolaridade, a idade, o agregado familiar e eventuais profissões desenvolvidas, à data da incorporação. Ficamos igualmente com a informação se desenvolveram, ou não, contestação à guerra do Ultramar, o que pensam da instrução e dos instrutores que tiveram em Mafra, os critérios que foram utilizados para a sua seleção, como atuaram num teatro de guerra, quais as formas de protagonismo, como foram, na hierarquia militar, reconhecidos o seu trabalho.

E ficamos a saber um pouco mais das consequências da guerra para os capitães do fim, o que deles pensam os seus subordinados.

É uma radiografia que não deixa indiferentes. O que a Academia Militar não fornecia foi colmatado por eles. Centenas de mancebos têm toda a legitimidade em clamar, com orgulho, que não faltaram ao dever.

Um abraço do
Mário


Uma radiografia dos capitães do fim

Beja Santos

António Inácio
Correia Nogueira
“Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira, Chiador Editora, 2017, apresenta-se como uma obra complementar a que o autor dera à estampa no ano anterior sobre a história de capitães milicianos submetidos a uma formação acelerada. 

Como observa o autor, nos anos terminais da guerra colonial, a Academia Militar deixara de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Como a política do Estado Novo era intransigente na defesa do Império, custasse o que custasse, um dos expedientes encontrados foi a dos capitães do fim: em cerca de 14 meses fazia-se de um mancebo, muitas vezes em estádio avançado de licenciatura ou já licenciado, um capitão combatente para atuar num dos três teatros de guerra. 

Com ironia cáustica, alguns apelidavam estas novas elites 
de “capitães de proveta” ou de “aviário”. Reconheça-se que António Nogueira é mais justo ao recorrer à expressão “capitães do fim”.

De um modo geral, esta geração respirou outros ares bem diferentes dos oficiais milicianos que combateram ao longo da década de 1960. Vêm mais experimentados pelas lutas estudantis, coabitam, com maior ou menor intensidade, com agentes contestatários à guerra, da esquerda à extrema-esquerda. Enquanto uns desdenhavam a formação destes jovens capitães, a instituição militar apostava seriamente neles: o comandante de companhia tinha um papel fulcral na guerra, a guerrilha mostrava-se cada vez melhor apetrechada e com material de combate mais evoluído, enquanto as forças armadas permaneciam mal equipadas e pouco adaptadas ao crescimento da nova realidade miliciana. O autor preambula com eixos teóricos da guerra, mostra os períodos e fases do fenómeno subversivo, tal como eles eram apresentados aos cadetes em Mafra.

A base da obra de António Nogueira tem a ver com a construção de questionários, inquéritos que foram enviados e que obtiveram um considerável acolhimento, permitindo uma base aceitável de trabalho para a obtenção de uma radiografia de quem eram e em que se transformaram estes capitães do fim.

Vieram de todo o país, com preponderância para Coimbra, Lisboa, Porto e concelhos limítrofes, eram jovens com origens sociais, culturais e económicas muito diversas, jovens predominantemente nas idades entre 24 e 27 anos, nada de anómalo, os oficiais oriundos da Academia Militar eram promovidos a capitães com idades próximas. 

As habilitações académicas destes capitães eram díspares, essencialmente todos com frequência de cursos universitários, mais de 50% estavam entre o terceiro e o último ano de um curso superior. 70% eram solteiros e 30% casados. Exerciam a profissão de engenharia 13% dos incorporados, profissão prestigiada devido à industrialização iniciada na década anterior.

Fala-se detalhadamente da incorporação na EPI – Escola Prática de Infantaria (instrução, instrutores, ambiente, contestação à guerra). Não deixa de ser uma curiosidade o que se fica a saber sobre a seleção e formação de capitão: 

(i)  44,3% respondem desconhecer o motivo por que foram selecionados;

(ii) 18,3% declaram ter sido por já possuírem uma licenciatura;

(iii)  14,8% indicam ter sido escolha do instrutor;

(iv) 11% estão convictos de que foi por ocuparem os primeiros lugares da seriação psicotécnica;

(v) 5,2% por terem mais idade;

(vi) 4% pelas competências já adquiridas na vida civil. 

O autor comenta: 

“É estranho este conhecimento fracionado e superficial dos modos de seleção. É lacuna grave a forma como se comunicava na instituição militar. Mas surpreendente é a indiferença com que os questionados permaneciam desinformados sobre factos que condicionariam a sua vida militar futura”.

Após o círculo formativo de seis meses na EPI, a continuidade do processo era um estágio num dos teatros de guerra, com a duração de quatro meses, com o posto de alferes, e na qualidade de adjuntos dos comandantes de companhia do local onde eram colocados: 66% estagiaram em Angola, 28% na Guiné e 6% em Moçambique. 

De acordo com o inquérito, cerca de um quarto dos estagiários enfrentaram situações de guerra muito difíceis. Depois de regressarem do estágio, os futuros capitães do fim, agora promovidos a tenentes, frequentavam um curso de comandantes de companhia, também na EPI.

A radiografia estatística incide também sobre a formação e instrução da companhia, como decorreu esse comando em teatro de guerra, se houve protagonismos na guerra, se os capitães de algum modo participaram na conquista da democracia ou nos atos finais da descolonização. Um número elevadíssimo de capitães (mais de 90% foram louvados, cerca de 9% tiveram a atribuição de uma medalha ou de uma condecoração).

E temos agora as consequências da guerra para os capitães do fim: 

(i) 65% considera ter sido a participação na guerra gravosa para a continuidade dos seus estudos;

(ii)  para cerca de 13% o reatamento foi impossível;

(iii)  36% consideram que a guerra lhes acarretou problemas de saúde e instabilidade emocional que prejudicaram os seus relacionamentos familiares, na profissão e com os amigos. 

Mas há respostas afirmativas, quanto ao enriquecimento humano e profissional, reconhece-se valor à experiência das relações humanas, enriqueceu-se com a chefia de homens em situações adversas, houve enriquecimento cultural e sociológico. Quanto à passagem à disponibilidade, o grosso das respostas é eloquente: “Um imenso alívio”.

Nesta radiografia estatística também se procurou obter o contraditório dos comandados. 83% manifestam-se agradados com os desempenhos do seu capitão do fim.

Ao findar, o autor dá como comprovado que os capitães do fim tiveram desempenhos e protagonismos meritórios na guerra, na obtenção da paz e da democracia, e conclui com uma parte do poema de Ary dos Santos intitulado Retrato do Herói: Homem é quem tombando apavorado / dá o sangue ao futuro e fica ileso / pois lutando apagado morre aceso.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21262: Notas de leitura (1298): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)


Encosta sudeste da serra de Montejunto, que subi desde o sopé até ao cume nas circunstâncias descritas no texto.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

 (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)

por Fernando de Sousa Ribeiro

(Continuação, pp. 17-26)


A semana de campo teve lugar na região envolvente da serra de Montejunto e incluía uma subida ao alto da serra no último dia. A cada dia da semana de campo, o alferes nomeava um soldado-cadete diferente para "comandar" o pelotão, isto é, para treinar o comando de um pelotão sob a supervisão dele. 

No primeiro dia, o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Fulano» (não era eu). No segundo dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Sicrano» (também
não era eu). No terceiro dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Beltrano» (continuava a não ser eu). E assim sucessivamente, até que chegou o sétimo e último dia e o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Ribeiro». Tinha chegado a minha vez. Esperei o pior.

Anunciava-se um dia extraordinariamente quente, como se veio a confrmar. «Até o S. Pedro está contra mim», pensei. Mas a manhã passou-se sem novidades de maior. Eu, pelo menos, não me lembro de ter acontecido algo de especial. À tarde, pelo contrário, o caso mudou completamente de fgura.

Depois de termos almoçado (ração de combate, é claro), dirigimo-nos para a encosta sudeste da serra de Montejunto, a fim de subi-la a corta-mato até ao cimo. Tínhamos que vencer um desnível de 600 metros na vertical, às duas horas da tarde, quando o calor era mais forte e o sol, bem alto no céu, era mais escaldante. Encharcados de suor, a ponto de termos as fardas molhadas e coladas ao corpo difcultando os movimentos, e bebendo sofregamente a água que levávamos nos cantis até ela se
esgotar, subimos penosamente a serra, passo a passo, quase fazendo alpinismo. 

A meio da subida, ouviu-se uma voz:
— Meu alferes, não aguento mais! Não sou capaz de subir mais. Estou completamente esgotado!

Era um soldado-cadete açoriano que pesava mais de 90 quilos que tinha falado, quase a desfalecer. Depois de ter incitado o soldado-cadete a continuar a subida, sem resultado, o Lourenço virou-se para mim e ordenou-me:
— Sr. Ribeiro, ajude o seu camarada! O sr. Ribeiro é que é o "comandante" do pelotão e um comandante não pode deixar nenhum homem para trás. Vamos! Do que é que está à espera?! Não podemos ficar aqui parados!

Tirei a arma e a mochila ao açoriano e, quando me preparava para entregá-las a outros soldados-cadetes para as levarem, o alferes interveio:
— Não, não! O sr. Ribeiro é que vai levar a arma e a mochila e vai ajudar o seu camarada a subir!

Fiz então um dos maiores esforços de toda a minha vida. Só em Angola, durante as operações em Zemba, é que fiz esforços equivalentes. Com duas armas ao ombro e duas mochilas às costas, reboquei literalmente o gordo açoriano pela encosta acima, debaixo do sol implacável daquele dia escaldante de verão. Eu, que não tinha sequer cinquenta quilos de peso, transportei pelo Montejunto acima um peso que era duplo do meu próprio. Eu via tudo vermelho e sentia tudo a andar à roda. O ar escaldante que eu inspirava às golfadas pela boca aberta parecia não ser suficiente para me encher os pulmões. O meu coração batia a um ritmo alucinante. A boca, completamente seca por já ter bebido a água toda que havia no cantil, sabia-me a papel de música. Pensei: «Se eu não morrer agora, nunca mais morro; sou eterno». 

E continuava a subir, mecanicamente, pondo um pé à frente do outro, sem ver nada, a não ser vermelho, e sem sentir nada, a não ser o peso do camarada açoriano e das mochilas e das armas que eu trazia. No preciso momento em que esgotei todas as minhas forças e me senti desfalecer, com os joelhos a dobrar-se, alguém me disse:
— Já chegamos ao cimo. Não precisas de puxar mais.

Foi então que reparei que já não sentia o peso do açoriano, que me tinha largado a mão. Parei. Voltei a ver. Recuperei a consciência de onde estava e do que fazia, isto é, recuperei totalmente os sentidos. Eu tinha acabado de atingir o limite mais extremo das minhas forças. Mas tinha conseguido! Estava no alto da serra, onde uma brisa fresca me reanimava. Se o Lourenço esperava vergar-me e obrigar-me a pedir-lhe perdão, enganou-se. Não cedi, não dobrei, não fraquejei. Mantive o meu orgulho
intacto.

Entreguei a arma e a mochila ao açoriano, que já podia deslocar-se pelos seus próprios meios, pois agora iríamos seguir por um caminho horizontal, e o Lourenço conduziu o pelotão para o interior de um pinhal, que havia um pouco mais para diante e para baixo. Mal chegámos ao pinhal, atirámo-nos logo todos para o chão, ompletamente esbaforidos. Gritou-me o alferes:
— O sr. Ribeiro não pode descansar! O sr. Ribeiro tem muito que fazer! O sr. Ribeiro vai encher os cantis dos seus camaradas numa fonte que há lá adiante, ao pé dos radares da Força Aérea. E vai a pé! Vai e vem as vezes que forem necessárias até que todos os seus camaradas tenham os cantis cheios.

A fonte fcava a cerca de 500 metros do local em que nos encontrávamos. Estava eu a recolher os primeiros cantis dos meus camaradas, para os levar à fonte, quando chegou a minha salvação, sob a forma de um major ao volante de um jipe.

Era o comandante do batalhão de instrução que chegava. Depois de ter trocado algumas palavras em voz baixa com o alferes, o major perguntou a este o que é que eu estava a fazer. O alferes disse-lhe que eu estava a recolher os cantis do pelotão para ir enchê-los à fonte.
— E vai a pé?! — perguntou o major.
— Claro — respondeu o alferes. — Vai as vezes que forem necessárias.
— Não vai nada a pé — retorquiu o major. — Vai comigo no jipe.

Virando-se para mim, disse o major:
— Nosso cadete, recolha os cantis todos e ponha-os aqui no jipe. Vamos à fonte num instante encher isso tudo.

Depois de eu ter colocado os cantis no jipe, o major mandou-me subir para a viatura e fui com ele encher os cantis na fonte. Finalmente pude descansar um bocadinho, sentado no jipe! E que bem me soube a água da fonte, tão fresca e tão saborosa!

Quando acabamos de encher os cantis, o major disse-me:
— Esta madrugada, o pessoal todo vai fazer um "golpe-de-mão", para concluir a semana de campo, e você é que vai comandá-lo.
— Eu?!!! — exclamei, espantado.
— Sim, você — confrmou o major. — O nosso alferes Lourenço propôs-me o seu nome e eu aceitei. Para mim, é completamente indiferente. Tanto me faz que seja você ou outro qualquer.

E acrescentou:
— Mas primeiro vamos levar os cantis. Depois tratamos do "golpe-de-mão".

Entregues os cantis aos seus donos, o major e eu fomos no jipe até ao local previsto para o "golpe-de-mão". À chegada, estavam à nossa espera os comandantes das duas companhias de instrução do 2.º ciclo do COM (a 2.ª e a 4.ª companhias), mais um ou dois oficiais que me eram desconhecidos e de cujos postos já não me lembro.

Diante de nós estava uma aldeia abandonada, situada num recôncavo da serra que era muito grosseiramente circular. Disse-me o major:
— Esta madrugada vamos fazer um "golpe-de-mão" a esta aldeia. Dentro dela vão estar alguns soldados da EPI [Escola Prática de Infantaria], que irão fazer de inimigo. Você vai ter à sua disposição oito pelotões, quatro de cada companhia, que irão desencadear o "golpe-de-mão". Você vai ter que reservar um pelotão para fazer o "assalto" ao objetivo, mais um pelotão que deverá fazer a "proteção" à retaguarda. Os outros seis pelotões farão o que você melhor entender. Você é que vai determinar que papel é que eles irão desempenhar. Fica ao seu critério.

Apontando para a aldeia e zona envolvente, o major acrescentou:
— O cenário em que tudo se vai desenrolar é este. Agora você vai decidir que dispositivo é que quer montar para a "operação".

Armado em Napoleão seguido pelos seus ajudantes de campo, avancei para o alto de um monte, dos vários que envolviam a aldeia, a fm de observar melhor o terreno. Como eu disse, a aldeia fcava num recôncavo vagamente circular, o qual estava rodeado por algumas cristas de montes pouco elevados. Os montes eram pouco elevados mas, mesmo assim, dominavam o recôncavo e cercavam-no. Entre dois desses montes havia uma espécie de vale, por onde passava a estrada que conduzia à aldeia.

Disse eu ao major:
— Eu proponho que se faça um cerco à aldeia.
— Porquê? — perguntou o major.
— Porque o terreno é favorável a um cerco e assim apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo, sem lhe dar hipótese de escapar — respondi.
— Muito bem. — disse o major — Faz-se então um cerco.

E perguntou:
— Concretamente, onde é que vão ser colocadas as nossas forças e a partir de onde é que vai ser desencadeado o "assalto"?

Eu pensei em voz alta:
— O "assalto" deverá ser tão rápido quanto possível, para apanhar o inimigo de surpresa.

E decidi:
— Acho que vou lançá-lo a partir daquele vale, por onde passa a estrada. Ali, praticamente não há obstáculos à progressão das nossas tropas, que assim poderão entrar no objetivo e "apoderar-se" dele rapidamente, sem dar tempo ao "inimigo" para reagir.
— Muito bem, sim senhor! É isso mesmo. — comentou o major com evidente satisfação. — Então é ali que o grupo de "assalto" vai fcar. E quem é que vai desencadear o "assalto"?

Respondi:
— Proponho que seja o pelotão do CCC.

O pelotão do CCC  (Curso de Comandantes de Companhia) era o pelotão dos futuros capitães milicianos, onde estava o Antunes [, futuro cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes, o último comandante da CCAÇ 3535].
— Há alguma razão especial para ser esse pelotão a fazer o "assalto" e não outro? — perguntou-me o major.

 Respondi:
— Há, sim, senhor. Como eles vão ser comandantes de companhia, e nessa qualidade vão ter responsabilidades acrescidas no futuro, precisam de ter uma preparação mais cuidada e, portanto, deverão desempenhar o papel mais importante nesta "operação".
— Muito bem, sim, senhor! É isso mesmo! — exclamou o major. — E quem é que vai
fazer a "proteção" à retaguarda?
— A "proteção" à retaguarda poderá ser feita pelo pelotão menos operacional, pois em princípio não deverá intervir no "golpe-de-mão". Proponho que seja o quarto pelotão da 4.ª Companhia.

O quarto pelotão da 4.ª Companhia era composto por soldados-cadetes que estavam destinados a ter diversas especialidades não operacionais ou pouco operacionais.
— Sim, senhor. Muito bem. E onde é que os vai colocar?

Aqui eu hesitei. Pensei em espalhar o pelotão pelas cristas dos montes, mas virado para fora. Reparei no entanto que não fazia muito sentido fazê-lo pois, se eventuais "reforços" "inimigos" vindos do exterior "atacassem" algum dos montes pela retaguarda, estariam em desvantagem logo à partida, pois estariam a "atacar" de baixo para cima. Certamente não fariam tal. O que fariam com certeza, seria "atacar" pelo ponto mais vulnerável, que era o vale por onde passava a estrada de acesso à aldeia e onde eu tinha colocado o pelotão de "assalto".

Disse isto mesmo ao major, acrescentando que colocaria o pelotão de "proteção" virado para fora e protegendo as costas do pelotão de "assalto". Assim este poderia concentrar-se na sua tarefa sem se preocupar com o que lhe viesse por trás.
— Exatamente! — exclamou o major com entusiasmo. — É isso mesmo! Muito bem! Sim, senhor!

A seguir, o major mandou-me indicar-lhe o que eu faria com os restantes pelotões. Respondi que faria com eles um cerco ao "objetivo", colocando «um pelotão neste monte, outro naquele, outro naquele monte acolá», etc.
— Há alguma razão específica para você colocar os pelotões nessas posições e não noutras? — perguntou-me o major.

Respondi:
— Eu tenho que ter o cuidado de evitar que fquem dois pelotões frente a frente, em posições diametralmente opostas relativamente ao "objetivo", para que não se alvejem mutuamente. Tenho que os distribuir de forma desencontrada. Cada pelotão não pode ter outro do lado de lá. Por isso os coloco nestas posições.

O major, ainda mais entusiasmado, repetiu:
— Muito bem! É isso mesmo! É preciso minimizar as baixas causadas pelo fogo "amigo"! Muito bem! Agora diga-me que pelotões é que vai colocar nessas posições.

Respondi-lhe que podia colocar «o pelotão de minas e armadilhas aqui, o das transmissões ali, o primeiro pelotão da 2.ª Companhia acolá, o segundo pelotão mais para o outro lado», etc.
— Está bem. Fica então assim — concordou o major. — Está definido o dispositivo para o "golpe de mão". Agora vou mandar chamar os cadetes que vão "comandar" cada um dos pelotões, para você lhes dar as instruções correspondentes aos lugares e tarefas que irão desempenhar. Eles precisam de saber onde é que vão estar e o que é que vão fazer.

Ao fim de algum tempo, os "comandantes" dos vários pelotões juntaram-se-nos e eu indiquei a cada um deles a posição que iria ocupar e o papel que teria que desempenhar no "golpe de mão". Quando acabei de dar as instruções, o major disse-nos:
— Agora vamos tratar das transmissões.

Mandou que nos entregassem rádios AVP-1, a cada um dos "comandantes" de pelotão e a mim próprio, e no fim disse-me:
— Agora você vai escolher os canais de rádio que vai utilizar. Vai escolher um canal principal e um de reserva. Pode escolher como quiser. Cada canal é tão bom como qualquer outro; isso é completamente indiferente. A seguir, vai escolher os nomes de código que vai corresponder a cada pelotão, para quando os chamar pelo rádio. Isso fica também ao seu critério. Quaisquer nomes são bons.

Eu lá indiquei uns canais escolhidos à sorte e também os nomes, do género Águia 1, Águia 2, Águia 3, etc.
— Pronto — concluiu o major. — Já está tudo decidido. Mas antes de se irem embora, quero dizer-lhes que o "golpe de mão" vai ter lugar às cinco horas da madrugada em ponto. À meia-noite, quero que comecem a ocupar já os seus lugares. Aqui o nosso cadete [eu próprio] vai estar aqui à espera, para orientar os pelotões no que for preciso. De hora a hora, o nosso cadete [outra vez eu] vai entrar em contacto com cada um dos pelotões pelo rádio, para saber se está tudo bem e pronto a entrar em
ação. Às cinco horas em ponto, ele dará a ordem de fogo e o "golpe de mão" será executado.

Procedeu-se tudo como o major determinou. Estava uma noite fantástica. Depois de um dia escaldante, a noite estava morna, mesmo apetecível para se estar ao ar livre. Uma maravilha. Nem quero imaginar como seria estar parado durante umas horas no meio daquela serra, numa noite fria de inverno e com chuva ainda por cima…

Às cinco horas em ponto, assim que dei a ordem de fogo pelo rádio, desencadeou-se um estrondo tão grande, com perto de duas centenas de G3 a disparar todas ao mesmo tempo no meio do silêncio da noite, que apanhei um valentíssimo susto. Mesmo estando à espera dos disparos, não imaginava que o barulho pudesse ser tão grande. Devemos ter acordado toda a gente num raio de 100 km ou mais… Parecia que a serra vinha abaixo.

Terminado todo aquele estardalhaço, o major veio ter comigo dar-me os parabéns, porque, disse ele, «a operação foi um êxito completo. Apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo e capturamos x espingardas, y metralhadoras e z morteiros». E disse isto com tanta convicção, que quem o ouvisse julgaria que tinha sido a sério! Os oficiais de carreira muito gostam de manobras militares! Eles pelam-se por estas coboiadas.

E assim acabou o 2.º ciclo do Curso de Ofciais Milicianos atiradores de Infantaria da minha incorporação. Regressamos a Mafra para dormirmos e a seguir fomos para nossas casas, não sem antes nos terem dito que no dia tal deveríamos estar de volta, para sabermos as nossas notas finais, qual o teatro de guerra para onde iríamos ser mobilizados, qual a unidade em que seríamos colocados e para nos serem impostas as novas divisas de aspirantes.

Quando regressei a Mafra no dia marcado e olhei para a pauta onde as notas estavam afixadas, nem queria acreditar na nota que me tinha sido atribuída: treze valores vírgula zero zero. Era a nota máxima! A nota 13 era o limite que separava os simples oficiais atiradores, como eu, dos oficiais de Operações Especiais.

Os oficiais de Operações Especiais não podiam ter menos de 13 valores; os oficiais atiradores, em princípio, não podiam ter mais de 13, a menos que fossem verdadeiramente extraordinários, caso em que rebentariam a escala. Na minha incorporação houve mais dois ou três atiradores que tiraram 13 valores como eu e houve um que rebentou a escala, tendo recebido à volta de 15. Chamava-se Poças, era uma jóia de moço e como "prémio" foi mobilizado para a Guiné em rendição individual.

E foi assim que um (futuro) alferes comandou o seu próprio (futuro) comandante de companhia, mais uma data de outros (futuros) capitães!

[Foto à esquerda: 

Capitão miliciano José António Pouille Nobre Antunes, que comandei no fim da semana de campo do 2.º ciclo do COM, quando ambos éramos soldados-cadetes. Posteriormente, já com o posto de capitão miliciano, foi ele que me comandou, assim como toda a CCaç 3535, a partir da segunda quinzena de abril de 1973]


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Nota do editor:

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16329: Notas de leitura (862): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Porventura são estes testemunhos na primeira pessoa a matéria mais aliciante para o leitor que foi combatente, pela diversidade, pela sinceridade, pelo feliz entrosamento entre a memória e um distanciamento que não deixou rancores.
O livro de António Inácio Nogueira merecia andar pelas mãos de todos. Estes jovens capitães, salvo melhor opinião, são um inequívoco termómetro da atmosfera que se vivia em muitos pontos da Guiné, são testemunhos que não iludem a desmotivação, a descrença, o salve-se quem puder. A despeito deste estado de espírito, é impressionante como a generalidade destes jovens capitães sentiu a responsabilidade do mando e a vontade de trazerem todos os seus homens nas melhores condições físicas e psíquicas. E muitos não escondem o orgulho de isso ter acontecido, ou quase.

Um abraço do
Mário


Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (3)

Beja Santos

O livro “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016, é o mais minucioso olhar até hoje lançado àqueles a quem depreciativamente se chamavam os capitães proveta, naquele dado momento em que nos batalhões os oficiais do quadro permanente se cingiam ao comando e por vezes à CCS, aquelas centenas de jovens de oficiais que tinha sido aprovados nos cursos de comandantes de companhia, dados em Mafra passaram a ser os executantes operacionais por excelência.

Na análise que temos estado a efetuar, abordou-se a síntese que o autor nos dá sobre o enquadramento histórico e político da guerra, os modos de seleção e formação dos jovens capitães, passou-se em revista textos autobiográficos de cinco desses jovens capitães e entrou-se num importante capítulo abarcando cerca de três dezenas de testemunhos na primeira pessoa. Obviamente que nos cingimos ao que se escreve sobre a Guiné, sem prejuízo, é dito insistentemente, que o documento é suficientemente importante para ser lido do princípio ao fim por qualquer combatente de qualquer dos três teatros de guerra.

Vejamos o que nos diz José Fernando Real Magalhães Mendes que embarcou para a Guiné em Setembro de 1971 e deixou Bissau em Dezembro de 1973. Depois do 25 de Abril, ligou-se à LUAR e até se envolveu no assalto à Embaixada de Espanha. Teve pressão e recompôs-se, acabou os estudos e foi para advocacia. Ofereceu-se como voluntário, fez estágio em Angola na zona dos Dembos. Coube-lhe Bajocunda na Guiné. Investiu na população, andou nos trabalhos de reordenamento. Não esconde que de vez em quando investia pelo Senegal adentro para trazer vacas, pagava sempre, a contrapartida era o médico e o enfermeiro tratarem a população. “Um dia veio um sujeito muito atrapalhado dizer que tinha a mulher grávida e estava muito mal. Eu fui com o pelotão do alferes Sequeira ao Senegal. Fomos até lá, levámos o furriel enfermeiro e depois pedimos uma evacuação para junto da fronteira, o furriel enfermeiro disse que a mulher ia morrer se não fosse tratada. Veio um helicóptero e levou-a para Bissau, soube depois que ela se safou e o filho também, isso caiu muito bem na população”. Permaneceu em Bajocunda os 27 meses. Guarda na memória alguns aspetos chistosos:
“Quando saiu legislação que nos permitia entrar no quadro permanente, o comandante do batalhão chamou-me: 
- Ó Mendes, saiu agora uma lei… Você frequente lá aquilo não sei quanto tempo, é promovido ao quadro. Você tem capacidade, aproveite. 
Apresentou-me um papelinho e eu respondi: 
- Meu comandante, vou pensar. Nesse dia reuni os meus alferes todos, mandei vir uma garrafa de uísque, rasguei o papel e peguei-lhe fogo. 
Mais tarde disse: 
- O meu comandante desculpe, mas quero acabar o meu curso de Direito. 
- É uma pena para si, é uma boa carreira – retorquiu ele”.

Confessa que cometeu muitos erros, por ser muito novo.

José Manuel Nunes Marques fez estágio na Guiné, em Aldeia Formosa, era já licenciado em Engenharia Civil. Esteve em Cumbijã, depois Nhacobá. “Não me aconteceu rigorosamente nada, mas vi muita gente morrer”. Viveu uma situação disciplinar tumultuosa em Bolama, acabou por ir parar a Jemberém. Um dia, pelas três da manhã, chegou uma comunicação encriptada para abandonar Jemberém, foram para Cacine. A desmotivação era enorme, ninguém estava para arriscar a vida. Seguiu-se um alto de averiguações pelo modo como se tinha feito a desocupação de Jemberém, ficou tudo abafado, o castigo foi tirarem-lhe o comando da companhia. Nas novas funções, andou a fazer entrega de vários aquartelamentos ao PAIGC.

Há um capitão que foi depois coronel, Luís de Jesus Ferreira Marcelino, esteve na Guiné entre Junho de 1972 e Agosto de 1974. Ingressou na GNR mais tarde, terminou a sua carreira como coronel, Chefe do Estado-Maior da Brigada de Trânsito. No comando de uma companhia independente percorreu diversos sítios da Guiné: Aldeia Formosa, Mampatá, Colibuia. Não esquece a vida em tabanca, as missões humanitárias, o reordenamento das populações. Manuel da Silva Ferreira da Cruz teve uma vida difícil em Cobumba, antes da incorporação fez estágio como engenheiro técnico de química e depois de 1974 reiniciou a sua vida profissional numa empresa da indústria de plástico. Fez estágio no Leste de Angola, o IAO realizou-se em Bolama, seguiu-se Mansambo no Leste, participou numa operação gigantesca e depois seguiu para Cobumba, que o PAIGC classificava como zona libertada, houve inúmeros ataques. Dá relevo a um episódio passado durante uma visita do Comandante do COP 4 à sua Companhia. O oficial disse-lhe que “a companhia não apresentava ações e contactos significativos com o IN, que deveria ativar mais a companhia, já que os soldados deveriam estar preparados psicologicamente para morrer, se necessário fosse – tudo dito assim a frio”. Ao que Ferreira da Cruz retorquiu que iria chamar o pessoal e que ele, enquanto comandante, lhe transmitiria esta mensagem. Ao que o comandante do COP 4 respondeu: “Não, não é assunto urgente”.

Ainda há mais histórias, conto abreviadamente. Marcos António Blanch da Fonseca Dinis foi colocado em Piche, a seguir ao 25 de Abril a sua guerra foi de papel e polícia, a impedir roubos nas lojas. Nuno Álvares da Graça Matias Ferreira considera-se um privilegiado, não teve nenhuma experiência de guerra, era licenciado em Direito, foi delegado do procurador da República da Guiné, Fidélis Cabral Almada pediu-lhe para ficar até ao último dia. Óscar António Soeiro Soares andou por Caboxanque, Cadique e outras paragens. “No aquartelamento de Caboxanque, em 6 meses, sofri 14 ataques com artilharia. Tentava responder, mas os nossos morteiros tinham menor alcance que os canhões sem recuo deles. Era só para fazer barulho”. Em Bissau, participou na detenção do General Bettencourt Rodrigues. “Ouvi o Bettencourt nas telecomunicações, na noite de 24 para 25 perguntar ao chefe da PIDE: que unidades é que temos do nosso lado? E o da PIDE respondeu: que eu saiba nenhuma”. Raul Manuel Bivar de Azevedo andou pelo Chão Felupe. Rui Jorge Martins Pedro e Silva foi um dos capitães da operação “Grande Empresa”.

Há notas avulsas, o nosso confrade Vasco da Gama é um dos contadores. Aqui chegamos ao fim de um trabalho de doutoramento, alguém que andou à procura dos Capitães do Fim passados mais de 40 anos do seu regresso da guerra.

Uma história muito bem contada que deve ser por todos conhecida.
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores de:

18 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16314: Notas de leitura (859): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (1) (Mário Beja Santos)
e
22 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16325: Notas de leitura (860): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16325: Notas de leitura (861): “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016 - Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Este camarada da Guiné apresentou uma tese de doutoramento na Universidade Fernando Pessoa, em 2015, sobre os capitães do fim do Império, os jovens comandantes de companhia com que se procurava suprir a carência básica de oficiais formados na Academia Militar, foram formados às centenas e lançados nos três teatros de guerra.
Há um meritoso trabalho de síntese a descrever um enquadramento histórico-político da guerra, um levantamento sério do que era a seleção e a formação destes jovens capitães, e chegamos a dois capítulos essenciais que decorrem do levantamento de autobiografias de cinco capitães seguindo-se um bem coligido elenco de 30 histórias de vida. Obviamente que nos cingimos àquelas que têm a ver com a sua presença na Guiné.
Direi sem qualquer hesitação que é uma obra que justificadamente devemos conhecer e sobre ela refletir, não ilude a carga polémica que a acompanha do princípio ao fim: a Pátria estava exausta, estava-se no limite dos recursos humanos, aqueles jovens saíam da universidade claramente politizados, sabiam melhor que os seus camaradas dos primeiros anos da guerra que havia ventos da História e que sem debate político se caminhava para o precipício.

Um abraço do
Mário


Para entender a pátria exausta: os Capitães do Fim do Império (2)

Beja Santos

Dando seguimento aos aspetos essenciais da obra “Capitães do Fim… do Quarto Império”, por António Inácio Nogueira, Âncora Editora, 2016, depois de se sintetizar o enquadramento histórico e político da guerra e como se selecionavam e formavam estes comandantes de companhia, abre-se espaço a cinco autobiografias militares a que se seguem testemunhos na primeira pessoa. Por razões compreensíveis, acolhem-se aqueles que se relacionam expressamente com a Guiné, mas é imperioso chamar à atenção do leitor para o considerável interesse que têm os testemunhos dos comandantes de companhia que combateram em Angola e Moçambique.

As cinco autobiografias de comandantes de companhia combateram em Angola e Moçambique. Escreve o autor: “Estas cinco narrativas são o rosto da guerra traiçoeira e permanente em Mueda e Candulo e da fuga dos aquartelamentos das nossas tropas, das emboscadas e dos ataques a aquartelamentos em Sanga Planície e Miconge, do isolamento em N’Riquinha que magoa por dentro, nas terras do fim do mundo, da paz que se negoceia em segredo os matagais de Cangumbe com a UNITA, dos últimos tiros e dos últimos combates em N’Dalatando, Cabinda, Malange, Massabi e Pangamongo. Dos saques perpetrados e das debandadas, quando se aproxima o fim, na reta final do império” e segue-se a série de depoimentos: de Afonso Maria de Eça de Queiroz Cabral, relatando do saque de Vila Salazar (N’Dalatando), ao golpe de Cabinda; de António Inácio Correia Nogueira, cavaleiro do Maiombe, de António Pereira de Almeida, que andou em Mueda e em Candulo; de Benjamim Fernando Almeida, o negociador nos matagais de Cagumbe; e Lionel Pedro Cabrita, a quem se deve o texto de N’Riquinha a Rivungo, nas terras do fim do mundo.

Temos os testemunhos na primeira pessoa e os da Guiné tocam-nos pelo vigor, pela sinceridade e em tantos casos pelo desassombro.

Logo Abílio Delgado, o capitão puto de Guileje, incorporado em Abril de 1970, tinha 20 anos, fez a guerra e seguiu-se uma carreira profissional na banca. Ofereceu-se como voluntário para o curso de comandantes de companhia. O estágio, no posto de alferes, foi realizado no Leste de Angola, na região do Luso. Quem ministrou o curso em Mafra para comandante de companhia nunca tinha estado no Ultramar. Foi mobilizado para a Guiné, no comando de uma companhia independente. Foi colocado em Guileje, cujo aquartelamento descreve: “Eram cerca de 700 pessoas dentro do aquartelamento, contando com a população. A atividade operacional resumia-se a patrulhas diurnas, dia sim, dia não, com um efetivo de dois grupos de combate, e a coluna de reabastecimento, de Gadamael até Guileje. Durante a época das chuvas estávamos isolados por via terrestre, não havia reabastecimento. As condições de defesa satisfaziam, tínhamos boa artilharia e bom apoio aéreo, quando necessário”. Considera ter havido bom relacionamento com os subordinados, embora fosse o mais novo dos oficiais. Era o capitão puto, tinha 22 anos, chegou à Guiné em 1971.

Albertino Santos Pereira foi aterrar em Geba, fora mobilizado em 1972. Tinha sido nomeado para ir substituir o capitão de Guileje, acabou por ir parar a Geba, foi substituir um capitão que morreu de cancro. O seu grande orgulho foi trazer de regresso todos os seus homens, herdou uma companhia sem primeiro-sargento, teve uma comissão liquidatária trabalhosa, confrontou-se com problemas administrativo-logísticos de monta.

Carlos Alberto Gaspar Martinho embarcou para a Guiné em Março de 1972. Na universidade participou no movimento associativo “contra a Guerra Colonial” e esteve para fugir com dois colegas. O pai pediu-lhe para não ir. Fez o estágio em Angola, experiência inolvidável, saiu-lhe um capitão apanhado pelo clima, que fizera uma operação em que se perdeu metade dos efetivos, tiveram um trabalhão para regressar. Foi para o Olossato e Spínola assegurou-lhe: “É tão má esta zona que as companhias que vão para lá só ficam um ano, se tiverem bons resultados. Se o nosso capitão tiver resultados ótimos, dou-lhe a minha palavra de honra como vem aqui para Bissau, ao fim de um ano… Mantenha-me os itinerários todos limpos". Foi ferido na primeira flagelação, coseram-lhe os dedos. No Olossato, imprimiu uma disciplina rígida, foram levantadas muitas minas e houve poucos mortos em combate. Rodaram para Quinhamel, estava lá há um mês quando recebeu uma mensagem do Comando-Chefe para se apresentar no quartel-general. Apresentou-se e Spínola explicou-lhe que lhe tinha dado a palavra de honra que agora ia quebrar, dava-lhe a missão de se apresentar em Binta e a fazer a picagem e a desminagem da picada de Binta para Guidage. “Em Guidage ficam dois grupos de combate seus, e os outros dois grupos vão para Bigene. O senhor fica em Guidage, com os dois grupos, e comanda a outra companhia, de africanos, que lá está. O capitão Salgueiro Maia vai-se embora. Tem três dias. Tudo o que precisar peça. Estamos entendidos?”
Encontrou Salgueiro Maia e este barafustava: “Isto não se resolve com a guerra, chego à Metrópole e rebento com esta merda toda”. Deplora que todo o seu trabalho e dos seus soldados não mereceu uma réstia de conhecimento.

João Londral Ivens Ferraz de Freitas Leito Martins. Passou treze meses na Guiné. “Fui colocado em Canjadude, onde aquartelava a CCAÇ 5, com soldados africanos enquadrados por oficiais e sargentos europeus. Canjadude tinha um quartel com uma casa para os serviços administrativos, um pequeno barracão para as refeições da tropa branca, valas em ziguezague, bunkers semi subterrâneos para alojamentos, e a aldeia indígena ao lado, cheia de enormes mangueiras que abrigavam o povoado”. Foi aqui que fez o estágio. Voltou a Mafra e formou batalhão sobre o comando do Tenente-Coronel Luís Atayde Banazol. Mobilizados para a Guiné, feito o IAO, marcharam para Farim, a atividade militar englobava Jumbembém, Nema, Lamel, Canjambari, Farim. O pior momento terá sido o ataque ao quartel, em Jumbembém, Fevereiro de 1974. E adiante: “Devo mencionar que os nossos soldados estavam emocionados com o fim da guerra e abraçavam os soldados do PAIGC. A capacidade de confraternização dos portugueses estava ali bem patente! Também fui de Berliet a Guidage. Percorri em silêncio a célebre zona de emboscadas, entre Binta e Guidage. Parecia-me ainda cheirar o fumo do rescaldo, buracos, troncos queimados, uma paisagem tenebrosa. Dias depois, fui com o Major Morna de helicóptero a Binta para entrega da unidade ao PAIGC. Depois, foi a retirada de Cuntima, de Jumbembém e de Farim”.

(Continua)
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Nota do editor

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