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domingo, 26 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20904: (De)Caras (157): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VI: Uma foto intrigante, com uma reprodução da "Guernica", de Picasso, tirada na sala de jantar, pelo alf mil médico Manuel Valente Fernandes, CCS / BCAV 8323 (1973/74)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1973/74 > BCAV 8323 (Pirada, 1973/74) > "Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1973. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu, à direita)"...

O nosso camarada C. Martins, que também é médico, em comentário de 19/10/2012,  foi o primeiro a chamar a atenção para a reprodução que está na parede: " Mesa farta, contraste volumétrico entre dois comensais, e o quadro de parede é tão só a "Guernica" de Picasso e por fim são servidos por um 'empregado'  de mesa a preceito. Para os padrões da Guiné..é obra. Ganda sortudos" (*)

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O autor da foto, o  Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico da CCS/BCAV 8323 (Pirada, 1973//4) , é membro da nossa Tabanca Grande desde 17/10/2012.



Pirada, abril de 1964, o Mário Soares, ao centro,ladeado
pelo  alf mil António Pinto, `sua direuta; e o alf méd

médico (e  intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes
 (1933-2012), à sua esquerda. 
Foto: António Pinto (2007)

Na foto, acima,  aparece o Demba, o criado, todo bem "afiambrado, já citado em 1964&65, pelo Carlos Geraldo... O anfitrião,  comerciante Mário Soares, deve ter sido o fotógrafo...

Através do Carlos Geraldo (**) , que o conheceu e privou com ele, a partir de 15/10/1964, sabemos que o Mário [Rodrigues] Soares era um bom copo e um bom garfo, sabia receber bem, adorava receber na sua casa os oficiais milicianos (e, eventualmente, capitães e oficiais superiores)  era Lisboeta, teria ido para a Guiné em finais dos anos 50, princípio dos anos 60, por causa de "problemas financeiros" (sic), tinha esposa, duas filhas e um filho, adolescentes (em 1965) (um deles, o rapaz, a estudar em Lisboa), era um civil com cultura acima da média, tinha gira-discos e discos em casa, além de um máquina de projetar cinema (, nºão sabemos de 8 0u 16 mm),,, E, claro, um gerador. 

Intrigante, porque deslocada, é esta "reprodução" da Guernica, de Pissau, um quadro gigantesco, a óleo, pintado em 1937, que se tornou um ícone da paz e da denúncai da guerra e do genocídio...

O Mário Soares, c. 1973/74.
 Foto de Manuel  Velente Fernandes
"Agente duplo", informador tanto da PIDE/DGS como do PAIGC ?... Não temos elementos conclusivos...

Curiosamente, na sua apresentação, o Manuel Valente Fernandes não qualquer referência a um eventual protagonismo do Mário Soares no processo de retração do dispositivo militar e na transferência do aquartelento para o PAIGC, em agosto de 1974... Nem sabemos se ele lá estava nessa altura. O médico nem sequer cita o seu nome, a propósito desses acontecimentos

(...) Obviamente tive vivências semelhantes a qualquer dos camaradas que estiveram neste TO. Do que me ficou ressalto:

(i) A experiência da intensa solidariedade que se gerou entre os camaradas que vivenciaram juntos o risco de vida de cada um e a permanente entreajuda, isto durante largos períodos. Materializa-se actualmente na emoção dos encontros de antigos camaradas (o meu batalhão mantém estes encontros).
(ii)  As perturbações na saúde mental de tantos camaradas. Tive a experiência de dois dos nossos que manifestaram psicoses agudas (um militar da CCS e outro da 1ª Companhia, em Bajocunda), ambos felizmente com bom prognóstico após a evacuação.

(iii) A vivência da paz: aqueles almoços entre membros do batalhão e membros do PAIGC, no período que mediou entre o 25 abril e 25 agosto 1974 (regresso a Bissau), durante o período de retração do dispositivo. Aquele convívio com os ex-inimigos não se esquece, incluindo as conversas respeitantes à ideologia política, um tema então tão apetecido pelos jovens milicianos portugueses. (...) (*)



Mário Soares > Pirada >
14/2/1974. Foto: António
Rodrigues  (2015)
2. Será que o Mário Soares foi mesmo preso, a seguir ao 25 de Abril, de acordo com a informação do médico José Pratas ? (**P) 

Não tenho aqui, em meu poder,  o livro, "Senhor médico, nosso alferes: Guiné, os anos de guerra" (Lisboa, By the Book, 2014). O Beja Santos, que  fez aqui, no blogue,  um  recensão dessa obra,  escreveu o seguinte:
 
(...) "Em Pirada, tinha um agente da PIDE na vizinhança, bom para seviciar e intimidar, o Carvalho, substituído pelo senhor Pereira que tinha farroncas mas com as flagelações termia como varas verdes.

"Também em Pirada vivia Mário Soares, com quem Pratas conviveu, pode aperceber-se como o Soares intermediava entre o PAIGC e as autoridades portuguesas, houve encontros secretos à mesa da sua sala de jantar ou no respaldo das cadeiras de lona. Tinha acesso privilegiado às informações da PIDE, ascendente junto das redes de informadores locais, geria com astúcia o assédio e a adulação das autoridades locais. Reflete sobre o drama deste protagonista entre dois campos em confronto".

E cita o autor, José Pratas:

“O tempo corria em seu desfavor, porque a guerra no terreno se perdia em cada dia que passava e era facilmente previsível a derrota da teimosia de Lisboa. No seu relacionamento com a tropa, este europeu, porventura o branco mais africano que conheci, só a muito custo conseguia refrear os impulsos beligerantes das chefias militares, sedentas de ação, indisponíveis, por dever de ofício, para tolerar diplomacias paralelas de que muitas vezes é feita uma guerra de guerrilha”.

"E veio a independência e mais problemas para Mário Rodrigues Soares", de acordo com a versão do José Pratas:

(...) “Poucos dias depois seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo, o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. 

Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...) (***)


3. A historiadora Maria José Tíscar, no seu livro "A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas"( Lisboa, Edições Colibri, 2017, pp. 191/192), revela a identidade de dois comerciantes portugueses, que terão sido "informadores da PIDE" na Guiné, um deles o comerciante Rodrigo José Fernandes Rendeiro, que alguns de nós conhecemos em Bambadinca. 

Das conversas da autora com o antigo inspetor Fragoso Allas, vem à baila um outro nome,  o do Mário Soares, estabelecido em Pirada,

Contrariamente ao Rendeiro, que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares teria ficado na Guiné-Bissau, após a  independência. Mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975.(****)

O inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, entrevistado pela Maria José Tíscar, não deixa dúvida sobre a "duplicidade" do papel do Mário Soares que, legal e formalmente, nunca foi agente da polícia política. Cito o Mário Beja Santos (***);

(...) "A sua [de Fragoso Allas] grande preocupação era montar uma rede de informadores na Guiné, depois de ter avaliado a situação, reorganizou o gabinete do centro de cifra, seguiu-se a rede de informadores, os postos mais importantes da DGS estavam perto do Senegal, era o caso de Pirada, Bigene e Guidage, para a Guiné Conacri só havia o posto de Buruntuma. Explica a importância de Pirada [, as palavras do Fragosos Allas]:

“Estava localizado mesmo junto à fronteira com o Senegal. O posto estava dentro da casa de um comerciante. O agente da DGS ali colocado vivia dentro da casa do tal comerciante. Mas o que sucedia na prática era que o comerciante era mais agente da DGS que o próprio agente; 90% das vezes era o comerciante que atendia o rádio. Converteu-se num agente duplo. 

"O comerciante chamava-se Mário Soares. Era habilidoso, tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. O Mário Soares era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las. 

"As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles. Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”.

No Arquivo Amílcar Cabral não há referências ao comerciamte Mário Soares. E os ataques a Pirada muito provavelmente ele não os sabia com antecedência, por via do PAIGC. Tenho de falar pessoalmente com a investigadora Maria José Tíscar (, que conheci em fevereiro passado) e com o médico José Pratas, para saber qual o fundamento de cada uma das suas versões, nomeadamente no que diz respeito ao "fim da história".

Quer tempo caído em desgraça, a seguir ao 25 de Abril (segundo José Pratas), ou tenha ficado na Guiné, no tempo do Luís Cabarl (, segundo Maria José Tíscar), em recompensa pelos seus "pequenos favores" ao PAIGC (para logo a seguir, em novembro de 1975, ser expulso). a história deste homem parece confirmar o velho ditado popular: "Não se pode servir a dois senhores!"... A duplicidade, em tempo de guerra, é sempre um jogo perigoso.

[De qualquer não tendo aqui o livro à mão, recomenda-se a sua leitura, e em especial o capítulo dedicado à Guiné: A PIDE no Xadrez Africano: Angola, Zaire, Guiné, Moçambique (Conversas com o Inspetor Fragoso Allas) (2ª Edição).  de María José Tíscar, edição: Edições Colibri, janeiro de 2018 ‧ isbn: 9789896896799]

 ____________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20898: (De)Caras (129): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte V: Quando fui a Pirada, em DO-27, em 2/5/1972, levar o inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, a Pirada, para conversões secretas com os senegaleses... A 18 desse mês, Spínola encontra-se com o Senghor, em Cap Skiring (Gil Moutinho, ex-fur mil pil, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

Vd. postes anteriores da série:

21 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20884: (De)Caras (128): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte IV: Versões contraditórias sobre o "resto da história" deste português, de quem o ex-alf mil médico José Pratas (, BCAV 3864, Pirada, 1971/73) disse que foi "porventura o branco mais africano que conheci"

18 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20867: (De)Caras (127): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte III (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


(***) Vd. postes de: 


(****) Vd. poste de 3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17929: (D)o outro lado do combate (16): O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP , permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dandum, segundo Maria José Tístar, autora de "A PIDE no Xadrez Africano: conversas com o inspetor Fragoso Allas", Lisboa, Colibri, 2017 (pp. 191/192)

sábado, 25 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20898: (De)Caras (156): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte V: Quando fui a Pirada, em DO-27, em 2/5/1972, levar o inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, a Pirada, para conversões secretas com os senegaleses... A 18 desse mês, Spínola encontra-se com o Senghor, em Cap Skiring (Gil Moutinho, ex-fur mil pil, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1973/74 > "Na casa do célebre senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano".

Um dos alferes era Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, membro da nossa Tabanca Grande desde 17/10/2012. (,. o segundo, do lado esquerdo). Do anfitrião (o primeiro, a contar da direita) sabe-se que gostava de (e sabia) bem receber, qualquer que fosse as suas motivações. O nosso camarada Gil Moutinho reconheceu, de imediato, esta mesa, à volta da qual esteve sentado em 2/5/1972, comendo do bom e do melhor, enquantoi o patrão da PIDE/DGS, e homem da confiança de Spínola, conferenciava com o Mário noutro aposento... Pequena história da História Grande...

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do  Gil Moutinho (ex-fur mil pil,  BA12, Bissalanca,1972/73); um dos régulos da Tabanca dos Melros,  Fânzeres, Gondomar) (*):

Ao ver a foto e a mesa, parece irrelevante, mas vi-me sentado ao seu redor e na altura, a 2 maio de 1972, chamou-me bastante a atenção, uma rodela de um tronco enorme e muito bem decorada com tudo do bom e melhor, o melhor presunto, outros enchidos, as melhores bebidas e muito mais.

Pois, na data acima, a minha missão foi transportar de Bissau o chefe da PIDE/DGS, o Fragoso Allas para Pirada,  passando por Bambadinca na ida e regresso, talvez levando alguém de lá.

As peripécias desse vôo estão contadas no poste 1040 do blogue dos especialistas da BA12. (#)

Não tendo passado para o lado do Senegal por sorte (nem um mês de comissão eu tinha!), lá aterrei e aguardei que os passageiros conferenciassem com o Mário Soares. e,  nos entretantos, fui obsequiado principescamente na famosa mesa e durante umas horas.

De facto o homem [, o Mário Soares, de Pirada] era importante!!!

Gil Moutinho

2. Reprodução  com a devida vénia, da mensagem do Gil Moutinho, acima referida (#):

Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74 > 14 de junho de 2009 > Voo 1040: A minha primeira ida a Pirada. (Excerto)

(...) Vou escrever agora umas pequenas histórias da Guiné.

A primeira de como cheguei ao destino por acaso e a segunda de um companheiro fiel.

Como sabem na província só haviam duas estações no ano, a das chuvas e a seca, sendo que ambas eram quentes, na das chuvas o ar era limpo embora com trovoadas e muita nebulosidade (muitas vezes tínhamos que contornar os cúmulos-nimbos, para não partirmos o estojo); na  [estação] seca, existiam permanentemente fumos e poeiras no ar que nos limitava a visibilidade como de nevoeiro se tratasse.

Na época seca, e era eu periquito com algumas semanas, foi-me destinada a missão, em DO 27, ,de transportar um elemento da PIDE/ DGS até Pirada, passando primeiro por Bambadinca para recolher correio. 

Estas viagens eram pouco usuais por serem directas de Bissau ao Leste. Até Bambadinca foi fácil, seguindo o rio  Geba, e é logo ali. A partir daí tinha que seguir a estrada até Nova Lamego, passando por Bafatá, e aí virar a Norte,  tentando seguir a estrada (picada) e tentar acompanhar o rumo pela bússola. 

Com a falta de visibilidade da época, tinha que praticamente ir a rapar. Pela bússola, se havia ventos laterais saíamos da rota, e aparentemente estávamos bem, pelo voo à vista e com a pouca visibilidade a estrada por vezes desaparecia entre as árvores e da minha vista.Também pela distância e pela velocidade se calculava o tempo de chegada com o rigor possível. 

Pois!... O tempo passava e já não tinha a certeza se estava na picada certa, assim como o tempo previsto se esgotava e eu poderia ter passado Pirada e estar do lado de lá (são só 500 metros até à fronteira). 

Nestes quase cagaços, vejo-me a passar rigorosamente por cima do edifício onde em letras garrafais dizia "PIRADA". 

Ufff!.... Meia volta apertada, linha de descida e aterragem. Enquanto o passageiro  conferenciava com o Mário Soares (é outro),  fui obsequiado com mordomias impensáveis naqueles buracos.

O regresso foi fácil, bússola até ao Geba e depois Bissalanca.
A outra história fica para outra vez.
Um abraço
Gil Moutinho

Nota do Vítor Barata [, editor]:  Hoje é bom recordar momentos interessantes vividos a 3,4 e 5 mil pés de altitude,e nós,  Gil,  que tantas vezes voamos juntos, quando o perigo era encarado pela ousadia da nossa juventude,como um "sorriso nos lábios". Nunca me canso de evidenciar a altitude máxima na Guiné, 300/400 m em Madina do Boé,o equivale a dizer que quando em velocidade cruzeiro, toda a província nos via.Não seria isto uma autêntica exposição ao perigo?

Felizmente que o armamento antiaéreo do IN também não era o melhor para nos atingir.
Já lá vai, Gil, e correu bem, por isso aqui estamos a recordar.

Postado por Especialistas da BA 12 às 23:08:00

3. Comentário do editor LG (*):

Gil, a tua informação é preciosa... Tu fizeste história!...

A 2 de maio de 1972 foste levar, em DO-27, o chefe da DGS, o inspector  Fragoso Allas, a Pirada, para "negociações" com o Mário Soares, que, sabemo-lo hoje, foi intermediário no processo de contactos preliminares com o Leopoldo Senghor... 

O comerciante Mário Soares foi uma "eminência parda nesta guerra" (**)... O seu testemunho seria precioso, se fosse vivo, o que é de todo improvável atendendo à idade que já teria nessa época...

Em 18 de maio, Spínola encontra-se com o Leopoldo Senghor em Cap Skiring, próximo da fronteira... É um facto histórico, Spínola explora as possibilidades de mediação do presidente senegalês entre as duas partes envolvidas no conflito, Portugal e o PAIGC... Mas Lisboa vai-lhe tirar o tapete...
_____________

Nota do editor:

(*) 21  de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20884: (De)Caras (128): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte IV: Versões contraditórias sobre o "resto da história" deste português, de quem o ex-alf mil médico José Pratas (, BCAV 3864, Pirada, 1971/73) disse que foi "porventura o branco mais africano que conheci"

(**) Os "bons ofícios" do comerciante de Pirada foram reconhecidos pelo antigo chefe de gabinete do gen Spínola, o então alf mil Barata Nunes, que enverediu mais tarde pela carreira diplomática... Veja-se o poste :

15 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (125): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


(...) Depoimento do embaixador João Diogo Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974), tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC.

 Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas Mário [Rodrigues] Soares,  um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro.  (...)

Fonte: Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (27 de, embaixador João Diogo Nunes Barata e general Hugo dos Santos [Disponível aqui]

terça-feira, 21 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20884: (De)Caras (155): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte IV: Versões contraditórias sobre o "resto da história" deste português, de quem o ex-alf mil médico José Pratas (, BCAV 3864, Pirada, 1971/73) disse que foi "porventura o branco mais africano que conheci"


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1973/74 > "Na casa do célebre senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano". Um dos alferes era Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, membro da nossa Tabanca Grande desde 17/10/2012. (,. o segundo, do aldo esquerdo).  Do anfitrião (o primeiro, a contar da direita) sabe-se que gostava de (e sabia)  bem receber, qualquer que fosse as suas motivações.

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mário Soares, o comerciante de Pirada, de seu nome completo Mário Rodrigues Soares,  terá sido uma das personagens mais intrigantes (e poderosas) da pequena comunidade portugueses, civil, que  ficou na Guiné, no tempo da guerra  (1971/74)

Já aqui recolhemos o testemunho do ex-alf mil Carlos Geraldo, da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), a primeira companhia a ficar aquartelada em Pirada (, a partir de 15 de outubro de 1964), O nosso saudoso camarada Carlos Geraldo (Lisboa, 1941 - Viana do Castelo, 2012) foi visita da sua casa até ao fim da comissão (em abril de 1966) (*)

Mas há mais referências, no nosso blogue, a este homem de quem não sabemos exatamente o runo que seguiu a sua vida, depois da independência da Guiné.Bissau. Temos, pelo menos, duas versões contraditórias: a da historiadora Maria José Tistar, e a do ex.alf mil médico José Pratas. Vamos fazer referência a cada uma delas.


2. A historiadora Maria José Tíscar, no seu livro "A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Colibri, 2017, pp. 191/192), revela a identidade de dois comerciantes portugueses, que terão sido "informadores da PIDE", um deles o comerciante Rodrigo José Fernandes Rendeiro, que alguns de nós conhecemos em Bambadinca.

Já aqui publicamos a sua história, que não vamos repetir (**)

 Das conversas da autora com o antigo inspetor Fragoso Allas, vem à baila um outro nome , o do Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal. 

Contrariamente ao Rendeiro, que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o  Mário Soares ficou na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975, segundo a investigadora Maria José Tíscar. 

Há também aqui uma divergência quanto ao nome: António Mário Soares ou Rodrigo Mário Soares (como o chamava o nosso Carlos Geraldes) ?


3. Outra versão é a  do José Manuel de Almeida Ferreira Pratas, que entre o final de 1971 e fins de 1973 prestou serviço militar no CTIG,  como alferes miliciano médico, tendo sido colocado inicialmente em Pirada,  sede do BCAV 3864 (**)

É autor do livro "Senhor médico, nosso alferes: Guiné, os anos de guerra" (Lisboa, By the Book, 2014), de que o Beja Santos fez uma recensão, e de cujo poste reproduzimos os seguintes excertos:

(...) "Vemo-lo em primeiro lugar em Pirada, o que dá motivo para exaltar os seus colaboradores que não tinham mãos a medir para atender aos doentes daquele ponto do Leste onde diariamente chegavam senegaleses. Discreteia sobre as doenças tropicais, fala da sua própria doença, das suas relações litigiosas com oficiais superiores, um capitão execrável e capelães que pairavam sobre a realidade.

"Em Pirada, tinha um agente da PIDE na vizinhança, bom para seviciar e intimidar, o Carvalho, substituído pelo senhor Pereira que tinha farroncas mas com as flagelações termia como varas verdes.

"Também em Pirada vivia Mário Soares, com quem Pratas conviveu, pode aperceber-se como o Soares intermediava entre o PAIGC e as autoridades portuguesas, houve encontros secretos à mesa da sua sala de jantar ou no respaldo das cadeiras de lona. Tinha acesso privilegiado às informações da PIDE, ascendente junto das redes de informadores locais, geria com astúcia o assédio e a adulação das autoridades locais. Reflete sobre o drama deste protagonista entre dois campos em confronto: 

“O tempo corria em seu desfavor, porque a guerra no terreno se perdia em cada dia que passava e era facilmente previsível a derrota da teimosia de Lisboa. No seu relacionamento com a tropa, este europeu, porventura o branco mais africano que conheci, só a muito custo conseguia refrear os impulsos beligerantes das chefias militares, sedentas de ação, indisponíveis, por dever de ofício, para tolerar diplomacias paralelas de que muitas vezes é feita uma guerra de guerrilha”.

"E veio a independência e mais problemas para Mário Rodrigues Soares: 

“Poucos dias depois seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo, o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...) (***)

Não sabemos depois o resto da história de vida do Mário Soares... Vou tentar contactar o nosso camarada José Pratas, médico, gastrenterologista, que prestou funções no SNS, e hoje aposentado, e que privou com o nosso homem, tal como outro alf mil médico,o  Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74). Falaremos dele e do seu conhecimento do Mário Soaresm num próximo postes. (Acrescente-se, a título de inconfidência, que o dr. Manuel Valente Fernandes foi aluno do nosso editor Luís Graça, no curso de especialização em medicina do trahalho, da ENSP / NOVA).
_____________

16 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20861: (De)Caras (126): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte II (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)

15 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (125): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)

(**) Vd. poste de 3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17929: (D)o outro lado do combate (16): O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP , permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dandum, segundo Maria José Tístar, autora de "A PIDE no Xadrez Africano: conversas com o inspetor Fragoso Allas", Lisboa, Colibri, 2017 (pp. 191/192)

(***) Vd. poste de 30 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14206: Notas de leitura (675): “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15323: Em busca de... (262): Pessoal de Pirada ao tempo do BCAV 8323/73... Quem ouvir falar do episódio em que o ten cor cav Jorge Matias terá recebido, em janeiro de 1974, por intermédio do comissário político do PAIGC, em Velingará, um tal Biai, um pedido de Luís Cabral para entabular conversações com as autoridades portuguesas? (José Matos, historiador)


Guiné > Zona leste > Setor L6 > Pirada > c. 1973/74 > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão e o  célebre comerciante Mário Soares (este em primeiro plano:  dizia-se que tinham contactos privilegiados com os "dois lados da guerra", as NT e o PAIGC. O  ten cor cav ten cor cav Jorge [Eduardo  Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás,  e a que pertencia o António Rodrigues, e reforçada por mais uma secção, do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva.

Foto: © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. Mensagem do nosso amigo José Matos 

[José Matos, nosso grã-tabanqueiro, investigador independente em história militarm, autor entre outros do artigo "A ameaça dos MiG na guerra da Guiné", originalmente publicado na Revista Militar, nº 2559, abril de 2015, pp. 327-352, e no nosso blogue em quatro postes recentes]


Data: 9 de outubro de 2015 às 20:19
Assunto: Pirada

Olá,  Luís

Precisava de uma pequena ajuda tua,  no sentido de divulgares uma situação que se passou em Pirada em janeiro de 74.

Nessa altura, o comandante do Batalhão de Cavalaria 8323/73, o ten cor Jorge Matias,  recebeu uma informação do delegado político do PAIGC, em Velingará, um tipo chamado Biai, de que Luís Cabral queria falar com as autoridades portuguesas.

Perguntava se algum dos camaradas que estava em Pirada nessa altura ouviu alguma coisa sobre isso e se pode contar...

Ab

José Matos


PS - Olha, já agora saiu, em França, um livro sobre a Operação Mar Verde... Podes clicar aqui para saber mais.


2. Comentário do editor:

O BCAV 8323/73 foi mobilizado pelo RC 3 (Estremoz), partiu para o TO da Guiné em 22/9/1973 e regressou 10/9/1974. Esteve sediado em Pirada, setor L6. Comandante: ten cor cav Jorge Eduardo  Rodrigues y Tenório Correia Matias. Unidades:  1ª C/BCAV 8323/73; Bajocunda; 2ª C/BCAV 8323/73:  Piche, Buruntuma, Piche;  3ª C/BCAV 8323/73: Pirada. O facto mais saliente dessa época foi a heroica defesa e depois retirada de Copá em 12/13 de fevereiro de 1974, por ordem de Bissau.

Temos três dezenas e meia de referências, no nosso blogue,  a este batalhão, a maior parte relacionadas relacionadas com os acontecimentos de Copá, e aos bravos de Copá. Como se sabe, este destacamento acabou por ser retirado pelas NT em 14/2/1974. Pertencia à 1ª C/BCAV 8323/3, sedidada em Bajocunda.

Alguns camaradas deste Batalhão que integram a nossa Tabanca Grande, e que referenciamos numa pesquisa rápida pelo blogue (,,, nas há mais!);

(i) Amílcar Ventura, ex-fur mil da 1.ª C/BCAV 8323/73 ("Os cavaleiros do Gabu"), Bajocunda, 1973/74, natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2009;

(ii) António Rodrigues, ex-soldado condutor auto 1.ª C/BCAV 8323/73  (Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma); é o autor da notável série "Memórias de Copá" (de que se publicaram pelo menos 6 postes):

(iii) Fernando [Manuel de Oliveira] Belo, ex-soldado condutor da 3.ª CCAV/BCAV 8323/73, Pirada, 1973/74; 

(iv) Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74).

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domingo, 9 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10778: Os nossos médicos (44): Cumprir as normas, sempre (Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 4 de Dezembro de 2012:

Caro Camarada
Conforme prometido, envio-te outra aventura acontecida em terras do leste da Guiné em 1973.
Não sou de confiança em localizações geográficas, pelo que (desta vez) não me comprometi.
Junto envio três fotografias, uma do período antes da Guiné (muitas inspecções a mancebos fiz eu nas instalações da Manutenção Militar, junto à feira da Ladra), as outras duas fotos de Pirada.

Com um abraço
Valente Fernandes


CUMPRIR AS NORMAS, SEMPRE

Em 1973 eu era alferes miliciano médico no BCAV 8323 em Pirada.

Eram óbvias as nossas preocupações na perspectiva do provável agravamento da situação, isto é, das flagelações e dos contactos com os guerrilheiros numa zona de fronteira, porquanto tínhamos vivido uma intensidade operacional com menor intensidade. Sabíamos (informações muito incompletas) o que tinha acontecido em Guidage.

Após as consultas de saúde da manhã, primeiro no posto médico do batalhão e depois na enfermaria destinada à população, à tarde o tempo livre não nos faltava. Os dois furriéis enfermeiros das duas companhias sediadas em Pirada (da CCS e da 3ª Companhia) e os vários maqueiros, tiveram complemento de formação no âmbito do socorrismo, incluindo a administração expedita de soros por via endovenosa (na veia), soros que poderiam vir a contribuir para salvar vidas.

O acaso contribuiu para termos muitas ‘cobaias’ para treino: Tínhamos recebido informação de Bissau ‘havia que matar a maioria dos cães’ que pululavam no batalhão e na tabanca porque os serviços de saúde do Senegal tinham ‘detetado cães com raiva' no seu território, logo ali, do outro lado da fronteira’.

Conforme combinado com o comandante do batalhão, tenente-coronel Jorge Mathias (distinto equitador e coronel no ano seguinte), e para cumprimento das ordens de Bissau, foi decidido matar todos os cães existentes em Pirada que não tivessem dono. Aos cães condenados administrámos previamente Valium (um medicamento sedativo) por injecção intramuscular. Após adormecidos os animais, todos os membros do serviço de saúde do batalhão puderam praticar (várias vezes) a inserção de uma agulha com soro numa veia da face interna da coxa dos cães. Tínhamos soros em fartura. Era estranho que também houvesse num posto médico no mato tantas ampolas de Valium… Talvez não fosse tão estranho, se considerássemos o que viemos a encontrar no conteúdo do atrelado sanitário da CCS…

Lembrei aos maqueiros a importância da administração dos soros por via endovenosa e que sozinhos no mato, em caso de dúvida, deveriam sempre administrar um soro. Estávamos em ambiente militar, avisei-os que a falta de administração de um soro necessário, poderia implicar uma punição. Em contrapartida, a administração desnecessária de um soro, não implicaria qualquer penalização.

Certa manhã, uma coluna saída de Pirada sofreu uma emboscada próximo de Bajocunda (cerca de dez quilómetros para leste desta povoação? não sou competente em localizações geográficas). Imediatamente saiu um grupo de combate para os socorrer, no qual eu me integrei. Quando chegámos, o combate tinha cessado, infelizmente tínhamos dois militares mortos (os primeiros mortos do batalhão. Ainda era intenso o odor a pólvora e verifiquei que os poucos feridos tinham recebido os primeiros socorros adequados.

Reparei então que um jovem militar estava sentado no chão encostado a uma árvore, fumando um cigarro, de perna ‘traçada’ e com um soro (pendurado num dos ramos da árvore) em perfusão endovenosa, com a agulha adequadamente inserida na região do sangradouro.

Então o maqueiro que ia na coluna atacada, informou-me: Quando aconteceu a emboscada, os militares saltaram para fora das viaturas, ficando deitados no solo a responder ao ataque. Perante o intenso ruído de muitas detonações simultâneas, num ambiente de concentração de pólvora queimada, uma cobra tinha mordido aquele militar que estava tranquilamente encostado à árvore. O maqueiro que integrava a coluna tratou primeiro os outros feridos. Depois administrou a este militar o antídoto antiofídico que sempre transportava. Administrou correctamente o antídoto à volta do local da mordedura da cobra (no antebraço). Depois disso, surgiu-lhe a dúvida, dúvida agravada pela terrível vivência dos sentidos que tinha experimentado durante a emboscada: se a mordedura de cobra implicava (ou não) a administração complementar de soro na veia: o militar estava com óptimo aspecto mas, conforme às recentes normas do batalhão, em caso de dúvida era para administrar…

Manuel Valente Fernandes

Pirada > Na casa do (célebre) senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano.

Pirada > Messe
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10394: Os nossos médicos (43): Amaral Bernardo e Mário Bravo, em Guileje, ao tempo do cap Jorge Parracho, comandante da CCAÇ 3325 (1971)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 14 de Outubro de 2012:

Prezado editor do blogue
Conheço-o de há longa data (ENSP e congressos de medicina do trabalho), sou admirador sincero da sua postura de cidadania e profissional, navegamos em águas comuns: as condições de prestação do trabalho.

Actualmente sou membro dos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Medicina do Trabalho. Não viajo habitualmente por blogues, agora tive conhecimento do vosso através do António Graça de Abreu. Pelo que me apresento:

Em 1973 e 1974 fui o alferes miliciano médico do BCav 8323 - Pirada.

Obviamente tive vivências semelhantes a qualquer dos camaradas que estiveram neste TO.
Do que me ficou ressalto:

- A experiência da intensa solidariedade que se gerou entre os camaradas que vivenciaram juntos o risco de vida de cada um e a permanente entre-ajuda, isto durante largos períodos. Materializa-se actualmente na emoção dos encontros de antigos camaradas (o meu batalhão mantém estes encontros).

- As perturbações na saúde mental de tantos camaradas. Tive a experiência de dois dos nossos que manifestaram psicoses agudas (um militar da CCS e outro da 1ª Companhia - em Bajocunda), ambos felizmente com bom prognóstico após a evacuação.

- A vivência da paz: aqueles almoços entre membros do batalhão e membros do PAIGC, no período que mediou entre o 25 abril e 25 agosto 1974 (regresso a Bissau), durante o período de retração do dispositivo.
Aquele convívio com os ex-inimigos não se esquece, incluindo as conversas respeitantes a ideologia política, um tema então tão apetecido pelos jovens milicianos portugueses.

Junto duas fotos e um texto que conta um episódio da minha vida no batalhão.

Com os meus cumprimentos
Manuel G. Valente Fernandes


Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1975. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu à direita).


2. A minha história:

URGÊNCIA EM PAUNCA

Alferes miliciano, em 1973 era eu o médico do BCav 8323, em Pirada, mesmo junto ao marco fronteiriço 69.

Um fim de tarde, fui chamado ao bunker dos operadores de rádio, onde recebi um pedido de apoio do maqueiro que se encontrava no destacamento de Paunca, a cerca de vinte quilómetros, destacamento constituído por milícias e integrado no dispositivo do batalhão. Um homem, membro da população, estava com retenção vesical (incapacidade de urinar, apesar da bexiga cheia, provavelmente causada por adenoma da próstata). O procedimento adequado seria efectuar uma algaliação (introduzir na uretra do doente um tubo de borracha, adequada e macia e empurrá-lo até à bexiga) para permitir que a urina saísse e assim aliviar o doente.
O maqueiro nunca tinha realizado, nem sabia como realizar uma algaliação.

Falei com o comandante do batalhão que me confirmou o que eu já sabia: àquela hora não poderia sair um grupo de combate para me levar ao destacamento (não podemos esquecer o tempo que demoraria percorrer aquela distância numa estrada possivelmente minada); àquela hora também não teríamos apoio de helicóptero.

A retenção vesical provoca intenso sofrimento: o doente não poderia ficar à espera da algaliação que eu somente poderia realizar na manhã seguinte.
O meu maqueiro não poderia tentar a algaliação (mesmo com o meu apoio via rádio) por ser muito provável, não só não ter sucesso, como provocar um “falso trajecto” na uretra, com grave prejuízo para o doente.

Somente restava uma solução, provisória, mas com baixo risco para o doente: efectuar uma punção supra-púbica, isto é, perfurar a parede da bexiga do doente com uma agulha grossa, procedimento de baixo risco numa bexiga cheia, porquanto não se perfura o peritoneu, se a picada da agulha for efectuada a “rasar” o bordo do osso que temos sob os pêlos púbicos.

Dei indicação ao maqueiro para trazer o doente para o bunker do operador de rádio de Paunca, onde ficou deitado (os bunkers caracterizavam-se pelo tecto baixo). Disse-lhe para esterilizar uma agulha grossa, pelo método habitual (fervura em água num tacho).

Agulha esterilizada, indiquei ao meu (distante) colaborador que sob minha responsabilidade, iria perfurar a parede da bexiga do doente: Com terminologia pouco científica mas muito explícita, indiquei-lhe exactamente onde deveria perfurar a pele, com a agulha rigorosamente em posição vertical (o grau de sofrimento do doente “dispensava” a anestesia local).

Depois, fiquei ansiosamente à espera de notícias do meu maqueiro. E as notícias (de sucesso) foram um simples comentário, gritado de entusiasmo:
- Doutor, o esguicho de mijo chega ao tecto !!

Manuel Valente Fernandes


3. Comentário de CV:

Caro camarada Valente Fernandes
Não estranhes por ser eu a receber-te na Tabanca Grande. Primeiro porque sou eu que normalmente recebo todos os camaradas que se apresentam, pois sou uma espécie de relações públicas do Blogue; segundo, porque embora te tenhas dirigido directamente ao Luís, ele não poderia responder-te por estar ausente do País, em trabalho.

Outra coisa que não vais estranhar é o tratamento por tu, modo que não implicará uma comunicação menos respeitosa, porque estabelecemos que pessoas que viveram as mesmas dificuldades de guerra, suportaram aquele calor húmido, pisaram aquela terra vermelha, atravessaram as mesmas bolanhas, suportaram aqueles mosquitos e viram morrer ou ficar feridos os seus companheiros, devem deixar do lado de fora da caserna os seus títulos honoríficos (não as profissões), as suas habilitações (úteis para ajudar quem tem mais dificuldade de expressão), as suas antigas (ou actuais) patentes (servem só para identificação e estatística), a sua posição social e até a idade. O tratamento por tu estreita a amizade e a camaradagem, e desinibe.

A tua entrada vem aumentar o número de camaradas Médicos em campanha e outros que se formaram após o serviço militar, que enfileiram a nossa tertúlia. Correndo o risco de esquecer algum, no primeiro grupo estão: Amaral Bernardo, Mário Bravo e Pardete Ferreira; no segundo temos os camaradas: Vítor Junqueira, Francisco Silva, Ernestino Caniço e Caria Martins.
Espero não ter esquecido ninguém.
Tens uma série no Blogue dedicada aos nossos médicos, a que podes aceder a partir daqui:  Os nossos médicos

Dependendo do tempo livre de que dispões, gostaríamos que nos remetesses algumas das tuas memórias (em prosa e fotos), especialmente que nos falasses da tua vivência de jovem médico que teve de improvisar e colmatar a sempre presente falta de meios e de pessoal habilitado. Aliás, a história que hoje nos contas é a melhor prova do que acabei de escrever.
Na minha Companhia (independente) Médico e Padre era coisa rara, situação que se inverteu a partir da altura em que se reactivou o COP6, em Mansabá, que nos permitiu ter médico a tempo inteiro. Tínhamos também a sorte (sem desprimor para os camaradas Fur Mil Enfermeiros formados na tropa) de ter um Furriel Enfermeiro que já exercia a profissão na vida civil, o que nos dava uma certa confiança e era uma mais-valia para os médicos que por lá apareceram para exercer as suas funções humanitárias.

Já agora, uma coincidência engraçada. No passado sábado, no convívio da Tabanca dos Melros, em Fânzeres, conheci o ex-Fur Mil Enf. José Pereira da 2.ª Companhia do BCAV 8323. Lembras-te dele? Julgo que me disse ser de Lamego.

Desviei-me na conversa, mas acho que deixei o essencial. O Luís brevemente entrará em contacto contigo, dando resposta à tua mensagem que fica aqui publicada.

Pela minha parte fico disponível para qualquer esclarecimento.

Resta-me enviar-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.
O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10478: Tabanca Grande (364): Júlio Madaleno, tocador de guitarra, feicebuqueiro e agora grã-tabanqueiro, nº 582, ex-fur mil, CCAÇ 1685 (Fajonquito) e CCAÇ 2317 (Gandembel) (1967/69)