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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Este romance de Fausto Duarte não é uma grande lança em África, mas tem atributos e méritos que importa reconhecer, no âmbito da literatura colonial guineense. Nos alvores da década de 1930 emerge na administração colonial guineense um funcionalismo preocupado com a missão civilizadora, aposta no desenvolvimento agrícola, é dado como certo e seguro que as potencialidades agrícolas da Guiné são inesgotáveis, é preciso introduzir maquinaria moderna e novas técnicas agrícolas. Fausto Duarte escolhe o Tombali para nos falar dos usos e costumes de Mandingas, Nalus e Balantas, o fanado, o contrato de casamento, a submissão ao Irã, o espírito a que se sujeitam a vida dos indígenas. Fausto Duarte caprichava por escrever de modo a que o leitor fosse frequentemente ao dicionário, um tanto como outro mestre das letras portugueses que muito o apreciava, Aquilino Ribeiro. Este romance tem algumas águas-fortes inesquecíveis e que um dia farão parte de uma antologia que recolha parágrafos indeléveis, irrefragáveis. Veja-se no texto que se segue como ele descreve o portentoso fenómeno do bagabaga.

Um abraço do
Mário


O Negro sem Alma, romance de Fausto Duarte (1)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte (1903-1953), é uma das figuras mais representativas da literatura colonial guineense. Fausto Castilho Duarte era natural da Praia, Ilha de Santiago. Estudou em Lisboa, onde fez exame final do curso de Topografia, em 1928, foi logo trabalhar para a Guiné e nos dois anos seguintes participou na delimitação das fronteiras da Guiné. Em 1934, publicou "Auá", primeiro prémio da literatura colonial desse ano, reconheceram-lhe os seus dotes literários escritores como Aquilino Ribeiro e Vitorino Nemésio. Foi depois Secretário da Câmara Municipal de Bolama, de 1946 a 1953 participou ativamente na redação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, é desse período que se lhe deve a coordenação dos anuários da Guiné de 1946 e 1948, obras de leitura incontornável.

Indubitavelmente, este romance datado de 1935, não é a melhor obra literária de Fausto Duarte, a trama é débil e a arquitetura do romance revela tremendas insuficiências. Mas tem muitos trunfos a seu favor, Fausto Duarte tem aqui a sua grande oportunidade de revelar um inequívoco deslumbramento pela Guiné, a sua flora, os seus exotismos, expor a sua observação de forte pendor etnográfico, etnológico e antropológico. Algures, na região do Tombali, no Posto de Caianque (nome imaginário), Henrique de Castro, o seu chefe, é revelado na sua sensualidade latente, irá sentir forte atração por Amenienta, uma das filhas de Bubacar Djaló, um homem grande ficará felicíssimo por vender a sua bela filha por umas centenas de escudos e quatro vacas, mais uns panos e umas folhas de tabaco. Fausto Duarte tinha seguros conhecimentos da literatura naturalista, era literariamente rebuscado, mesmo quando respiga observações de contido erotismo, há algo de uma escrita à moda antiga, assim: “Uma outra mandinga atravessou o largo terreiro com o cesto à cabeça. O chefe de Posto observou detidamente os pormenores do seu talhe donairoso. As ancas ambravam sob o pano curto. Mas os olhos fixaram-se de preferência nos tornozelos. A grossura das pernas aumentando gradualmente espicaçou-lhe a curiosidade. Henrique de Castro tinha a paixão dos artelhos que, para ele, mais do que nenhuma outra parte do corpo falavam a linguagem eloquente de certos prazeres”. Henrique nunca mostrará a prumo a sua personalidade, a revelação de carateres é uma das pobrezas do romance. Mas as insinuações eróticas irrompem, mal contidas, a propósito deste homem sozinho de quem iremos saber muito pouco: “Estava quase nua. Ensartara nos quadris contas variegadas de vidro presas a uma faixa de pano que lhe cobria o sexo, protegendo a prega interglútea. Henrique afastou-se para observar mais à vontade. As pernas eram uma maravilha de perfeição. Todo o corpo, correto, de linhas esculturais, assentava sobre a graça dos pés onde nasciam tornozelos flexíveis, insinuantes na pureza da combinação de todos os músculos”. Fausto Duarte utiliza regularmente idiomas africanos, o Tombali ele descreve em predominantemente as etnias Mandinga, Balanta e Nalu. Aparece um menino de nome Salu que em breve irá fazer o fanado e nele morrerá, o autor fará discretamente uma crítica a estas tradições brutais. A religiosidade perpassa por toda a obra, mesmo a mescla do islamismo com o animismo, mas acima de tudo é o poder do espírito do Irã e a resignação ou submissão do africano que mais se destaca.

Vamos sendo informados do espírito administrativo da época, é o caso dos arrolamentos feitos pelo chefe de Posto, transmitidos à autoridade seguinte, o administrador de circunscrição. Somos igualmente informados da atividade dos comerciantes do mato. Jacinto, um cabo-verdiano, desabafa com o chefe do Posto:
“Já lá vão os bons tempos em que os indígenas tinham dinheiro porque o amendoim, o coconote, a goma e a borracha eram bem pagos. Chegavam às lojas com grandes cestas, entregavam o produto e escolhiam os panos, pediam tabaco e bons terçados. O comércio fazia-se por escambo. Balanças? Para quê? Dizíamos um peso qualquer e eles não discutiam. Depois os tempos mudaram. Mais tarde, quando traziam os produtos vinham acompanhados dos doutores.
- Doutores? Interrogou Henrique, surpreendido.
- Sim, afirmou Jacinto. Doutores são os rapazes que viveram na cidade, falam o crioulo de Cabo Verde, conhecem as balanças e os pesos, discutem connosco e acompanhavam os indígenas que traziam mercadorias. E, hoje, sr. Henrique, dispensaram os tais doutores pois aprenderam também a negociar sozinhos”
.

Esta observação de Fausto Duarte é da maior utilidade, revela a chegada de intermediários que estarão em ligação com os grandes exportadores, tipo Casa Gouveia.

Henrique procura desesperadamente saciar os seus apetites sexuais, tudo acaba em fracasso. E então Fausto Duarte esboça um quadro da vida africana ao alvorecer, fala-nos na neblina húmida, nas chuvas torrenciais, na água que invade as bolanhas, na trovoada que provoca espanto e pavor, nas onças, no bramido do vento, a vida quotidiana dos indígenas, nos seus cultivos. Henrique é apresentado como homem do seu tempo, tem uma certa missão civilizadora, cabe-lhe criar condições para que haja desenvolvimento agrícola, no final do romance vamos encontrá-lo a montar uma charrua que mandara vir de Lisboa. “Dedicara-se de corpo e alma à ideia de bem servir agenciando meios para melhorar as condições de vida dos indígenas. A teimosia dos Nalus e a indolência dos Mandingas não lhe embotavam o fio da imaginação sempre pronta a tornar o Posto de Caianque o modelo de organização administrativa. Orientava pessoalmente os trabalhos de campo, adestrava o gado, e com a palavra fácil e bons exemplos insinuava-se no ânimo dos negros que o adoravam”. Mas a selvajaria também campeia, Jacinto entregará a Henrique uma mão decepada, ele diz ser de um balanta que procurara assaltar a loja, e vai apostrofando a ladroagem dos Balantas.

Segue-se uma descrição da natureza do Tombali, é uma linguagem pictórica, ardente, admirativa: a vegetação arbórea espontânea, as matas impenetráveis, ao alto as aves, na mata os animais lutam, a onça devora a gazela, os símios acrobáticos saltam de arvoredo em arvoredo, as cobras devoram as aves incautas. Fausto Duarte dá-nos um belo retrato da bagabaga:
“Espalhadas aqui e ali erguem-se pequenas pirâmides de terra avermelhada: são as termiteiras, construções indestrutíveis de insetos que só trabalham na sombra. Levantam muralhas consolidadas pela saliva, que tudo aglutina, para se defenderem dos ardis que povoam o mato. Os obreiros fogem da luz que entra com suavidade pelos alvéolos, mas lá dentro, no mistério tumular, envolto por uma escuridão duradoura, há labirintos engenhosamente fabricados, dédalos que vão ter à câmara inviolável da rainha.
A termiteira lembra uma pirâmide egípcia em miniatura. Uma é habitação de vivos, outra jazigo de mortos, mas ambas são fantasias da arquitetura ciclópica; ambas objetivam encarcerar a sombra e fazer dela o manto de um rei cujo corpo mumificado zomba dos séculos, ou de uma rainha – inseto extravagante – que governa com despotismo, porque perpetua a espécie, porque o seu abdómen é um constante viveiro; ambas são orgias de pedra trabalhadas por gerações inteiras, tumuli prodigiosos que aguçam a curiosidade”
.

(continua)

Catió, capital do Tombali, em data recente
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23726: Notas de leitura (1509): "Para Além do Amor", por Nelson Cerveira, edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia; 2022 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22824: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXI: A "marcha louca" na véspera do Natal de 1973



Foto nº 1 


Foto nº 1A

Foto nº 1 >  Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74 > c. Natal de 1973 Algures entre Cumbijã e Nhacobá > Base de lançamento das granadas de canhão sem recuo do IN contra o Cumbijã... São bem visíveis  duas valas cavadas feitas à medida do apontador e do municidor do canhão s/r  (Foto nº 1A) > Foto: Cortesia de Carlos Machado 



Foto nº 2

Foto nº 2A

Foto nº 2 B

Foto nº 2 >  Guiné > Região de Tombali > Cumbijã >  CCAV 8351 (1972/74 >  c. Natal de 1973  > Pelotão da “Marcha Louco” > Marchar, marchar… até encontrar o covil do IN e seu amigos Cubanos... 2º pelotão sendo eu o primeiro de pé à esquerda  (Foto nº 2A) e o líder “louco” da marcha, alferes Afonso, o primeiro de pé à direita (Foto nº 2B).



Foto nº 3 


Foto nº 3 A

Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74 > 1974 > Algures entre Cumbijã e Nhacobá: Os furriéis: Machado e Costa... Na base móvel do PAIGC utilizada com sucesso nos ataques ao Cumbijã com canhóes sem recuo. O Machado tentando encontrar o local das minas por ele colocadas depois deste ser alvo de uma queimada, fazendo desaparecer as referências da sua localização. Esta desminagem ocorreu já depois do 25 de Abril de 74, com o objetivo de sinalizar o local com tampas de “bidon” pintadas (Foto nº 3A). Na altura o Furriel Machado já usava calças da moda, rotas nos joelhos! 

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]







O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem pronto o seu livro de memórias (, a sua história de vida),
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua. 
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXI




“A MARCHA LOUCA” 
(para garantir que não haveria “fogo de artifício” no dia de Natal)




Não tenho nenhuma memória do meu segundo Natal no TO da Guiné (1973), contudo julgo que esta “marcha louca” teve lugar nas vésperas desta quadra, tendo em conta o redobrar dos esforços no sentido de garantir alguma tranquilidade neste dia, do qual a tradição não fala de fogo de artifício...

As nossas rotinas continuavam: Patrulhamentos de reconhecimento e proteção na mata, fazer segurança aos trabalhos da estrada, levantar minas e proteger pontões, e, aceitar como fizesse parte destas rotinas as recorrentes flagelações com canhão sem recuo.

Sempre que as flagelações atingiam em pleno o perímetro do destacamento não descansávamos até encontrar o local do lançamento das mesmas, que mais tarde ou mais cedo lá conseguíamos.

Não estávamos preparados para aceitar mais mortes dentro do próprio destacamento com estas flagelações!

Não tínhamos dúvidas que os operadores destes canhões sem recuo eram elementos cubanos,  muito bem preparados tecnicamente. Impressionante a forma como à segunda ou terceira tentativa as metiam quase todas dentro do destacamento. Contudo, é minha convicção que algo mais havia para além da competência técnico dos operadores… “No creo em las brujas, pero hay”.

Enquanto as granadas caiam fora do destacamento,  lá íamos tolerando a ousadia do IN (e seus amigos cubanos). Contudo, quando começavam a cair dentro do perímetro do destacamento a coisa “piava mais fino” e todas as contas eram feitas no sentido de confirmar a direção das mesmas e aferir a distância do local, tendo em vista a sua “caça”.

Geralmente o ataque começava ainda com a luz do dia e acabava já noite posta. Sempre assim atuavam. A noite sempre foi a “praia” do IN, deslocando-se, montando minas e infiltrando-se para o interior do território sem nenhum obstáculo a não ser uma ou outra emboscada noturna e uma ou outra granada de obus.

Os ataques nesta “nesga” de tempo tinha como objetivo evitar a nossa perseguição bem como não denunciar a sua posição,  tendo em conta o clarão provocado pela saída das granadas. Contudo, as últimas canhoadas, já com a noite a cair, acabavam por denunciar a sua direção. Quanto à distância? Alguém disse com toda a propriedade: “é só fazer as contas”, sabendo que a velocidade do som é de 340 m/s...

Já dois pelotões tinham saído com o objetivo de encontrar a base de lançamento das granadas de canhão sem recuo. Nada foi encontrado, pelo que chegou a nossa vez de tentar a sorte. Nesta altura já estava no meu pelotão o meu grande amigo “alfero” Afonso (amigo para a vida), que, não tendo passado todo o calvário da companhia até aí, estava, contudo, imbuído de uma determinação, quase doentia, em encontrar o local do ataque. Na saída vira-se para mim e diz-me com toda a convicção: "Costa, só regressamos ao destacamento depois de encontrarmos a base". Ao que eu repliquei: "Então era melhor reforçarmos as rações de combate !"

Inicia-se assim a “marcha louca”, atravessando trilhos, bolanhas e rasgando a mata com a faca de mato na direção do objetivo que o homem tinha gravado na sua cabeça, sem o auxílio de mapas ou bússolas, que segundo ele só complicavam.

Assumiu a dianteira, substituindo-se ao guia, tornando-se cada vez mais difícil acompanhar o seu andamento. A determinação era tanta que nem nos apercebemos que já estávamos a algum tempo a andar em círculo, com o primeiro da coluna a juntar-se ao último (perante o susto e a estupefação dos dois), caminhando em passo cada vez mais acelerado, mas não saindo do mesmo sítio.

Todas estas voltas se justificavam já que o seu “GPS” marcava que tínhamos chegado ao destino/objetivo. Este estava bem dissimulado na mata. “Manga de ronco”, o nosso homem conseguiu!

Encontramos o local junto a um Baga Baga com duas valas cavadas para se protegerem das nossas granadas de obus (Foto nº 1).

Regressamos ao Cumbijã,  eufóricos e só não demos uma medalha ao nosso “herói” porque foram todas gastas no torneio de futebol inter- turmas (pelotões).

Se o Marcelo da altura fosse o Marcelo de hoje, havia medalha!

No dia seguinte um outro pelotão foi ao local minar a zona, tendo encontrado uma das valas minada.

Felizmente tivemos sossego durante algum tempo, ao fim do qual a rotina voltou…

Continua...

_________

Nota do editor:

Último poste da série > 26  de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22754: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XX: outras guerras, outros protagonistas: os mosquitos, as abelhas, as formigas, as matacanhas...

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20948: Historiografia da presença portuguesa em África (208): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Digamos que não se encontra aqui um relato singular de alguém que anteriormente percorrera o território com responsabilidades no levantamento topográfico, a configuração das fronteiras da Guiné Portuguesa, trabalho que, como é sabido, se prolongou até à primeira década do século XX, com vários contenciosos luso-franceses pelo caminho. É um escritor marcado pelo formalismo mas o que mais entusiasma e nos faz sorver estes parágrafos aparatosos é o fascínio africano, ilimitado, viera com medos, até de escaramuças ou de encontrar pela frente antropófagos, rende-se à paisagem, inclusive a humana, uma bela flor de 13 anos fê-lo subir ao Sétimo Céu...

Um abraço do
Mário




“Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1)

Beja Santos

No descritor reservado à Guiné-Bissau, na Biblioteca Nacional (com centenas de obras consultáveis), dá-se nota de uma obra que nunca se vira referenciada em nenhuma bibliografia. Trata-se de uma edição da Parceira António Maria Pereira, a data é 1891, tem ilustrações primorosas para os três territórios visitados, acicata-se a nossa curiosidade, a Guiné autonomizara-se recentemente de Cabo Verde, que surpresas nos reserva este autor, que se descobrirá, mais adiante, que colaborou no levantamento das fronteiras da Guiné Portuguesa?

É comprovadamente um autor culto, bom observador, de escrita clássica, como se mostra, depois de nos ter falado exaustivamente da Madeira e de como aqui se tratavam os tísicos e o feitiço que lhe provocou o arquipélago cabo-verdiano:
“Três dias depois demandávamos a Guiné; e ao aproximar-nos desta terra fantasticamente delineada pelas tradições, onde a muitas milhas de distância o prumo marca seis a oito braças no seu contar de vaticínios, ao sulcarmos estas águas turvas e eriçadas de escolhos, onde os receios parecem receber o baptismo de realidades, encarando a expressão triste do espectáculo que se alarga de fronte, essa ondulação monótona de águas correntes onde apenas se desenha alguma ilhota verdejante, respirando o ar abafado em que parece errar a exalação quente de um resfolegar cansado, arreigou-se-nos por tal modo o convencimento das terroristas narrativas, que, como em caleidoscópio gigante, começámos a divisar pela imaginação, emboscadas sem número, através de matagais sem eco, feras hercúleas em rixas de estremenho, azagaias multiformes molhadas em venenos subtis… cobras despedaçando bois… crocodilos fazendo soçobrar embarcações… E como fundo deste quadro de uma compostura dantesca, os pântanos dormentes.”

João Augusto Martins é conhecedor do que fala, não há encómios ocos nem entusiasmos convencionais. Chegam a Bissau e daqui partem para Bolama numa baleeira, diz que foram acolhidos principescamente, fizeram piqueniques, visitaram tabancas de Fulas e de Brames e de Mouros, participaram em caçadas e ficaram hospedados em Bambaya, feitoria da casa Blanchard. Escreve enfeitiçado, galvanizado: “Atravessámos ao impulso entusiástico das caçadas magníficas florestas dez vezes seculares, guarnecidas de campinas tapetadas por vegetações colossais, onde a gazela salta com o frémito da sua fuga vertiginosa, e bandos de pássaros de todos os tamanhos e de todas as espécies matizam o horizonte com as cores vivas das suas penas brilhantes”.
E alarga-se no seu êxtase:
“Uma paisagem severa, calma e selvagem, grandiosa de toda a espontaneidade de um sol virgem, onde o caminhar, por mais que se estenda, não encontra um traço de cultura, e a vista, por mais que se alongue, não enxerga vestígios da presença do homem. Por todos os lados, a distâncias que se não podem calcular, cumeadas espessas de árvores elevando-se a alturas prodigiosas, e, em seguida, sem transição, subitamente, enormes tufos de verdura dessas esplêndidas espécies tropicais; lagoas mostrando meandros infinitos; riachos arrastando arcadas de folhas e de flores… e aqui e ali, escondidos à sombra de ervas curtas e espessas, pântanos traiçoeiros, onde a sanguessuga e a rã se espreguiçam aos raios ardentíssimos de um sol abrasador”.

E se a paisagem possui este fulgor, a beleza feminina não fica atrás:
“Foi numa dessas excursões extraordinariamente impressionistas que deparámos em África, onde a mulher geralmente pelas formas nos faz pensar nos manipanços, que nos foi dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo que há de mais irresistível nas atracções do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes da África. Tinha apenas 13 anos, e a adolescência irrompia nas indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica de suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo enfim… tudo se resumia nesta criatura como em síntese de encantos, de onde irradiava a sensação das místicas simpatias e as horripilações dos loucos desejos”.

Gravura que mostra o canal de Bolama.

O autor diz tratar-se de uma paisagem da Senegâmbia.

Legenda lacónica: Guiné Portuguesa, uma tabanca.

Quase não precisa de comentário, vê-se como o autor se assombrou com a baga-baga.

Uma bela gravura mostrando o régulo de Canhabaque e dois fiéis com longas

Descreve-nos Bissau, convém não esquecer um conjunto de documentos já aqui referenciados, alguns deles em depósito nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Vejamos o que nos diz João Augusto Martins:
“A vila de Bissau, sede do concelho, que por decreto de 4 de Julho de 1883 compreende o presídio de Geba, Fá, S. Belchior e todos os mais pontos ocupados e por ocupar nas margens do rio Geba, é uma pequena cidadela, de população limitadíssima, cercada ao norte, este e oeste por um fosso já semi-atulhado que acompanha paralelamente da banda de fora uma muralha de quatro metros de altura, a qual se liga ao centro à antiga fortaleza de S. José e termina nos flancos por pequenos torreões de estilo gótico, que fazem sentinela permanente ao rio. Essa fortaleza, construída, segundo uns, pela Companhia de Cacheu e Guiné, segundo outros pela Companhia do Grão-Pará, ampla, arejada, e altiva de toda a imponência dos poilões gigantes que lhe marcam os ângulos protegendo-a com as sombras benéficas da sua ramagem tufada, é guarnecida por peças velhíssimas de ferro, montada sobre reparos do mesmo metal que apenas servem hoje de armamento histórico e de espantalho aos gentios.
Entretanto, essas paredes arqueológicas, essa artilharia muda e esses baluartes vazios continuam a inspirar as frases sonoras com que os magnates da localidade, retórica oficial e os repórteres levianos, fazem acreditar urbi et orbi que o gentio é feroz e que nessas muralhas carcomidas pelo tempo e pelo abandono que reside ainda toda a garantia da propriedade e um esteio seguro ao comércio aí estabelecido.
A vila, pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, imunda de todo o indiferentismo das municipalidades de África, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma, adubada pelo paludismo, dizimada pelas febres, constitui ainda assim o último reduto da vitalidade da Província, o centro mais importante do comércio da Senegâmbia Portuguesa.
Existem aí casas francesas, alemãs, americanas e inglesas, além de muitos pequenos negociantes, na maior parte de Cabo Verde, e concorrem à praça todos os dias, não só os povos que a avizinham mas muitas das tribos afastadas que a abordam em grandes canoas sui generis pela construção, os quais vindo permutar por tabaco, aguardente, fazendas, etc. os produtos de agricultura e objectos originais da indústria indígena, dão um cambiante nitidamente selvagem a esse limitado quadro da vida africana, curiosíssimo pela variedade de penteados e costumes de seus personagens, interessante pela tatuagem com que se enfeita o preto, pitoresco pela diversidade dos tipos, dos penachos, das gesticulações e das vestimentas, profundamente impressionista no género grutesco, e constituindo no todo um espectáculo original pelo tumulto da selvajaria e da embriaguez, poetizado pela coloração verdejante de árvores colossais, enfeitado todo ele pelas cores vivas de habitações dissimilares que parecem banhar os pés nesse lodaçal extenso onde dezenas de canoas esguias se espreguiçam indolentemente como crocodilos gigantes fustigados pela calma.”

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20919: Historiografia da presença portuguesa em África (207): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18669: Guiné 61/74 - P18626: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 50 e 52: (i) tivemos o primerio ferido em combate, numa sexta-feira, 13 de abril de 1973, sendo evacuado por helicóptero; e (ii) o correio está a chegar atrasado depois de aparecerem os Strela...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > O José Claudino da Silva junto  a um bagabaga.

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*) 

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(ssii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela

3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 50 e 52


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]



50º Capítulo  > O PRIMEIRO FERIDO EM COMBATE

Escrever hoje as mesmas palavras que escrevi entre os 21 e 24 anos, num contexto completamente diferente, colide um pouco com a minha actual maneira de ser. Chamar ““turras”” aos guerrilheiros do PAIGC, fora do contexto em que o fiz na época,  faz-me sentir um pouco insensível e aproveito este momento para dizer que não me identifico, passados estes anos, com o que já escrevi e que,  devido ao modo como decidi desenvolver este livro, provavelmente vou continuar a escrever.

O dia 13 de Abril de 1973 foi a uma sexta-feira. Mesmo que não acreditem em superstições, deviam ler o relato que fiz. Eis o texto na íntegra:

Hoje tive a felicidade de receber uma foto tua, contudo meu bem não posso dizer que estou alegre, pois houve algo que ofuscou um pouco este dia que noutra altura seria maravilhoso. É que meu amor, os meus camaradas os meus camaradas saíram hoje às duas da manhã e caíram numa emboscada. 

"Um furriel levou um tiro nas costas tendo que ir um helicóptero busca-lo ao mato mas só depois de vários aviões terem largado bombas sobre os 'turras', pois os meus camaradas estavam completamente cercados e durante cerca de duas horas não se puderam mexer. Logo que os aviões entraram em acção então os meus colegas puderam abrir fogo em abundância e abrir um espaço onde o hélio aterrou para levar o ferido. 

"Nós éramos 80 e eles cerca de 160. Felizmente só houve um ferido que decerto se safará, nós pelo nosso lado. Aliás os meus camaradas pois como sabes não saio daqui, pois como ia dizendo a minha malta matou um e feriram alguns. Apanharam uma metralhadora e algumas granadas o que significa que aqui não lutamos em vão. É claro querida que estas coisas nos arrasam os nervos e é lógico que me sinta um pouco triste pois não é nada agradável saber que um de nós está ferido e que muitos outros poderiam ter perecido na luta”.
Enviei nesta carta uma foto de um Bagabaga (Ninho de formigas).

Disse que, no sábado seguinte, me iria embebedar com whisky, mas não o fiz. Ainda estava doente. No dia seguinte (Domingo de Ramos), tomei o meu primeiro comprimido para dormir.

“Se eu pudesse tomar uma droga que me fizesse esquecer o período que agora atravesso acredita que tomava, embora eu seja contra o uso da droga pois gosto de enfrentar as realidades e a droga torna a vida irreal”.

No dia 16 soube que o nosso furriel estava livre de perigo. Também recebemos as peças para reparar os geradores. Provavelmente, domingo de Páscoa  já teríamos luz eléctrica. [Vd. capº 50, já publicado no poste P18475 (**).


52º Capítulo > CARTA DE AMOR

Tal como era de prever, o correio começou a demorar mais tempo a chegar. Os pilotos civis estavam com receio de voar e nós estávamos a começar a ficar esquecidos neste recôndito lugar.

Já todos nós lemos que as cartas de amor são ridículas. Que dizer, então, das cartas que em média têm entre 500 a 600 palavras e que escrevi diariamente, como já o disse mais de uma vez? Fazendo um pequeno cálculo, em Maio de 1973, só para a minha namorada eu terei escrito cerca de 170.000. Eu próprio estou tremendamente admirado com o teor da maioria das missivas escritas. Devia amar muito esta mulher. Não se riam de mim.

“Toda a minha vida será dedicada a viver para a nossa felicidade e em todos os dias da vida sorriremos juntos para assim afastarmos os dissabores que nos surjam, poderás pensar que por vezes sou um existencialista e que só procuro complicar as coisas mas nota isto que a seguir te digo e vê se não será uma boa maneira de ajudar no futuro a nossa felicidade.

"Fazemos ambos uma lista imaginária dos erros que perdoamos um ao outro e quando algum de nós errar o outro vê se o erro está na lista dos que devem ser perdoados, ora como a lista é imaginária todos os erros estão lá e por isso sempre que um de nós cometa um erro, o outro perdoa-o, se fizermos isso assim, ou seja se perdoarmos sempre os erros que um ou outro tenha de certeza que só isso evitará muitos aborrecimentos na nossa vida conjugal e ajudará muito a sermos felizes. Saber perdoar não é difícil, mas é preciso saber-se perdoar sempre, o perdão ajuda a sentirmo-nos sempre cientes de que temos uma moral cheia de bondade e capaz de compreender os erros dos outros.

"Eu não pretendo com estas palavras ensinar-te; a minha intenção é para que saibas que tenho um coração capaz de amar até à loucura, capaz de odiar intensamente mas que também é capaz de perdoar e se a oportunidade surgir tu verás que saber perdoar ajuda muito a construir a felicidade.

"Antes de terminar por hoje desejo enviar-te muito amor através das palavras que escrevo e desejo sobretudo reconfirmar que cada vez me encontro mais contigo própria, ou seja que cada momento da minha vida tu estás mais dentro de mim e eu sinto-te como se fizesses parte do meu próprio corpo.

"Eu te amo com fervor.

"Envio-te um beijo cheio de ternura, sou teu eternamente Dino.


"Fulacunda 2/5/1973”.

Um dia, talvez a minha neta divulgue na totalidade tudo o que escrevi à avó dela ou pura e simplesmente alguém deite tudo numa empresa de reciclagem. Afinal, não passam de palavras escritas em folhas que estavam em branco e que eu paulatinamente fui preenchendo e o papel pode ser reutilizado.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 13 de maio de 2018 >  Guiné 61/74 - P18626: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 47/48/49: "Quero dizer-te que só em quinze dias os turras derrubaram cinco aviões"

(**) Vd. poste de 1 de abril de 2018>  Guiné 61/74 - P18475: Efemérides (271): A minha Páscoa no mato, há 45 anos (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967

Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Passaram 51 Anos: Chegada ao Largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967 - Parte II (*)

por Mário Vitorino Gaspar



“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos
Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967
(continuação)

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro

(...) Árvores de alguma altura abundavam, a população civil aproximava­‑se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um alferes se apre­sentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, que também ficaria connosco, aproximou­‑se de mim:
– Meu furriel,  quer comer uns borrachos fritos?

Olhei­‑o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
– Onde estão eles?
– Ó furriel, venha comigo!

Olhei por cima dos meus ombros e vi as divisas camufladas. Retirei­ as mesmas e coloquei-as no bolso do camuflado. Enquanto reparava que aquele 1.º cabo que se tornara meu amigo,  não vestia nenhuma roupa do exército. Estava com uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritou os borrachos e umas batatas, Iniciei a minha primeira refeição em terras de África. Que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim. Admirado para o tamanho das cervejas. Ouvi da sua boca:
– Essas são de seis decilitros.

O 1.º cabo confortava­‑me:
– Os borrachos não che­gavam para todos.

Estavam a tratar de fazer o jantar: – bacalhau com grão. Fora um milagre, uma bênção. Após a fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar­‑nos e o alferes miliciano que ficara connosco – era de rendição individual – ia esclarecendo-nos. Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

O furriel miliciano que eu substituía,  deixara ficar dois isqueiros Zipp  avariados com a inscrição “Movimento Nacional Feminino”. Nenhum dos isqueiros funcionava. Abri a mala e coloquei sobre o caixote que serviria de mesa-de-cabeceira, quatro livros:

“Os Cavalos Também se Abatem”, de Horace McCoy;
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes;
“A Fanga”, de Alves Redol; e
"Zorba o Grego”, de Nikos Kazantzákis.

Este último tinha muito a ver com a sigla da CART 1659: “ZORBA” – “Os Homens não Morrem”.

Começava a sentir cada vez mais o calor naquele clima doentio. Mesmo os atletas, não o eram. Não se respirava. Também era verdade que o fumo dos cigarros fumados tinha criado um autêntico nevoeiro naquele que era o meu quarto. O alferes Póvoa, o sargento Dores, eu e os furriéis miilicianos Jorge e Alves tínhamos ficado espalhados pelo aquartelamento, cada um com determinada missão defensiva.

Dei uma volta ao pequeno aquartelamento depois de despir o camu­flado e vestir uns calções, fiquei em tronco nu. Comido o bacalhau, prato do dia, fomos até ao bar, se é que aquilo era algum bar. Bebi e conversei com todos aqueles soldados­‑amigos­‑irmãos.

A população civil, por não nos conhecer, estava talvez indecisa, o que era normal, olhando-nos com um ponto de interrogação estampado no rosto. Tive o primeiro sorriso da bajuda que passava. O Alferes Miliciano Santarém ia-nos informando. Estávamos portanto no Setor S2, ficando a CART 1659 ligada para efeitos operacionais ao BCAÇ 1821, com sede em Buba.

Há uma via norte-sul ligando Aldeia Formosa com Cacine. Depois do Cruzamento de Ganturé – na mesma via – estão os aquartelamentos de Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo-se Cacine. No chamado Cruzamento de Guileje, há uma bifurcação para Mejo e Guileje. O terreno é plano, com cursos de água, sendo alguns deles de grande caudal.

A população insta­lada nas tabancas de Gadamael Porto, cerca de 400.  e em Ganturé (sede do Regulado), cerca de 200 indivíduos são beafadas. Existem ainda fulas, tandas, mandingas, landumas, bagas, nalús, sossos etc. Dedicam-se principalmente ao cultivo do amendoim, arroz e à caça e pesca principalmente para o abastecimento da tropa. As Praças “U” [, recrutamento local], pertencentes à Companhia, eram 31, existindo ainda 45 Caçadores Nativos.

Ficámos portanto junto da fronteira com a República da Guiné, Guiné ex-Francesa. Não estávamos preparados para aquele clima e éramos desconhecedores da cultura e língua daquelas gentes. Repetia-se a situação, era raríssimo ouvir­mos uma frase em português. Palavrões, sim.

Enquanto todos jantávamos, o dito bacalhau, ouviu-se o arrancar do motor e acenderam-se as luzes. Estávamos já instalados, e de serviço a tempo inteiro – 24 horas por dia – em terras da Guiné. A partir daquele momento tínhamos que estar preparados para tudo, até para termos que ouvir alguém gritar:
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda!

Era bem verdade que a grande casa guiada por Salazar queria e ordenava.

Cansados, dormimos, os que não foram destacados para os primeiros serviços. De manhã seria um outro dia. Logo tivemos o primeiro grande problema: – não tínhamos um Padeiro na Companhia. Fui eu que solucionei essa enorme falha. Era filho e neto de Padeiro, tinha trabalhado desde muito pequeno, depois de deixar de estudar fora Padeiro, tinha inclusive a Carteira Profissional de Ajudante de Padeiro. Acompanhei o fabrico do primeiro pão de Gadamael Porto e Ganturé. Não era complicado fazer bom pão, a farinha era de boa qualidade e oriunda de França. Aliás toda a população civil fazia propaganda diária da moagem francesa, muita da roupa que vestiam era feita do pano de sacas de farinha.

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão que desfazia miolos e as ideias. Verdade que, por vezes, escutasse o toque do clarim, mas por pouco tempo. Fiquei cativo, o único pensamento, mesmo cativo. Agrilhoado. Tinha de libertar dessa ideia.

Iniciou-se uma nova fase das nossas vidas depois de todos instalados. Ficaria connosco o alferes miliciano que deixara de fazer parte da Companhia que havíamos rendido, e que esperava nova colocação. Continuavam as desigualdades. Uma Messe com 2 alferes mili­cianos (o tal que entretanto esperava colocação,  o alferes Póvoa, comandante das tropas destacadas), 1 sargento e 3 furriéis milicianos.

Começam a surgir inúmeros boatos, postos a circular pelo PAIGC, focando ataques e destruições nas nossas tropas, criando-nos não só a nós como às populações uma certa insegurança. Queria acreditar que sofrer seria natural, as bonitas flores também sofrem. O meu grande problema era não gostar de arroz.

Como se tinham refugiado na República da Guiné muita população desde 1963, a nossa Companhia começou a exercer, quando estes visitavam a família, ações tendentes a persuadi-los a regressarem a Ganturé e Gadamael Porto, iniciando-se logo um aumento da população. A diminuta população existente dedicava-se ao cultivo de mancarra e à caça e pesca. O peixe denominado por nós da bolanha servia para o abastecimento próprio e para venda à nossa tropa. Portanto íamos começando a conhecer aquelas gentes, adaptámo-nos, melhorando progressivamente o espaço, que seria a nossa terra.

Na Messe tínhamos um gira-discos, que ali ficara e somente um disco. Este era – «Sony and Cher» – “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos "rangers", em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato” e “Et maitenant”.

Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados.  As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, visto em Ganturé não existir uma pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural. Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio: a carta e o aerograma com a notícia da família. Também o contacto com a namorada, noiva e madrinha de guerra. Quando avistávamos a avioneta, inventávamos desculpas para ir buscar o correio.

Como especialista de minas e armadilhas, após ordens do capitão que nos visitou [,em Ganturé,] comecei a rebentar, com petardos de trotil, aqueles monumentos enormes, construídos pelas formigas, chamados de bagabagas, que eu nunca tinha visto. As formigas construtoras de betão armado eram o exemplo vivo da unidade, a mesma união que pretendíamos no futuro para nós militares. Eram potenciais abrigos para o PAIGC em futuros ataques ao aquar­telamento, não muito longe da fronteira.

Mais tarde concluímos que não era bem verdade esta opinião, porque os bagabagas serviam também para nossa defesa. Começava a ambientar-me, e o trotil que inicialmente utilizara, depois de umas tantas mordidelas das formigas que assistiam não pacifi­camente à invasão das suas casas, foi substituído pelas granadas, colocadas nas fendas, e com uma corda não esticada, puxava junto da paliçada.

Esse trabalho, depois de milhares de mordidelas daquelas formigas que depois de arrancadas à pele, e amputadas das cabeças, continuavam a morder, foi a primeira grande experiência. Começara já a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes (em lugar de utilizar o alicate estrangulador), como era ensinado no Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, em Tancos. Havia aprendido a fazer o estrangulamento, nome dado ao acto de ligar o detonador ao cordão lento, na direção das costas. Isto para não sermos atingidos no rosto, e principalmente nos olhos.

Lembrei as pragas bíblicas: – As águas convertidas em sangue; as rãs; os mosquitos; as moscas venenosas; a peste nos animais; as úlceras; o granizo; os gafanhotos; as trevas e o anúncio da 10.ª praga. Eram as primeiríssimas pragas que anunciavam outras. Cortou-se o capim (capinar) em toda a zona entre a paliçada construída com chapas de bidões e terra batida no meio, e o arame farpado. Começámos por limpar a zona mais à frente, cortando a vegetação e queimando-a. Já tínhamos uma visão mais ampla de toda a zona circundante do aquartelamento.

Os abrigos foram melhorados, consoante aquilo que os militares consideravam ser mais cómodo, e aqui e acolá iam surgindo uns pequenos luxos para o local. Tudo obra executada nos intervalos das primeiras patrulhas, estas bem perto dos aquartelamentos. Existiam furriéis milicianos em Guileje e Mejo, que tinham estado comigo noutras unidades na metrópole. Quando se abasteciam em Gadamael, passavam por Ganturé. Sempre que os encontrava bebíamos umas cervejolas. A cerveja era também camarada.

Todos os dias eram nomeadas equipas para trazerem água, sempre necessária, havia de ser transportada para o aquartelamento, puxada com um motor para bidões. Era utilizada para alimentação e a higiene de cada um. Não havendo casas de banho apropriadas, o banho era com um púcaro improvisado, feito de uma qualquer lata com uma asa de arame, que derra­mava aquele líquido precioso sobre o corpo. Outra equipa ia à lenha.

Os copos eram feitos de garrafas partidas com óleo queimado com um ferro em brasa. Depois de golpes na boca, concluímos ser importante raspar as arestas nas pedras ferrosas, visto a zona ser rica em minério de ferro. A água para beber  tinha que ser tratada com pastilhas e, mesmo assim,  sabia mal. Ao fim de poucos dias em terras da Guiné fizemos uma patrulha até à fronteira da República da Guiné, num dia de altíssimas temperaturas. Não estando preparados, após termos bebido toda a água, enchemos de novo os cantis num charco existente e colocámos pastilhas. A sede era demais e bebemos este líquido sem que as pastilhas fizessem efeito.

Logo de seguida Tropas “U” e Caçadores Nativos mijavam para o charco. Perdi o controlo, senti vontade de esmurrá-los. Bebera mijo, ou para ser mais claro, todos bebemos mijo. Prometi nunca mais beber água na Guiné, nem a filtrada. Esta experiência ajudou-me a saber como lidar com aquelas gentes.

Ouvíamos constantemente os rebentamentos na área, e nos intervalos o matraquear do pilão vivia também ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escor­rendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado a quem se juntavam as bajudas, algumas com a mama firme, nós aproximávamo-nos sorrateiramente destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens.
– Mim cá nega! – respondiam após o primeiro toque nos corpos nus.

Habituámo-nos a respeitar esta vontade, que por vezes não era a delas. Visto Ganturé ser a Sede do Regulado, onde o Abibo Injassó era o régulo, também rei, que não permitia que as mulheres e bajudas tives­sem qualquer tipo de relações sexuais com os militares, muito embora se tentasse sempre que existisse uma oportunidade, principalmente com as lavadeiras. As operações sucediam-se, principalmente as patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá, o abastecimento era descarregado em Gadamael Porto.

O régulo era o elo de ligação entre a nossa unidade e os informadores. Criou-se uma rede de Informação. O informador era um pau de dois bicos, para nós positi­vamente, muito embora algumas vezes se colocasse em causa a informação. Tínhamos assim conhecimento da movimentação do PAIGC na zona. O informa­dor era pago pela informação, e se ela fosse verdadeira, recebiam mais.

A nossa tropa ajudava a população civil, facultando por exemplo a utilização das viaturas para o transporte de cargas pesadas. Também existia algum emprego para os naturais, nomeadamente nas obras dos aquartelamentos e com o contributo das lavadeiras na lavagem da roupa. Fomentou-se o cultivo do arroz, mandioca, batata-doce, milho, árvores de fruto.

De Gadamael tivemos conhecimento que os reabastecimentos para a zona far-se-iam pelo dito cais do aquartelamento, que continuava a ser uma caixa de uma GMC. Tarefa ingrata essa visto que corria a CART 1659, o risco de passar a comissão a descarregar toneladas e toneladas de mercadoria, que caiam na água e se enterrava no lodo. Cada barco para descarregar era um problema, e a nossa tropa tinha que inventar para não se afundar na lama com um saco às costas ou uma caixa de cerveja. Muitas caixas ficavam perdidas no rio. Íamos a Gadamael Porto, principalmente para falarmos com os amigos. Tirávamos fotografias, algumas demonstrativas das más condições que possuíamos. De várias viaturas conseguíamos montar uma.

Fizemos a primeira Operação ao famoso “Corredor da Morte”, também denominado “Corredor de Guileje”.

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13792: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (33): Um bagabaga que serviu de altar num casamento

 
1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 17 de Outubro de 2014:

Carlos, amigos e camaradas,
O artigo do José Saúde(1) despoletou-me a curiosidade e fez-me recuar no tempo, às minhas experiências vividas na Mata dos Madeiros, naquele longínquo ano de 1971.
Naquela Mata vivi situações reais que mais parecem contos de fadas. Esta é uma delas.

Com votos de muita saúde, um abraço transatlântico.
José Câmara


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

33 - Um bagabaga que serviu de altar num casamento

O José Saúde no seu fino artigo “As arquitetónicas fortalezas das formigas na Guiné” transporta-nos mais uma vez à importância que os bagabagas tiveram nas nossas vidas enquanto militares na Guiné. Diz-nos que felizmente não foi necessário usá-los como defesa, mas como comentou o Hélder Valério, para além da guerra havia uma componente a que não era indiferente, a fauna e a flora da província. Tal como a ele, estou certo que muitos de nós ainda temos na retina muito do belo que a Guiné tinha.

Pelo seu tamanho e estrutura os bagabaga eram um ex-libris da natureza guineense. Na Mata dos Madeiros havia muitos que foram utilizados por nós, militares da CCaç 3327, de várias maneiras, sobretudo de apoio noturno nas emboscadas que montávamos. Mas há um que foi especial na história da Companhia: serviu de testemunha a um casamento, se preferirem, foi o altar possível de uma cerimónia em que a noiva se encontrava a muitas centenas de quilómetros.

Recuando no tempo, no meu Poste 6084(2) faço referência ao casamento do Fur Mil Fernando Pedro Ramos da Silva no dia de Páscoa de 1971, que se encontrava em patrulhamento algures na Mata dos Madeiros. Também é verdade que não tinha nenhuma foto para ilustrar a cerimónia simples que lhe dedicámos no nosso acampamento da Mata dos Madeiros antes de ele regressar ao patrulhamento. E assim continua. Quando escrevi aquele artigo também estava bem longe de saber que o Fernando Silva nos tinha deixado muito cedo na vida.

Depois de ler o artigo do José Saúde, o Fur Mil João Cruz chamou-me para me alertar para uma foto que me cedera em tempos sobre o casamento do Fernando Silva. Na história que um dia será escrita sobre a guerra da Guiné certamente que os bagabagas terão um destaque importante nas componentes militar e paisagística. Hoje podemos acrescentar que pelo menos um também o foi na formação de uma família, a do casal Fernando e Celeste Silva.

O bababaga que serviu de altar a um casamento. Na Mata dos Madeiros, o Fur Mil Fernando Silva bebe do seu cantil no momento em que a noiva, a Celeste, estaria na cerimónia religiosa do seu casamento, numa igreja algures no Portugal Continental. São testemunhas, a partir da esquerda: os Fur. Mils. Joaquim Augusto Fermento (Minas e Armadilhas), Carlos Alberto R. P. Costa (Operações Especiais) e na frente o João Alberto Pinto Cruz (At. Inf.)

Foto (Cortesia de João Cruz, FMil. CCaç3327)
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Nota do editor

(1) Vd. poste de 12 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13723: Memórias de Gabú (José Saúde) (42): Baga-bagas, castelos de liberdade e de defesa

(2) Vd poste de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros

Último poste da série de 29 de Abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11503: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (32): Bassarel, um paraíso no chão manjaco

domingo, 12 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13723: Memórias de Gabú (José Saúde) (42): Baga-bagas, castelos de liberdade e de defesa


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As arquitetónicas fortalezas das formigas na Guiné

Baga-bagas, castelos de liberdade e de defesa

O tema não é original e já foi tratado aqui no nosso blogue por camaradas que, tal como eu, atreveram-se traze-lo à rama de um catálogo de conformidades onde proliferam histórias transversais e sempre encantadoras. Recentemente, ocorreu-me à memória os imponentes “castelos”, em “cimento armado”, que sobressaíam em zonas limítrofes aos brejos guineenses com os quais a rapaziada se deparava numa incursão ao mato: os baga-bagas.

Numa investida subtil à zoologia da Guiné-Bissau, recorro à originalidade do crioulo, idioma nativo que interligava as diversas estirpes genéticas que, não obstante os seus dialetos tribais, compõem as etnias guineenses, sendo que os baga-bagas são esplêndidas construções feitas pelas formigas cuja “raça” específica não me atrevo a pronunciar.

Havia quem dissesse que se tratava de formigas brancas, outros aplicavam-lhe o nome de formigas baga-baga, enfim, zeloso da minha ignorância numa matéria zootécnica que considero específica, não ouso atrever-me a lançar a “graça” sobre os referidos bicharocos.

Todos nós, antigos combatentes na Guiné, conhecemos as virtualidades desses retumbantes “monumentos” que nem uma rajada de arma ligeira, ou pesada, ou uma eficaz granada de bazuca, tentavam destruir. A sua construção, bem como o conteúdo de toda a sua estruturação, era simplesmente soberba.

Comentava-se, na época da guerrilha, que os baga-bagas eram eloquentes amparos aquando os confrontos com o IN no terreno. Falava-se nos quartéis, fluentemente, que houve camaradas que, refugiados atrás de um baga-baga, terão evitado o pior para o seu estado físico. Aquele muro inquebrável era um estilo dos velhos castelos que permanecem, ainda hoje, intocáveis pelas agruras do tempo.

Felizmente, jamais me vi confrontado com tal necessidade, restava porém as trocas de impressões tidas no mato com camaradas que, obviamente, viam naquele fabuloso “monumento” um hino à força da mãe Natureza.

Como e porquê aqueles pequenos seres vivos se envolvem em tamanhos trabalhos? Ficava a interrogação. A seguir vinha a incerteza que envolvia o trabalho familiar que levava aquele exército guerreiro, compactado em secções, pelotões, companhias e batalhões, a envolverem-se em fainas intensas donde resultavam arquitetónicas fortalezas. 

Admitindo que a saliva daquele grupo de formigas é uma espécie de supercola “três” orientado para diversos fins, seguiam-se outras dúvidas: a inquebrável textura que compunha o contexto geral da obra e a sua efetiva planta.

Este tema, que considero interessante, surge constantemente à flor das minhas paixões absorvidas na guerra da Guiné. Lembro-me, perfeitamente, da azáfama permanente daqueles pequenos bicharocos. O seu constante vai e vem era motivo interessante para se consumirem mais uns minutos ao tempo de comissão.

Na minha aprendizagem sobre diversas temáticas em tempo de guerra, a figura, não de estilo mas real, é a constatação de diversos baga-bagas que conheci na região de Gabu. A sua arquitetura e simultaneamente a minuciosidade impostas por aquele tipo de formigas, conduziam-me, melhor, conduziam-nos a pressupostas interrogações sobre a vida animal naquele cantão de terra africano.

África, no seu melhor, é tão-só uma porção de território onde a imprevisibilidade do momento corteja um forasteiro cioso de conhecimentos que a história vagarosamente nos contempla.

A guerra na Guiné expôs-se, também, a atribuir-nos dados novos nos nossos estéreis conhecimentos acerca de uma guerrilha que não dava tréguas, sendo os baga-bagas – castelos de liberdade e de defesa - exemplos acabados da nossa estadia em território guineense.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

sábado, 10 de setembro de 2011

Guine 63/74 - P8761: Fotos a procura de... uma legenda (15): Bambadinca e o seu famoso bagabaga catedral... Álbum do Benjamim Durães





Guiné > Zona Leste > Sector L1  > Bambadinca >  Um dos ícones de Bambadinca (que quer dizer "a cova do lagarto", segundo o poeta Artur Augusto Silva)...  Este era  o famoso bagabaga de Bambadinca, ou um deles... Era muito fotografado... Quem, de resto,  não tirou uma foto em cima de um bagabaga para mandar para a metrópole, com  recuerdo da sua passagem por aquela "terra verde e vermelha"(Será que este, um verdadeiro monumento vivo da natureza, ainda está de pé, 40 anos depois ?)...

Na 1ª foto, a contar de cima, pode avaliar-se a altura do monumental bagabaga, por comparação com o Umaru Baldé, o puto, com o seu inseparável cachimbo (O Umaru deveria ter um metro e setenta de altura, este bagabaga é um dos mais altos que tenho visto, medindo cerca de 6 metros, da base ao topo).

O nosso "belo efebo" era filho de régulo, dizia-se. Teria 16 anos, na melhor das hipóteses quando se juntou a nós, CCAÇ 2590, e depois CCAÇ 12. A seguir à independência, terá andado fugido - com a cabeça a prémio, dizia-se -  tendo conseguido refugiar-se em Portugal. Morreu cá, há uns anos atrás, de doença  - Sida e tuberculose -, no hospital do Barro, em Torres Vedras ... Vários antigos camaradas, metropolitanos, da companhia ajudaram-no a sobreviver... Foi um bravo combatente, foi ferido em combate, como a maior parte dos soldados da CCAÇ 12... Não chegou a acabar a sua comissão na CCAÇ 12, segundo o seu amigo e protetor, o António Marques, terá sido transferido depois para Bissau.

Já em tempos, em 2006, tínhamos começado uma série com o título Concurso o Melhor Bababaga, de que se publicaram pelo menos 3 postes (*)... Recordo-me que trazia uma foto  com o Humberto Reis, garbosamente empoleirado num outro bababaga de Bambadinca. também do tipo catedral... 

Como eu então escrevi,  os bagabagas são aglomerados de terra e outros resíduos - material lenhoso, no essencial - , edificados pelas térmites e que constituem o seu ninho. São muito resistentes, mas infelizmente tal como a floresta tropical não resistem aos bulldozers e ao avanço do cimento (que confundimos com civilização, progresso, desenvolvimento)...

"Temos a obrigação de ajudar os guineenses a preservar estes monumentos vivos da natureza... Este pequeno concurso (fotográfico) é uma forma de sensibilizar os nossos tertulianos e demais visitantes para o património (natural e edificado) da Guiné-Bissau... Nós, ex-combatentes, quer portugueses, quer do PAIGC, temos um enorme respeito pelo bagabaga: ele fazia parte do nosso cenário de guerra... Hoje deve ser um símbolo da paz e da biodiversidade"... 

 Um das expressões que aqui usamos, é: "Não te escondas por detrás do bagabaga, dá a cara"... É o que temos feito desde Abril de 2004, alimentando e acarinhando este blogue... (LG)

Fotos: © Benjamim Durães (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Continuação do nosso passatempo Fotos à procura de... uma legenda (**), que já não é de verão, é de outono... Os nossos leitores continuam a ser convidados (para não dizer desafiados...) a mostrar, aqui em público, o seu especial talento em matéria de legendagem (livre) de fotos... 

Aproveita-se para reproduzir, mais uma vez, um dos poemas do Artur Augusto Silva (1912-1983), pai nosso amigo Pepito, e que é um hino à sua amada Guiné, "terra negra" mas também "verde e vermelha"... (LG)


TERRA NEGRA

Ao Fernando Pessoa,
Poeta de Portugal

Terra negra que tremes em convulsões de parto,
Terra negra que a guerra devasta,
Terra negra que os ódios revolvem,
Terra negra que o Luar acaricia.

Oh terra negra da minha infância,
onde uma negra ama me aleitou,
com cuidados maternais
e um amor que vinha do íntimo dos séculos.

Oh terra negra da minha infância,
onde brinquei com meus irmãos negros,
onde nadei no rio com meus irmãos negros,
onde cresci de mãos dadas com meus irmãos negros.

Oh terra negra dos mais saborosos frutos do mundo:
do ananás, do caju, da papaia, do mango;
Oh terra negra dos maravilhosos contos infantis
que a minha ama negra me contava para adormecer.

Ali, naquela enorme árvore, estava o irã,
terrível espírito da floresta que metia medo aos meninos
e nos fazia fugir para longe.
Mais para lá, era o poilão de Santa Luzia
que vomitava fogo quando a santa queria orações;
e o terreiro onde o cumpô dançava
e os meninos se extasiavam,
era a cova do lagarto onde ninguém ia,
era a mata do fanado
com os seus mistérios terríveis.

Era a minha vida,
a vida dos homens simples
que amavam os seus semelhantes
e veneravam os velhos.
Agora, oh terra verde e vermelha da Guiné,
só te peço que todas as noites
deixes baixar sobre meu coração
o silêncio que cura os males da alma
e que quando os dias nascerem húmidos e tenros
como o barro das tuas bolanhas,
deixes o meu corpo
receber esse afago matinal
que foi o meu primeiro baptismo
e te peço seja a minha absolvição.

Bissau: Instituto Camões, Centro Cultural Português de Bissau. 1997. pp. 23-25.


2. Para os devidos, reproduz-se aqui, com a devida vénia, um pequeno texto sobre o bagabaga (substantativo, do género masculino e não feminino, sinónimo de térmite e de termiteiro, palavra que vem do crioulo lusófono, oral e escrito, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa): J. P. Cancela da Fonseca: As térmites na paisagem da Guiné: documentário fotográfico. Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume XIV, nº 56, Outubro de 1959 (Reproduzido, por sua vez, pelo A.Marques Lopes, no seu blogue Coisas da Guiné, em poste de 1 de Junho de 2011)... Fiquei a saber que há dois tipos de bagabaga, o vermelho que constroi termiteiras tipo catedral, e o bagabaga preto, cujas termiteiras são em cogumelo...
 
(...) Quem pela primeira vez pisa a escaldante terra africana; quem pelas suas digressões pelo «mato» se apercebe da cambiante duma paisagem como a da Guiné portuguesa, que os menos avisados classificam de monótona; quem pelos seus inte­resses humanos se fixa na evolução que a paisagem sofre pela acção cul­tural do Homem. - Vê aqui e além, espaçados ou agrupados, erguerem-se acima do solo montículos de forma estranha , que não são obra de gente, de planta ou de pedra; - são obra de animal. 
 
Esse animal, é o «senhor da terra»… africana. A ele paga o Homem pesado tributo em géneros e em habitação: as térmites aparecem destruindo a cultura no campo, o produto no armazém, a madeira na casa. Os tecidos lenhosos, vivos ou mortos, são o seu alimento predilecto. Para os alcançar cava túneis, constrói galerias, arquitecta ninhos. Adapta as suas necessidades à paisagem. Subordina a paisagem às suas necess­idades.

As termiteiras em catedral (baga-baga vermelha) do tipo Macrotermes spp., erguem-se majestosas nas suas perspectivas de gigante, nas florestas, na savana, no campo de cultura. Sobrepassam as culturas anuais, espreitam através dos arvoredos cerrados, e, à compita, elevam ao céu a mesma prece que o cibe ou a palmeira do chabéu: - Sou vida...

Rastejam em colónias graciosas, emprestando uma beleza subtil às paisagens cinzeladas do Boé e Nhampassaré e aos solos quase enxutos de seiva criadora, as termiteiras em cogumelo da baga-baga preta, do tipo Cubitermes spp.. Às dezenas, às centenas, aconchegadas na amplidão das crostas ferruginosas donde emergem, banhando-se dum pleno sol sob a protecção dos seus chapéus dum cinzento suave, parecem reclamar a protecção do céu, gritando na sua humildade: - Nós!... Somos tam­bém vida.

Quem se detiver e contemplar atento tão vastas áreas degradadas terá ocasião de meditar: - Sois vida! Mas também sois morte?! (...)
[Recomenda-se a ida ao blogue do A. Marques Lopes para ver as fotos que ilustram o texto aqui reproduzido].

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