Mostrar mensagens com a etiqueta amores de guerra. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta amores de guerra. Mostrar todas as mensagens

sábado, 7 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22441: Estórias do Zé Teixeira (50): Amores em tempo de guerra - O sonho da Luisinha (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 4 de Agosto de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":


Amores em tempo de guerra

Um sonho terrível acossara a Luisinha naquela noite, depois de um jantar entre colegas da faculdade de Medicina. Tinha sido organizado pelo Jorge, que considerava o seu melhor amigo, para comemorar as vinte e três primaveras com que fora privilegiada pela vida. Gostava muito de conversar com o Jorge e, na realidade, o Jorge encontrava na Luisinha a fonte da sua paixão. Discreto e tímido como era, não ousava tentar aproximar o seu coração ao da jovem eleita, por medo de ser rejeitado. Amava-a no silêncio da sua alma, seguia-lhe os passos religiosamente, procurava todas as oportunidades para conversar com ela e era correspondido.
Luisinha era uma rapariga aberta e comunicativa. Tinha prazer em cultivar amizades, mas não deixava espaço para a aproximação. O seu compromisso com o Zeca era sagrado. Porém, o Jorge foi-se insinuando e conseguiu penetrar no âmago do seu coração. Nas conversas perdidas no vazio do tempo com o Jorge, enquanto esperava Zeca, descobriu que cada um de nós carreteia uma mochila doada ao nascer e nos acompanhará pelo tempo fora. Nela é depositada toda a nossa história. A história que cada um escreve no dia a dia da sua vida, que será tanto mais leve quanto mais soubermos acomodar dentro dela, as nossas melhores escolhas para o quotidiano que ousamos viver, apartando tudo que não nos serve ou pode prestar-se a ser empecilho à nossa felicidade. Cabem lá os sonhos que nos enchem a vida, mesmo aqueles que se dissiparam no tempo, os projetos de um futuro na construção da felicidade a que temos direito, renovados em cada dia que parte. Sobretudo cabem lá as decisões sensatas e a sua concretização. Atos e ações que leve, muito leve e agradável o seu transporte nos fazem sentir realizados. Mas também as decisões insensatas que a tornam mais pesada e difícil de carregar vida fora.

Sem se aperceber, a jovem candidata a médica pediatra, cometera na noite anterior um ato profundamente insensato. Deixou que o coração do Jorge se aproximasse demasiado do seu coração e ficou presa. A sensualidade própria da juventude libertou-se das amarras que ela continha dentro dela, pelo amor que dedicava ao Zeca desde tenra idade. A um amor proibido e indesejado pelo seu pai que com o tempo se transformou numa linda paixão, agora ressequida pela ausência forçada por exigências da Pátria, se contrapõe outro amor alimentado pela presença contínua na sua vida de estudante, de um jovem extremamente cortês e delicado, bem-parecido e, como ela, abonado financeiramente. O coração a traíra numa noite que devia ser de felicidade. Na realidade fora rica pelo convívio, pela quentura da amizade sentida e pelos momentos selados naqueles beijos de apaixonado que recebera e retribuíra, mas os amargos que se levantaram depois abafaram toda a festa.

Zeca apareceu-lhe no sonho e levou-a a caminhar até aos tempos de criança A sua timidez nos primeiros dias de escola, talvez pelo pouco convívio com crianças da sua idade. Timidez que o Zeca ajudou a fazer desaparecer com o seu sorriso, suas brincadeiras e aventuras. Viu-se a caminhar, em pleno verão, pelo jardim do Parque Verde do Mondego de mãos unidas, dedos entrelaçados, tanto quanto os seus corações, embalados pela suave música da água do rio ao lamber as margens sequiosas enquanto dos seus lábios saíam promessas de amor eterno. A noite em que o afeto que os unia se transformou num vulcão e a elevou ao céu, fazendo-a sentir-se mulher de corpo inteiro. Noite em que ambos se desvirginaram num puro ato de amor jamais conjeturado, surgiu-lhe no meio do sonho, a atormentá-la. Um momento tão belo na sua vida que era a maior e melhor fonte de alimento do seu amor pelo Zeca vem pedir-lhe ‘contas’ pelo seu gesto impensado com Jorge no calor daquela noite. Acontecera poucos dias antes do Zeca partir para a Guiné, numa certa noite fria de abril, em que o calor dos seus corpos unidos pela paixão os traiu, nos seus propósitos de se manterem virgens para dar mais vida à noite de núpcias que vislumbravam com esperança, no regresso do Zeca e foi tomado pelos dois, como sinete branco que os iria unir na separação forçada que se avizinhava. O Amor que nutria pelo Zeca e representava tudo para ela estava ferido. A profundidade do seu pensamento, a visão positiva que ele tinha do mundo. A forma como encarava os problemas e com que a humanidade se debatia; a relação entre a riqueza de alguns a contrapor-se à miséria de muitos o fazia sofrer profundamente e empenhar-se nas lutas proibidas e secretas dos moradores das ilhas do Porto por habitação condigna. Eram estes os valores que o Zeca carregava na sua mochila e que a faziam sentir-se mais rica e aprofundava o amor que os unia.

Ao acordar Luisinha sentiu-se envergonhada de si mesma. Sentia-se numa prisão a quatro braços e não conseguia abrir caminho para se libertar.

Zé Teixeira
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19479: Agenda Cultural (672): "Amores pós-coloniais", pelo grupo de teatro Hotel Europa... De 7 a 24 de fevereiro de 2019, no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa


Cartaz do espetáculo "Amores pós-coloniais", Teatro D, Maria, de 7 a 24 de fevereiro de 2019 (Reproduzido com a devida vénia...)



1. Teatro: "Amores pós-coloniais"
Companhia: Hotel Europa
Data: de 7 fevereiro a 24 fevereiro 2019
Horário: qua: 19h30; qui: 21h30; sex: 21h30; sáb: 19h30; dom: 16h30
Local: Teatro Nacional D. Maria II

Praça Dom Pedro IV
Telef 213 250 800
http://www.teatro-dmaria.pt


Sinopse:

(...) Amores Pós-Coloniais inicia um novo capítulo de investigação na companhia Hotel Europa, estendendo o ciclo de investigação do colonialismo ao tema do amor.

“Este espetáculo de teatro documental pretende refletir sobre o amor enquanto espaço político e utópico, discutindo o que significava amar no espaço colonial e pós-colonial.

Este trabalho irá utilizar como metodologia um cruzamento entre a pesquisa de arquivo e a recolha de testemunhos reais. Pretendemos retratar com este espetáculo as políticas do amor no espaço colonial e perceber como a violência do colonialismo condicionava as relações amorosas. 


Iremos recolher testemunhos com antigos soldados Portugueses que tiverem filhos com mulheres África no tempo da guerra, mulheres de origem Portuguesa que se apaixonaram por homens negros pertencentes aos movimentos de Libertação, e também as relações que saíram da relação entre os países Africanos e os países da Europa de Leste. Este trabalho irá também entrevistar os filhos que saíram dessas relações, tentando fazer o escrutínio do que era o amor durante o período Colonial e Pós-Colonial.” (...) 

Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa a 24 de fevereiro.

Ficha técnica:

Hotel Europa. André Amálio, criação; Tereza Havlíčková, cocriação e movimento; André Amálio, Júlio Mesquita, Laurinda Chiungue, Pedro Salvador, Romi Anauel e Tereza Havlíčková, interpretação.

Preço: 11 €  (ver descontos)

Fonte: Agenda Cultural de Lisboa, fevereiro de 2019



Capa da Agenda Cultural de Lisboa, fevereiro de 2019, e reprodução da p. 40, com o anúnico da peça de teatro "Amores Pós-Colonais"


2. Nota do editor Luís Graça:

O sítio "Agenda Cultural de Lisboa", propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, Pelouro da Cultura, Divisão de Promoção e Comunicação Cultural, utilizou indevidamente, duarnte alguns dias ou algumas horas, uma imagem do nosso blogue, da autoria do nosso camarada Virgílio Teixeira, sem qualquer referências à fonte e aos créditos fotográficos. Escusado será lembrar que uma das 10 regras de ouro do nosso blogue  é justamente o "respeito pela propriedade intelectual, pelos direitos de autor".


Depois de apresentado o devido protesto, o Virgílio Teixeira, que foi alertado por nós e que ficou deveras incomodado, recebeu a seguinte mensagem da produtora do espetáculo "Amores Pós-Coloniais", Joana Santos, com pedido de desculpas:


Data: Mon, 4 Feb 2019 12:35:05 +0000
De: Hotel Europa
Assunto: Uso da imagem: pedido de desculpa
Para: Virgílio Teixeira

Boa tarde caro Virgílio Teixeira,

O meu nome é Joana Santos e sou a produtora do espectáculo Amores Pós-Coloniais da companhia de teatro Hotel Europa, com a autoria de André Amálio & Tereza Havlíčková, que vai estar em cena no Teatro Nacional D. Maria II.

Escrevo pois foi-nos comunicado que é o senhor que está representado na fotografia que chegou a ser usada para a divulgação do espectáculo.

Em nome da companhia Hotel Europa queremos pedir desculpa pela utilização da fotografia neste contexto sem a sua autorização.

A imagem foi usada durante muito pouco tempo pois como não tínhamos informação sobre autoria e créditos decidimos deixar de a usar e substituí-la. O departamento de comunicação do Teatro divulgou muito pouco a imagem e já tinha feito um pedido para que fosse substituída mas vai agora reforçar por pedido nosso. Já identificámos os sítios na internet que têm de substituir e o pedido já foi feito. Na agenda impressa essa alteração já não pode ser feita.

Mais uma vez, pedimos imensa desculpa pelo incómodo desta situação, não foi de todo intencional da nossa parte.

Muito obrigada pela atenção.
Com os melhores cumprimentos
Joana Santos (...)

André Amálio & Tereza Havlíčková (...)
Hotel Europa
Performance.Theatre.Dance

____________

Nota do editor

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19237: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 71: A última carta (, "de amor, ridícula"), com data de 9 de junho de 1974, escrita sem saber que a sua mâe já tinha morrido no dia 1... Foi também a única, em centenas, que nunca chegaria ao destino...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > O Dino, no rio Fulacunda, junto ao "porto fluvial"

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita
, "Em Nome da Pátria"), do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):

José Claudino da Silva, chapeiro em Amarante
Quase a chegar ao fim da sua viagem pelas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental", o autor evoca aqui, no capº 71,  "a última carta" que escreveu à sua Amélia, namorada e futura esposa, com data de 9 de junho de 1974, sem saber que a sua mãe tinha morrido no dia 1...

Passa por alto ou por cima de acontecimentos (coletivos) como o 25 de Abril e a retração do dispositivo das NT ou os primeiros contactos "pacíficos" com o PAIGC em Fulacunda.

Recorde-se, por outro lado  que o autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. 

O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. 


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 71º


71º Capítulo > A ÚLTIMA CARTA

Estou muito perto de terminar esta partilha confidencial de emoções que guardei, sem nunca ter intenção de divulgar. Entre o drama e a comédia, tentei dar-vos uma visão dum soldado que escreveu apenas por amor, num tempo de guerra.

A partir de Março de 74, e talvez por influência da mãe e do irmão, a Amélia deixou de guardar o correio que lhe enviava. Embora eu continuasse a escrever, já não o fazia tão assiduamente. No meu mapa, não está marcado que tenha escrito, por exemplo, no dia 25 de Abril de 1974. Sei que festejei esse acontecimento em Fulacunda mas não me lembro como foi.

Ora, como é lógico, e partindo do princípio que me norteou, não quero citar nada que não possa provar. Contudo, mesmo assim, ainda consegui reaver alguma correspondência sem grande relevância,  excepto a última que escrevi.

Esta última carta tem 12 páginas que perfazem um total aproximado de 2700 palavras. Como digo, a última que escrevi na Guiné. Sendo a última, vou transcrever algumas frases, aleatoriamente:


“Fulacunda Domingo 9 de Junho de 1974.

Desejo que esta carta te encontre de boa saúde, eu não me sinto muito bem.
Ficarei bem se amanhã conseguir falar-te.
Quando a gente está na cama doente é que pensa em mais coisas.
Sofri mais nestes 24 meses na Guiné que no resto da minha vida”.


Com 2700 palavras fazem-se muitas frases, mas nesta carta quase adivinhando o que poucas horas depois iria suceder, estão também alguns desabafos e um estranho balanço amoroso.

Confio no vosso sentido de humor ao lerem o que vos ofereço e lembro-vos que as cartas de amor são sempre ridículas.

“Quando vim para aqui não queria ocultar-te nada no entanto tive de ocultar-te muitas coisas. Ataques que sofríamos e não queria que ficasses em cuidado porque na verdade passamos muitos perigos. Estou até a recordar-me de uma vez em que fui para o mato numa operação para assaltarmos um acampamento de terroristas mas que só por felicidade eles não estavam lá. Mas bem isso não te interessa.

Se tu tens razões para pensar que eu tenho outra eu quero que sejas sincera e me digas se eu tenho ou não razões para pensar que tens outro.

Primeiro: Pouco depois de eu vir para aqui num aerograma dizem-me que tens outro namorado.

Segundo: Numa visita que a minha avó fez a tua casa vê um rapaz a sair de lá.

Terceiro: Quando fui de férias e nos chateamos, logo que te deixei, ficaste pouco aborrecida o que demonstra pouco interesse.


Desculpem, mas estou confuso, não tenho o quarto motivo. Não interessa! Adiante!

Quinto: Nunca atendes-te um pedido meu com a solicitude que devias.

Sexto: As cartas que me escrevias e muito mais os aéros, chegavam a ter três semanas de atraso e mais, sem que te preocupasses com isso.

Sétimo: Em 24 meses recebi cinco fotografias e isto porque te supliquei quase sempre que as mandasses.

Oitavo: Tu não respondias em condições às minhas cartas mostrando dessa maneira um total desinteresse por aquilo que te mandava.

Ainda teria muito mais coisas para te dizer…”


Francamente!... A guerra colonial, comparada com a minha guerra amorosa, ficou nitidamente a perder.

Atenção! Na quinta página ainda afirmo que esta ingrata me vai pagar com juros. Pois, mas na sexta página, depois de dizer que ela até havia de morrer, digo:

“Tens beijos de fogo que me acendem o coração.

Vou dormir e nem quero sonhar contigo.

Já dormi e fui ver se a chamada que marquei para falar contigo pode ser feita. Por acaso pode por isso amanhã às 14H30, quatro horas e meia da tarde aí na Metrópole vou tentar mais uma vez falar-te”.


Esta última carta devia ser a única a não chegar ao destino. Nas páginas 9 e 10 escrevi a história da Bela Adormecida. Na página 11 tem um poema da minha autoria, para ser cantado na música de Gianni Morandi “Non son degno di te”[1964] [Vd. vídeo no You Tube, disponível aqui, com legendas em português do Brasil]

Ultimo parágrafo:

“Havias de ter os lábios gelados quando beijares outro que não fosse eu, havias até de te transformar numa estátua de gelo”.

“Dino”


Acham que foram as bombas, os tiros, em suma, a guerra… que me fizeram sofrer mais?

(Continua)

3. Nota detalhada dobre o autor e sinopse dos postes anteriores [vd. aqui]
________________

segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18380: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 30 e 31: Se forem para a guerra, acabem com os namoros!


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CCAÇ / BART 6520/72 (1972/74) >  Beldades de Fulacunda: bajudas biafadas

Foto: © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita]

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. É vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa,, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura.  Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade. José Claudino da Silva,

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook: é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante. É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xvi) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xvii) começa a colaborar no jornal da unidade, e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia



2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 30 e 31

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]]


30º Capítulo  > ENTRE FULACUNDA BULA OU BINAR

Dia 16 de Novembro de 1972 foi o dia do meu despertar. Confesso-lhes sinceramente que, neste instante, as lágrimas invadem os meus olhos. Precisei de muitos anos, 45, para reler o que vos vou relatar. O aerograma começa assim.

“Minha doce e amada Melly. Nem sempre me é possível calar que te amo loucamente, pois o amor é um sentimento estranho que subjuga e domina aqueles que dele dependem, por isso eu em dias como o de hoje sinto um frémito de emoções a percorrer-me o corpo.

Como te tinha dito veio uma avioneta para evacuar um soldado, mas de repente chegaram aqui seis helicópteros da força aérea. Dois pelotões nossos estavam no mato e soube que mais uma vez colaboravam connosco pára-quedistas e comandos, também estiveram envolvidos quatro caças Fiat e dois bombardeiros. Durante toda a manhã não se ouvia outra coisa que não fossem bombas a rebentar. o combate desenrolou-se a cerca de 10 quilómetros daqui. Não sei se houve mortos ou feridos pois não nos informam, talvez logo saiba na rádio Argel porque o locutor dessa rádio, sabe tudo que se passa na Guiné e o da nossa emissora não sabe. Por exemplo: Na estrada que liga Bula a Binar um grupo de “turras” que eles dizem são o P.A.I.G.C. (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) atacaram uma camioneta, mataram 10, feriram 14 e raptaram mulheres e uma criança. Os nossos dizem que eram civis os que morreram e na rádio Argel dizem que eram militares. Não sei em quem acreditar! Também os nossos dizem que matamos 18 “turras” e ferimos muitos e nem sei se é verdade. De concreto só o barulho dos aviões e das bombas a rebentar, já passaram umas horas e ainda tenho esse som nos ouvidos.”


De repente, o amor estava misturado com a guerra. Prezo-me porém de ter escrito muito mais vezes a palavra amor que a palavra guerra. Sem qualquer dúvida, o amor venceu.

No dia seguinte, na tabanca, houve “Manga de ronco” (em crioulo significa “muita festa”). Voltámos a rir ao som do batuque, em vez de chorar ao som das bombas.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Capa do jornal de caserna, mensal, "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto.

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


31º Capítulo  > SE FOREM PARA A GUERRA, ACABEM COM OS NAMOROS

O melhor mesmo é ir estudar.

O jornal da companhia ["O Serrote", dirgido pelo alf mil Jorge Loureiro Pinto, nosso grã-tabanqueiro] começou a sair e, embora eu escrevesse vários textos e versos a que chamava poesia, sabia que na companhia havia gente muito mais letrada que eu, especialmente alferes e furriéis. Destaco o alferes Pinto. (Como isso mudou! Hoje, qualquer sem-abrigo tem mais conhecimentos do que eles). Surpreendi-me por alguns dos meus textos serem publicados e, mais uma vez, tive a sorte de encontrar as pessoas certas. Professores.

Podia, se o quisesse fazer, adquirir o 1º e 2º ciclo liceal. Pois é! se pensam que em Fulacunda não se podia estudar, estão enganados. Os nossos oficiais estavam dispostos a ensinar-nos, depois iríamos a Tite fazer os exames.

Capa da revista "Plateia", nº 196, possivelmente
de janeiro de 1965. Cópia pessoal do nosso
grã-tabanqueiro  Manuel Joaquim
.
Era muito popuiar entre os militares
no ultramar, por causa do correio sentimental.-
Em  1965 custava 3$00 no continente,
4$00 no ultramar (A preços de hoje, 1,16 e 1,55 €,
respetivamente)
Em Tite, estava colocada a CCS. Era nesse local que permanecia o comando do batalhão [de artilharia] 6520.

Não sei se a ideia vingou, mas honro, neste pequeno capítulo, os meus superiores hierárquicos que o tentaram fazer. Lançaram em mim a semente que muitos anos mais tarde iria frutificar e,  se hoje tenho o 12º ano, o primeiro incentivo que recebi como adulto, para estudar, deu-se dentro do arame farpado que protegia Fulacunda.

Que desgraça! Zanguei-me com a namorada. Da maneira em que a troca de correspondência anda… Nessa altura, entre enviar e receber mediavam cerca de três semanas. Iria demorar muito tempo até fazermos as pazes.

A razão? Recebi uma carta a dizer-me que ela foi vista com outro. Nesses cinco meses eu já era, talvez, o 25º a ser trocado. Mas atenção! Também podia ser algum espertinho a querer engatá-la! A carta que recebi era anónima. De qualquer modo, fiquei muito fodido. É só ler o aerograma do dia 5 de Dezembro [de 1972]. Algumas frases soltas

“Maldita Guiné que me está a fazer perder tudo que mais amava  Lenta e persistentemente o tempo vai passando.  Para que eu possa viver em perfeito equilíbrio de ideias preciso de fazer coisas diferentes do habitual que actue sobre mim como um antídoto ou como uma espécie de válvula de escape. Porque hei-de estar com escrúpulos se ela não me quer? Vou pôr um anúncio na Plateia e escreverei a todas que me escreverem até pode ser que me esqueça que existe uma Maria Amélia”.

Foleiro. Foi muito foleiro eu concluir que 90% das mulheres que deixávamos, quando íamos para a guerra, procuravam noutros aquilo que de repente perderam.

Em todo caso digo:

“Se ela traiu o que de mais puro havia em mim. Também digo que o amor é mais forte que o ódio”.

Por favor, não me peçam para colocar aqui na íntegra o aerograma do dia 7. Deve ter sido a resposta mais disparatada da história da humanidade aquela que eu dei, a respeito de conter o desejo sexual, naqueles já cinco longos meses, sem ter uma mulher.

___________

Nota do editor:

ÚLtimo poste da série > 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18338: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 28 (O Ramadão) e 29 (A PPSH de tambor)... Ou um "estúpido" na guerra...

quarta-feira, 9 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15836: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (22): O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”


Quartel de Nhacra




1. Em mensagem do dia 23 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos mais uma das suas excelentes histórias para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra". Para quando o prometido livro?


Outras memórias da minha guerra

21 - O “Galã de Nhacra” e “Conquistador de Guimarães”

Entre os camaradas daquela Companhia, era voz corrente que o Furriel Martins era oriundo de família rica, muito ligada à indústria têxtil. Dizia o maqueiro Soares, de Guimarães, que se lembrava bem de ver um MG vermelho, descapotável, a passear pela cidade, e a acelerar por perto do Toural e, também, junto do Liceu de Guimarães.
Também quem se lembrava bem do Martins, era o Furriel Moura, que estava “sediado” em Mansoa. É que, além de o ter conhecido nas Caldas da Rainha, também o acompanhou em Tavira. Enquanto nas Caldas quase passou despercebido, já o mesmo não se pode dizer do tempo em que esteve em Tavira. Aqueles meses quentes de Junho e Julho proporcionaram-lhe várias exibições pelas praias mais próximas.

Tudo levava a crer que o Martins seria um conquistador nato, mas o certo é que poucos o viram acompanhado de miúdas, a não ser com a Marilu, uma jovem bastante conhecida, naquele ambiente castrense, por “Miss Punheta”. Por outro lado, pouco mais dele se sabia, já que o Martins não gostava de conviver com os demais camaradas.

Na Guiné, o Martins mantinha aquele ar petulante de superioridade, especialmente diante de subalternos. Aliás, esse complexo de superioridade provocou os seus custos: de gozo, por uns e de aversão, de outros.

Quem não podia com ele era o Moreira, o Cabo Cripto que, mercê de um certo à-vontade, de uma evidente popularidade e de uma boa aparência física, lhe causava alguma inveja e muita antipatia.
Por coincidência, um e outro optaram pelos serviços da mesma lavadeira, que, por sinal, era uma miúda bastante gira, corpo curvilíneo, mama firme, cabelos esticados e de feições arredondadas. Por experiência, sabemos que, com tais predicados nas lavadeiras, a roupa raramente regressa bem lavada e com a mesma cor de origem. Porém, os “galãs”, pareciam perdoar tudo para merecer as atenções da melhor miúda de Nhacra.

Aparentemente, o Moreira adiantou-se rapidamente, uma vez que, ao fim de pouco tempo, já ia para a tabanca da Sami, passar os serões.

Por sua vez, o Furriel Martins, julgando-se seguro da sua importância, quando soube que o Cabo Moreira estava na tabanca, foi lá para o deitar abaixo. E, logo que o viu junto da Sami, interpelou-o em voz alta:
- Ouça lá, ó nosso Cabo, que anda por aqui a fazer?
- Vim aqui à lavadeira, procurar uma camisa. - Justificou-se o Moreira.
- Qual camisa, qual caralho! Não sais de trás dela.

E continuou:
- Vieste incomodar a Sami, a esta hora? Deixa-a em paz e desaparece. Vai para o quartel, de onde não devias ter saído.
- Mas ainda não tocou a recolher. Posso estar cá fora. - Respondeu o Moreira.

Irritado, o Furriel Martins gritou:
- Podes, o caralho! Põe-te a andar! É uma ordem! Ouviste bem? É uma ordem!

Ferido no seu orgulho, o Moreira dirigiu-se directamente para a caserna do 1.º Pelotão. Como não tinha arma distribuída, agarrou numa G3 que estava pendurada pela bandoleira nos ferros de uma das primeiras camas. Rapidamente regressou à parada e aproximou-se da porta de armas.

O Furriel Martins acabava de entrar e o Moreira, que já o esperava, apontou-lhe a arma.
- Ouve lá, ó Galã de Merda, eu vou ficar cá mas tu, vais co caralho, seu grande filho da puta!!!! .

Puxou o gatilho e ouviu um estalido. Insistiu e o som repetiu-se. Nessa altura, já o sentinela gritava:
- Acudam! Acudam! Estes gajos estão malucos! Querem matar-se!


Quartel de Nhacra

Desesperado, o Cabo Moreira atirou-se ao Furriel a murro e a pontapé, até que chegou o Oficial Dia, Alferes Bastos e o levou para a Casa da Guarda. Não levou muito tempo para aparecer o Capitão Alves, que indicou o seu gabinete e logo perguntou:

- Então Bastos, que é que se passou?
- O Cabo Cripto puxou de G3 para matar o Furriel Martins. A sorte é que não havia bala na câmara. O Martins pensa que é tudo dele e ficou fodido de ver o Cabo Cripto na tabanca, junto da lavadeira, uma boazona que anda por aí.

O Capitão interrogou de novo:
- Não me diga que é a Sami? Olha o engatatão! Por sinal ela também me lava umas coisas.

E continuou:
- Realmente ela é jeitosa mas, como lavadeira é muito fraquinha. Esse Furriel é um merdas, parece que ninguém gosta dele.
- Pois é Capitão, mas agora estou fodido. É que já meti o rapaz na cadeia e agora nem sei como me safar. Ele é de lá, da Povoa, é vizinho da minha mulher, até andou a estudar com ela. E a mãe, que tanto me pediu que olhasse por ele!

E continuou:
- É educado e bom moço. Nunca se mete com ninguém, mas é um bocado casmurro e ficou pior desde que o pai morreu num acidente. Foi à inspecção, não deu as habilitações porque não queria responsabilidades de chefia. Agora acontece isto e tinha que ser eu a condená-lo.

O Capitão levantou-se, pousou a mão no ombro do Alferes e disse:
- Não faça qualquer participação. Deixe o Cabo passar lá a noite, mas deixe a porta aberta. Deixe-o sentir a responsabilidade do que fez e amanhã eu trato disso. Entretanto, mande avisar o Furriel, para que se apresente aqui às 9 horas.


Quartel de Nhacra

Numa das vezes que visitei o Cemitério de Nespereira, a dois quilómetros de Guimarães, quando estava a olhar a foto do Faria (Furriel Enfermeiro da nossa CART 1689), colocada sobre um jazigo, lá ao fundo, do lado direito, ao mesmo tempo que recordava, em catadupa, grandes momentos vividos juntos na Guiné, ouço uma voz:

- O senhor não é de cá, pois não? Conheceu o Domingos Faria?
- Fomos muito amigos, lá na Guiné. Devo-lhe muito do que de melhor lá passei. Quando chegámos, fomos uns para cada lado e mortos por esquecer aqueles dois anos de guerra. Só ao fim de cerca10 anos é que sentimos necessidade de nos revermos nesse primeiro encontro,que veio a ser realizado no Restaurante D. Sancho, em Anadia. Foi um choque muito grande quando, todo entusiasmado, o fui convidar para esse primeiro encontro da nossa Companhia, então, soube que ele havia falecido.

O senhor voltou a falar:
- Era muito bom rapaz, muito alegre e um grande técnico de debuxo. Trabalhei junto dele e sinto muito a sua falta.

E eu, acrescentei:
- Sim, era do melhor! Tinha um coração de oiro! Era Enfermeiro, mas até lhe chamavam doutor. Estava sempre disponível para ajudar. Ele fazia milagres. Por isso, para os civis, ele era considerado um santo.


Junto à Campa do Domingos Faria

O senhor, emocionado, limpou os olhos e voltou:
- O filho mais novo do meu ex-patrão Martins, também esteve na Guiné. Esse safou-se lá, mas aqui tem passado das dele. Imagine, um rapaz a quem não faltava nada. Podia escolher a melhor moça da região e acabou por casar com uma galdéria que lhe fugiu, para Lisboa e lhe deixou um filho deficiente. Ele não era grande coisa mas tenho pena dele.

O Jorge, então com 12 anos, era o irmão mais novo de uma família de bons artistas de tecelagem. Quando, nos finais dos anos 50, se aperceberam dessa importância, aliada aos ventos favoráveis daquela indústria, no Vale do Ave, resolveram estabelecer-se. Cada um dos 4 irmãos ocupou a chefia de um sector e em pouco tempo, a empresa deu um salto enorme. Seguiram-se anos de ouro para a empresa. Em poucos anos, já todos os irmãos casados tinham boas moradias, bons carros e bons apartamentos de férias.

Agora o Jorginho vivia nas nuvens com o seu descapotável. Ainda não tinha feito os 18 anos e já andava na Escola de Condução e como chumbou 2 vezes, foi comprar a carta à Ilha da Madeira. E se ia mal nos estudos, pior ficou, porque começou a sentir vergonha de se ver ultrapassado pelo seu sobrinho José, filho da Celeste, a irmã mais velha. Já não ia às aulas. Só se via a passear de descapotável pelas ruas movimentadas de Guimarães e à saída das miúdas do Liceu. Apesar do fracasso como estudante, ele vincava bem a sua superioridade económica, capaz de provocar desejos e invejas na generalidade da juventude.
Foi à inspecção militar e ficou apurado. A família ainda pensou livrá-lo, mesmo que ele tivesse que viver uns tempos lá fora. Porém, ele recusou e armou-se em patriota.

O Jorge Martins regressou da guerra em princípios de 1973. Com o estatuto de guerreiro e possuidor de grandes histórias de valentia. Agora, era mimado não só pelos familiares e amigos mas também por uma variedade de jovens casadoiras. Digamos que ele se tornou num partido bastante disputado.

Experimentou vários namoros mas nenhum lhe despertou a chama da paixão. Parecia que ainda não descobrira mulher que o merecesse. Até que um dia, por altura das festas Gualterianas (no início de Agosto), conheceu uma loiraça que lhe deu a volta à cabeça.

Sentado na esplanada do Largo da Oliveira, ali no coração da cidade berço da nossa nacionalidade, o Martins assistia desinteressadamente a mais uma discussão, sobre a verdadeira identidade do D. Afonso Henriques. Um garantia que Afonso era o filho enfezado da D. Teresa de Leão e de D. Henrique de Borgonha e o outro, alegava que o verdadeiro Afonso era filho de Egas Moniz, um rico fidalgo de Entre Douro e Minho, sediado em Cinfães, a quem incumbiram de cuidar e educar o príncipe, que logo ficou órfão de pai e afastado da mãe, que se relacionara amorosamente com o galego Conde Fernão Peres de Trava. No Mosteiro de Cárquere, na encosta norte da Serra de Montemuro, por cima das famosas Caldas de Aregos e ao lado do Rio Cabrum, bem conhecido pelas suas águas límpidas e pelas suas trutas, conta-se a história baseada num milagre.

Ali se mostra e se conta que o menino Afonso, deficiente das pernas, então com cerca de 5 anos de idade, entrou ao colo, por uma porta lateral da Igreja, directamente para uma sala de adoração. Poisado sobre uma pedra altar, foi rodeado de velas que acesas, se foram gastando enquanto se rezava pedindo um milagre. Os oradores acabaram por adormecer enquanto as velas se consumiram e atearam um incêndio. O menino Afonso, desesperado, levantou-se e saiu a fugir pela porta principal. Ora, ali pelas terras de Cinfães e de Resende também é voz corrente, reforçada e bem apoiada por documentos, a garantir que não houve milagre algum e houve sim, uma troca dos miúdos, sobressaindo desde então, o Afonso forte e robusto que se notabilizou pelas suas conquistas na fundação e expansão do Reino de Portugal.


Mosteiro de Cárquere

Sempre com os olhos atentos ao desfile de beldades que ali passeavam, o Martins fitou uma jovem loira bem atraente, quer pelas suas formas esbeltas, quer pelas suas vestes leves e insinuantes. Logo que ela se começou a afastar, parece que foi atingido por um relâmpago. Levantou-se de repelão e foi atrás dela. Por sinal, o carro dela estava perto do seu, e isso proporcionou o início de uma conversa baseada nas características desses bons carros. A loira, aquele monumento de mulher, deixou-o preso pelo beicinho. Deu-lhe o endereço de Lisboa, da casa onde vivia com um tio que a levara de Trancoso, para estudar em Lisboa e para o ajudar nas suas empresas ligadas ao ramo hoteleiro.

Pouco tempo depois, já ela o contactava pelo telefone. Ele, ansioso, lançou-se para Lisboa e acabou por dar largas à sua paixão. Com a abertura dela (Joana) e com as disponibilidades dele, rapidamente o namoro se desenvolveu. O Jorginho ficou doido com o ambiente lisboeta que ela lhe mostrou. Que grandes noitadas! Tudo era fácil e tudo parecia amor. A família Martins compreendeu esse namoro e tudo fez para que o Jorginho se enquadrasse rapidamente na gestão da empresa e trouxesse a Joana para o norte.


 Igreja e Largo da Nossa Senhora da Oliveira - Guimarães

Estava tudo bem encaminhado para casar. Somente se mantinha o tal problema: a Joana não tinha muita vontade de sair de Lisboa. Porém, como já engravidara, nada podia travar esse casamento, fosse o que fosse. Foi montada uma boa moradia nas encostas da Penha e a mãe do Jorginho cedeu-lhe a Margarida, uma empregada da casa. E fez-se um casamento em grande.

A Joana cultivava muito a sua beleza e tinha receio de a perder com a gravidez. Ainda chegou a falar em provocar um aborto. Porém, foi contrariada quer pelo Jorge, quer pelos seus familiares. O Carlinhos nasceu um bebé lindo e aparentava boa saúde. Veio na melhor altura. Veio preencher um certo vazio da Joana, que acusava bastante as suas saudades de Lisboa. Também ajudou a unir a família Martins, que vinha acusando algumas fissuras.

Enquanto o negócio da empresa foi prosperando, tudo parecia perfeito. Nem aquele período de greves e reivindicações do pós-25 de Abril, parecia ter alguma influência nociva na sua estabilidade. Mas, o pior estava para vir: as alterações políticas nas nossas Províncias Ultramarinas. Para além de serem os nossos grandes clientes (com a protecção do governo central), era deles que recebíamos o algodão. Este foi rareando de tal forma que implicou na redução drástica da produção (normalmente a trabalhar em três turnos), vindo a provocar a derrapagem no financiamento das máquinas, adquiridas com a previsão de elevados valores de produção. Por outro lado, os novos países africanos, a troco de alegados prejuízos com a colonização de Portugal, negavam-se a pagar os produtos já recebidos. Agora, libertos, passaram a comprar produtos oriundos directamente da Índia e Paquistão, a preços das matérias-primas. E, enquanto os portugueses esperavam soluções financeiras e políticas, os juros bancários acumulavam-se e estrangulavam essas empresas.

Os tempos seguintes foram aterradores. A empresa Martins veio a ter problemas de sustentabilidade financeira, entrando em situações litigiosas com bancos, Finanças e Segurança Social. E as acções judiciais começaram a confiscar os bens e os valores, comprometidos com a empresa. A dimensão da empresa estava agora reduzida a poucos encargos de laboração, mas com responsabilidades financeiras muito elevadas. Coube ao Jorge e ao Elísio, seu irmão mais próximo, agora com as quotas dos irmãos, lutarem até a exaustão. O sogro do Elísio ajudou-os financeiramente, mas segurou-se por forma a poder vir a beneficiar de qualquer descontrolo mais indesejável. O Carlinhos não se desenvolvia e veio a acusar uma doença degenerativa que o levaria em poucos anos. Valeu-lhe o carinho da avó, uma vez que a mãe se afastava cada vez mais. Agora, sem a folga financeira de outrora, sem segurança quanto ao futuro, a saúde do filho (já condenado) e sempre afastada da sua Lisboa, resolveu desaparecer.

O Jorge, que fizera constar que ela fora ver o tio doente, não aceitou a decisão e foi procurá-la a Lisboa. Quando se encontrou com o tio da Joana, foi esclarecido de que ela queria lá ficar e que, até, já estava a trabalhar. Abriu-se mais um pouco e confessou-lhe que ela regressara ao seu ambiente e à profissão que mais gostava. Além disso, justificou que ela ganhava bem nessa actividade, com futuro e que o casamento rico não passara de uma grande ilusão.

Passaram-se alguns meses. A empresa sobrecarregada de compromissos financeiros, continuava sem as encomendas e sem os pagamentos, necessários para a recuperação. A sua aparente sobrevivência devia-se ao apoio financeiro do sogro do irmão Elísio que, cada vez mais, parecia assumir-se como o principal credor dos haveres ainda disponíveis.

Em finais de Março de 2013, trinta anos depois da sua chegada, a Companhia reuniu na Mealhada para assinalar o evento. O Bastos (ex-Alferes) aproveitou a boleia do Moreira (ex-Cabo Cripto) e lá foram acompanhados das respectivas esposas. Durante a viagem, o Moreira indagou:
- Ouve lá, que será feito daquele Furriel engatatão, conhecido por “Galã de Nhacra”?
- Nunca mais o vi. Mas há uns 10 anos, encontrei o Sousa de Santo Tirso que me disse algumas merdas sobre ele. – Respondeu o Bastos.
- Creio que nunca veio aos encontros da Companhia. – Disse o Moreira, que continuou:
- Nunca me falaste disso, penso eu.

O Bastos esclareceu:
- Talvez tenha evitado mexer no assunto ou terei esquecido. Parece que a vida lhe correu mal, que ficou na miséria e que a mulher o deixou e foi lá para Lisboa. Ele até disse que ela era uma profissional da noite e que trabalhava nos bares de alterne.
- Foda-se, isso não pode ser verdade. Deve ser o desejo de alguns que o conheciam. – Disse o Moreira.

Chegados à Mealhada, foram directamente para o Restaurante dos Leitões. Tal como nos outros encontros, a malta dispersa-se em abraços e mais abraços, deixando as respectivas mulheres entregues à sua sorte, ou melhor, entregues umas às outras. No topo do salão, junto do balcão, entre alguns camaradas, sobressaía uma jovem senhora, bastante bela e de formas atraentes. Com gestos compassados, puxava do seu cigarro extralongo, enquanto intervalava com um scotch de aperitivo.
O Moreira, mal se apercebeu desse monumento, arregalou os olhos e encaminhou-se nessa direcção.

Valeu-lhe o Bastos que se intrometeu a tempo de o desviar e de lhe dizer:
- Ó meu caralho, olha que lá na Guiné, safei-te mas, aqui, nem a tua mulher te salva.

Nota final - Segundo o Sousa, de Santo Tirso, com quem conversámos, o Martins, depois de ter perdido mulher e filho e de ter falido, ficou a trabalhar, parcialmente, para o sogro do seu irmão Elísio. Perdeu os pais e ficou a viver com a empregada Margarida, que bem o conhecia desde miúdo e que sempre o acarinhou. Todavia, mantém ainda algum do orgulho que sempre o caracterizou. Por isso, sempre que pode, refugia-se em boites e, por vezes, aparece a exibir-se com alguma conquista de ocasião. Está na miséria, mas gosta de mostrar que ainda é um galã.

Silva da Cart 1689
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15678: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (21): Amores e Desamores

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14762: Conto breve (António Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513) (2): Binta: um caso de saias, faca e alguidar

1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 14 de Junho de 2015:

Camaradas Luís e Carlos Vinhal
Por achar que vinha mesmo a calhar, resolvi passar ao papel uma historinha (conto breve 2) que há muito andava na minha cabeça e que já teve várias versões e mais teria se continuasse apenas na cabeça.
É uma historinha surreal quase, - ou talvez nem tanto - , mas que pode dar uma achega para se perceber a relação, algumas vezes complicada, da tropa com as mulheres e as bajudas do nosso encantamento.
Tal como a maioria já reconheceu, também na minha zona os casos de envolvimento foram raríssimos, e nunca houve conflitos por causa disso. A historinha trata, ainda, da obsessão psicopática (ou fixação maluca?), que normalmente descamba no assédio sexual. E de como isso pode afectar o comportamento e a autoridade do assediador, se este tiver responsabilidades de chefia, quer seja na tropa, quer seja noutra actividade qualquer.
Isto nada tem de científico, de que não percebo nada. É só observação. É um bocadinho longo este conto, mas não consigo cortar mais sem estragar o efeito. Por isso sugeria que, se tiver de ser cortado, o fosse nos pontos que assinalei com (*****), ou então publicado inteiro - teria melhor leitura - num daqueles dias em que escasseia o material para publicar. Isto, se entenderem publicar.

Um grande abraço a ambos
A. Murta


Conto breve

2 - “Binta: um caso de saias, faca e alguidar”

Estava um dia quente e abafado, sem uma aragem. O alferes Lourenço, sozinho no quarto dos oficiais, fazia tempo para o almoço deitado sobre a cama em tronco nu e folheando um jornal com mais de quinze dias. Quando olhou para o relógio sobre o caixote-mesinha de cabeceira, viu que já passava da hora. Sentou-se à pressa na cama e enfiou a camisa e as botas. Desligou a ventoinha e saiu para a messe, ali ao lado no mesmo edifício. Quando entrou, à mesa estavam apenas dois outros alferes. O alferes Madaleno tinha saído cedo para a protecção às obras da estrada nova. Faltava ainda o Capitão Arsénio. O ordenança-barmen aguardava ordens junto à porta que liga a messe ao bar. O alferes Lourenço puxou a sua cadeira e sentou-se à mesa perguntando para os colegas:
- Então hoje não se almoça? - E um deles respondeu:
- Deixa vir o capitão!
- Deixa vir o capitão, não! Deixa vir o nosso capitão, faz favor! - disse o capitão que, ao entrar, ainda ouvira a conversa.

Os alferes mantiveram-se calados e sisudos. O capitão fez um sinal para o ordenança servir os almoços e acomodou-se no seu lugar, no topo da mesa e à esquerda do alferes Lourenço.
- Então, Lourenço!... Ontem esteve nalguma orgia, ou quê? Para entrar no aquartelamento às três da madrugada!... - Disse isto com um sorriso largo e cínico, baixando a cabeça para olhar directamente nos olhos do alferes.
- Desde quando anda a vigiar-me as horas de entrada no aquartelamento, capitão?
- Ora!... Não é preciso ser bruxo para saber de onde vem e, como chega quase sempre a arrastar as botas, todos dão pela sua entrada, não sou só eu!...
- Tenha maneiras, capitão Arsénio!

Entretanto o ordenança já tinha trazido as travessas e as bebidas e fingia-se alheado do diálogo. Recuou para a porta do bar e ficou às ordens.
- Mas também lhe digo. Por uma febra daquelas até eu mandava às urtigas a prudência e a reverência! - Continuou o capitão.

O alferes Lourenço nem começara a comer e os colegas debicavam contrafeitos. Mas o capitão, enquanto falava, começara a comer normalmente, fazendo crer que a conversa era naturalíssima, o que irritou ainda mais o alferes.
- Ouça, capitão. Peço-lhe que acabe com esse despropósito, a ver se ainda consigo almoçar.
- Então, Lourenço!... Não se amofine, homem!
- Não me amofino, o caraças! Não lhe ficam bem esses comentários jocosos e provocadores, valendo-se da sua posição. Ou esquece, nestes momentos parvos, que é a autoridade máxima desta merda toda? O capitão pousou os talheres e com os olhos muito abertos para o alferes ia para dizer qualquer coisa, mas o alferes continuou: - E como vai impor essa autoridade aos seus subalternos se se desconsidera a si próprio, à frente de todos, como um primata despeitado, hã?

Dito isto, encolerizado, o alferes levantou-se brusco atirando a cadeira ao chão, perante a estupefacção de todos e dirigiu-se à porta. O capitão ainda ordenou:
- Alferes Lourenço! Volte aqui imediatamente! - Mas já o alferes saía porta fora sem lhe dar atenção e dirigindo-se para o quarto.

Puxou a cortina de chita da janela deixando o quarto na penumbra e deitou-se de costas em cima da cama. Fechou os olhos e ficou ofegante e a transpirar, com os punhos cerrados. Não tinham passado cinco minutos e entra, de rompante, o alferes Martins Silva:
- Foda-se, pá! Que ambiente de merda! Nem acabei de almoçar!...

O alferes Lourenço nem abriu os olhos e o camarada, sentando-se na borda da cama em frente, continuou, agora em tom de confidência:
- Ouve, Lourenço. Tens de te pôr a pau. Não é a primeira vez que o capitão toca no assunto e fá-lo sem papas na língua quando tu não estás. Parece que tem uma obsessão pela Binta ou então é uma tara qualquer que o descontrola completamente. Refere-se a ela como uma fêmea que nasceu apenas para enlouquecer os homens. Acho que isto se pode tornar perigoso. Eu a ti... - desculpa estar a meter-me no assunto - , eu a ti deixava passar algum tempo..., ou afastava-me dela definitivamente. Ainda, para mais, casada...

O alferes Lourenço abriu os olhos e rodou a cabeça lentamente para o camarada, dizendo sem ânimo:
- Sabes, meu caro..., o problema nisto tudo é que não devia ser suficiente ter habilitações académicas e passar o cú pelos bancos das academias militares, para se poder comandar homens, dirigir pessoas. É preciso ter mais qualquer coisa para além das teorias e das técnicas. Os neurónios deviam ser avaliados um a um e, depois, no seu todo. E a alma vista de vários ângulos e submetida a testes. Neste caso concreto...
Não completou a frase pois bateram à porta. Era o ordenança com uma ordem para o alferes Lourenço:
- Desculpe meu alferes, mas o nosso capitão quer que vá falar com ele ao gabinete.

Os alferes entreolharam-se interrogativos e o Martins Silva encolheu os ombros e arqueou as sobrancelhas, enquanto o Lourenço se levantava e pensava em voz alta:
- Será que reconsiderou e quer pedir desculpa?

O outro abanou lentamente a cabeça achando que não.
Deu dois toques na porta do gabinete e, muito formal, abrindo-a, disse:
- Dá-me licença, meu capitão?

Sentado à secretária, o capitão parecia preparado para um assalto.
- Entre e deixe-se de merdas! Sente-se! - Decepção e esfriamento.
- Não, obrigado. Prefiro ficar de pé.
- Como queira. Chamei-o aqui para lhe comunicar umas coisas mas, antes, quero dizer-lhe que não volte a repetir a atitude que teve ao almoço, porque eu não lho admito, percebeu?
- Mas não admite o quê, capitão Arsénio? Você tem-se desautorizado constantemente com as suas atitudes e já não tem condições para admitir ou deixar de admitir.
- Você verá, nosso alferes! Mas queria dizer-lhe muito mais: tenho informações do meu colega do aquartelamento de Samba-Fula de que o marido da Binta Domingo anda doido e só arranja problemas lá no pelotão de milícias. E que anda a afiar os cornos para, um dia destes, vir cá enfiar-lhos na barriga. Largue essa gaja, alferes Lourenço, antes que seja tarde.
- Ah! Então o capitão, para me poupar, prefere que o Mamadu lhe venha cá enfiar os cornos a si!... É isso, capitão? Não seja hipócrita!

O capitão, sem argumentos, ainda tentou mais uma prepotência, proibindo o alferes de, daí em diante, se ausentar de noite para a tabanca. A reacção do alferes foi tão violenta que, de repente, se abriu a porta que dá para a secretaria, aparecendo a cara do 1.º Sargento com olhos esbugalhados:
- Há algum problema, meu capitão?
- Não há problema nenhum, nosso sargento! Feche essa porta e não se ponha para aí a escutar, ouviu?

O sargento bateu com a porta com toda a força.
- Está a ver, capitão? Já ninguém lhe tem respeito!..
- Não lhe admito que me faça observações! E muito menos que me chame hipócrita ou outra coisa qualquer!
- Repito-lhe. Não admite nem deixa de admitir, capitão! Já pensou, ao menos por uma vez, como se vai impor até ao fim da comissão, com a sua autoridade na sarjeta? Você não tem condições para desempenhar as funções que lhe confiaram!

O capitão pôs-se em pé de um salto e, colérico, disse:
- Ponha-se no olho da rua, nosso alferes! Antes que lhe ponha um processo disciplinar às costas! Já!

Como se precisasse de mais motivos, pensou o alferes Lourenço. Calmo, mas olhando-o bem nos olhos, respondeu-lhe baixinho enquanto ia abrindo a porta:
- Tome nota, capitão Arsénio! Um de nós não vai acabar esta comissão!
- Ou ambos, nosso alferes! Ou ambos!...

*****

Passaram-se várias semanas e, apesar de alguma tensão entre os alferes e o capitão, o dia-a-dia decorria dentro de uma aparente normalidade, com ordens curtas e secas e com uma actividade operacional favorável a baixas tensões. À cautela, o alferes Lourenço manteve-se arredado da tabanca, menos por respeito ao capitão e mais por estratégia defensiva. Mas, se por um lado o Mamadu não dava sinais, a Binta Domingo começava a insistir nos porquês, através de bilhetinhos que lhe enviava. Ao menos dissesse porquê! Não desejava mais vê-la? Ou seria que, sem querer, o tinha magoado? E porque é que o capitão insistia em querer falar com ela? Saberia de alguma coisa?

Lourenço cedeu. Estava farto de se privar do aconchego da sua amiguinha por causa de um psicopata e das ameaças incertas de um marido ciumento. Bilhete para lá, bilhete para cá e combinaram novo encontro. Mas o alferes, ainda contrafeito, mais contrafeito ficou quando ela lhe indicou uma morança de adobe e chapa de zinco de uns familiares ausentes.
Estava uma noite amena mas um pouco escura. Em redor, tudo parecia demasiado tranquilo e isso teve um efeito contrário no estado de espírito do alferes. Para se tranquilizar, enquanto caminhava, levou a mão ao bolso da perna direita e tacteou a Walter. O facto de ter o seu grupo de combate de serviço nessa noite, sentinelas de confiança, também era tranquilizador, quis acreditar. Continuou a andar mas sem convicção. Para trás, uns já dormiam e outros entregavam-se aos jogos de mesa do costume. Pareceu-lhe que a sua saída não fora notada. Hoje também eram menos no aquartelamento, pois dois grupos de combate se mantinham fora para dormir no mato.

Respirou fundo e bateu levemente na porta de zinco. A Binta apareceu enrolada num lençol e, depois de fechar a porta, correu para a cama, num quartito escuro e acanhado, com a entrada, - sem porta - , frontal à da rua. O alferes Lourenço sentou-se na borda da cama em silêncio e foi habituando os olhos à escuridão, tentando perceber os detalhes à sua volta. Para além da cama, também não havia mais nada para ver. Só então se deu conta de que, atrás de si, na parede onde se encostava a cama, quase aos pés desta, havia uma espécie de janela minúscula, fechada apenas por uma rede fina. Era possível ver através dela uma ténue claridade exterior.

Após um longo silêncio, a Binta ensaiou dizer qualquer coisa, mas ainda a medo:
- Então, Lourenço? Não te deitas?

Mas ele quase não lhe deixou terminar a frase, dizendo “Chiu!...”, e já a pensar como lhe diria a urgência que tinha em sair dali. Havia qualquer coisa, inominável, que lhe dizia que fora um erro tremendo aquela visita. Queria sair dali mas faltavam-lhe as palavras e as forças para se pôr de pé. Parecia paralisado. Mais uma vez tacteou a Walter e, no bolso esquerdo das calças, a enorme lanterna com punho de borracha.
- Que se passa, Lourenço? Deita! - insistia ela, quase num sussurro.

Ele não disse nada, apenas a afagou docemente através do lençol. Continuava de costas para ela e cada vez mais tenso, como que encurralado. Nem debaixo de fogo, pensou. Após novo silêncio que pareceu uma eternidade e eis que, do exterior, chega um restolhar abafado, hesitante mas próximo, logo interrompido pelo silêncio absoluto. Alerta, mas já a duvidar dos seus ouvidos face à enorme tensão, o alferes aguardou e tentou relaxar. Longa espera, pareceu-lhe. De novo o restolhar junto à parede, em chão de capim seco.

Percebiam-se cautelas experimentadas. O alferes crispou-se e todos os seus sensores passaram a um estado de alerta tal, que lhe pareceu possível ver o que apenas estava a ouvir e, sentir até, a vibração cardíaca do intruso, tal como sentia a sua. É o capitão!, - pensou. Grande filho da puta! Não imaginava que chegasse tão longe a sua audácia e a sua loucura. Vem à procura de uma tragédia e, se calhar, vai tê-la, o energúmeno!

Aos poucos, os sons quase imperceptíveis, vinham nitidamente por debaixo da pequena janela. Com o máximo cuidado deslizou na borda da cama e chegou-se para a cabeceira, para ficar fora do alcance da janela, mas mantendo sempre os olhos fixos nela. Depois segredou aos ouvidos da Binta:
- Está alguém do lado de fora a espiar. Silêncio absoluto!

Ela estava a dormir, ou quase, e levantou ligeiramente a cabeça, mas ele fez-lha deitar novamente. Entretanto, uma silhueta começava a surgir muito lentamente na janela, da esquerda para a direita, com um recorte nítido na contraluz e que, para espanto do alferes, deixou perceber que se tratava, afinal, de um africano ainda jovem. O Mamadu não era, de certeza, pensou. Embora nunca o tivesse visto. Confundido mas atento, viu a cabeça rodar e encostar-se de frente à rede da janela, tentando lobrigar para o interior escuro do quarto.

Sentiu ganas de, num golpe rápido, lhe dar uma coronhada violenta na cara que o prostrasse. Mas conteve-se, com receio de falhar e ser dado o alarme. Aguentou imóvel tentando adaptar-se à ideia de que tinha um grave problema pela frente. Ainda avaliou a hipótese de dar a volta à morança e surpreender o intruso. Mas depois? Dava-lhe um tiro? E se fosse mais que um? Matava-os todos?

Entretanto a silhueta abandonara a janela sem qualquer ruído. Depois, talvez, de uns dez minutos insuportáveis, soam na porta de zinco três pancadas aparentemente normais. A Binta, num sobressalto, saltou da cama só com o lençol a embrulhá-la e foi abrir. Na ombreira da porta iniciou-se um diálogo completamente estranho aos ouvidos do alferes que, de onde estava, ouvia mas não via nem podia ser visto. Relaxou um pouco quando, uma vez ou outra, ouviu rir a Binta mas, retesou-se até à asfixia, quando os ouviu discutir acaloradamente no silêncio da noite, sem saber se ela estava, ou não, a negar a sua presença ali.

Com a pistola na mão direita e a lanterna na outra, levantou-se no escuro e abriu as pernas para se estabilizar, virou-se para a entrada e, pronto para o pior, rodou a patilha de segurança. Num momento mais exaltado da discussão à porta, descontrolou-se e acendeu inadvertidamente a lanterna. Apagou-a rápido mas, se o intruso até ali tinha dúvidas, agora só podia ter certezas.

Terminada a conversa, a Binta fechou a porta com força e correu para dentro dizendo aflita:
- Lourenço! Tens que ir embora! Espera dez minutos e foge rápido até ao quartel! É o meu primo que quer apanhar-te!

Ora, isto só enervou ainda mais o alferes, pois nunca a tinha visto assim, ela que era só facilidades e de um optimismo inabalável. A tudo dizia “não tem problema”...
O alferes abriu a porta e olhou para o trilho que levava ao aquartelamento, bem definido na escuridão. No sossego da noite, perpassou-o uma estranha onda de tranquilidade, que o fez sair, sem correr, mas com passo seguro e decidido. Não porque o aquartelamento era já ali, mas porque estava preparado para tudo, pensava ele. Ainda disse: “Adeus, Binta!”. Ela ficou a vê-lo afastar-se, no aro da porta, como um anjo branco.

Não tinha dado uma dúzia de passos e eis que, do escuro entre as palhotas, surgem três vultos que lhe barraram a passagem, sem uma palavra, aparentemente desarmados, mas resolutos. Afinal, eram adolescentes, embora dois deles quase homens feitos. O mais novo avançou um passo e recuou logo, espantado.
- Alferes Lourenço?!!!

O alferes, que não largara a pistola e agora lha apontava, percebeu que, afinal, eles não sabiam quem estivera com a Binta, logo, aquilo não lhe era dirigido a si especificamente. Mas isso não o tranquilizou. De novo voltou ao estado de tensão máxima, crispado. As pernas vacilaram-lhe quando disse:
- Ninguém se mexe! Vou sair daqui e o primeiro que se mexer, leva um tiro!

Pela primeira vez em toda a sua vida estava na iminência de ter mesmo de matar à queima-roupa. Com a comissão a chegar ao fim, tão perpassada de situações de grande perigo e nada se comparava ao que lhe estava a acontecer. Se os matasse, ficaria à mercê da fúria dos nativos ou, na melhor das hipóteses, sujeito às leis militares. Ficaria desgraçado.
Os rapazes não pareciam nada intimidados e são arrogantes por natureza, ele sabia-o. Excepto o mais novo, ostentavam mesmo um ar de desafio. Mas não eram eles que assustavam o alferes Loureço, mas sim o que iriam, de certeza, desencadear, obrigando-o a defender-se a tiro. Isto era o que mais o assustava. Tinha que se decidir. Enfiou o cano da Walter na barriga do mais novo, próximo de si, e começou a contorná-los dizendo:
- Mexes e disparo!

Começou a recuar na direcção do aquartelamento, devagar e sempre a apontar a arma. Eles viraram-se para não o perderem de vista, mas sem saírem do lugar. A tensão era brutal. Para piorar, ouviu espantado a voz da Binta gritar:
- Foge, Lourenço! Foge rápido! Rápido, rápido!

O alferes olhou para a casa onde estivera e viu-a toda nua, ainda na porta, sacudindo com fúria o lençol branco, como se o pudesse enxotar para a segurança de um porto seguro. As pernas do alferes começaram a tremer, estava no instante decisivo: tinha que reagir rapidamente ou desfalecia. Sentindo que estava a uma distância suficiente deles, uma dúzia de metros, virou-se bruscamente e começou a correr para o aquartelamento, percebendo que nesse instante começavam, também eles, a correr para o interior da tabanca, aos berros e batendo com fragor nas portas de zinco das palhotas:
- Traz G3! Traz G3!

Ainda sem estar a salvo, mas já quase a entrar no aquartelamento, que dormia, o alferes fazia um esforço titânico para correr, mas as pernas não lhe obedeciam e, por momentos, pareceu-lhe que tinha regressado aos pesadelos de criança em que, fugindo dos monstros, as pernas, embora frenéticas, não o faziam sair do lugar, deixando-o a vogar. Com esta pequena distracção o alferes estatelou-se ao comprido no chão irregular. Mas isto fê-lo despertar e deu-se então conta, ao levantar-se a custo, de que tinha caído em cima da pistola que lhe esfacelou o peito contra as costelas. Tinha a camisa empapada de sangue mas não sentia nada. Começou a andar, coxeando, e olhou para a mão direita que também sangrava, agarrando ainda a pistola. O dedo no gatilho todo esfolado. Virou-se para a tabanca, mas já não havia correrias e berros. Só silêncio. Parecia que alguém, autoridade suprema, pusera subitamente a recato, aqueles jovens estouvados e perturbadores da noite.

Ali, no aquartelamento, tudo dormia. Tudo parecia apaziguado. Teria o capitão dado conta do incidente, estando agora a observá-lo? Achou que não. Se alguém se apercebeu de alguma coisa, foram as suas sentinelas nos postos, rapazes da sua confiança. Decidiu sentar-se num lugar recôndito e mais escuro para recuperar a respiração, antes de se dirigir ao quarto sem ser notado. Amanhã lavar-se-ia e fingiria uma indisposição para passar o dia de folga na cama. Meditou e adormeceu sentado, por instantes, ainda com a pistola na mão.

*****

Era um fim de tarde magnífico e o pessoal vinha com óptima disposição. Tinha sido mais um dia rotineiro passado no mato, sem sobressaltos, para fazer protecção a uma coluna. Depois de muitos quilómetros apeados e a fazer picagem, para lá, vinham agora prazenteiros em dois Unimog´s de regresso à base. No Unimog da frente, de pé para amortecer solavancos e ao lado do condutor, como era habitual, o alferes Lourenço segurava-se ao pára-brisas com a mão esquerda e, na outra, segurava a G3. Estavam quase a chegar e, lá adiante, já se via o grande poilão como referência da tranquilidade e da segurança da zona. Mais à direita, lá ao fundo, também já era possível ver as manchas brancas do casario do aquartelamento, através da mata de grandes árvores mas espaçadas.

De súbito soa um tiro - de certeza de G3 -, do lado direito da mata, e o alferes, com o nariz a arder, berra para o condutor:
- Pára! Pára essa merda!

A travagem brusca quase provocou o choque do Unimog de trás e a projecção dos homens para cima dos condutores. Antes de o Unimog do alferes parar, já ele ia num salto para o chão em atitude defensiva, mas não houve mais nenhum disparo. Sentiu um grande ardor na base do nariz e no lábio superior e levou a mão à cara para se certificar se tinha sangue. Não, mas estava queimado de certeza. Pensou, em fracção de segundos: como fora possível, à velocidade a que vinham, aos saltos no Unimog, quase ser atingido na cabeça? Tudo isto ocorreu num ápice, pois mal chegou ao chão e vendo que parte do pessoal saltara também, entrou a correr na mata e fez várias rajadas curtas. Depois, virando-se para trás, disse ao furriel Paulo:
- Vais aí pela direita, eu vou pelo meio e tu – apontou para o 1.º Cabo Cardoso - vais pela minha esquerda. Rápido! Vamos fazer uma batida, que o gajo não pode estar longe.

Antes, virou-se para o furriel José Nunes e mandou-o continuar com as viaturas e o resto do pessoal para o aquartelamento. Enquanto seguiam em passo de corrida pela mata de chão quase limpo, com uns aglomerados esparsos de arbustos e um ou outro baga-a-baga, o alferes pensou, pela primeira vez, quem poderia ter sido o atirador furtivo que, sem dúvida, o tentara alvejar, e porquê. De repente fez-se luz na sua cabeça: Mamadu! Só podia ser. Subiu-lhe uma raiva das entranhas e parou, chamando pelos outros com a mão. Disse, falando baixo e por gestos:
- Tomem atenção! A ordem é: capturar o gajo, ou matá-lo! Não se afastem demasiado e tomem como referência o aquartelamento à esquerda. Vamo-nos manter sempre à vista. Olhos bem abertos!

Caminhavam agora com mais cautelas, mas já se estavam a afastar muito e o alferes começou a impacientar-se. Parou a olhar para trás, para o lado da picada, e concluiu que o tiro não podia ter sido disparado de tão longe. Crispou-se. O atirador tinha de estar por ali oculto, até porque, à esquerda e já não visível era o aquartelamento e, em frente, já se via a bolanha, onde o fulano não arriscaria entrar por ficar exposto.

De repente, soam dois tiros vindos da orla da mata com a bolanha, cortando-lhe o raciocínio. Instintivamente, o alferes saltou para trás da árvore que estava mesmo ao seu lado, mas ainda a tempo de ver um vulto agachado a mudar de posição lá à frente. Berrou:
- Está ali, o gajo! Cuidado! Está atrás do baga-a-baga em frente.

Enquanto o furriel e o 1.º Cabo se levantavam do chão, ele avançou vários metros ocultando-se de árvore em árvore. Sentiu que todo ele se eriçava num instinto felino. Teve o impulso de correr até ao baga-a-baga e contorná-lo despejando o carregador da G3, mas dominou-se e, enquanto avançava, começou a incitar a presa.
- Sei que estás aí, turra! Não tens hipóteses, filho da puta!

Viu surgir o cano da G3 do lado direito do abrigo e atirou-se para o chão no instante em que soou novo tiro. Pensou: o gajo não tem saída, mas é perigoso. Vou provocá-lo continuamente até chegar ao baga-a-baga e, ao expor-se, é abatido pelo furriel ou pelo 1.º cabo. Fez-lhes entender por gestos o que pretendia e avançou.
- Nharro de merda! Deita a arma para longe e sai daí que não te acontece nada, nharro!

Estava-se a ficar num impasse e perigosamente próximos do abrigo do atirador. O furriel e o cabo, cada um de seu lado, estavam quase no alinhamento do baga-a-baga, prontos a disparar se ele se expusesse. Mudou de estratégia, o alferes: chegou-se mais para o lado do furriel até se fazer ouvir e disse:
- Passas tu a espevitá-lo para o distrair. Não pares, que é para ele não dar pela minha aproximação. Vou até lá e mando-lhe uma bojarda. Está atento e deita-te porque vai haver merda. Mas mantém-no na mira.

Soou novo tiro, mas agora na direcção do furriel que começara a provocá-lo. Parecia estar a ficar nervoso. O alferes aproveitou a brusca ocorrência e, em três saltos, estava colado ao baga-a-baga. Puxou o porta-granadas do cinturão, retirou uma granada defensiva e, a seguir, levantou o braço mostrando-a ao cabo, acenando-lhe para que se deitasse. Virou-se para o lado oposto, para o furriel, mas percebeu que ele vira o sinal já feito ao 1.º Cabo. Sossegou uns segundos e respirou fundo. Encostou-se de lado na parede rugosa daquele colosso de terra, esticou os braços para baixo e descavilhou a granada, silenciosamente. Ergueu os olhos para o topo e avaliou a força a imprimir ao arremesso. E lançou a granada para o outro lado, num arco premeditadamente lento.

Quase se surpreendeu com o fragor modesto da explosão. Rápido, sacudiu-se de terras e poeiras e contornou o baga-a-baga de arma apontada. Teve um choque que o deixou estarrecido. Gritou:
- Capitão!!! Capitão filho da puta que me desgraçaste a vida! Fodeste-me a vida, capitão!

O capitão estava um pouco à frente do baga-a-baga. Deve ter tentado chutar a granada. Deitado de costas, sem um ai, tinha os olhos muito abertos fixados no alferes, metade da cara esfacelada e o camuflado empapado de sangue no peito.

Entretanto surgiram o furriel e o cabo que, atónitos e mudos, recuaram uns passos. O capitão parecia que ia dizer qualquer coisa, teve um vómito de sangue e a cabeça tombou-lhe para o lado com os olhos abertos.

O alferes, que não parara de praguejar, descontrolou-se e, com um profundo lamento, deitou a G3 ao chão e desatou a correr internando-se na mata profunda, longe da bolanha.

*****

Apesar da frescura da tarde, quase no fim, ali dentro abafava-se. E o ambiente de odores e conversa fiada dos circunstantes, que ocupavam quase todos os assentos de lona, só piorava a situação. De que é que estarão à espera? Impacientava-se o alferes Lourenço.

Finalmente, um dos motores, o do lado direito, arrancou e pôs aquela geringonça toda a oscilar e a torcer-se, parecendo que se ia desconjuntar a todo o instante. Mas com o arranque do motor esquerdo e após ter atingido as rotações normais, tudo se equilibrou numa vibração miudinha. As conversas, interrompidas por instantes, retomaram a senda mas num tom mais alto devido ao barulho dos motores. Sentiu-se um pequeno estremeção do monstro e, lentamente começou a rolar na pista, ganhando velocidade aos saltos como numa picada. Depois, pela suavidade que sobreveio, percebeu-se que já se elevara nos ares.

Tudo começou a ficar para trás. Até o futuro. O alferes Lourenço olhou de esguelha para os fundos da cauda do Nord Atlas e fixou-se no caixão, no meio de outros caixotes, presos com cintas ao bojo do avião. Pensou: “Tinhas razão, grande sacana! Ambos não acabámos a comissão!”.

© António Murta
____________

Nota o editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13965: Conto breve (António Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513) (1): Pesadelo

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14701: (Ex)citações (275): Hospitalidade, brejeirice e ... instinto de sobrevivência das mulheres e bajudas fulas de Nhala, na receção aos "periquitos", em 29/4/1973 (António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)



Vídeo (1' 02'' ). Alojado em You Tube > ADBissau
(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)



Vídeo (0' 44'' ). Alojado em You Tube > ADBissau 

(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)


1. Excerto do poste P14691 (*), da autoria do nosso camarada António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) [foto à esquerda]

(...) À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia.

Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

E cantavam acompanhando com palmas:

Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!. 

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné (**). E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"


E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc. (...)

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam. (...)

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente.

E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas.

Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão apalpou minha mama!

E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?

E estava o caso resolvido. (...) (***)

2. Comentário do editor LG:

A propósito da conferência “Filhos da guerra”, no âmbito do Festival Rotas & Rituais (Lisboa, Cinema São Jorge, 22 de maio de 2015), tomei nota no meu canhenho:

 “Temos dificuldade em abordar em público este problema, o das nossas relações com as mulheres guineenses no tempo da guerra colonial. Pior ainda, num público feminino ( e senão mesmo feminista), português e africano, ou de origem africana… Somos, os homens, facilmente “suspeitos de cumplicidade” uns com os outros… Os homens são todos iguais, em toda a parte, defendem-se uns aos outros, dizem elas…

"A intervenção, longa e incisiva,  do Jorge Cabral, em tempo de debate, acabou por provocar algum sururu na sala. Disse ele, em síntese:

- Defenderei até à morte a honra do soldiado português na Guiné. Nós não eramos  nenhum emprenhadores compulsivos. Mais: atrevo-me a dizer que 80% a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram quaisquer relações sexuais com mulheres africanos… E se querem falar de prostituição organizada (que no meu tempo praticamente se restringia a Bissau e, em pequena escala, a Bafatá), pois tenho a dizer que é muito maior hoje, só na capital da Guiné-Bissau, do que no meu tempo"…
__________

Notas do editor: