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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16804: (De)caras (55): Os picas e guias das NT, Malan Djai Quité e Mancaman Biai, que eu conheci, no Xime, em 1972 (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Em primeiro plano, o Lúcio [Damiano Monteiro da] Silva, natural de Vizela,  ex-1º cabo,  CART 3494  (Xime e Mansambo, dez 1971 / abr 1974)... (Aliás, era conhecido por "Vizela".)

Quem seria, entretanto,  este velho habitante do Xime, por detrás do Lúcio Silva, envergando aquilo que se afigura ser uma velha farda ou do FARP / PAIGC  ou do antigo exército português ?... Ao fim de mais de 4 décadas de independência, está praticamente extinta a geração de guineenses que combateu na guerra. ao lado de (ou contra) o PAIGC...


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Da margem esquerda (Xime) à margem direita (Enxalé): a canoa ainda continua a ser um meio fundamental de "cambança"



Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Pirogas em seco, e os "eternos meninos do Xime"...


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > "Manga de ronco": a chegada da caravana dos "tugas, que veio de longe, do Porto.,..


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 >  O Rio Geba...Do outro lado, a margem direita, onde ficava a bolanha e a tabanca do Enxalé.


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Restos do cais acostável por onde, até ao fim da guerra, em 1974, passaram milhares e ,milhares de homens em armas... Já na altura, em novembro de 2000, o cais do Xime era uma desoladora ruína... Com o rio cada mais assoreado, deixou de ser praticável a navegação no Geba Estreito, e nomeadamente a partir de Bambadinca... O transporte dos produtos do leste faz-se agora por estrada...


Fotogramas do vídeo A Outra Guiné (The Other Guinea), de Hugo Costa, legendado em inglês. Vídeo (9' 27''). Ficha técnica: produção: Universidade do Porto, 2012; realização: Hugo Costa e Tiago Costa: diretor de fotografia: Hugo Costa; som: Hugo Costa... Duração: 9' 27''.

Cortesia de Albano Costa e Hugo Costa (2013). Edição e legendagem das imagens: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
.

1. Nesta expedição, por terra, à Guiné-Bissau,  integrou-se um grupo do Norte, incluindo o Albano Costa, ex-combatente em Guidage [ou Guidaje]  e seus amigos, todos antigos combatentes na Guiné,  além do seu filho, Hugo Costa, realizador deste vídeo.

Recorde-se que o Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo at inf, na CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74). A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja um dos nossos camaradas com mais e melhor documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.

Em novembro de 2000, quebradas as últimas "resistências psicológicas", ele voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar (por exemplo, o Xime e parte da  zona leste)...

Nessa altura, juntamente com o filho Hugo Costa (, nmascido em 1978, e então finalista de um curso de comunicação social), e mais um grupo de camaradas, ex-combatentes (, o Lúcio, Casimiro, Armindo, o Carlos, o Manuel Costa, o Xico Allen, etc.), o Albano fez um verdadeiro safari turístico-sentimental, durante 15 dias, de 11 a 26 de Novembro de 2000, percorrendo a Guiné-Bissau, de lés a lés, em dois jipes. Pelo meio apanharam um golpe de estado.

Dessa aventura ficou um extenso registo, em vídeo,  de que nos  chegou, em 2005, uma cópia, em 4 DVD, por mão do Sousa de Castro, o nosso grã-tabanqueiro nº 2. É um excelente trabalho de seis horas, sendo a realização, a insonorização e a montagem do Hugo Costa. Sabemos que o Hugo ficou, entretanto,  com o negócio do pai, dando assim  continuidade a uma empresa que tem a idade de 3 gerações, a Foto Guifões [vd, aqui a página do Hugo no Facebook] (*)



2. Dois preciosos comentários do António J. Pereira da Costa, um  ao poste P16793 (**). e outro ao poste P16772 (***), que nos obrigam (ou convidam...) a reler o notável retrato psicoprofissional que ele fez, em tempos, dos dois picadores e guias do Xime, o  Malan Djai Quité e o Macaman Biai, no poste P5803, da sua série "A minha guerra a petróleo" (****).


2.1. O único sítio onde tive conhecimento que havia guias/picadores, credenciados como tal, foi no Xime. Creio, pois, que se tratava de uma situação pontual. (*)


Tinha dois - o Malan Djai Quité e o Macaman Biai - que era civis assalariados. Não me recordo por quanto e, como já disse, estive próximo de "cortar a colecta" ao Macaman. A detecção de uma mina "reforçava" o pecúlio auferido e aqui recomeçam as suspeitas. Como era possível detectar minas numa zona onde, embora houvesse uns restos de picada, se andava, muitas vezes, a corta-mato, em terrenos de lala? É que bastava passar uns metros mais ao lado e não se detectava a mina... E o o que fazia com que o PAIGC fosse pôr minas num local onde as NT tinham percursos repetidos mas muito aleatórios? Enfim, dúvidas que devia ter tido antes...

O levantamento ficava a cargo do especialista das NT, como verifiquei.

Teoricamente alternavam na realização dos patrulhamentos. Como o Macaman começou a "alternar" pouco, desconfiei e, pelos vistos, com razão. Todavia, "a História o absolverá", como já disse noutros posts em que procurei analisar a complexidade da situação vivida por aqueles que ficavam e ali viviam depois da saída de cada unidade e sem qualquer alteração da situação que se vivia.

Sobre o Malan Djai Quité, ferido na primeira emboscada na Ponta Cóli, mas que, constava de relatório da acção, tinha feito fogo com duas (!) G-3 e de pé, já me pronunciei. Terá apostado no cavalo errado e pagou, caro(?),  a sua fidelidade. Sei que tinha a mulher em Demba Taco o quer seria estranho, se não fosse na Guiné. Poderá ter desaparecido a partir daí...
Vivia num abrigo construído por si mesmo e às vezes parecia ter problemas mentais, como naquela noite em que vestido apenas com uma "ridia" (rede) foi a casa da viúva Maria. O burburinho inerente e ficou-se por aí. 

Era um antigo lutador de luta mandinga e levou ao tapete o Costa - lisboeta e empregado do Sol-Mar - com bastante facilidade. Um dia perguntei-lhe por um chefe guerrilheiro que tínhamos informações que andava por ali, Tóda Na Fenba.
Respondeu:
- O gajo cá presta. Tem cu pequenino de Malan. Um dia jogámos porrada e Malan ganhou.


2.2. Apanhei uma situação [, na 2º metade do ano do 1972] em que já não havia duplo-controlo. Havia ligações familiares e de amizade entre ambas as partes. (**)

Recordo-me que a LDG afundou um vez uma canoa, na curva para o Geba Estreito. Foram salvos e vinham num estado miserável quando me foram entregues no Xime, Esfomeados e rotos,  e um deles era amigo do chefe da tabanca. Tive para com eles as atitudes regulamentares, mas não creio que ficassem por muito tempo. 

Quem estava para Sul do Xime ou tinha feito ou fora obrigado a fazer as suas opções. Todavia, a luta da "guerra a petróleo" era sempre pela população. Sei, por outras vias que não é possível à população "em geral" fazer opções nesta guerra ou numa ocupação de território, por exemplo. 

No caso do Mancaman aceitarei que numa primeira fase ele tivesse querido ficar com os portugueses. No fundo, na óptica dele, eram a facção com a qual tinha a ganhar. Porém, com o evoluir da guerra, ter-se-á começado a aperceber que as coisas não terminariam bem e até terá sido "avisado" de que as coisas, quando a guerra acabasse, correriam mal para "as cores dele".

Que fazer nesse caso? Filosofar e tentar jogar com um pau de dois bicos. Pelos vistos saiu-se bem. Que seja feliz!


3. Comentário do editor:

O primeiro comentário do António J. Pereira da Costa, surge na sequência de um outro comentário do editor em que se dizia:

 "Temos uma dívida de gratidão aos nossos guias e picadores, guineenses... Sem eles, as nossas operações teriam sido bem mais penosas e mortíferas... E alguns pagaram bem caro a sua dedicação às NT... Eram simples civis, assalariados.pagos à peça (mina detetada e levantada, picagem, serviço de guia...). Precisamos de conhecer melhor o seu trabalho no TO da Guiné. Temos falado pouco deles...Na realidade, pouco ou nada sabíamos deles"...

Retomamos aqui um texto, já antigo, mas de antologia, e que como tal merece ser relido, do Pereira da Costa (que foi um dos comdts da CART 3494, no Xime, na 2ª metade do ano de 1972), sobre os seus dois guias picadores (****).
_________________


(***) Vd. poste de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16772: (De)Caras (63): Em homenagem ao António Vaz (1936-2015), que nos deixou há um ano na véspera de natal: "os guias e picadores do Xime: Seco Camará 'versus' Mancaman Biai"

(****) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...


(..:) Passei ali, [no Xime,]  aqueles que, ainda hoje, considero os cinco piores meses da minha vida. Por razões que não descortinei, nessa altura, a CArt 3494 utilizava dois guias-picadores para as suas operações e que eram pagos como tal: o Malan Djai Quité e o Mancaman  [Biai](...). Teoricamente guiariam alternadamente as forças que saíssem, procurando também detectar minas, o que lhes asseguraria um pequeno pecúlio, creio que de cerca de mil escudos, por cada mina anti-pessoal e dois contos, por cada mina anti-carro.

Estas, porém, o inimigo não tinha muito motivo para utilizar, uma vez que a tropa saía sempre em direcção ao Sul e apeada, considerando que nessa direcção não tínhamos qualquer aquartelamento até à curva do Corubal. Nunca entendi bem como é que numa área onde andávamos a corta-mato ou por trilhos pouco batidos, se poderiam colocar minas com boa possibilidade de serem accionadas. O inimigo poderia colocá-las, mas nada lhe garantia que iríamos passar naquele trilho e não a todo-o-terreno ou não abriríamos outro, alguns metros mais ao lado, que a Natureza pressurosamente iria fechar nos dias seguintes.

Detectar minas parecia-me uma coisa problemática, a menos que se soubesse onde íamos passar e, forçosamente com pouca antecedência, ali as colocassem. Efectivamente, da antiga estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês restava pouco mais de um quilómetro. Depois, o terreno era "todo ou quase todo igual" e a progressão era feita a todo-o-terreno, com uma ou outra referência. Claro que poderíamos descer pela margem do rio, tendo-o sempre à vista e ao nosso lado direito, o que facilitava o movimento e dava a possibilidade de nos opormos às travessias, que, às vezes o inimigo tentava mesmo à luz do dia. De qualquer modo, uma coisa era certa: o caminho que seguiríamos entrava no âmbito do cálculo das probabilidades, um a dois quilómetros depois de sairmos do arame farpado.

Eram bem diferentes os dois guias, embora fossem ambos mandingas.


O Malan [Djai Quité], mais velho, 
rondaria os cinquenta e cinco anos... 


Era, portanto velho, no contexto da população, mas exibia os restos de uma constituição física notável que lhe permitia realizar sozinho trabalhos agrícolas, recorrendo a alfaias tradicionais. Usava uma espécie de remo, com cerca de dois metros de comprido e, espetando a pá no solo com uma inclinação inferior a 45º, ia removendo pasadas de terra que punha para o lado, abrindo uma leira onde plantava arroz.

Outras vezes, pescava com uma espécie de rede (uma ridia, como ele dizia) e apanhava uma espécie de lagostins cuja cabeça tinha o comprimento quase igual ao do corpo. Eram saborosos e, infelizmente, poucas vezes apanhava mais de dez. Estou em crer que seria uma espécie de lagostins adaptados à água salobra, muito semelhantes aos que, por cá se desenvolvem nos arrozais.

O Malan fumava um daqueles cachimbos de madeira que enchia com toda a calma, dobrando cientificamente a folha do tabaco. Era um trabalhador infatigável e um guia de confiança. Era casado com uma mulher, mas vivia sozinho num abrigo minúsculo, construído por ele. Aproveitava o reabastecimento às auto-desfesas para visitar a mulher, em Demba-Taco. Levava-lhe dinheiro e alguns produtos da terra e eu nunca entendi de que é que uma mulher bastante mais nova que ele, vivia numa tabanca tão pequena e com tão poucos recursos.

Ao que me foi dito, durante os ataques com armas pesadas, sentava-se tranquilamente em cima do abrigo a fumar o cachimbo e explicava que "O homem 'mure', quando 'mure'!" e, por isso, não tinha grande necessidade de se abrigar. Ao que parece teria problemas sexuais de impotência, mas também de desejo.

O alferes Pinho, da Artilharia,  contou-me que um dia, durante uma operação, resolveu pôr-se a gritar no meio da bolanha de Lântar: "A tabanca matou o meu caralho!", enquanto mostrava a "prova do crime". Durante o meu tempo, só recebi queixa da Maria, viúva de um furriel dos comandos, e que vivia com um filho de quatro ou cinco anos.

Uma noite, o Malan resolveu visitá-la. Creio que não terá sido bem recebido ou nem sequer tolerado nas proximidades. Depois... uma intervenção da vizinhança em apoio da Maria resolveu o problema. No dia seguinte, ela veio apresentar queixa e eu lá tive que "lavar o cérebro" ao Malan. (...)

Um dia recebemos informações de que Tóda Nafemba e o Biota Tanhala andavam pelas redondezas e preparado-se para fazer das suas. A notícia (A-1, como é de calcular) dizia que um deles era natural do Xime. Convoquei o Malan e perguntei-lhe se sabia quem era. Respondeu-me que sim e acrescentou:
- Esse gajo cá presta e tem cu pequenino de Malan.

Intrigado quis saber porquê. Fiquei então a saber que o Malan tinha sido campeão de uma espécie de sumo, mas praticado com algo parecido com umas cuecas-fio-dental, em cabedal grosso. Ambos os contendores se agarravam pela cintura e procuravam, aplicando rasteiras, derrubar o adversário. Nos bons velhos tempos do Malan tinham competido e o agora guerrilheiro sempre fora levado de vencida. Mesmo sem o equipamento adequado, o impedido da messe, o atirador Costa, desafiou-o para um combate ali e naquele momento. O Costa, empregado de mesa do Solmar, em Lisboa, era um malandreco da cidade e julgou que podia "dar baile" ao velhote, mas como "quem sabe não esquece" desistiu à segunda queda.

Nas conversas que tive com ele, o Malan pareceu-me verdadeiramente infantil. Não estava sequer capaz de entender o mundo para além do que via e sentia. Para ele, a vida não ia além da sua tabanca e da natureza que a rodeava, do trabalho na terra ou no rio e, agora, porque era preciso, nem ele sabia bem porquê, fazia a guerra.

Não creio que odiasse o  Inimigo ou que tivesse qualquer assomo de patriotismo, na sua acepção mais corrente, naquele tempo. Julgo que lhe tinham dito que os turras eram maus e que ele tinha que guiar a tropa contra eles. Além disso, sempre ganhava dinheiro o que terá sido uma promoção social a que se foi habituando. A sua vida repartia-se quase exclusivamente pela sua actividade como guia-picador e os trabalhos que lhe asseguravam a subsistência.

"Este gajo é puro!", dizia o alferes Gomes depois de mais uma conversa metafísica entre ambos. Falavam de Deus (ou dos Irãs), da Natureza e dos hábitos dos Mandingas. A argumentação do Malan era pobre, mas não havia quem o demovesse das suas convicções acerca da sua fé ou da estrutura social e valores éticos dos Mandingas, que ele aceitava, sem hesitar. Enfim, seria aquilo a que poderíamos chamar a encarnação do "Bom Selvagem". Já perguntei por ele à malta que lá foi matar saudades. Ninguém sabe qual foi o seu destino, após a independência, o que não é nada bom sinal... Velho, renitente e tendo colaborado muito com os colonialistas, não lhe auguro um bom destino...


O outro guia 
era o Mancaman [Biai]...

Claramente mais novo que o Malan, era alto, bastante magro e vestia sempre à moda muçulmana tradicional. Falava baixo, parecia medir as palavras ou digerir as perguntas que lhe fizessem ou as deixas do interlocutor. Só depois de ter estudado bem o que lhe fora dito, respondia. Dir-se-ia que não queria ser apanhado em falso ou em contradições. Esfingicamente fechado,  era-me difícil saber o que pensava.

Pouco depois de eu ter chegado, começou a pretextar motivos para não guiar a companhia. Nunca entendi aquele volte face que coincidiu com a minha chegada. Presumo que terá pensado que eu imprimiria outra orientação à actividade operacional. Parecia estar farto de guerra e, por isso, procurava sair dela ou, no mínimo, reduzir a sua participação, a pouco e pouco. 

Creio que descria já de uma "esmagadora vitória das NT" e, sentenciado a viver naquela terra, não vislumbrava uma saída para o impasse em que se encontrava. Claro que o dinheiro que ganhava era-lhe fundamental para a sua sobrevivência, mas comprometia-o com algo de que queria afastar-se. Qualquer que fosse a sua opção teria custos. Posto perante a evidência de que tinha de continuar a participar nas acções da companhia, cedeu, com relutância e reatou a sua colaboração.

Confesso que desconfiei dele. Todavia, pensando melhor, comecei a compreender a sua indecisão e até angústia. Ele deveria estar a ver para o futuro. É que, depois de junho de 1972, as populações e os militares do recrutamento local, ou mesmo simples apoiantes da acção do Exército viviam, diariamente e há vários anos, o desgaste da guerra e, numa observação simples, podiam aperceber-se de que os campos estavam cada vez mais extremados e que a guerrilha, se não estava a ganhar a guerra, também não dava sinais de regredir, havendo até sítios onde já há alguns anos não era possível ir sem que isso implicasse uma operação militar de custos mais ou menos elevados e mais-valias duvidosas. É que, ir a um dado local só por ir não faria sentido. Permancer lá, teria custos consideráveis. Restava a última hipótese que era normalmente a mais corrente: ir, destruir o que houvesse e matar quem se revelasse, uma vez que a "população sob duplo controlo" era cada vez mais um mito.

Que é que um cidadão guineense poderia fazer, nesta situação? Não tenho dúvidas de que os mais atentos começavam a interrogar-se acerca do modo como tudo aquilo iria terminar. Creio que alguns começavam a prever que o fim seria certamente dramático. É dificílimo ter de optar em tempo de guerra ou grave convulsão. Porém, a vida real obriga a que essa opção seja uma escolha imediata e com reflexo na acção diária. A História cobra sempre dividendos aos vencidos de um fenómeno social e o cansaço da guerra, aliado à falta de êxitos claros da parte que apoiavam, dava-lhes a indicação de que maus tempos aí vinham. Só não sabiam quando.

A tabanca do Xime estava situada numa posição excêntrica que permitia que fosse abordada sem que o pessoal vigilante da companhia fosse alertado. Em noites de Lua-nova era mesmo difícil detectar movimentos para além do arame farpado. Daí até ao Poindom não havia ninguém. Depois, não sei. Estimo que as populações sob controlo do inimigo se dispersariam até à curva do Corubal. Não tenho elementos para dizer se e onde o inimigo residia naquela área.

Parecia que ali havia uma Terra de Ninguém. O PAIGC controlava as populações e o terreno para Sul do Poindom. Para Norte e até à linha definida pelas três tabancas (Amedalai, Taibatá e Demba-Taco), o domínio parecia ser nosso. Quase de certeza que o Mancaman não trabalhava para o PAIGC, mas tudo indica que sentiria uma certa pressão para reduzir a sua colaboração connosco e, se bem observado por alguém infiltrado na tabanca, poderia dar indícios utilíssimos, mesmo involuntariamente.

É o retrato que tenho esboçado destes dois homens que, em última análise, reagiam como podiam a uma situação social e política que martirizava a sua terra. Um nem sequer questionava a escolha que tinha feito e, como é habitual, terá sido trucidado pelos acontecimentos. O outro via-se entre dois fogos, sem possibilidade de optar, mas imaginando que se aproximavam tempos aos quais, no mínimo, teremos de chamar difíceis. Hoje podemos culpá-los de terem feito escolhas más. Será a opinião dos teóricos detentores da solução depois da poeira do cataclismo ter assentado. Hoje explicam como se deveria ter feito, mas é como se resolvessem um problema cuja solução lhes foi fornecida pelo desenrolar da História. (...)