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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25408: Consultório Militar do José Martins (82): Dia 16 de Março de 1974 - Parte VII (e última) - Os dias depois


Parte VII e última de "Dia 16 de Março de 1974", um trabalho da autoria do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blog em 10 de Abril de 2024. Neste dia ensaiou-se a primeira tentativa de derrube do regime vigente, conhecida por Levantamento ou Golpe das Caldas, por ter sido protagonizada por militares do antigo RI 5 das Caldas da Rainha.


Dia 16 de Março de 1974 - Parte VII (fim)

Os dias depois

Dia 17 de Março de 1974

00:15
● O Comandante da 1.ª Companhia do Batalhão n.º 1 da GNR informa que, no parque da Estação da CP do Rossio, se encontram 2 Berliets, 3 Unimogs e 3 Jeeps com militares da Policia Militar, dando a impressão de aguardarem alguém. [CGg]

00:16
● O Comando-Geral da GNR comunica a notícia acerca do aparato na Estação do Rossio ao Comandante da Região Militar de Lisboa e recebe a informação de que, o pessoal da Polícia Militar, aguarda militares em regresso de fim-de-semana. [CGg]

04:00
● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informou superiormente que a situação continuava sem qualquer alteração. [PCR]

08:50
● Comandante da GNR de Pêro Pinheiro comunicou que tinham sido feitas chamadas anónimas para a central telefónica local, avisando as telefonistas para abandonarem o serviço por estar eminente o rebentamento de bombas naquele edifício. Tendo, o Comandante do Posto, procedido a minuciosa revista do edifício, não encontrou ali qualquer engenho explosivo. [B2g]

09:30
● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informa, o escalão superior, que a situação continuava sem alteração. [PCR]

● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informa que a situação geral, era normal. [B2g]

● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informou superiormente que a situação continuava sem qualquer alteração. Acrescenta que, por informação recolhida de que os oficiais sublevados foram transportados para o Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1, em Moscavide. [PCR]

11:00
● O 2.º Comandante da Região Militar de Tomar informou o Major Guimarães que podia regressar ao Regimento de Infantaria n.º 7 e que a Companhia de Caçadores do Regimento, regressaria no dia seguinte. [RI7a]

14:00
● O Major Guimarães regressou, ao Regimento de Infantaria n.º 7, terminando o serviço que lhe foi determinado, ao acompanhar a Companhia de Caçadores. [RI7a]

14:30
● Por determinação superior, passa-se à Situação de Alerta, a partir das 15H00. [B2g]

15:00
● O Comando-Geral da GNR indica passagem a estado de Prevenção Simples. [CGg]


Dia 18 de Março de 1974

00:01
● Uma informação oficial, do Departamento da Defesa Nacional, refere que foram detidos trinta e três oficiais, das Forças Armadas, na sequência dos acontecimentos de 16 de Março:
Tenente-Coronel João Almeida Bruno;

Majores:
Manuel Soares Monge e
Luís Casanova Ferreira;

Capitães:
Virgílio Luz Varela,
Fortunato de Freitas,
Ivo Garcia,
Armando Marques Ramos,
Farinha Ferreira,
Pita Alves,
Domingos Gil,
Piedade Faria,
Gonçalves Novo,
Pereira Carvalho,
Madaleno Lucas,
Silva Parreirinha e
Branco Ramos;

Tenentes:
Rocha Neves,
Pina Pereira,
José Vaz Pombal,
Moreira dos Santos,
Matos Coelho,
Abreu Carvalho,
Gomes Mendes,
Carreira Ângelo e
José Verdu Montalvão;

Alferes Milicianos:
Dinis Coelho e
Oliveira Ribeiro, entre outros. [JM]

09:30
● Do relatório do Batalhão n.º 2 da GNR, o Comandante da GNR de Caldas da Rainha, informa que a situação geral não sofrera qualquer evolução, mantendo-se a normalidade recuperada. Durante as últimas 24 horas, foi também efectuada discreta vigilância sobre os movimentos de entradas e saídas nas unidades militares aquarteladas na área: Academia Militar e Regimento de Infantaria n.º 1 (Amadora); Regimento de Artilharia Anti Aérea Fixa (Queluz); Escola Prática de Electromecânica (Paço de Arcos); Regimento de Artilharia de Costa, (Oeiras); Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea (Cascais); Campo de Tiro da Carregueira (Venda Seca); Base Aérea n.º 1 (Granja do Marques); nada tendo sido notado de anormal. Por determinação superior passa-se à situação de Alerta, a partir das 15:00. [B2g]

15:00
● O Comando-Geral da GNR indica passagem a estado de Vigilância. [CGg]

S/hora
● É emitido o segundo e último comunicado do Movimento das Forças Armadas, até ao dia 25 de Abril de 1974. Redigido por Vítor Alves e Otelo Saraiva de Carvalho, analisa a tentativa de golpe do 16 de Março e denuncia o papel da PIDE na perseguição de militares. [JM]


19 de Março de 1974

● O General Joaquim da Luz Cunha é nomeado Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. [JM]


24 de Março de 1974

● Na última reunião da Comissão Coordenadora do MFA foi decidido que o derrube do regime ditatorial só poderia ser alcançado pela via militar e que o Movimento se deveria empenhar na rápida concretização desse objectivo. O golpe de estado é marcado para a semana se 20 a 27 de Abril de 1974. [JM]

Muitas das unidades que se viram envolvidas, por ordem superior, no 16 de Março, tinham elementos activos no Movimento dos Capitães, nomeadamente no comando das forças destinadas à intervenção imediata, mas não em número suficiente para poderem alterar a curso da revolta, protagonizada pelo Regimento de Infantaria n.º 5, dando-lhe apoio.

Chegados aqui, levando a “Fita do Tempo” até uma semana depois do acontecimento de 16 de Março, tendo sido feita menção a factos que, de uma ou outra forma levaram ao relatado caberia, agora, fazer a análise crítica e as conclusões, mas esse “trabalho” será matéria para o leitor que, como bem sabemos, até já pode ter uma ideia definida.

Para os mais velhos, nomeadamente aqueles que viveram já na então metrópole, ou ainda nos então Teatros de Operações, reviverem ou relembrar o sucedido.

Os mais novos poderão aqui ver que, a “tropa” servia como “frente de combate” para os que aqui ficavam, nomeadamente nos gabinetes do poder e, quando a tropa mostrava ideias diferentes, a sua própria “guarda pretoriana” avançava, mas mandavam-na ficar na retaguarda e/ou reserva.

Para mim foi um gosto poder “reviver”, passado que foi meio século sobre um momento em que, quando se soube que provavelmente, facto que não se registou, que parte da coluna saída das Caldas da Rainha poderia não ter regressado ao quartel, poderia representar uma nova facção de revoltados, que podiam continuar a gerar um quadro de instabilidade, quiçá, uma “guerrilha interna”.
João Paulo Diniz. Foto: Com a devida vénia a Sapo.pt

Em 5 de Abril desse ano de 1974, teve lugar, como era hábito, o concurso da canção da Eurovisão. Foram os ABBA que ganharam, com a canção "Waterloo", tendo ficado Portugal, representado por Paulo de Carvalho, ficado em 15.º lugar com a canção “E depois do adeus” que, cerca de vinte dias depois, pelas 22:55, tocada pelos Emissores Associados de Lisboa, por João Paulo Diniz, que seria o primeiro sinal para que, as tropas aderentes ao MFA, iniciassem os preparativos para arrancarem. O segundo sinal é dado às 00:h20, quando a canção “Grândola, Vila Morena” do cantor Zeca Afonso, é transmitida pelo programa Limite, da Rádio Renascença. 
O Movimento das Forças Armadas estava na rua. Já nada era reversível.

José Marcelino Martins
9 de Abril de 2024
No 106.º ano da Batalha de La Lys, na Grande Guerra.

_____________

Nota do editor

Vd. posts de:


12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25378: Consultório Militar do José Martins (76): Dia 16 de Março de 1974 - Antes do dia - Parte I

13 de Abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25381: Consultório Militar do José Martins (77): Dia 16 de Março de 1974 - Antes do dia - Parte II

14 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25385: Consultório Militar do José Martins (78): Dia 16 de Março de 1974 - Parte III - O dia

15 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25392: Consultório Militar do José Martins (79): Dia 16 de Março de 1974 - Parte IV - O dia

16 de Abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25395: Consultório Militar do José Martins (80): Dia 16 de Março de 1974 - Parte V - O dia
e
17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25402: Consultório Militar do José Martins (81): Dia 16 de Março de 1974 - Parte VI - O dia

sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25382: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVI: o golpe militar de Bissau


Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bettencourt (ou Bethencourt) Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau. 

Fotografia obtida já no Alfeite, em Lisboa no dia 30 de Abril de 1974. Fonte: arquivo do filho do cor inf António Vaz Antunes, o engº Fernando Vaz Antunes (que vive em Mafra), e a quem agradecemos a gentileza .

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Antiga página de rosto do  Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt)


"O Arquivo de História Social  (#) publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente. Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." 


1. Voltamos aos depoimentos produzidos no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida  [A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné > 29 de Agosto de 1995 > Depoimentos de General Mateus da SilvaCoronel Matos Gomes,   José Manuel Barroso e Coronel Florindo Morais]

Iremos reproduzir alguns excertos das enrevistas para ficarmos com uma ideia mais viva, precisa e detalhada do que foi a 23ª hora do último com-chefe do CTIG, gen Bethencourt  (ou Bettencourt) Rodrigues, e  concomitantemente o que se passou nos dias 25 e 26 de abrl de 1974 em Bissau. 

Os antigos combatentes da Guiné, qualquer que seja o ano em que moram mobilizados para o território, de 1961 a 1974, têm o direito de saber como é que acabou a guerra.  E é bom lembrar que parte destes homens que arriscaram vidas e carreiras, na "conspiração" do MFA na Guiné-Bisau, já morreram, como é o caso do ten-gen Mateus Silva.

Sobre o "golpe militar de Bissau", iremos trancreer parte das entrevistas a:

  • Eduardo Mateus da Silva [1933-2021] : Engenheiro militar da Arma de Transmissões; chega à Guiné em Junho de 1972, como tenente-coronel; membro do MFA desde os primórdios; encarregado do governo da Guiné depois do 25 de Abril;
  • Carlos Matos Gomes (n. 1946): Oficial dos Comandos, comandante de Tropas Nativas Especiais; em Moçambique, participou na operação “Nó Górdio”; fez a sua missão na Guiné de Julho de 1972 a fins de Junho de 1974; pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA;
  • José Manuel Barroso [n. 1943]  : jornalista, capitão miliciano na Guiné de Julho de 1972 a Maio de 1974; colaborador directo do general Spínola, na Guiné; membro do MFA da Guiné;
  •  Florindo Morais  [n. 1939] : só vai para a Guiné, como major, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo o último comandante do batalhão de Comandos Africanos na Guiné e regressa na véspera da independência. (Notas biográifcas dos organizadores dos Estudos Gerais da Arrábida

2.  O Golpe Militar de Bissau (##)

Entrevistadores: Manuel Lucena (1938-2105), Luís Salgado Matos (1946-2021)

Entrevistados, Mateus da Slva (1933-2021), Matos Gomes (n. 1946), José Manuel Barroso (n. 1943)

 [...] General Mateus da Silva: 

Há um aspecto que também é único no MFA da Guiné: é que o MFA em Lisboa, tinha principalmente capitães, muito poucos majores e não tinha os comandos das unidades. 

Na Guiné, porque o ambiente era totalmente favorável ao MFA, podíamos ter envolvido,  na conspiração, todos os capitães que quiséssemos, mas como não nos interessava isso, porque ia alargar muito, escolhemos os comandantes das unidades: envolvemos o comandante do Batalhão de Comandos, o comandante e o 2º comandante do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões (as comunicações eram essenciais), o comandante da Engenharia, o comandante da Artilharia, e, quando quiséssemos carregar no botão e tomar o poder, era só querermos.

Luís Salgado Matos: 


Qual era o papel do general Bettencourt Rodrigues? Percebia o que se estava a passar? Sabia do que se estava a passar? Tinha alguém em quem tivesse confiança?  


Coronel Matos Gomes: 


Ele sabia muito pouco. Há uma história que demonstra a forma diferente do general Bettencourt Rodrigues exercer a sua função de comando, como comandante-chefe. O general Spínola falava com muita facilidade à hierarquia, até cá abaixo. Qualquer capitão podia muito facilmente obter acesso ao general Comandante-chefe. Portanto, estes circuitos funcionavam quase em ligação directa. 


Ao passo que o Bettencourt Rodrigues, até por questões de feitio pessoal e de formação militar e profissional, como oficial de Estado-Maior, a primeira acção que lhe corresponde como comandante-chefe é cortar essa ligação, e coloca um fusível na ligação, que era o seu Chefe de Estado-Maior, o coronel Hugo Rodrigues da Silva, passando a ser impossível um comandante de uma unidade falar com o comandante-chefe ou com outro operacional. Tudo passava pelo coronel Chefe de Estado-Maior. 


Para os comandantes das unidades, habituados a negociar concretamente com Deus Nosso Senhor, as coisas passaram a ser muito complicadas e a reacção é deste género: «Bom se ele não quer saber, não sabe e pronto!» E passa a saber muito menos coisas. Além de não saber aquilo que era o estado de espírito, passa a não saber também coisas [concretas] essenciais. 


José Manuel Barroso: 


 [...] Eu penso que o general Bettencourt Rodrigues (eu continuei a lidar com ele, não do modo como lidava com o Spínola, mas quase diariamente) tentou aguentar o que estava, não quis fazer grandes alterações, criar grandes problemas, grandes conflitos. Tentou aguentar o que estava em função das instruções que levava. 


Simplesmente, o que sucede, quando o general Bettencourt Rodrigues lá chega - e até pelo facto do general Spínola regressar à metrópole -, é que havia já um desencanto total em relação à evolução. 


Quer dizer, a própria retirada do general Spínola do terreno de operações (e do poder político na Guiné) significou, para a grande maioria dos oficiais, não só [para] os que conspiravam lá abertamente, quer fossem spinolístas ou não, mas também [para] os próprios milicianos, uma forma de dizer: «Isto não tem safa, tem que haver uma outra evolução qualquer». Ou: «O próprio Spínola já não tem qualquer hipótese e vai-se embora.» 


Pelo general Bettencourt Rodrigues, havia respeito, não era da «brigada do reumático». Mas ele era um corpo estranho.


General Mateus da Silva: 


[…] Bom, nós reunimo-nos na véspera [do 25 de Abril], estivemos até cerca da 1:00 hora, não conseguimos informação nenhuma de Lisboa, sobre se realmente tinha acontecido ou não alguma coisa. Nós tínhamos um centro de escuta no Agrupamento de Transmissões, que era óptimo. Escutávamos em permanência a Reuter e a France-Press, e tínhamos um tele-impressor ligado e apareciam as notícias em catadupa. 


Escutávamos todas as emissões de rádio dirigidas contra nós, desde a Rádio-Moscovo ao PAIGC, tudo. E todos os dias, era editado um documento, acho que era o Boletim Periódico de Rádio. São documentos que não sei se existem, se foram arquivados. E nós gravávamos, e transcrevíamos todas as emissões em português que eram dirigidas contra nós. Tínhamos as agências noticiosas e, antes de regressarmos a casa, nessa noite, avisei o oficial de dia, que era o alferes Rodrigues, para estar com muita atenção no centro de escutas, que podia acontecer qualquer coisa. 


Às 5 ou 6 da manhã, quando os tele-impressores da Reuter e da France-Press começaram a debitar as primeiras notícias, ele percebeu que realmente tinha acontecido qualquer coisa em Portugal. Telefonou-me logo para casa e eu avisei todos os outros pelo telefone e imediatamente soubemos o que se passava. Lembro-me de que o alferes Rodrigues até chorava a contar o que tinha acontecido. 


Isto foi a noite antes do 25 de Abril, e depois ia falar no dia 25 de Abril.


Quando nós tivemos as primeiras notícias do dia 25 de Abril, avisei o major Freire, que era o comandante da polícia e que também estava connosco (todos os comandantes das coisas importantes estavam envolvidos). 


E o major Freire diz-me assim: «Oh pá! Eu tenho de ir agora às 8 horas com o director da PIDE para a Ilha das Galinhas visitar os presos políticos. O que é que eu faço?» Eu respondi: «Oh pá! Só tens um remédio, vais!» 


Então, às 8 horas da manhã, ele foi para a ilha das Galinhas, com o director da PIDE. Passaram lá uma manhã estupenda, almoçaram, regressaram a Bissau e o director da PIDE não sabia rigorosamente de nada do que se estava a passar em Lisboa. 


Depois, reunimo-nos várias vezes para decidir o que é que fazíamos, o que é que não íamos fazer. E tentámos contactar com Lisboa, mas ninguém nos ligava nenhuma em Lisboa, estavam noutra. 


Ao fim da tarde, apareceu um telegrama do almirante Ferreira de Almeida, chefe do estado-maior da Armada, que,  apesar de ser um homem muito ligado ao regime, disse logo que, tendo o poder político mudado, a Marinha estava com o novo poder político. Tomou logo essa decisão, mesmo antes de ser substituído. 


O comandante naval em Bissau, comodoro Almeida Brandão, perante aquela mensagem, vai ao general Bettencourt Rodrigues, mostra-lhe a mensagem e diz-lhe: 


«Olhe, sr. comandante-chefe, passa-se isto… O chefe do Estado Maior da Armada já está com o 25 de Abril, o que é que o senhor quer fazer?» 


O Almeida Brandão também era um militar, digamos, democrata e aberto, e mandou uma mensagem para Lisboa a dizer que a Marinha na Guiné estava com o MFA. 


O general Bettencourt Rodrigues não tomava posição, estava à espera de receber instruções, e passou toda a noite assim. 


No dia 26 de Abril, logo de manhã, nós, este grupo que estava mais ligado, reunimo-nos no Batalhão de Paraquedistas, em Bissau, às 8.30h, a discutir o que havíamos de fazer. 


E foi nessa reunião que decidimos intervir e, digamos, fazer aquilo a que eu chamo um golpe militar em Bissau, que na altura não teria esta percepção, mas, a posteriori, considero que de facto foi um golpe militar. 


Discutiu-se quem ia ficar como encarregado do Governo, eu propus que fosse o secretário-geral, o dr. Libânio Pires, todos os outros acharam que devia ser eu, como militar mais graduado. Escolhemos o comodoro Almeida Brandão para futuro comandante-chefe, porque era o mais antigo e, além disso, tinha já tomado a decisão de mandar um telegrama para Lisboa, a dizer que aderia ao MFA. 

  [...] Às 9h (era feriado municipal em Bissau), fomos ao gabinete do comandante-naval, comodoro Almeida Brandão, convidá-lo a ser o nosso futuro comandante-chefe. Também tem piada porque, antes de destituirmos o governador, já estávamos a convidar o futuro comandante-chefe. 


O comodoro hesitou um bocado e disse que não podia aceitar. Nós até queríamos que ele também fosse logo connosco ao gabinete do Bettencourt Rodrigues. Recusou-se mas acabou por dizer que aceitava ser comandante-chefe. 


Em seguida, ainda passámos pelo Palácio do Governador mas ele não estava, estava no comando-chefe na Amura. Fomos então à Amura. Na altura, houve uma companhia da polícia militar que cercou o comando-chefe, e também havia tropas paraquedistas nossas que estavam ali à volta. 


Entrámos de rompante no gabinete do general Bettencourt Rodrigues, o ajudante meteu-se à frente e levou um pinhão que voou por ali adentro… A porta abriu-se de escantilhão e nós entrámos. 


Agora imaginem, do ponto de vista do general comandante-chefe, que vê um grupo aí de doze oficiais (###), entrarem-lhe assim pelo gabinete… 


Ele ficou logo desequilibrado psicologicamente. Quando falámos com o coronel Hugo Rodrigues da Silva, que era o intermediário de tudo com o governador, ele recriminou-nos por termos feito aquilo sem o informar primeiro. 


O brigadeiro Leitão Marques teve uma reacção perfeitamente despropositada, disse assim: 


«Meus senhores, hoje acabou a minha carreira militar, os senhores prendam-me, matem-me, fuzilem-me, façam-me o que quiserem.» 


Uma coisa perfeitamente dramática e despropositada. 


O general Bettencourt Rodrigues perguntou se estava preso, e este também é um aspecto que acho muito interessante. É evidente que ele estava pelo menos bastante coagido, mas eu disse:


 «Não, o meu general não está preso, simplesmente vai ao palácio, faz as suas malas e embarca hoje no avião para Lisboa.» 


E foi o que ele fez, mas muito civilizadamente. Eu tenho aqui fotocópias, está aqui um texto escrito mais tarde num jornal pelo general Bettencourt Rodrigues: 


«A perguntas minhas, aqueles oficiais acrescentaram que devia seguir para Lisboa nessa manhã, em avião que vinha de Luanda e sairia da Guiné em liberdade».


 Isto é dito por ele próprio e acaba com a polémica.  


O general Spínola já deu uma entrevista a dizer que o Bettencourt Rodrigues foi preso na Guiné, quando a verdade é que quem mandou prender o Bettencourt Rodrigues foi ele, Spínola. Porque quando Bettencourt chegou a Cabo Verde, teve de esperar por ligação para Lisboa, e teve de ficar um dia, ou coisa assim, e os elementos de Cabo Verde agitaram-se, falaram para Lisboa. E então veio um telegrama de Lisboa, da JSN [JUnta de Salvação Nacional ] , a dizer que o general Bettencourt Rodrigues devia regressar a Lisboa, sob prisão.

Do meu ponto de vista, foi o general Spínola, directamente ou alguém por ele, que prendeu o Bettencourt Rodrigues, o que tem a sua lógica, porque o general Spínola não podia com o Bettencourt Rodrigues, pois achava que tinha destruído a sua política da «Guiné melhor». [...]…

Luís Salgado Matos: 


Quando diz ao Bettencourt Rodrigues que não está preso, tem é de fazer as malas para voltar para Lisboa, o que é que ele responde?


General Mateus da Silva: 


Ele não respondeu, ele aceitou. Fez uma cena mais ou menos dramática, quase com as lágrimas nos olhos, a dizer: 


«Meus senhores, estão aqui os oficiais que mais considero na Guiné, os comandantes das principais unidades, fulano esteve ontem aqui sentado ao meu lado, a falar comigo, outro não sei que mais, eu não podia esperar jamais que me fizessem uma coisa destas, estou profundamente magoado.» 


Foi mais ou menos esta a reacção dele. […]


Coronel Matos Gomes: 


Só houve três oficiais que se solidarizaram com ele, o Leitão Marques, o coronel Rodrigues da Silva e, posteriormente, na sala de operações, o coronel Vaz Antunes. 


General Mateus da Silva: 


Eu acho que foi um mal-entendido, porque o Leitão Marques era um homem democrata e nós até gostaríamos que fosse ele a substituir o Bettencourt Rodrigues. Nós saímos do gabinete do general Bettencourt Rodrigues e dirigimo-nos à sala de operações. Como era feriado, o briefing era às 10h e, quando avança aquele grupo comigo à frente, na sala de operações, falando como as coisas são e se passaram, eu senti imediatamente que os coronéis e outros oficiais mais graduados do que eu me abriram alas e me cumprimentaram logo com toda a deferência. 


Entrei na sala de operações e sentei-me na primeira fila, no lugar do general Bettencourt Rodrigues. Antes de me sentar expliquei o que é que se passava e foi nessa altura que o coronel Vaz Antunes disse que não podia aceitar uma situação destas, que estava solidário com o general Bettencourt Rodrigues. E o Almeida Brandão virou-se para ele e disse:


 «Se está solidário, saia!» 


Já o Almeida Brandão a assumir-se como comandante-chefe. E depois teve lugar o briefing com toda a naturalidade. 


Às 3h da tarde, depois de uma grande informação pela rádio, tomei posse como encarregado do Governo. Antes de tomar posse, chegou ao nosso conhecimento a directiva da JSN, dispondo que nas províncias de governo simples o governador devia ser substituído pelo secretário-geral. Então pôs-se a dúvida se eu tomaria posse, ou daria posse ao dr. Libânio Pires e até à última hora estivemos em contacto com Lisboa, que acabou por aceitar: «Está bem, pronto então toma posse.» 


Isso foi de tal maneira que eu pedi ao José Manuel Barroso para me escrever o discurso que eu diria no caso de não tomar posse. Nunca o pronunciei, mas está aí escrito com a letra dele e pelo punho dele. Tomei posse, mas isso foi o próprio MFA da Guiné que decidiu, contrariamente à JSN. 


Manuel de Lucena: 

Da JSN, quem deu o aval à sua posse? 


General Mateus da Silva: 


Não foi ninguém, foi um intermediário, foi um dos oficiais que gravitava ali à volta, não me lembro exactamente quem foi. Aliás ouvia-se muito mal, as comunicações telefónicas eram muito más, confesso que não me lembro.  [...] (#)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, notas, para efeitos de publicação deste poste: LG)

 _____________

(#) Atual endereço do sítio do AHS - Arquivo Histórico Social, ICS/UL

(##) Vd. também aqui o depoimento de J. Sales Golias [n. 1941] , ten cor > A descolonização da Guiné: Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra / Fórum dos Estudantes da CPLP, Coimbra, 30 de Abril de 2005 

(###) O Jorge Sales Golias  fala em onze:

Lista dos Oficiais revoltosos (##);

TCor Mateus da Silva, Engº Tm | TCor Maia e Costa, Engº | Maj Folques, Cmd | Maj Mensurado, Pára | Cap Simões da Silva, Art | Cap Sales Golias, Eng Tm | Cap Matos Gomes, Cmd | Cap Batista da Silva, Cmd | Cap Saiegh Cmd, (Africano) | Cap Ten Pessoa Brandão, Armada | Cap mil José Manuel Barroso
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25076: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bubaque, em 1969... "O antigo governador Schulz ia lá de vez em quando, com outros militares e algumas mulheres. O atual governador nunca lá esteve morado. Foi só visitar."...


Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 1978  >  O "Palácio do Estado" (hoje, 2024, em completa ruína)... Edifício da época colonial, de arquitetura alemã,conhecido também como "Palácio do Governador"... Do lado esquerdo,  uma outra casa que terá sido construida, para efeito de lazer,  para os oficiais superiores portugueses...  ("Foto tirada pelo médico cirurgião Dr. Luís Tierno Bagulho em 1978, como cooperante, já falecido"). Cortesia de Patrício Ribeiro (*)


Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > Dezembro de 2023 > O "Palácio do Estado" "ou "Palácio do Governador", hoje uma total ruina...


Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


ORGANIZAÇÃO, FORNAÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA
2-12-69
Audição de camaradas vindos de Bijagós
(A láspis,no alto da folha,está escrito: "Informações recolhidas pelo camarada Vasco Cabral")


(...) BUBAQUE não tem quartel. Tem lá padres italianos (2) e co-
merciantes cabo-verdianos, que são 4. Um deles, sabe-se de certeza
que é contra o Partido e está como empregado encarregado da
Casa Gouveia em Bubaque. A loja da Gouveia vende tecido, compra
coconote, compra óleo de palma. Vende também arroz.
 

Há 3 tugas que trabalham na fábrica de extração de óleo de 
palma. Esta fábrica pertenceu em tempos aos alemães. Esses
tugas estão armados com armas de defesa pessoal - pistolas.
Estão em Bubaque uns 10 cipaios que se enontram armados 
de carabinas Mauser, mas só usasm as armas em momentos
de serviço. O serviço de vigilância é montado poe 2 cipaios : um que circula 
na ilha eoutro que monta a guarda à Administração. Drante o
dia não usam armas no seu serviço. De noite usam as armas.
Por volta das 10h da noite o cipaio da guarda à Administração
custuma ir dormir. Mss o cipaio que vigia a iha faz  ua roda
até de manhã.

De uma maneira eral as pessoas da ilha são favoráveis ao Partido.







ORGANIZAÇÃO, FORNAÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA
3-12-69
Audição de camaradas vindos de Bijagós

(...) 2. BUBAQUE - Está contra o Partido um comerciante cabo-verdiano de     
[nome 
Juca Ferraz que pertence à Pide. Também pertence  à
à Pide um outro empregado cabo-verdiano de nome Alberto
dos Santos.

Cada cipaio trabalha 24 h seguidas: das 7h da manhã de um 
dia às 7h da manhã do dia seguinte.

As tabancas grandes têm um nº de pessoas que oscila



entre 600 e 1 000.

Há um outro elemento favorável ao Partido e que ouvia frequente-
mete as nossas emissões. Trata-se de Luís de Barros, empregado da Casa
Espinheiro [? ] .

Há carreiras turística de avião e de barco que vêm de Bissau para
gente visitar as praias ao fim de semana. Em geral, trata-se de oficiais do Exér-
cito português que aí vão com as suas famílias. Às vezes, alguns, aproveitando
o tempo de férias ou gozando um certo tempo de licença, permanecem 15 dias e
até um mês. Existe em construção ainda uma casa destinada a albergar esses
oficiais. Trata-se de um edifício em  3 blocos, cada um com uns 4 quartos,
o que perfaz um total de 12 quartos. Situa-se à beira-mar.

Há também cerca deste edifício a casa do Governador da Guiné que já
está pronta. Trata-se de uma casa grande com 4 grandes quartos, também


está na praia. O antigo governador Schultz  [sic, Schulz ]   ia lá 
de vez  em quando,
com outros militares e algumas mulheres. O atual governador nunca lá
esteve morado. Foi só visitar. (*)

Uns aspirantes [cadetes ] da Marinha, um grupo vindo 
de  Portugal,  comeram  lá perto por altu- 
ras do mês de março e abril. Comeram numa pensão à beira-mar que é des-
tinada aos turistas e que foi construída pelos alemães. Esta casa pertence
ao Estado, mas é explorada comercialmente por um tal Teodoro Romano Pe-
reira.  Há ainda mais 2 casas semelhantes a esta, que pertencem ao
Estado e onde moram os empregados portugueses da Fábrica de Extração de
Óleo de Palma, em nº de 3, havendo um outro ainda de nome Lourenço de Pina.

  [ Seleção, edição,  transcrição, revsão / fxação de texto, parênteses retos: LG ]

Citação:
(1969), "Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41391 (2024-1-16) (Com a devida vénia...)

Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07073.128.006 | 
Título: Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós. | Assunto: Informações de carácter militar, extraídas da audição com os "camaradas" vindos dos Bijagós, sobre Soga, Bubaque, Formosa, Uno, Caravela, Orango, Orangozinho, Canhabaque, Galinhas e Uracane. Organização e formação política e ideológica dos Bijagós, manuscritos por Vasco Cabral. | Data: Terça, 2 de Dezembro de 1969 | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios 1965-1969. | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Documentos.

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 15 de janeiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25073: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (32): Os encantos e os mistérios da ilha deBubaque (incluindo o "Palácio do Governador", hoje em total ruína, onde o PAIGC quis matar Spínola)

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24881: Notas de leitura (1636): "A Última Lua de Homem Grande", por Mário Lúcio Sousa, romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, Maio de 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de um lançamento recente, recebo das editoras livros solicitados para fazer recensões, que envio para a imprensa escrita. Contudo, tratando-se de matéria que a todos interessa no nosso blogue, atrevo-me a pôr à vossa disposição esta recensão. Romance é romance, Mário Lúcio Sousa é nome conceituado da literatura cabo-verdiana e nosso orgulho na lusofonia, resolveu, em termos de arquitetura da escrita, fazer um registo ficcionado, com muitos dados plausíveis e confirmados, outros puramente fictícios, do último dia de vida de Amílcar Cabral, como num filme rebobinado somos induzidos a percorrer a sua vida, da infância à morte, os seus amores, os seus ideais, as suas desilusões. Pouco apreciador do acolhimento de inverdades, hoje sem qualquer sentido, como a ligação portuguesa ao seu assassinato, de que não ha uma só folha comprovativa de ligação ao complô guineense, rendo-me a esta linguagem portentosa, os sabores de África, a mestria de compor, recompor, torcer e distorcer para que as palavras ganhem vibração e luminisciência, recomendo vivamente esta leitura.

Um abraço do
Mário



Um belíssimo romance, a crónica de uma morte anunciada

Mário Beja Santos

Não há escritor que não seja tentado em comprimir num dia do calendário a vida de um homem, casos há em quem se lança em tal empreendimento produz revolução na escrita, foi o que aconteceu com James Joyce e o seu "Ulysses". Mário Lúcio Sousa também não quis fugir a esse desafio da compressão do tempo e forja a vida de Amílcar Cabral no dia em que passou ao limiar da eternidade, 20 de janeiro de 1973, data do seu assassinato, e assim temos "A Última Lua de Homem Grande", romance finalista do Prémio Leya, publicações Dom Quixote, maio de 2022.

É um enternecimento imiscuirmo-nos em arquitetura só possível na lusofonia, Mário Lúcio Sousa vem na esteira de outros mestres, como Luandino Vieira, Manuel Rui, Pepetela, Paulina Chiziane ou Mia Couto, que nos ensinaram que a língua portuguesa é desdobrável, pode ser desossada e enxertada de sangue novo, há lavores da sua escrita em todos os continentes, não se pode falar de Amílcar Cabral, um construtor de países, dispensando a matriz cabo-verdiana, nem os referentes daquele território em que se viveu uma tenaz luta armada, tão bem sucedida que ajudou a preparar a libertação de povos, a começar pelo colonizador.

O líder está em Conacri, é visível o seu cansaço extremo, obra do romance antevê ser o seu último dia, cogita diante do espelho: “É hoje que me matam, só me falta saber a hora, o lugar, quem vem, e se me tratarão melhor do que um cão”. Não teme o dia fatídico, por fantasia da escrita, o líder do PAIGC, a quem um coletivo de historiadores de todo o mundo reconhece-o como um dos 20 maiores líderes da História da Humanidade, tem pela frente uma derradeira tarefa, “talvez a mais pessoal, escrever os últimos acontecimentos, na fé de que o universo também conspire e, um dia, lhe traga um imparcial e amoroso cronista, para compendiar todas as alegrias, os sofrimentos, os altos e baixos, as traições e as cumplicidades, as verdades e as desmentiras, para que as gerações vindouras possam conhecer a verdadeira história deste homem e o verdadeiro homem desta história. É tudo quanto almeja”.

Adverte-nos o autor que o romance não é um livro de História, “Verdade é tudo aquilo que o autor consegue provar; no romance, verdade é tudo a que o escritor teve acesso”. E diz estar documentado, mas romance é romance, e neste até se poderão proferir insinuações sem base nenhuma, é ressuscitado o mantra do conluio dos matadores com os portugueses, pôde dar jeito nos tempos subsequentes ao assassinato, hoje, com os arquivos disponíveis, nada consta das propaladas ligações, Spínola não mandou matar, Spínola só dispunha das informações do que se passava em Conacri, a crescente crispação entre guineenses e cabo-verdianos, informações que constam dos arquivos da PIDE/DGS, não há nenhum documento nos arquivos do Ministério da Defesa ou do Ultramar, é rotunda mentira que a Marinha portuguesa aguardava a chegada de um barco com os líderes do PAIGC no limite das águas territoriais da Guiné-Conacri.

E como o próprio romance dá conta que estavam envolvidos, direta ou indiretamente, centenas de guineenses, há quem chegue ao cúmulo do disparate de dizer que Momo Touré era o coordenador do complô, complô esse que o próprio autor diz ser um mistério de quem era o mandante, fizeram-se inquéritos, “testemunharam os embaixadores: uma amnésia corrosiva caiu sobre as Guinés, as páginas da inquirição desapareceram, as gravações foram apagadas, os presos foram a bando dados à guerrilha”. Novo inquérito, coordenado pelo PAIGC, o povo perguntou-se para quê mais um se já se sabia quem morreu, quem matou, quando foi e onde. “Mas, o mesmo povo, revoltado e atento, concluiu que sim, que era mistério saber quem eram os assassinantes de punho e letra, porque os carrascos nominados tinham cérebro para matar, mas ciência para argumentar e esconder uma morte não, nem de uma folha, nem de um bicho, quanto menos de um homem que, vivo, era uma lenda e, morto, estava a galopar sem precedente para o seleto limbo dos espíritos sapientes”.

É a crónica de uma vida, dentro desta simulação de que Amílcar Cabral pressagiava tal morte anunciada, é a sua infância, a adoração pela Mãe Iva, como estudou afincadamente em Cabo Verde e ganhou bolsa para Lisboa, com quem aqui conviveu e os seus dilatados amores por Maria Helena, o seu trabalho na Guiné, e até se inventa que dela foi expulso, elemento útil para martirológio, mas nada comprovado, e depois o sonho de libertar Guiné e Cabo Verde, os desafios postos por Conacri pelos partidos rivais, a fundação da Escola Piloto, a preparação dos guerrilheiros, a chegada do armamento, o líder grato pelo acolhimento de Sékou Touré, de repente aparece-nos o responsável pela segurança, Mamadu Ndjai com a preocupação de avisar o major Silva Pais, pois os insurretos dele receberam algures um plano para fazer desaparecer Cabral sem deixar manchas, outro delírio incomprovado, mas que cabe bem na trama do romance. As horas escoam-se, somos instados a acompanhá-lo na sua vida familiar, com a sua mulher e os seus filhos, nesse entardecer o casal irá a uma receção na Embaixada da Polónia.

Súbito, já estamos 8 meses depois do seu assassinato, lá para as bandas do Boé há a cerimónia da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, uma das etapas do plano elaborado por ele para encostar definitivamente a potência colonial à parede. E nesta sarabanda de datas estamos no fim do ano de 1973, como habitualmente ele discursou e anunciou o futuro, é um livro que se intermeia de profecias, de avisos, de solilóquios, há até uma misteriosa agenda azul digna de uma intriga da literatura de crime e mistério, jamais se saberá o seu conteúdo, mas fica no ar a sugestão de que ela continha, qual profecia, a matéria do complô e o rol dos matadores e quem coordenava a operação, hoje investigação insondável, tudo parece rasurado e muito provavelmente o(s) cabecilha(s) viajam pelas estrelas.

É uma empolgante viagem de vida, já estamos na receção da Embaixada da Polónia, fazem-lhe perguntas atrevidas, em flashback ele rememora o período em que se pedia a gente amiga armamento, a chegada deste vindo de Marrocos a Conacri e o pânico que se instalou em Sékou Touré de que era armamento para o derrubar em golpe de Estado.

E como na tragédia grega somos encaminhados para o palco do seu assassinato, à porta de casa, é uma narrativa de fúria a que se interpola recordação daquele líder que vai morrer e que amava as crianças, lembra os amores que teve na vida, só espera que os matadores não lhe matem o povo que ele quis libertar, sabe que carregou uma cruz, andou a amainar a divisão entre os guineenses e os cabo-verdianos, está varado no chão com o primeiro tiro, despede-se da vida em vertigem, é um filme que por ali passa, e antes do tiro fatal recita em silêncio o poema que dedicou à Mãe Iva, constante do livro de curso de Agronomia, é o momento do desenlace: “O soldado Bacar dá mais um passo seco para trás. Ele, Homem Grande, sustém o fôlego. O soldado ombreia a arma. Ele, Homem Grande, levanta a cabeça, despede-se do seu amor, dos seus amores”.

A um belíssimo romance como este muito se pode perdoar de insinuações e de mantras que só podem ser úteis na ficção. E Amílcar Cabral é merecedor desta joia literária da lusofonia.

Mário Lúcio Sousa
Amílcar Cabral, pintura de Noronha da Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24868: Notas de leitura (1635): Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana: Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24839: Notas de leitura (1632): "No Limiar da Guerra", por José Manuel Barroca da Cunha; RARO, Tomar, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Já sabemos que aquele ano de 1961 foi caracterizado por muita ação subversiva, por um lado Rafael Barbosa ia encaminhando centenas de jovens para Conacri e daí para a formação militar, eram distribuídos panfletos, agiam vários grupos políticos, rivais ferozes do PAIGC. Um deles, constituído por Manjacos residentes no Senegal, orientados por François Mendy, provocará alguma turbulência em São Domingos, Suzana e Varela, e mais tarde juntos dos madeireiros da região Norte, foi tempestade de pouca dura. Mas é verdade temos inventariados documentos que abonam as hostilidades a partir do 2º semestre de 1962, na região Sul, que entra numa verdadeira efervescência, não havia de facto um romance como este, descrito por alguém que desembarcou do navio Alfredo da Silva no cais do Pidjiquiti em 19 de fevereiro de 1961. O autor assegura que esta história é muito real, é um ribatejano que se radicou na região tomarense, figura muito estimada pela sua dedicação às atividades desportivas, a um verdadeiro benevolato. Bom seria que Barroca da Cunha, que parece estar cheio de genica, entrasse na nossa tabanca grande e nos contasse tudo quanto viveu entre 1961 e 1963.

Um abraço do
Mário



Um tomarense de coração que chegou à Guiné no limiar da guerra

Mário Beja Santos

Barroca da Cunha é natural da Praia do Ribatejo mas vive há décadas em Santa Cita. Segundo o autor, o livro baseia-se em factos reais, chegou a bordo do navio Alfredo da Silva a Bissau em 19 de fevereiro de 1961, ano já de grande efervescência subversiva, o núcleo do PAIGC coordenado por Rafael Barbosa já está a recrutar muitos jovens que vão para Conacri ou já partiram para a formação revolucionária armada, nesse mesmo ano grupos de etnia Manjaca procurarão atacar a povoação de São Domingos, com pouco sucesso, e vandalizarão em Suzana e Varela, manter-se-ão ativos a aterrorizar na fronteira norte, nada tinham a ver com o PAIGC. Barroca da Cunha encontra no cais do Porto de Bissau um amigo de longa data, ele é natural da Guiné, é o grande homenageado neste livro.

Tudo começa no Colégio Nun’Álvares de Tomar, fazem amizade Simão Galhardo, alentejano do Crato, ligado a uma família de grandes proprietários, com António Jorge Barbosa Gonçalves, o Tojó, natural da Guiné. Temos aqui a narrativa de dois jovens nascidos à volta de 1940 a viver em internamento, iremos saber as razões por que a família de Simão lhe impôs tal castigo, houve para ali uma série de aventuras amorosas com a empregada Rosinda que vivia com o Joaquim Pinoia enquanto este fazia a tropa num quartel do norte, o Simão tem tal castigo que nem aos fins-de-semana pode ir a casa, ora a sua amizade com o Tojó agradou à família, este agora é visita regular ao Crato, temos a descrição dos bailes e festas como era prática do tempo, aqueles dois amigos quase inseparáveis andam sempre na folia. O pai de Tojó é um colono um tanto diferentes dos outros, trata os seus trabalhadores indígenas com muita dignidade, os outros colonos não gostam de tais liberalidades.

Estes jovens de 20 anos vão parar à Guiné, Simão não quer cunhas dos pais junto dos governantes, Tojó tem saudades dos pais e da irmã, vamos ver o seu enquadramento na vida militar de Bissau, há muito marasmo, desconhecimento da dura guerra que se avizinha, o armamento é mais do que antiquado, ambos fazem amizades, Simão vive na mesma casa com Trigo Vargas, um franzino que enjoou durante toda a viagem, dá gosto ler estes frescos de alguém que reteve conversas possíveis entre jovens, sempre prontos para o bailarico, é nisto que entram em cena dois agentes da PIDE que têm como missão aperceber-se se junto daquela tropa branca há comunistas a trabalhar junto do descontentamento ou a aliciar outros jovens. Aparece também uma médica de família goesa, a delegada de saúde, uma trintona amadurecida, que se atira a Simão Galhardo, a relação não faiscou. A trama do romance traz para o tempo presente gente do passado, Rosinda casou com um dos PIDES, o agente Saraiva, Rosinda tenta reatar a relação com Simão, este nega-se a infidelidades, Rosinda promete vingança, Joaquim Pinoia tem o seu negócio, sente-se feliz com a mulher e filhos. O chefe dos PIDES alerta os seus agentes para a importância dos cabo-verdianos, é gente com maiores conhecimentos académicos, estão nos lugares do topo, cuidado com eles, é preciso muita vigilância.

Simão dá-se bem com o major Frutuoso, o seu chefe, natural de Alpalhão, é o seu ajudante, têm que preparar informações sobre o que se está a passar na Guiné. Os amigos encontram-se com muita regularidade, há inclusivamente um comissário daquele navio que trouxe Simão que quando vem até Bissau é uma gostosa companhia, as reuniões entre PIDES prosseguem, há festas para aqui e para ali, os agentes confessam ao chefe local da polícia política que aqueles militares é tudo gente inocente, falam unicamente de garotas, bailes e de fugazes encontros, o chefe exige persistência, há perigos que se avizinham. E abruptamente tudo se altera, lá no grupo há quem fale que houve baladas, está presente um agente da PIDE, Trigo Vargas será detido e bem maltratado, surpreendentemente irá fugir para o Senegal e acompanhado. No norte da Província alguém foi degolado, há deserções, desapareceram armas. Simão veio de férias, o seu amigo Tojó informa-o do que se está a passar com Trigo Vargas, Simão será interrogado pela PIDE, é uma dimensão interessantíssima deste livro os interrogatórios a que ele vai ser sujeito, fala-se em livros e revistas proibidos, música do Zeca Afonso, Simão completamente siderado com os aspetos disparatados das perguntas, iremos a saber que Rosinda também mete o seu veneno e iremos ser surpreendidos quando aparecer o nome do chefe.

A agitação no Norte, aquelas deserções e o cabo degolado levam a que se mande um pelotão para a fronteira com o Senegal, o major, Simão e Tojó viajam para ter conhecimento do que ali se passa, vão no jipe, haverá para ali uma perseguição, um militar impreparado pega numa pistola-metralhadora FBP e acidentalmente atinge Tojó, Simão esforça-se por o manter vivo e vêm à procura de ajuda no hospital de Bissau, nesse tempo o hospital militar ainda está em construção. Se a viagem para cima não fora fácil, o regresso foi pior, só havia alcatroado até Mansoa, a picada sofria as consequências da época das chuvas, foi o cabo dos trabalhos, Tojó morrerá no hospital, Simão revela-se inconsolável.

Caminhamos para o termo do romance, temos as exéquias de Tojó na Sé Catedral, um mar de gente acompanha-o até ao cemitério, negros simples prestam-lhe a sua homenagem, nas melhores vestimentas de cores aguerridas, compareceu o Governador, o Chefe de Estado-Maior, o Presidente da Câmara de Bissau, o Gerente do BNU. No regresso o major Frutuoso conversa com Simão: “De uma vez por todas, é necessário que se alerte de forma firme quem toma decisões. O aviso está feito, já houve mortes, os indicadores de todas as guerras. Esta última ainda não se apresentou muito a sério, mas não tarda a guerra, ela chegará. É preciso organização, preparação. Que todos se consensualizem que é preciso ação, é preciso atuar.” E deixa no ar que a única maneira de honrar Tojó seria a de evitar que muitas mais se deem. Que a morte do Tojó não tenha sido em vão. É este o surpreendente teor do romance de Barroca da Cunha, um tomarense de coração que assistiu ao limiar da guerra da Guiné.
Barroca da Cunha a assinar o seu livro No Limiar da Guerra, em 31 de março passado, na Secção Regional de Tomar do Sindicato dos Bancários
A Associação Cultural e Recreativa de Santa Cita atribuiu o nome de Barroca da Cunha ao Pavilhão Polivalente
Lançamento do livro No Limiar da Guerra, na Informação da Associação dos Pupilos do Exército
O arquiteto Schiappa Campos a mostrar a Felupes o catálogo de fotografias A Família do Homem. O registo data do seu trabalho na Guiné entre 1956 e 1960. Imagem doada pelo autor ao Instituto de Investigação Científica Tropical em 2014 e apresentada na exposição “Moranças - habitações tradicionais da Guiné Bissau”, que decorreu no Museu Nacional de História Natural e da Ciência
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)