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quinta-feira, 16 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24147: (In)citações (234): A (nossa) Cédula Pessoal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 13 de Março de 2023, com uma lembrança curiosa, a nossa Cédula Pessoal. Quem ainda a conserva? 


A Cédula Pessoal

Olá companheiros

Há mais de 50 anos que vivemos fora de Portugal. Assim, qualquer nosso escrito relacionado com a situação actual do País ou mesmo da Guerra Colonial que se travou em África, gera alguma polémica. É normal mas, tudo o que escrevemos é a verdade, talvez seja a nossa verdade, mas se virem ao pormenor e meditarem um pouco, a decisão final é que tudo o que foi escrito é a verdade. É intencional, passa ao lado disto ou daquilo, por vezes foca-se em pormenores sem importância, mesmo surgindo frases com pouco ou nenhum senso, mas lá no fundo no fundo, está a verdade.

Agora sim, vamos ao escrito de hoje que fala da “Cédula Pessoal”, lembram-se?

Ufff… quando vivemos oito ou mais décadas de vida, não é tão fácil de suportar como parece, no entanto, ainda seria pior se não houvesse nada para lembrar, porque isso iria parecer que todos esses anos vividos pareciam vazios. Como tal, a verdade é que o maior desafio aqui, é ter algo para se lembrar, é preencher o nosso pensamento com todos esses anos vividos, tal como fosse uma reflexão, ou seja, continuar a viver uma vida, mas uma vida de que agora… os outros se irão lembrar.

Porque apesar da idade avançada, continuamos a coleccionar sensações, histórias e lendas, ou seja, reinventando o nosso agora pequeno mundo fora de um mercado árduo de trabalho que sempre tivémos e, tendo ainda tanto para dizer, mesmo que às vezes seja entre lágrimas, suspiros ou com algumas dores no corpo, vamos organizando para os vindouros o sotão da nossa já longa existência, e claro, com tudo isto, vamos também recolhendo alguma força para continuar.

E felizmente, pelo menos nas madrugadas em que já estamos vigilantes, vamos escrevendo livremente numa linguagem do antigamente, porque a mentira ou a ocultação de qualquer medida emanada de um qualquer sistema de controle, ia concerteza destruir o foco de resistência que ainda vamos tendo, principalmente a algumas poderosas forças do mundo moderno em que presentemente vivemos, onde tentam sempre repudiar e não compreender o modo como descrevemos as nossas recordações de juventude, como por exemplo, a participação na Guerra Colonial ou até o valor da simples Cédula Pessoal, que embora não tivesse a nossa fotografia era o único documento que nos identificava.

Ainda hoje guardamos religiosamente a nossa Cédula Pessoal que bastante gostamos e que até tem uma capa verde que continua a dar esperança, embora já tenha alguma ferrugem no arame do agrafo que segura as suas páginas mas, o nosso nome continua lá desenhado, logo no cimo, a seguir à palavra “nascimento”.

E, dá-nos um certo alívio pensar, reviver o respeito que ainda sentimos pelo País onde nascemos. Aquela bandeira verde e rubra e o mapa de Portugal com a Beira Litoral e a Extremadura, a lareira com fogo de lenha, a candeia a azeite que nos alumiava nas noites de trevas, o colchão cheio com palha de centeio onde dormíamos, a fome e a miséria de inverno que por vezes éramos obrigados a passar, a roupa velha e coçada que vestíamos que tinha sido usada pelo nosso pai e pelos irmãos mais velhos ou… a ida para a Guerra Colonial na Guiné.

Juramos. Sentimos uma inveja mesmo invejosa de quem não recorda. Porquê? Porque são seres livres, rebeldes e indomáveis que, quando lhes apetece partem e vão embora sem remorsos nem pesos, não como nós, que sempre recordamos os anos vividos no nosso Portugal. Éramos uns “putos de rua” alegres, descalços e, praticamente não sabíamos que o mundo existia para lá da nossa aldeia. Estava sempre tudo bem. As doenças que aceitávamos como normais eram curadas com receitas domésticas, no entanto se algo era mais grave, havia a possibilidade de se aviar um qualquer xarope na “botica”, que até funcionava perfeitamente e… com a chegada da primavera tudo ficava bem.

Vivíamos ao redor de um povo crente, trabalhador, envolvido nas lides da lavoura e que acreditava… até demais. Se alguma praga ou doença desconhecida aparecia e o profissional da saúde, onde havia pelo menos um no Dispensário da Assistência Nacional aos Tuberculosos não conseguia curar, então agarravam-se à fé e… havia a possibilidade de ir ao Santuário de Fátima a pé, pedir à Nossa Senhora que rogasse por nós lá no céu. Assim, se isto também não funcionasse e não querendo ser desilegantes, pelo menos caminhar dias e dias seguidos, devia fazer algum bem à saúde, embora não curando a doença, se infelizmente fosse a da tuberculose. Verdade?

Tudo isto na nossa aldeia na Beira Litoral, porque para as famílias no interior norte, também havia a possibilidade de cumprir a mesma promessa de caminhar os caminhos de Santiago, que os levava a Santiago de Compostela mas, tinham o problema de precisar de passaporte para passar a fronteira o que não era permitido ao cidadão trabalhador rural do interior.

No entanto, podiam mostrar a tal Cédula Pessoal para se identificar, no entanto, os Carabineiros não aceitavam e desconfiavam, e claro, imediatamente entravam em contacto com a Guarda Fiscal da fronteira Portuguesa, que depois de um interrogatório e umas “chibatadas” lhes perguntavam porque é que queriam ir para Espanha, que até dava ascesso para se poder fugir “d’assalto prá França”, tendo ali o Santuário de Fátima mais perto e não era preciso nenhum documento! Mas… como a maior parte dessas humildes pessoas eram analfabetas, criavam estas situações embaraçosas que se podiam evitar. Verdade?

Voltando à Cédula Pessoal, era o único documento de identificação que para nós povo simples das vilas e aldeias, talvez até cidades existia. Depois… já mais crescidos, já se usava um Bilhete de Identidade que servia para quem queria inscrever-se na universidade ou ter um emprego publico, o que para nós, povo do interior era uma miragem, pois nem sapatos usávamos, depois era preciso tirar o retrato, requerer-se na sede do concelho na Vila, os pais acompanharem-nos para assinar, e claro, lá vinha o interrogatório “para que raio queriam um Bilhete de Identidade pró rapaz” e… custava dinheiro. Verdade?

No nosso caso, fomos recrutados, treinados e mentalizados de que já éramos homens de combate invencíveis e, sempre identificados pela Cédula Pessoal embarcaram-nos no porão do navio Ana Mafalda, que na altura era um dos que podia encostar ao cais de Bissau, navegando para sul do oceano.

E, não foi ao desembarcar, foi passado quase os dois longos anos que por lá fomos sobrevivendo, aí sim, deram-nos um cartão de identificação, que era uma “espécie de uso e porte de arma abrangente”, ou seja, incluía vários modelos de armas e, estávamos autorizados, claro, em caso extremo… a poder mesmo tirar a cavilha ou puxar o gatilho e disparar… ferindo ou matando outro ser humano legalmente. Verdade?

Felizmente e dada a nossa especialidade que era “operador cripto”, portanto um soldado desarmado, nunca nos foi distribuída uma arma e como tal nunca usámos as regalias do referido cartão para identificação e… tal como nós, houve milhares de companheiros que regressaram à Europa na mesma situação. Verdade?

Até um dia destes, companheiros.
Tony Borie

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24109: (In)citações (233): Volta, Zé Belo, estás perdoado! (dizem os "sámi")

terça-feira, 7 de março de 2023

Guiné 61/74 – P24125: (Ex)citações (422): Os combatentes, Vietname e Portugal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 6 de Março de 2023, com um texto onde compara, tanto quanto é possível, a nossa participação na guerra da Guiné, enquanto combatentes, e os americanos na ainda mais sangrenta guerra do Vietname.


Os combatentes, Vietname e Portugal

O companheiro Valdemar Silva, num simpático comentário a um nosso escrito sobre o nome da Guiné, disse entre outras que “gostava de saber o que é que dizem os américas sobre os portugueses terem tido o "seu Vietname" durante mais de uma década nas suas colónias em África”.

É uma pergunta normal e que para muitos de nós antigos combatentes da guerra colonial Portuguesa em África até tem algum interesse em saber e…, é uma resposta que não é de um bilião de dólares. Porquê? Porque ignorando as peliculas de Hollywood e os livros publicados sobre a guerra do Vietname, talvez a maior parte desses combatentes não soubessem porque é que foram combater ao Vietname, porque é que se envolveram naquela maldita guerra e, talvez também não soubessem que existia um país na Europa chamado Portugal, que também andava envolvido numa guerra colonial em África.

Posto isto, e para explicar a nossa experiência na convivência com alguns desses combatentes, teremos que nos posicionar no tempo, na geografia, na dimensão dos continentes e no modelo e área de combate, ou seja, América/Ásia e Europa/África, nas partes e no sentimento da causa envolvida que, vejam lá companheiros, em alguns pontos era quase a mesma.

Por exemplo: Portugal, país Europeu mas colonialista, tinha colónias em África onde começaram a aparecer grupos armados nacionalistas africanos que iniciaram a luta pela libertação do seu território, motivados e auxiliados principalmente por um regime comunista modelado pela União Soviétia e pela China.

E…, a América, país que tinha sido colonizado e se libertou, não tinha colónias para defender na Ásia, no entanto a razão foi quase a mesma, que foi única e simplesmente colocar-se ao lado do Vietname do Sul, lutando contra o Vietname do Norte que pretendia unificar o país sob um regime comunista modelado também pela União Soviética e pela China.

Assim, quando o Congresso Americano aprovou a Resolução do Golfo de Tonkin, autorizando uma ação militar em resposta a um suposto ataque a navios da Marinha dos USA pelas forças norte-vietnamitas, os combatentes americanos desembarcaram em Saigon sem a menor ideia para o que iam nem quando e como regressariam a território americano de novo.

E…, eram quase todas pessoas que se tinham alistado nas forças armadas para terem um emprego e um futuro, porque não viam qualquer futuro nas aldeias e vilas do interior dos Estados de Montana, nas Dakotas do Norte e do Sul, no Wyoming e até em Arizona, Novo México ou no Nebraska. Ali, trabalhavam nas quintas, criando vacas e outros animais, onde o quarto de banho era uma cabana fora da casa onde habitavam, quase junto ao poço que tinha uma roldada que puxava uma corda com um balde amarrado na ponta, onde as galinhas andavam por ali à solta, ou então estavam envolvidos em pequenos negócios familiares, onde alguns nasciam e morriam sem nunca ver o oceano.

Por exemplo, o caso de um companheiro de trabalho oriundo de Ponce, uma região no sul da ilha de Porto Rico, que andava sempre revoltado dizendo mal do presidente Nixon, que o desmobilizou das forças armadas a seguir ao acordo de paz da guerra no Vietname, e agora, tinha de procurar trabalho, trabalhar e cumprir horários, quando o que ele queria era seguir a carreira militar, onde tinha tudo o queria para viver com algum conforto.

Tudo isto, sem se poder ignorar as aldeias e vilas dos estados do Mississippi, Alabama ou mesmo Louisiana, onde existem milhares de comunidades afro-americanas que sempre viram no alistamento nas forças armadas um meio de elevação perante a sociedade e, se tivessem a sorte de fazer um ou dois “tours” ao Vietname e regressassem vivos e não afectados psicológicamente, iriam usar as insígnas de combate no Vietname, que lhe dariam prestígio e a possibilidade de promoção mais rápida no ranking militar.

E também havia o fenómeno dos combatentes de origem hispânica, ou seja aqueles cujos pais viviam perto da fronteira sul ou aí tinham residência e trabalhavam por épocas nos USA, pelo menos na altura das plantações e depois na das colheitas, regressando à sua residência ao sul para lá da fronteira, onde viam uma grande oportunidade de os seus filhos se tornarem cidadãos americanos com todos os benefícios e deveres, depois de se alistarem nas forças armadas e cumprirem com mérito um ou dois “tours” no Vietname.

Adiante que se faz noite, como dizia a nossa saudosa avó…, depois, já decorria o ano de 1969 e os níveis de tropas dos EUA atingiam o pico de mais de 543.000, havendo até aquele momento mais de 33.000 americanos mortos, um total maior do que a Guerra da Coreia. Nesta altura começaram contactos secretos para negociações para a paz, no entanto, houve traições de ambos os lados e o conflito agravou-se. Entretanto, o New York Times dá a notícia dum bombardeio secreto do Camboja. A revista Life exibe fotos das quase duas centenas e meia de americanos mortos no Vietname durante a semana anterior, as fotos têm um impacto impressionante nos americanos em todo o país ao verem os rostos jovens e sorridentes dos mortos.

As manifestações de paz atraiem cerca de 250.000 pessoas em Washington para o maior protesto antiguerra da história dos Estados Unidos. Uma pesquisa de opinião indicam que 71% dos americanos querem a paz. Felizmente não nos atingiu a nós que aqui chegámos no início da década de setenta do século passado, mas tivémos que ir dar o nome e local de residência à sede local das forças armadas, para uma eventual convocação, no entanto, a primeira mobilização geral desde a Segunda Guerra Mundial aconteceu um ano antes da nossa chegada a este continente e é realizada na cidade de Nova York, onde cada dia do ano recebeu aleatoriamente um número de 1 a 365 e, aqueles com aniversários em dias que terminavam com um número baixo provavelmente iriam ser convocados.

No ano seguinte na Kent State University, em Ohio, guardas nacionais atiram e matam quatro manifestantes estudantis e ferem nove. Em resposta a estes assassinatos, mais de 400 faculdades e universidades em toda a América fecharam. Em Washington, cerca de 100.000 manifestantes cercam vários prédios do governo, incluindo a Casa Branca e monumentos históricos. Num impulso, o presidente Nixon sai da Casa Branca e faz uma visita surpresa tarde da noite ao Lincoln Memorial e conversa com jovens manifestantes, possivelmente dizendo-lhes que as conversações para a paz se reiniciaram.

Eram os protestos do povo americano que queriam a paz e…, podíamos continuar com a história do conflito que já é demais conhecido onde mais de 3 milhões de pessoas, incluindo 58.000 americanos, foram mortos e que durou mais de uma década, quando a guerra terminou em 30 de abril de 1975, quando Saigon, a capital da República do Vietname, caiu nas mãos do exército norte-vietnamita, marcando assim o fim do envolvimento americano.

Este é um muito breve resumo do envolvimento dos combatentes americanos na guerra do Vietname. E…, o envolvimento de nós combatentes na guerra colonial também todos sabemos e é demais conhecido, que era também a luta contra o comunismo, defesa da Bandeira, da Pátria Mãe, da honra, do dever de cidadão honrado e honesto, do marchar, marchar, heróis do mar nação valente e… ir prá guerra já e em força e…, matar o inimigo, porque Portugal era só um e não podia ser repartido.

E…, o regime de então não permitia manifestações de protesto. Era cumprir comer e calar, ou seja, dar o corpo às balas e morrer, porque se vivia num ambiente de desconfiança e medo, onde aquele acolá nos estava a espiar e ia avisar a polícia do estado que batia, torturava, matava ou mandava para o degrêdo do campo prisional do Tarrafal e…, onde tudo isto só terminou quando as próprias forças armadas se revoltaram, ocupando quase pacíficamente a “capital do Império”, acabando de vez com esse governo colonial que dava sinais de já não ter controle no país e de já não governar.

Agora sim, depois de todo este resumo que já vai longo e ocupa demasiado do precioso espaço deste blogue, falamos na resposta ao companheiro Valdemar Silva e à sua inofensiva pergunta.

Claro, falamos daquilo que connosco se passava, ou seja daquilo que sabemos, onde a verdade era simples e é mais ou menos esta quando explicávamos aos nossos companheiros combatentes na guerra do Vietname a maneira como fomos mobilizados, treinados à pressa e equipados com aquelas armas obsoletas, enviados no porão de um navio de carga, navegando rumo ao sul para desembarcar em África, onde se combatia.

Éramos jovens, com uma educação que vinha de pais para filhos à séculos, deixando na Europa a família, as namoradas, noivas e esposas, alguns com filhos, íamos frágeis, desmotivados e com uma alimentação muito fraca e desapropriada, não se podia ter uma higiene primária, não havia uma assistência médica responsável e respectivos medicamentos, passado uns meses o camuflado já estava roto em algumas partes e as botas gastas e…, se um companheiro tinha a infeliz sorte de ser ferido ou morto vitima de uma emboscada na lama perigosa dos pântanos e canais, onde a corrente da água e lama com a subida da maré era forte e sem a possibilidade de ser evacuado, por lá ficava, e eles…, ou ficavam sérios e pasmados ao ouvir-nos, ou então riam-se e alguns respondiam: “Fuck you…, deviam matar o vosso presidente, ele que fosse lutar para lá mais a família dele…, Shit”.

Cremos que não precisam que se traduzam as primeiras e última palavras. No entanto, estas eram algumas das palavras que os tais “américas” nos diziam, isto porque havia muita confiança entre nós, e claro, era uma conversa aberta, sem preconceitos, pois as passagens na guerra fazia parte das nossas conversas quase todos os dias, comparando pequenos casos do dia e às vezes olhávam-nos e diziam, “hó Guinéu…., mas eras tu?. Ainda estás vivo ou és um fantasma”. Éramos um pequeno grupo de três antigos combatentes e todos tínhamos o típico apelido entre nós. Chamavam-me o “Portuguese Guinea”, um afro-americano nascido e criado junto ao rio Mississippi, que sempre dizia que não tinha medo das cobras nem dos alligatores porque em pequeno os caçava e comia, cujo apelido era o “Mississippi” e o outro era um típico américa cowboy, cujo apelido era “Texas Boy”, oriundo de uma pequena povoação fronteiriça no Texas, que também falava um pouco espanhol e durante os muitos anos em que convivemos sempre usou roupa igual, ou seja as botas gastavam-se, comprava outras iguais, o mesmo com as t-shirts, calças ou camisa e chapéu e, além de companheiros de trabalho éramos colegas de universidade, pois juntos e à noite, frequentámos a mesma escola por anos.

Porque estes eram aqueles que queriam usufruir dos benefícios que o governo dava, como escola, assistência médica e constituindo família poder adquirir residência a preço do custo do material de construção sem juros, em novos bairros de casas construídas e mobiladas nas perferias das cidades e outras benfeitorias para ajuda aos antigos combatentes, porque felizmente nos USA, ainda se respeita os antigos combatentes.

No entanto, também havia os outros, aqueles que regressavam traumatizados, onde o declínio no moral e na disciplina com o uso de drogas se tornava por vezes desenfreado, experimentando maconha, ópio ou heroína, que eram fáceis de obter nas ruas de Saigon, e que chegados aos USA, não queriam mais trabalhos com responsabildade e iam para as estações de serviço encher os tanques de gasolina ou para porteiros de bares, casas de alterne ilegais ou qualquer outro trabalho mais simples e que lhes proporcionasse algum dinheiro.

Ainda antes de terminar queriamos explicar que a guerra do Vietname era um conflito armado em que o território local mudava de mãos com frequência e, que ao contrário do que as peliculas de Hollywood mostram, foram os brancos de classe baixa ou as minorias que travaram a maior parte dos combates.

Companheiros, perdoem o longo espaço que ocupei e um grande abraço ao companheiro Valdemar Silva por dar origem a este escrito que talvez nos irá ajudar melhor a compreender a diferença entre a guerra do Vietname e a colonial Portuguesa, onde a legenda “a Guiné Portuguesa era o Vietname de Portugal”, se fosse ao contrário não deixaria de fazer sentido…, até talvez mais sentido, pelo menos no sofrimento e na condição de desigualdade em combate, isso nós sabemos.

Tony Borie

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Notas do editor:

Vd. poste de 28 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24108: (In)citações (232): "Olha o Guinéu português!!!" (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

Último poste da série de 26 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24101: (Ex)citações (421): Sim, estou velho! (José Saúde)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24108: (In)citações (232): "Olha o Guinéu português!!!" (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 24 de Fevereiro de 2023, onde nos fala da palavra Guiné:


O nome Guiné

Por aqui neste continente, quando vivíamos no norte e estávamos no mercado de trabalho, no nosso convívio com companheiros locais, e que na guerra do Vietname viveram experências dramáticas parecidas com as nossas, às vezes falávamos e alguns deles diziam: ”olha o Guinéu Português”!

Claro, gostávamos e não gostávamos do apelido, no entanto era o início da conversa onde logo vinha a história onde alguns fizeram um “tour”, que era uma missão no Vietname, que para a maioria das forças terrestres durava um ano, que não fizeram nada de mal como as películas que Hollywood mostram, no entanto, os militares dos EUA usaram quase 12.000 helicópteros no Vietname, dos quais mais de 5.000 foram destruídos, o que demonstrou que ser piloto de helicóptero ou membro da tripulação estava entre as tarefas mais perigosas daquela maldita guerra.

E diziam “olha o Guinéu Português” com alguma razão, pois existem únicamente quatro países no mundo, cujo nome incluem a palavra Guiné. Fomos analizar, “coscuvilhar”, procurar informação e chegámos à conclusão de que embora não sendo incomum que as cidades compartilhem nomes, mas acontece ainda com menos frequência com nomes dos países.
No entanto, quatro nações, três das quais estão situadas na África, usam a palavra “Guiné” nos seus títulos, que são: Guiné, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e Papua Nova Guiné. E daí, como é possível ter tantos países a usarem a mesma palavra? Era como se houvesse quatro países com o nome de Portugal. Simples, mesmo muito simples, tem a ver com a colonização da África Ocidental.

E, embora a origem exacta da palavra “Guiné” não seja conhecida, todos acreditem que o termo vem da palavra portuguesa “Guiné”, que apareceu por volta do final do século quinze para descrever uma região ao sul do rio Senegal ao longo da costa oeste da África.

Depois, depois muitos anos passaram e já no final do século dezoito, muitos países europeus reivindicaram terras africanas numa corrida que os historiadores chamam de “Scramble for Africa”, que quer mais ou menos dizer, “Passeio por África”, onde entre outras potências, foram a Espanha, a França e Portugal, que compartilharam o controle da região da Guiné na África Ocidental.

Quase toda aquela área foi dividida e a terra geralmente identificada pelo seu país controlador. No entanto, os nomes que conhecemos hoje não surgiriam até ao século 20, quando cada nação se separou do controle europeu, onde a Guiné Francesa manteve o nome Guiné depois de obter a independência em 1958, a Guiné Espanhola tornou-se Guiné Equatorial em 1963 e a Guiné Portuguesa assumiu o nome Guiné-Bissau, referindo-se à sua capital Bissau, depois da “revolução dos cravos”, em 1974.

Quanto à outra Guiné, a Papua-Nova Guiné, localizada a milhares de quilómetros a leste através do Oceano Índico, dois exploradores lhe deram o nome. Em 1526, o navegador português Jorge de Meneses apelidou parte da ilha de “ilhas dos Papuas”, da palavra malaia “papuwah”, referindo-se aos cabelos crespos dos ilhéus, enquanto o explorador espanhol Yñigo Ortiz de Retez declarou outra porção da Nova Guiné, acreditando que seus cidadãos se assemelhavam ao povo da costa africana da Guiné.

Voltando à origem da palavra Guiné, cremos que é absolutamente certo que a moeda inglesa conhecida como "Guinea" é derivada da palavra portuguesa "Guiné" que levou este nome desde que o ouro usado na fabricação das moedas foi originalmente extraído na região da Guiné, palavra que era usada para se referir às terras pertencentes aos Guineus, que eram um termo para os africanos que vinham das regiões ao sul do rio Senegal.

Muitos colonos europeus quando chegaram à região da Guiné na África Ocidental aplicaram nomes como "Guiné Alemã", "Guiné Espanhola", "Guiné Francesa" ou "Guiné Portuguesa” no entanto, e como acima já explicámos, alguns países mantiveram o nome Guiné em parte do seu nome após a independência, mas a Guiné Alemã abandonou totalmente a parte da Guiné do nome, para se tornar Cameron e Togo.

Companheiros, de uma maneira ou de outra, não vamos esquecer mais o nome “Guiné”, lá naquela região de África, onde existiam as aldeias dos “Papeis”, dos “Balantas”, dos “Fulas”, dos “Bijagós”, dos “Mandingas”, dos “Felupes”, dos “Manjacos”, dos “Biafadas” ou dos “Nalus”, numa zona de savana e selva, rodeada de pântanos e vegetação, onde estivémos estacionados num aquartelamento cercado de arame farpado que ajudámos a construir, por um período de dois longos anos.

Tony Borie

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24106: (In)citações (231): Caraças, andamos nós p'ráqui, a pensar no "fim da picada"!... Corações ao alto!... Pensemos antes que até aos cem... é sempre em frente! (João Crisóstomo, Nova Iorque)

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23898: Boas festas 2022/2023 (6): As Mães e os anos da guerra... Feliz Natal, queridos companheiros (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


As Mães e os anos de 1964/6!

Já passaram mais de cinco décadas, quase seis, no entanto, nenhum de nós companheiros, pode esquecer a jornada de ter sido combatente na Guerra Colonial Portuguesa em África, na então província colonial da Guiné Portuguesa, cuja guerra, principalmente nesta região, foi denominada "o Vietname de Portugal”. Era uma guerra terreste de guerrilha mortífera.

E agora, quase a chegar à época de Natal, constantemente nos vem ao pensamento os amigos de infância e a família de então, que deixámos na Europa, onde na escola da vila o professor nos repetia constantemente a história dos reis e rainhas e os tais “descobrimentos”, onde o professor se levantava, tal qual um actor representando, fazia desenhos de caravelas no quadro negro, declamando frazes mais ou menos: “Portugal descobriu novos mundos, enfrentando tempestades e fúrias dos dragões de mares distantes, subjugando outros povos e outras civilizações ao Reino de Portugal e dos Algarves”.

E nós ficávamos excitados com estas palavras sem todavia compreender o que eram os “novos mundos”, os “dragões” ou “mares distantes”, e claro, encobrindo sempre tudo o que nos pudesse dar o conhecimento do que existia lá por esses “novos mundos” ou essas tais civilizações que eram subjugadas ao reino de Portugal e dos Algarves.

Em outras palavras, era mais ou menos como “colocar a pele de ovelha ao sistema colonialista em que se vivia, no maldito e feroz lobo que lá morava dentro”. E mais, constantemente nos diziam que a nação era a nossa mãe. Infelizmente, hoje compreendemos que era uma enorme e horrorosa mentira.

A nossa mãe era uma personagem linda, carinhosa e bondosa, (aliás todas as mães para nós filhos, são lindas, carinhosas e bondosas), e a nossa mãe ILDA, era uma sofredora, contando-nos muitas vezes que nunca tinha sido menina, pois nessa idade já era uma mulher de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saia de borel cardado pelas mãos da sua mãe, nossa avó, braços cansados de trabalhar na lavoura e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos molhos de erva que carregava para alimentar o gado, trabalhando de sol a sol e esperando a sorte de alguém a levar para a vila, “servir para casa de gente de posses”, pois seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam a casa no final de cada mês, para ajudar no sustento dos seus pais, nossos avós.
E quando mais tarde, já avó, em conversa com os vizinhos, quase chorando dizia:
- “Tive quatro filhos e só um é que foi à guerra, mas felizmente voltou vivo para casa”.

Companheiros, somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que anos depois se verificou que era injusta, que não desejamos, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas não resistimos em mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores, onde falamos da mulher mãe que nesta época de Natal mais recordamos.

Portanto cá vai:
“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cintura para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia.
Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra”
.

E agora, outro relato tirado de outro texto:
“Em Portugal visitámos a família deste militar, por diversas vezes. Era de uma aldeia da Serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra, lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”
.

Tenham um bom tempo neste mês de Natal, todos vós e vossas famílias, queridos companheiros e, já agora, que o ano que vem nos traga saúde e algum carinho, pelo menos da família.

Tony Borie, Dezembro de 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23889: Boas festas 2022/2023 (5): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: José Firmino; Ernestino Caniço; José Carlos Mussá Biai e Luís Fonseca

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23835: Blogoterapia (307): Nós e eles (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


Nós e eles

C
ompanheiros, continuamos a escrever porque participámos “nela” e entendemos que este é o meio de fazer uma ampla gama de relatos ou histórias, que no fundo, no fundo, fornecem uma janela única para as complexidades de uma guerra que foi algo injusta e controversa e que nunca devia de ter existido.

No entanto, hoje, todas estas narrativas oferecem-nos um registo que talvez vá contribuir no futuro para que não se voltem a repetir, porque o profundo impacto da vivência numa guerra, embora isto sejam só memórias, algumas até distorcidas pela própria memória por vezes emotiva, pois foram cenas passadas há mais de meio século, mas representam a história que não deve de ser apagada, embora autobiográfica, contando o impacto tanto político com social de quem escreve, com a empatia de humanização, única e simplesmente.

E, fazendo hoje uma reflexão sobre o horror de um bombardeamento a uma aldeia rural, onde valia tudo, virava a cabeça a qualquer ser humano, porque horas depois, a terra ainda estava quente, havia alguns corpos queimados e tudo ao redor eram ruinas, nada restava daquela que tinha sido a residência de um guerrilheiro e o lugar onde estava a criar a sua família. Este cenário, dava-lhes uma força moral interior, quase sem limites. Essa era uma das razões porque os guerrilheiros lutavam pela libertação e independência do seu território, que era correr com os Europeus para fora de África.

E o mesmo se passava do nosso lado, quando de uma qualquer mortífera emboscada ou de um frequente ataque ao nosso aquartelamento e estar próximo da explosão de uma granada de morteiro calibre 90 e algum tempo depois ouvir o som do bater das lâminas de um helicóptero, que pousava no nosso aquartelamento, recolhendo o que restava do corpo de um combatente, nosso amigo e com o qual poucas horas antes tínhamos falado e convivido e…, agora seguia para a capital Bissau, embrulhado num camuflado sujo com o seu próprio sangue.

Resumindo, hoje um dos nossos principais argumentos é que, os jovens, que podem ser de ambos os sexos, podem ir para a guerra e lutar uns contra os outros, mas ainda assim, talvez tenham esperanças e sonhos semelhantes para um futuro, mas depois de se envolverem em combate, começam a compreender o desenvolvimento de uma perspectiva crítica fatal, com mortos e feridos para ambos os lados, sobre a qual eles podiam não ter pensado antes.

Em conclusão e numa última análise, a plataforma de narrativas tal como vamos fazendo, procuramos sempre afastar-nos dos debates sobre a moralidade da guerra, onde não existe moralidade nenhuma, e em vez disso, tentamos explorar questões de como os seres humanos podem compartilhar sentimentos de medo, angústia ou empatia e examinar as maneiras como a guerra se inscreve nas histórias de vida de pessoas como nós, indivíduos simples e comuns, que passaram pelos horrores da guerra e precisam de se reconciliar enquanto avaliam o que encontraram por anos e anos, após o fim daquele maldito conflito.

Porque quando voltámos à Europa, embora afectados, nunca o governo Português se lembrou de nós, nunca foi reverenciado o nosso retorno, ficámos refugiados, significativamente talvez piores, e nunca nos foi oferecida qualquer reeducação, aliviando o trauma passado naqueles dois longos anos num angustiante cenário de combate, que nos deixou muitas cicatrizes.

Enfim, lamentamos a maneira como o governo Português e algum publico há muito nos esqueceu, todavia, e muito pior, foram os deslocados pela guerra, que ainda hoje se envolvem constantemente com memórias de guerra, ao reassentamento e deslocamento a que foram obrigados para reconstruirem as suas vidas e identidades após uma migração forçada, como em parte foi o nosso caso, que acabámos refugiando-nos deste lado de cá do Atlântico.

Tony Borie,
Dezembro de 2022
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

domingo, 13 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)



1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 10 de Novembro de 2022, falando-nos da sua Unidade:


Comando de Agrupamento N.º 16

É verdade que já lá vão mais de 58 anos que tudo isto se passou, no entanto, ocupamos o precioso espaço deste ainda resistente blog, dirigido pelo Luis e pelos seus dedicados colaboradores, que continua a descrever algumas passagens da guerra colonial na então província da Guiné, e claro, seguindo sempre o princípio de que esperamos ter aprendido algo com o dia de ontem, porque amanhã é a coisa mais importante da nossa vida e oxalá chegue a meia-noite de hoje limpa e sem problemas, porque é perfeito quando ela chega e se coloca nas nossas mãos. Sim, mais agora nesta avançada idade.

Continuando, vamos descrever o que foi o nosso Comando de Agrupamento, que era uma “unidade coordenadora de acções de logistica e de combates, sobretudo na organização e nos pormenores das operações militares na zona do Oio e do Cacheu” a que pertencíamos, sendo o primeiro Agrupamento a chegar àquela então província, quase quando do início da guerra de guerrilha que pelo menos naquela época, dois grupos armados desenvolviam no norte e que levaram à independência do seu território.
Assim, este Comando de Agrupamento, embora sendo um comando desarmado, dava ordens que podiam matar pessoas ou destruir aldeias consideradas inimigas. Foi constituído no Regimento de Infantaria n.º 1, na então vila da Amadora, sob o comando do Tenente-Coronel de Infantaria José Augusto Henriques Monteiro Torres Pinto Soares. (antigamente era assim, as pessoas que se diziam nobres tinham 7 e 8 nomes, e nós, os tais que diziam que era “carne para canhão”, tínhamos 2, o máximo 3, onde muitos de nós por lá ficaram, chamando-se António, Manuel, Joaquim ou José, cujo segundo nome era simplesmente, Jesus).

Continuando, como Chefe de Estado-Maior teve o Major de Infantaria António Coelho da Silva, sendo mais tarde substituído pelo Major de Artilharia Raul Pereira Baptista, e este Agrupamento adoptou a Divisa de “Juntos Venceremos”. Os oficiais foram para aquela província todos de avião e nós soldados, cabos, sargentos e milicianos, embarcámos no dia 23 de Maio de 1964, no cais de Alcântara em Lisboa no navio de carga “Ana Mafalda”, porque era o único que naquela época podia encostar ao cais do Rio Geba em Bissau, onde chegámos no dia 30 desse mesmo mês e ano.

Não havendo espaço para nós no Quartel General, ficámos instalados em tendas, numa parte deserta ao norte do cais, onde a sobrevivência se tornava um pouco difícil, sem latrinas e água potável, e com a presença contínua dos malditos mosquitos, junto de pântanos e lama, e onde já lá estava acampado um Batalhão composto por militares de combate, (esses sim, sofreram), que tinha chegado uns dias antes de emergência, desviados para a Guiné, porque o seu destino era Angola.

E que nos davam suporte no alojamento, com direito a uma marmita cheia de café negro feito de água fervida e turva do pântano e um biscoito pela manhã e duas embalagens de ração de combate por dia, iniciando-nos no normal “tráfico de influência entre companheiros combatentes”, onde os biscoitos eram moeda de troca por cigarros. Mais tarde, por mensagens recebidas, tivémos conhecimento de que houve neste acampamento um suicídio de um militar que infelizmente, talvez desanimado e deprimido, não suportou estas condições de alojamento.

Adiante… Duas semanas depois, quando ainda nos encontrávamos em Bissau, já instalados no Quartel General, o Agrupamento assume a responsabilidade da Zona Norte/oeste, que abrangia os sectores dos Batalhões instalados em Bula, Farim e Mansoa, que anteriormente dependiam do Comando Territorial, assim como todos os Comandos de Batalhão.

Assim, organizados dentro da maior desorganização que por lá havia, instalámo-nos em Mansoa no final do mês de Julho de 1964, na tal Zona Norte/Oeste, na região do Oio, no entanto, ainda instalados em Bissau, já o Agrupamento tinha criado o sector de Mansabá, onde no início as tropas portuguesas tinham ordens para assumiram uma postura defensiva, limitando-se a defender territórios onde ainda não havia muita barafunda, no entanto, essas operações defensivas algumas vezes foram devastadoras para as nossas forças, que eram regularmente atacadas fora das áreas povoadas por uns guerrilheiros agressivos, e aí sim, havia mortos e feridos.

Mais tarde com o desenrolar de frequentes combates, entre Outubro e Novembro, já no ano de 1965, o Agrupamento criou o sector de Teixeira Pinto, na região do Cacheu, porque por lá também já havia aqui e ali alguma insurreição e havia notícias de que pela noite havia colunas de mulheres guerrilheiras, que transportavam armas e munições vindas da fronteira, protegidas pelos grupos de guerrilheiros e que os reabasteciam, e claro, era necessário incrementar a zona operacionalmente, onde começaram as primeiras operações navais anfíbias, que foram instituídas para superar alguns dos problemas de mobilidade inerentes às áreas pantanosas.

Entretanto e com o correr do tempo, e as normais tropas portuguesas sendo constantemente fustigadas em ataques contínuos, foi criado um Grupo de Comandos em Bissau, treinado quase especificamente para esta guerra de guerrilha, composto por muitos africanos mas, pelo menos no seu início, eram comandados por militares europeus, e assim, juntamente com os próprios Comandos de Fuzileiros e tropas Paraquedistas como forças de ataque, eram frequentemente chamados para socorrer ou para combater ao lado das normais forças de combate portuguesas, onde alguns por lá ficaram mortos e enterrados no lodo dos pântanos para sempre.

Mas continuando, a actividade operacional foi mais direccionada, especialmente para as regiões do Morés, Mansabá, Bissorã e Olossato, que começaram a ser constantemente fustigadas por ataques dos guerrilheiros que recebiam apoio dos países vizinhos, utilizando corredores específicos de que só eles tinham conhecimento, onde se refugiavam e recebiam treino específico de guerrilha, assim como material de combate já mais moderno. Nesta zona, principalmente no Morés, periódicamente já actuava em cenário de combate um avião que voava de Bissau, lançando bombas, incendiando aldeias suspeitas, assim como as forças especiais de combate entretanto criadas e já acima mencionadas.

Todas estas povoações acima mencionadas eram visitadas por nós ou pelos nossos companheiros “cifras” no fnal de cada mês onde levávamos aos comandos das forças ali estacionadas, o tal material classificado de cifrar, cujo código era modificado todos os meses, viajando ou em colunas militares ou na avionete do correio e aí sim, “éramos um militar na guerra, mas desarmado”.

Depois… passámos dois longos anos naquele cenário de uma guerra terrestre de guerrilha, onde como acima já explicámos, éramos o “Cifra”, um soldado desarmado, onde a disciplina de um campo de batalha não era lá muito eficaz para a nossa sobrevivência, onde um pequeno descuido ou desleixo, onde os ataques ao aquartelamento que ajudámos a construir, as emboscadas, minas ou fornilhos, nas viajens de fim de mês, podiam a qualquer momento fazer com que a nossa alma nos abandonasse, na procura de uma qualquer galáxia distante.

E onde uma tijela de arroz ou um naco de pão era mais importante do que uma ração de combate, onde os campos abandonados da plantação de arroz, se transformaram em pântanos perigosos, onde as notícias recebidas nas mensagens que pela mão nos passavam, descrevendo o volume e o ruído do fogo inimigo, nos trazia a todos nós estarrecidos, onde só talvez, o excesso de álcool nos dava algum miserável conforto.

Fomos sobrevivendo e, finalmente ao fim de dois longos anos, embarcámos de regresso à metrópole, no dia 13 de Maio de 1966, no navio “Uige”, que estava ancorado ao largo no rio Geba em Bissau, sendo transportados em lanchas do cais ao navio, onde tal como muitos companheiros, continuando com o excesso de álcool, agora já dentro do navio, roubou-nos a recordação da partida e do cenário de onde o rio Geba desaguava, no tal “oceano que para nós estava longe do mar” e, ainda hoje não sabemos se o Geba, tal como o Mansoa, eram rios ou canais de água salgada.

Tony Borie
Novembro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 24 de Outubro de 2022:


...A boina

Já faltava pouco tempo para regressarmos à Europa, assim, a nossa mente andava um pouco ocupada, mas não tanto para que não se reparasse na falta de recursos daquelas pessoas. Quando livres das nossas tarefas, continuávamos andando por ali, visitando algumas aldeias próximas do aquartelamento levando comida e pão que roubávamos no aquartelamento, assim como rebuçados que comprávamos na loja do Libanês.

Não compreendíamos a alegria nos rosto daquelas pessoas ao ver-nos chegar. Viviam na mais profunda miséria, mas aparentavam sentir-se bem naquelas casas térreas, cobertas com folhas de colmo, com toda aquela falta de utensílios domésticos. Uma simples lata vazia de conserva, que levávamos do aquartelamento, era guardada como se fosse uma coisa preciosa. Não havia água potável, era suja de lama, pó, lixo em tudo o que fosse lugar, improvisando quase tudo e, nunca ouvimos da boca daquelas pessoas uma pequena lamúria.

Mas agora recordando aquele miserável conflito armado em que estivémos envolvidos em África, sabíamos que os objectivos eram provar que a força encontrava a força e, para qualquer dos vencedores, era uma conquista fútil, era uma agressão errada, pois num conflito armado não existem vencedores, os que perdem nunca esquecem, transmitindo a mensagem à próxima geração de família, portanto está provado que um conflito armado, simplesmente não funciona.

E, para nós havia diversos rostos. Talvez o primeiro fosse o verdadeiro conflito armado, o das emboscadas mortíferas, do terror, dos tiroteios, dos ataques do inimigo aos aquartelamentos com as armas morteiro calibre 90 ou das bombas de napalme lançadas pelos aviões das nossas forças que destruiam aldeias e, dos soldados cansados, alguns desmotivados por verem os seus companheiros morrerem ali mesmo, junto de si, os quais, quando era possível, ajudavam a embrulhar no seu própro camuflado o que restava dos seus corpos.

Talvez o segundo rosto da guerra fosse a busca de uma solução política, ou seja, a diplomacia política, mas naquele tempo, com um primeiro-ministro, que se considerava um pai da nação, que tinha falado ao seu povo que devíamos "ir para a guerra e…, em força", sabendo que ia traumatizar uma geração de jovens que, práticamente foram abandonados, assim que se procedeu à independência das ditas Colónias em África, possívelmente envergonhando-se que essa geração era uma geração de combatentes, que defenderam a bandeira do país Portugal, ignorando a legenda que diz: "País que não respeita o passado, não pode ter um bom futuro”.

Não nos querendo alongar, talvez um terceiro rosto da guerra que vivemos em África seja a mais trágica. Era a necessidade humana, onde existia o doente abandonado, a família faminta, a criança analfabeta, centenas, talvez milhares de homens, mulheres e crianças abandonadas, sem abrigo, vestidas com farrapos, lutando pela sua sobrevivência, numa terra muito rica.

Onde as árvores, deixando-as em paz, cresciam com fruto, o peixe dos rios era abundante, havia animais nas savanas, florestas e pântanos e se houvesse paz cresciam e, sobretudo com um solo que era muito fértil.

No entanto, esta última vertente da guerra, trazia-nos angustiados, pois infelizmente alguns, mesmo nos dias de hoje, não querem o fruto das árvores para comer, procuram única e simplesmente, os frutos materiais das árvores.
Voltando de novo às aldeias e ao povo que vivia naquela profunda miséria, quando comiam, chamavam os cães magros e famintos, que por ali andavam, repartindo o pouco que lhe levávamos. Estas cenas ainda nos davam mais angústia, fazendo-nos lembrar os valores morais da nossa civilização, que repousa na natureza de sermos úteis ao próximo e, não procurar a guerra em que estávamos envolvidos, que naquela época era uma ameaça àquelas pessoas que viviam uma vida de sobrevivência.

No entanto, e este escrito é dedicado a ela, havia por lá uma criança, que não nos largava, sempre vinha em nosso redor agarrando-nos na mão, queria carinho e talvez rebuçados, pois imediatamente nos colocava a mão no bolso. Nós, às vezes embaraçados, não sabíamos com agir para nos despedirmos dessa criança, os seus olhos falavam, eram humildes, dizendo tudo o que lhe ia na alma, não necessitava abrir a boca, aqueles olhos falavam todos os idiomas do mundo.

Ao regressar à Europa, deixámos as botas de cabedal e parte da roupa da farda, assim como algum dinheiro a essa família, mas a criança, não queria a roupa da farda, queria a boina e o emblema. Nós, quase chorando, entregámo-la com um grande beijo, mas a criança sorriu, tirou o dedo da boca, limpou o ranho do nariz com as costas das mãos, deu uma gargalhada, mostrando um sorriso que dispensava palavras, pois a sua alegria falava todos os idiomas do mundo.

Tony Borie,
Outubro 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:


Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado!

É tão difícil unir todos os pedacinhos das memórias, os destroços e juntá-los na construção de um todo para os companheiros combatentes que felizmente ainda andam por aqui, mesmo sabendo que traduzindo à letra os nossos pensamentos, corremos o risco de às vezes não sermos lá muito bem entendidos, ou seja, dando a entender que “a liberdade de sermos quem quisermos, agindo ou falando sem filtros é quase uma anarquia”, o que na verdade para nós, não é, pois entendemos que expondo ideias ou expressão nas palavras de diferente maneira é muito saudável e, temos muito respeito por todos vós e pelo que viveram, sobretudo em África.

Continuando, lembramos que na Guerra Colonial, as nossas tarefas eram cifrar e decifrar mensagens. Assim, passáva-nos pelas mãos mensagens contendo substância horrivel e secreta de possíveis operações ou de ataques sofridos pelo contacto com as forças inimigas compostas pelos guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território.

E, tal como alguns de vocês companheiros combatentes, chegámos em Maio do ano de 1964, passando dois longos anos no interior da então província colonial da Guiné Portuguesa, rodeados de savanas e pântanos, participando numa guerra de guerrilha, contra um inimigo armado, treinado e equipado, que sempre recebeu apoio substancial de portos seguros em países vizinhos como o Senegal e a Guiné-Conacri, cuja proximidade eram excelentes para fornecer superioridade táctica nos seus ataques transfronteiriços e sobretudo se reabastecer.

Mas voltando à tal “farda amarela”, que dá o título a este escrito, não sabemos quem foi o “designer” de moda popular ou militar, que a projectou, mas sabemos, porque a usávamos, que era demasiado quente para o clima húmido da então Guiné Portuguesa e, que na altura era usada por outros militares de alguns países, principalmente os envolvidos em conflitos em África!.
Todavia, estar estacionado em África, uma região quente e húmida entre outras anomalias climáticas, dentro daquela “ganga amarela”, onde a princípio, antes de ser lavada, uma, duas, três, talvez só à quarta vez, largava aquela “goma” que parecia “cola” e, quando isso acontecia, pouco mais durava, começando por o tecido se dissolver, principalmente na zona onde a transpiração mais se fazia notar!.

Agora voltando de novo ao conflito armado e como acima já explicámos, dada a nossa especialidade, éramos um soldado desarmado. No entanto, fizémos coisas, passando por momentos horríveis de desespero, angústia e medo quando de ataques e emboscadas ao local onde estávamos estacionados ou passávamos, tomando conhecimento oficial de relatos angustiantes, onde explicavam como iam deixando por lá companheiros enterrados em cenários de combate, porque não os podiam resgatar e, que hoje ainda nos assombram.
Porquê? Porque muitas vezes, as tropas Portuguesas encontravam-se na pior posição para avançar e identificar com precisão a sua localização no terreno, onde ou existia selva cerrada, pântanos ou canais com água, lama e tarrafo e frequentemente, pelo menos quando atravessavam os rios ou canais, havia os “macaréus”, algumas vezes até animais perigosos, como crocodilos, onde em algumas situações o inimigo, tirando vantagem, surgia de todos os lados, atacando, disparando, sem dar qualquer oportunidade para que se recuperasse os nossos mortos ou feridos.
E nós, além de mal alimentados, (cuja alimentação era confecionada à base de alimentos sem proteínas e repetida quase todos os dias, razão pela qual ainda hoje gostamos de amendoins), sem assistência médica, com equipamento militar absoleto, fomos dos primeiros a entrar e ficar estacionados em zona de permanente combate, usando o tal uniforme “amarelo”.

Assim, além de outras, o nosso moral era triste e a desmotivação e o cansaço eram realidades que minavam os alicerces de quem com elas convivia, numa situação “onde podíamos morrer de amarelo”, dentro de uma vestimenta padronizada e regulamentada, diziam “eles”, que contribuía para a elevação e auto-estima, potencializada pela manifestação de força, com que nos educaram num breve treino específico de recruta, convencidos de que éramos a força de combate mais letal do mundo.
Onde, além de irmos para África lutar contra pessoas que não conhecíamos e nada de mal nos tinham feito antes, íamos transmitir a tal manifestação de força mas, talvez sem os responsáveis pelo governo colonial de então em Portugal saberem, que a nossa educação de família era potencializada por um ideal de paz e igualdade, com que fomos quase todos nós, independentemente de origem ou condição, educados no nosso lar.
Enfim, hoje as imagens do possível passam-nos na mente como se tratasse de um filme arrumado no sótão da nossa existência e, aquele aquartelamento militar que ajudámos a construir e que poderíamos considerar um “Posto Avançado”, ou seja, um lugar onde os militares de combate, tomavam conhecimento das primeiras savanas, florestas, rios, riachos e pântanos, que eram as trilhas frescas usadas pelos guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território, continuam bem vivas na nossa memória.
E, tudo isto se passou quando ainda éramos quase crianças, (pois no regime que então se vivia, só éramos adultos aos 21 anos de idade), onde estivémos longe da família, noutro continente e sacrificando a nossa liberdade. E fizémos tudo isto porquê? Porque mesmo sabendo que a desumanização da sociedade continuava uma realidade, onde às vezes parecíamos que éramos todos ilhas à deriva, nós, “éramos quase uns soldados sem um país”, no entanto, fizémos um juramento à bandeira desse país onde nascemos e, viveremos por este juramento até ao dia da nossa morte, porque hoje somos e, seremos sempre um veterano de guerra.

E também acreditamos que às vezes é necessário retornar aos pensamentos da infância, aos amigos ou ao seio da família, o único porto de abrigo, tal como quando regressámos a casa, uns anos depois já como veteranos de guerra, passando por algumas experiências de vida mais traumáticas que se possam imaginar e, os amigos e a família que nos receberam, sabiam, notavam imediatamente que alguma coisa estava mal connosco, pela nossa linguagem, maneira de se comportar, que estávamos diferentes, talvez um pouco loucos e algo agressivos.

Esta é a verdade, que não podemos nunca ocultar.

Tony Borie, Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:

Olá companheiros de jornada.

Há já alguns anos que não vamos dando notícias, no entanto, sempre estiveram no nosso coração, porque foram vocês que nos ouviram e compreenderam em determinado momento da nossa vida quando tentámos tirar de cima de nós o peso de todas aquelas recordações da maldita guerra colonial que todos nós vivemos nas savanas e pântanos da então província da Guiné.

O dedicado companheiro Carlos Vinhal, sempre lembrou o dia do nosso nascimento e no último, agradecemos lembrando que naquela época andávamos por lá confusos, não sabendo se o o “oceano estava longe do mar”. Era verdade, porque infelizmente saímos da nossa aldeia do interior para ir participar nesta horrível guerra com a cultura dos livros aos quadradinhos que líamos, e que eram os únicos a que tínhamos acesso e eram as tais histórias do Mandrake, do Kit Carson, do Robin dos Bosques ou do Tarzan.

Esta era a nossa cultura até entrarmos no mercado da emigração. Depois, felizmente tivémos ascesso a outras escolas onde tivémos conhecimento da realidade do que foi a História de Portugal com a então África Portuguesa, não ficando lá muito espantados com que íamos aprendendo, como por exemplo o relacionamento e o porquê da presença de Portugal em África.

E as coisas começaram a clarificar-se. Assim compreendemos hoje o País Portugal estar a ser em parte colonizado por pessoas que antes foram colonizadas. É a vida, dizem alguns. Mas talvez seja a história a repetir-se agora em sentido inverso. É a tal frase onde dizíamos que o “oceano estava longe do mar”.

Sabiam que o comércio transatlântico de escravos guardava os segredos mais sombrios que, o para nós herói Infante D. Henrique, o Navegador de Portugal, ajudou a tornar o país Portugal em líder do comércio e na exploração, inclusive em África?

Que a escravidão entre as nações e tribos africanas existia muito antes de Colombo chegar ao Novo Mundo? E que África tinha uma robusta economia escravagista, sendo os escravos capturados e negociados por várias tribos e governantes africanos? E que foram vendidos a comerciantes oriundos de Portugal nos portos africanos, em troca de mercadorias que incluíam tecidos tingidos, armas de fogo, ferramentas e, às vezes, ouro?

Que Portugal se tornou no líder europeu no tráfico de escravos? Os seus navios e comerciantes aliaram-se ao Reino Africano do Kongo no século quinze, permitindo-lhes controlar a maior parte da costa de África e que o comércio entre europeus e africanos foi imposto aos últimos, com condições vantajosas para os primeiros?

Embora hoje as evidências sugiram o contrário, dizendo que várias tribos africanas ditavam os termos de comércio para os europeus, reforçados por combates armados ocasionais, tudo isto à medida que Portugal começou a explorar a sua então colónia do Brasil no tal Novo Mundo e onde precisava de uma força de trabalho.

Assim, o comércio tornou-se bastante lucrativo para os comerciantes e carregadores portugueses, financiados por um consórcio bancário que nem era português, tinha a sua origem em Génova. E mais, tinham as suas fortalezas e os seus portos estabelecidos na África, onde observavam os escravos capturados por seus parceiros africanos e, muitas vezes, os africanos estavam presos há meses, pois queriam garantir uma carga pronta quando os navios chegassem. Isso porque nenhum comerciante queria uma estadia prolongada na costa de África, numa época repleta de doenças.
Hoje tudo isto é história, no entanto naquela época, Portugal era dono de quase toda a costa de África e, o governo colonizador de Portugal de quando éramos jovens, queria continuar a sê-lo, obrigando-nos a ir combater, vendendo a “alma ao diabo”.

E nós, jovens oriundos da Europa, com uma educação de aldeia, onde os princípios honestos de família vinham de há séculos, fomos combater num horrível cenário, onde muitas vezes a angústia, o desespero e o medo, nos colocava numa situação horrível, onde entre outras coisas o álcool nos aliviava a mente, pelo menos por momentos, pois este cenário estava lá, estava sempre presente, era a cara da guerra, com feridos e mortos em combate para ambos os lados, incluindo a população civil desarmada.

E tudo isto para quê? Naquela época os famintos, os doentes, os analfabetos e a miséria eram constantes e, infelizmente continuaram, mesmo depois, quando parecia que já havia paz, fazendo-nos lembrar que de facto saímos de África físicamente, mas possívelmente não trouxémos as armas, as bombas e as balas, deixando lá apenas, como seria nossa inteira obrigação, todas as maravilhosas armas da paz do século XX.

E como o destino não perdoa, os antes colonizados estão agora aí a colonizarem um país que foi colonizador, e nós, antigos combatentes, que lutámos em outro continente, num cenário horrível e miserável, estamos a ser constantemente vítimas dessa nova colonização.

Para todos, queridos companheiros combatentes, desejo que continuemos muitos e muitos anos por cá, e com saúde, porque infelizmente, devido à idade avançada, vamos desaparecendo, todavia o corpo e a mente de um veterano de guerra, reage automáticamente aos disparos da memória, sentindo de novo em certos momentos, as feridas, o medo e o horror que por si passaram, enquanto presente num cenário de combate.

Porque a maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece. Contudo, já o dissemos em algumas vezes, o medo ou talvez coragem, que nos ajudou a sobreviver num campo de batalha, não funciona muito bem agora, nesta avançada idade, mas ainda vai sendo possível assumir o control dessa horrível vivência e, vamos continuando a expulsar alguma energia positiva que nos resta, daquela que nos foi roubada, pelo desastre da Guerra Colonial Portuguesa em África.

Tony Borie
Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23393: Blogoterapia (302): Uma história verídica com o seu quê de humano (José Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17345: XII Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 29 de Abril de 2017 (20): os representantes da "frota celestial" (FAP) e o Johnnie Walker black label 12 years old, oferecido à malta pelo Tony Borié ("from America with love")


Foto nº 1 > A feliz contemplada com o  "Johnnie Walker black label 12 ears old", oferecido pelo Tony Borié à Tabanca Grande, na pessoa do editor Luís Graça...  Do lado direito, o Carlos Silva.


Foto nº 2 > A Elisabete, esposa do Francisco Silva, a Giselda e o Carlos Silva... "Então, não vai um golinho?", parece perguntar a nossa querida aniversariante e histórica camarada Giselda, a primeira a entrar para a Tabanca Grande.


Foto nº 3 > O ten gen pilav ref António Martins de Matos, e o Zé Manell Cancela (Penafiel) e a nossa "bar(wo)man" Giselda


Foto nº 4 >  O Joaquim Mexia Alves, a "jogar em casa"... à direita, a esposa Catarina... 


Foto nº 5 >  Uma mesa só com gente da "frota celestial" (FAP): um antigo piloto de DO 27, o Silvino Correia d'Oliveira (Leiria), o António Martins de Matos (ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74) e a Giselda Pessoa... a nossa sempre amável, prestável e (e)terna enfermeira paraquedista...


Foto nº 6 > O António Martins de Matos (Lisboa)


Foto nº 7 > A "periquita" (em matéria... tabancal) enfermeira paraquedista Maria Arminda Santos (uma das primeiras a chegar ao TO da Guiné)


 Foto nº 8 > Os dois setubalenses, o nosso colaborador permanente Hélder Sousa e a Maria Arminda

Leiria, Monte Real > Palace Hotel Monte Real > XII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 29 de abril de 2017

Fotos: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Foto nº 9 > Águeda, 18 de Outubro de 2016 >  Tony Borié e Carlos Vinhal > Em visita a Portugal, o Tony Borié (ex-1º cabo cripto,  Comando de Agrupamento 16, Mansoa, 1964/66), bem sucedido e integrado "tuga" no "melting pot" americano, fez questão de se encontrar, em Águeda, com dois dos nossos editores, em Àgueda (**).

Por razões de disponibilidade. avançou o Carlos Vinhal.  O Borié trazia uma lembrança para cada um de nós, uma garrafa de Johnnie Walker, rótulo preto, 12 anos... Uísque de cinco estrelas!... A garrafa só seis meses depois,  em 29/4/2017, chegaria às mãos do nosso editor Luís Graça...

Em dia de dupla festa (aniversário da Giselda e realização do XII Encontro Nacional),  o Luís Graça confiou a garrafa à aniversariante para repartir irmamente o precioso líquido para quem tinha "sede", no fim do almoço, com o cafezinho...

A Giselda, que não bebe, saiu-se muito bem de mais esta inesperada missão, a de "bar(wo)man"... Como estava em terra, e em dia de merecido descanso, não infringiu nenhuma das regras de segurança da "frota celestial"...

Daqui vai um triplo xicoração: (i) para o Borié, que foi superlativamente generoso para connosco; (ii) para a Giselda, que foi superlativamente gentil connosco em dia de anos; e (iii) para o Carlos Vinhal que foi superlativamente competente, enquanto "intermediário" entre mim e o Tony Borié. (LG)

Foto: © Carlos Vinhal (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementra: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 8 de maio de  2017 > Guiné 61/74 - P17334: XII Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 29 de Abril de 2017 (19): Por mim, manteria o sítio, o hotel, e a relação qualidade/preço, melhoraria a refeição principal e, sobretudo, agarraria com unhas e dentes esta oportunidade (histórica, única) de convívio anual entre nós, amigos e camaradas (António Duarte, Lisboa)

(**) Vd, poste de 30 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16658: Atlanticando-me (Tony Borié) (14): O nosso encontro em Águeda