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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Será porventura a mais recente das biografias de Amílcar Cabral, trabalho mais de ruminação, sem acompanhamento de factos novos. Está bem estruturado, tem uma descrição cronológica relativamente bem montada, cai constantemente na hagiografia, o que significa que o autor cuidou pouco do distanciamento, foge em permanência das questões fracturantes, caso predominante da unidade Guiné - Cabo Verde. Não cuidou de bibliografia recente, esquece trabalhos de Toby Green, Joshua Forrest, Carlos Cardoso ou António Duarte Silva.Talvez útil para alunos das universidades norte-americanas, não traz inspiração para investigações guineenses ou mesmo portuguesas.

Um abraço do
Mário



Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy

Mário Beja Santos

Será porventura a mais recente biografia de Amílcar Cabral, Peter Karibe Mendy é um gambiano filho de guineenses de Bissau, ganhou notoriedade com a sua tese de doutoramento A tradição da resistência na Guiné-Bissau, 1879-1959; é professor de História e de Estudos Africanos no Rhode Island College, Providence, esta biografia foi ditada pela Ohio University Press em 2019.

Há que deplorar não trazer nada de significativo relativamente aos trabalhos mais recentes de Patrick Chabal, Toby Green, Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. Tem-se a sensação de que o investigador leu muito o que já sobre Cabral se escreveu, ficou espartilhado por considerações hagiográficas que não têm o cuidado em depurar, usa pouco o contraditório e sente-se incapaz de nos dar uma observação refrescada sobre a atualidade do legado ideológico de Cabral. Reconheça-se, no entanto, que a biografia goza de uma estrutura bem organizada e acolhe os passos mais significativos da vida e do pensamento de Cabral.

Em Terra Natal, procura contextualizar a colónia da Guiné em que o líder do PAIGC nasceu, fala-nos da sua família, da ancestralidade cabo-verdiana e em Terra Ancestral insere a educação de Cabral em Cabo Verde, entre 1932 e 1945. Observa bem a atmosfera cabo-verdiana e não se esforça por fazer a distinção entre os aspetos radicalmente diferentes que separam duas formas de civilização e cultura, Guiné e Cabo Verde, e deixa no limbo o ressentimento multisecular dos guineenses face aos cabo-verdianos, que virá a ser exacerbado durante o período da governação de Spínola. Segue-se a preparação universitária do fundador do PAIGC em Portugal, a Mãe Pátria, continuamos sem novidades, e bem interessante seria que o autor tivesse invocado a obra de Dalila Mateus que ilumina como nenhuma outra a vida destes estudantes coloniais no pós-guerra do Estado Novo, as suas expetativas, laços de amizade, pois só assim se tornará compreensível a devoção de Cabral numa prática corrente de pan-africanismo com os líderes das outras colónias portuguesas.

E temos o regresso à Terra Natal, chega à Guiné em 1952, irá trabalhar na Granja de Pessubé, entrega-se devotadamente ao recenseamento agrícola, estabelece uma rede de amizades que preparará a ligação dos quadros cabo-verdiano e guineense que despontará formalmente em 1959. Como é sabido, dentro das diferentes desmontagens mitológicas, palavra de Julião Soares Sousa, este põe em causa o significado da reunião de 19 de setembro de 1956 que se tornará a mantra anos depois. O próprio Leopoldo Amado, em entrevistas feitas a dirigentes do PAIGC, a propósito da biografia de Aristides Pereira, encontrará incongruências e profundas hesitações entre aqueles que disseram ter estado no ato fundador do PAIGC em 1956. Como também faz parte da mitologia a expulsão de Amílcar Cabral da Guiné, ele regressou a Lisboa acompanhado da mulher, vinham profundamente doentes.

Peter Mendy dá-nos uma boa síntese da Lisboa da década de 1950 e a emergência provocada pelo desejo de libertação dos países inseridos em impérios coloniais. Cabral irá trabalhar para Angola e estará presente em agosto de 1959 na reunião determinante para a criação do PAI, embrião do PAIGC, de quem só se falará a partir dos anos 1960. Encetada a estratégia por ele delineada, fica um núcleo subversivo no interior da Guiné dirigido por Rafael Barbosa, Cabral parte para o exílio em Conacri, em condições precárias lança uma escola piloto e começa a obter apoios internacionais, o de maior realce é a preparação de jovens quadros na Academia Militar de Nanquim, serão estes que irão irromper em cena a partir do segundo semestre de 1962, o PAIGC procura responder de forma congruente às ações desenvolvidas pelo Movimento de Libertação da Guiné no ano anterior. Escolhe-se a região Sul para desencadear a subversão, a catequização e o ajuntamento de populações apoiantes da independência.

O autor, sem justificar as bases da sua afirmação, considera que as autoridades de Bissau estavam à espera de ações do tipo da UPA em Angola e que por isso começaram a disseminar forças militares pela extensa região fronteiriça, em rigor isso não é verdade, o contingente português ainda é muito pequeno, houve a noção elementar, logo no início da subversão, de que era necessário apoiar os núcleos populacionais que se temiam ser afetados, o êxito do PAIGC na região Sul decorreu da forma como foi bem recebida a subversão e como se isolaram povoações como Cacine, Catió ou Cufar, no Sul, ou Jabadá, no rio Geba. Quínara e Tombali, pela própria natureza do terreno, garantiram uma relativa segurança à presença das forças subversivas.

Quando se diz que Peter Mendy cai na armadilha da hagiografia basta ler a flagrante explicação que ele dá para a Operação Tridente, como se fosse um êxito absoluto do PAIGC. A ilha do Como, como é bem sabido, perdeu rapidamente a importância estratégica que a propaganda do PAIGC lhe atribuiu, encontraram-se outras posições no Sul muito mais influentes.

Chegamos ao Congresso de Cassacá e não se sabe por que carga de água é que aparece o nome de Inocêncio Kani, um dos futuros assassinos de Amílcar Cabral, acusado de ter vendido um motor, coisa que não aconteceu em 1964, mas sim em 1971.

Também a biografia nada traz de novo sobre o apoio cubano, as referências a Schulz é de um comandante-chefe que larga bombas de napalm e fósforo branco por toda a parte e que é obrigado a abandonar a colónia depois de um ataque perto de Bissalanca, onde o autor inventa a destruição de aviões e hangares, mais outra prova que não teve tempo ou interesse em ler o contraditório. Segue-se a descrição do período de Spínola, parece-me formalmente correto, tal como o capítulo subsequente sobre a solidariedade pan-africana e a ascensão mediática do líder do PAIGC. E assim chegamos ao assassinato, novo quadro hagiográfico, mais uma vez a incriminação da PIDE que se teria aproveitado do ressentimento dos guineenses contra os cabo-verdianos.

Peter Mendy esquece-se de referir que não se conhece o teor das sessões dos interrogatórios às centenas de acusados e às dezenas de incriminados, todo o documento escrito e magnético desapareceu. Em nenhum arquivo português se encontrou qualquer dado útil para a implicação das autoridades guineenses ou da PIDE de Bissau ou de Lisboa. Em nenhuma circunstância Peter Mendy manifesta vontade em dissecar a fragilidade da conceção teórica da unidade Guiné – Cabo Verde, ele fala de insurreições dos povos guineenses contra a ocupação portuguesa, nem uma palavra sobre as guerras sanguinolentas desencadeadas no século XIX com a queda do Kaabú e a ascensão dos Fulas que conduziram ao período dramático das guerras do Forreá, está possuído de um raciocínio limitativo de que as etnias guineenses viviam pacificamente entre si e coligavam-se para fazer frente ao opressor colonial português.

O capítulo A Luta Continua descreve a viragem da luta em 1973 e assim chegamos ao legado de Amílcar. Peter Mendy enfatiza documentos da maior importância produzidos por Cabral que denotam o seu génio, o vigor da sua habilidade diplomática, a sua comunicação e inspiração mantêm pertinentes: as suas advertências para o perigo de uma pequena burguesia gananciosa querer aspirar a ganhos pessoais aliando-se ao neocolonialismo; a essência de uma democracia revolucionária, baseada na participação das populações, no idealismo pan-africanista que exigia a descolonização mental. A atualidade do seu pensamento é ainda maior quando toda esta região de África caiu nas mãos de líderes populistas e tirânicos e todo este espaço se tornou uma rota de droga e da ameaça do radicalismo islâmico.

Um livro feito de muita mastigação, de grande candura face ao líder admirado, talvez útil para quem nada conheça sobre a vida e a obra deste gigante do movimento revolucionário.

Amílcar Cabral no gabinete de trabalho em Conacri, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
O “carocha” de Amílcar Cabral, que ele utilizou no dia em que foi assassinado
A devida vénia a Didinho.org
Palestra de Amílcar Cabral em Conacri, dirigindo-se aos seus quadros, com Aristides Pereira ao fundo, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24436: Historiografia da presença portuguesa em África (374): Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê? (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
É com uma certa nostalgia que vou passando os olhos pelos papéis que me restam ainda ler na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, manda a prudência que a seguir ponha ordem no caos que levo de umas boas centenas de páginas que, espero, venham a dar origem ao meu derradeiro livro sobre a Guiné, uma antologia dos textos essenciais desde Zurara até meados do século XX, quando a Guiné passou a estar no mapa como uma colónia administrada por portugueses, tenho já um título: Guiné, o Bilhete de Identidade.
É nestas leituras esparsas que acabo de ler um trabalho sobre a literatura guineense anterior à eclosão da luta armada. Julgo que as considerações deste autor devem ser articuladas com um trabalho da responsabilidade de Leopoldo Amado sobre a literatura guineense no período colonial, este malogrado historiador recorda figuras de significado que abordaram nas suas obras a Guiné, como foi o caso de Fernanda de Castro, Maria Archer ou Manuel Belchior. Acho que não perdemos completamente o tempo em ver a argumentação usada por João Tendeiro quanto à carência de escritores nativos da Guiné.

Um abraço do
Mário



Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê?

Mário Beja Santos

Na publicação Estudos Ultramarinos, revista trimestral do então Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, 1959, n.º 3, dedicado à literatura e arte, insere-se um artigo intitulado “Aspetos marginais da literatura na Guiné portuguesa”, é seu autor João Tendeiro. Vejamos os aspetos essenciais do seu escrito. Abre dizendo que: “Somos forçados a reconhecer que não existe uma literatura com características guineenses. A Guiné não nos deu até agora um escritor nativo. No campo da ficção, as poucas obras de fundo têm sido escritas por europeus ou cabo-verdianos”.
E refere nomes como os de Fausto Duarte, o de Alexandre Barbosa, entre outros, refere contos e narrativas publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Invoca adiante Mário Pinto de Andrade, dizendo que se este quis inserir na sua Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (Paris, 1958) uma produção poética representativa da Guiné, teve de recorrer a um poema de um jovem cabo-verdiano a residir na Guiné, Terêncio Casimiro Anahory Silva. E lembra-nos quem é civilizado, assimilado e nativo, e as respetivas incidências no uso da língua portuguesa. Segundo o censo de 1950, o português era falado por 1157 indígenas analfabetos e lido e escrito por 1153 - não se encontrou em conta a população que se exprime em crioulo. Quanto à população denominada “civilizada”, havia 7848 portugueses (1501 metropolitanos; 1103 cabo-verdianos e 4644 guineenses, bem como 366 estrangeiros, dos quais 297 libaneses).

Procurando analisar os diferentes porquês da pobreza de uma literatura de fundo guineense, recorda o que ele classifica como singularidades: o silêncio literário de Artur Augusto Silva, cujas preocupações parecem ter deixado o campo da poesia e da ficção para se lançarem em estudos de interpretação jurídico-social; e não esquece o nome de Eduíno Brito, autor de vários trabalhos de demografia e sociologia guineenses. E, de novo, volta a citar Mário Pinto de Andrade, regista-lhe a seguinte observação:
“A evidência histórica leva-nos a considerar que, das relações entre a Europa e a África, decorrente do conflito colonial, resultou a opressão das culturas negro-africanas, na medida em que os africanos foram regularmente desprovidos da estrutura social e política, dos quadros próprios em que evoluíam naturalmente as suas culturas, em que as línguas foram relegadas para o plano secundário dos falares intermediários em que essencialmente esses povos perderam as iniciativas de nestas sociedades que eram afinal as suas criações originais”.

E lança outro argumento para explicar as dificuldades numa literatura nativa. A expansão do islamismo em África acompanhou-se de uma difusão correspondente da escrita árabe. Quando transpostos para as línguas nativas, os documentos escritos têm, no entanto, um cunho acentuadamente esotérico e usam-se especialmente com fins religiosos e moralizantes sob a forma de poesia e provérbios relacionados com o Corão, o que não se enquadra na noção ocidental de literatura.

No entanto, prolifera na Guiné uma literatura oral variada, que se exprime por contos, provérbios e poesias declamadas. E recorda que há a recolha feita por Viriato Tadeu nos Contos do Caramô e os contos publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa por António Carreira e Amadeu Nogueira, entre outros. Reconheça-se, no entanto, que esta contribuição oral, servida por uma linguagem colorida e variada, ultrapassa o campo literário e cai nos domínios da etnografia e do folclore. E há os tocadores de Korá, autênticos trovadores. E suscita uma nova questão, a problemática do crioulo. Entende que é uma linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre as diferentes tribos, dizendo mesmo:
“Os crioulos portugueses escritos – seja o da Guiné, seja o das diversas ilhas de Cabo Verde – não constituem entidades filológicas independentes, mas sim transcrições dialetais fonéticas, em termos de português. O crioulo desempenha o papel de linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre etnias. É uma linguagem franca. Enquanto em Cabo Verde o crioulo assumiu o caráter de uma linguagem substituta dos idiomas nativos primitivos, enfeudada à língua portuguesa oficial, na Guiné existe apenas o aspeto secundário da língua apreendida, desempenhando entre as populações locais um papel semelhante aos idiomas hoje utilizados nas relações internacionais”.

E depois de muito dissertar sobre o estado da educação na Guiné, João Tendeiro, já nos surpreendera com as citações de Mário Pinto de Andrade (já ao tempo uma figura destratada pelo Estado Novo, reconhecidamente dirigente do MPLA), não deixa de nos assombrar com as considerações que faz no termo do seu artigo:
“No que se refere aos indígenas, o problema passa muito além do campo da literatura, e relaciona-se antes com a premente necessidade de uma modificação basilar das estruturas legais e sociais dos nativos, indispensável à continuidade efetiva da presença portuguesa em África.”

Para bom entendedor…

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24421: Historiografia da presença portuguesa em África (373): O problema dos transportes na Guiné, um olhar e sugestões de um engenheiro de pontes, princípio da década de 1950 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Foi minha preocupação agregar a bibliografia mais significativa referente aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959. Juntaram-se as provas documentais sobre os factos e tomam-se agora as reflexões do Leopoldo Amado para a contextualização numa perspetiva do que representou para a luta de libertação. Se algum dos confrades que gosta de estudar este período que precedeu o início da luta armada possuir mais documentação pertinente à revelação de novos factos, agradece-se penhoradamente toda a ajuda que daí vier.

Um abraço do
Mário



Mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti

Mário Beja Santos

O historiador guineense Leopoldo Amado publicou em 2013 "Guineidade & Africanidade", um acervo de estudos, crónicas, ensaios e outros textos, Edições Vieira da Silva. Desse conjunto destaco dois documentos em que o autor releva a importância dos incidentes no Pidjiquiti, não se cinge particularmente aos factos do que ocorreu nessa tarde de 3 de agosto de 1959, insere-os num ecrã político onde se entrelaçam o movimento independentista africano, a emergência dos grupos nacionalistas na Guiné, a consolidação do pensamento de Cabral quanto à condução da guerra de libertação.

Começa por nos dar um quadro da vaga de nacionalismo guineense influenciada pela independência do Gana em 1957 e pelos países limítrofes, Guiné Conacri e Senegal, em 1958 e 1959, respetivamente. Na sua permanência na colónia da Guiné, entre 1952 e 1954, Cabral apoiou a fundação de uma agremiação desportiva, que não foi autorizada, segundo Leopoldo Amado há quem lhe atribua a paternidade da criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que se revelou irrelevante. Participou em reuniões, isso está demonstrado. 

Como é sabido, Julião Soares Sousa contesta a presença de Cabral na reunião de 19 de setembro de 1956 em que foi fundado o PAI – Partido Africano para a Independência, inequivocamente inerme até 1959, nem um documento consta. O Movimento de Libertação da Guiné (MLG), da responsabilidade de Rafael Barbosa, aparecerá ligado à grande greve do Pidjiquiti de 3 de agosto de 1959, toda a glorificação do martírio não tem por detrás uma prova factual da mão do PAI. 

Este Movimento de Libertação da Guiné foi fundado em 1958, um conjunto de nomes de fundadores aparecerá mais tarde no PAIGC. Escreve Leopoldo Amado que as movimentações para a criação do MLG terão remontado aos princípios de janeiro desse ano. E escreve o autor: 

“Sedentos de passar à ação, o MLG tenta gizar um plano assente sobretudo numa teia coesa de ligações com um considerável grupo de guineenses emigrados em Conacri, rapidamente se predispuseram a participar na exaltante obra rumo à independência nacional”. 

O encontro crucial para pôr em andamento o PAI ocorre durante a estadia de Cabral em Bissau, entre 14 e 21 de setembro de 1959, é neste tempo que se estabelecem as linhas de atuação, uma parte da direção do PAI fica em Conacri, Rafael Barbosa conduzirá a subversão no interior da Guiné. 

Um dos mitos alimentados pela hagiografia do PAIGC é o da expulsão de Cabral quando trabalhou no recenseamento agrícola e na granja de Pessubé, Cabral deixou bem claro por carta que regressava a Lisboa porque ele e a Maria Helena estavam gravemente afetados pela malária. É completa atoarda que tenha sido forçado a ir para Angola, foi ele que escolheu ir trabalhar para uma empresa próspera, a Sociedade Agrícola do Cassequel, bem remunerado.

Voltemos ao Pidjiquiti e ao que escreve Leopoldo Amado: 

"Depois de Pidjiquiti, para além de Cabral ter optado por estabelecer em Conacri a retaguarda segura para o PAI, sucederam-se outros importantes acontecimentos que mostram inequivocamente a opção do PAI no sentido do desenvolvimento de uma guerra prolongada de libertação nacional”

E enumeram-se as diligências na cena internacional, são por demais conhecidas. E este trabalho conclui com a relação das ações subversivas que irão ser desenvolvidas em 1961 e 1962, mostrando mesmo a ascensão efémera de outros grupos de libertação que designadamente a partir de 1964 desaparecerão da cena.

Noutro estudo intitulado “Simbólica de Pidjiquiti na ótica libertária da Guiné-Bissau”, novamente Leopoldo Amado considera os acontecimentos como tributários de outros, e escreve: 

“O efeito multiplicador da atuação dos nacionalistas guineenses esteve por detrás da primeira greve dos marinheiros, ocorrida em 1957, no cais do Pidjiquiti, em Bissau, greve essa, de resto, bem-sucedida, na medida em que esses marinheiros viram satisfeitos grande parte das reivindicações, a ponto de a mesma vir posteriormente a potenciar, pelo precedente aberto (mas igualmente por ação de elementos do MLG), a grande greve que ocorreu em 1959, na qual foram mortos cerca de 50 marinheiros, tendo ficado gravemente feridos cerca de uma centena”.

E para o autor estas duas reivindicações do Pidjiquiti, nomeadamente a última, popularizaram rapidamente a ideia de uma luta comum contra o colonialismo português, seria estratégia do PAI a tentativa de eleger os seus membros no sindicato dos trabalhadores, rapidamente se apreendeu que não eram essas pequenas reivindicações urbanas que permitiam estender a luta aos menos favorecidos. 

Daí a tese de Cabral de que era definitivo conquistar o proletariado no universo agrícola, tese que irá revolucionar a doutrina da luta de classes que era proposta pela vulgata marxista leninista. Leopoldo Amado aproveita este trabalho para falar dos primórdios do fenómeno nacionalista, fala da Liga Guineense, das múltiplas recusas em pagar o imposto de palhota e em certos atos desumanos do trabalho forçado. Este seu trabalho retoma o primeiro que citámos e volta deste modo aos acontecimentos do 3 de agosto de 1959: 

“Para além do massacre do Pidjiquiti corresponder justamente ao momento em que a agitação clandestina atingia o seu ponto máximo, permitindo o seu violento desfecho, possui o condão de ter reforçado a consciência segundo a qual era necessário optar por outras formas de luta para responder com violência à violência colonial. Foi também este massacre que impulsionou, pouco depois (janeiro de 1960), a criação em Tunes da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas), no decurso da Conferência dos Povos Pan-africanos".

Nestes termos, segundo Leopoldo Amado, os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 representaram a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, “ultrapassando o seu alcance político as de mera reivindicação laboral, na medida em que, a montante do processo libertário guineense, circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos direta ou indiretamente a ele relacionados, pelo que não é nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial”.

Dá-se por finda esta itinerância à bibliografia referente ao que se passou em 3 de agosto de 1959, persistem dúvidas quanto ao número de vítimas em mortos e feridos, a quem esteve por detrás do desencadeamento da greve, parece estar tudo claro quanto ao que aconteceu a partir do momento em que apareceu a polícia, que foi maltratada e maltratou, que regressou reequipada e depois a chegada do Exército. Não se possuem outros factos documentais para além dos citados.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Escrevi há pouco tempo um artigo dando conta de alguma bibliografia alusiva aos incidentes do Pidjiquiti e o historiador António Duarte Silva recomendou-me referências a outras obras, o que aqui se faz. As dúvidas e as questões em aberto prosseguem. Terá sido Rafael Barbosa o instigador junto de um dos patrões que conduziu a greve? 

O que levou o PAIGC a arvorar-se como responsável encapotado pelos acontecimentos, quando, como é sabido, viveu numa apagada entre 1956 e 1959? Em que medida é que se pode falar de massacre se, como abonam os testemunhos presenciais, e documentos de indiscutível rigor, que referem o descontrole absoluto depois das cenas de pancadaria travadas entre estivadores e forças da ordem? E de acordo com os números lançados por várias proveniências é extremamente difícil, mais de 60 anos depois, vir a encontrar documentos probatórios do número de mortos e feridos, já que não há contabilidade fiável para os mortos e feridos levados pelo Geba.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível

Mário Beja Santos

O meu amigo António Duarte Silva, conceituado historiador da Guiné-Bissau, chamou-me a atenção para a amplitude da bibliografia existente sobre os incidentes do Pidjiquiti, também conhecido por Massacre do Pidjiquiti, há muitos trabalhos repetitivos, casos há em que se urdiu a lenda, se exibem números de mortos e feridos sem qualquer comprovativo, houve aproveitamento dos acontecimentos para o colar ao arranque do PAI (sigla anterior a PAIGC), isto quando Rafael Barbosa insistiu que o líder dos grevistas era membro do Movimento de Libertação da Guiné.

 O autor de "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, dá-nos uma impressiva síntese do descontentamento dos homens que faziam o serviço do porto, cargas e descargas, marinheiros do cais, contramestres e cozinheiros. Era o mundo do trabalho que abarcava as embarcações de nove firmas armadoras de diferente calado, estes homens tinham de fazer igualmente o trabalho de estiva. 

“Os salários eram concertados anualmente pelas casas comerciais e a exigência de uma nova melhoria de salários havia sido apresentada em fevereiro, tendo obtido a promessa de estudo de pretensão. A preparação da greve coube aos capitães dos barcos; a exigência de aumento dos salários assentava na dureza das condições de trabalho e no custo da alimentação”.

Em 31 de julho, os trabalhadores constataram que não havia qualquer aumento, considera-se ter havido fracasso nas negociações posteriores com o gerente António Carreira na manhã de 3 de agosto. Os manifestantes, maioritariamente Manjacos, comparecem numa concentração pelas 14 horas, vão devolver os barcos. Interveio o Patrão-Mor da Capitania, tudo falha, o gerente da Casa Gouveia, António Carreira, chama a polícia, um contingente dirigiu-se ao porto, trocam-se palavras e o subchefe da polícia é agredido depois de ter esbofeteado um dos marinheiros que aparecem munidos de remos, paus, barras de ferro e arpões. Seguem-se disparos da PSP e forma-se um piquete que trava o avanço dos manifestantes abrindo fogo: tiros, lançamento de granadas lacrimogéneas e perseguição dos grevistas que fogem em direção ao cais. O padre Henrique Pinto Rema fará publicar no jornal "O Arauto" que houve de 13 a 15 mortos.

Já aqui se fez referência ao relatório confidencial do Comandante da Defesa Marítima que vem publicado no Livro III dos Fuzileiros – "Crónica dos Feitos da Guiné", por Luís Sanches de Bâena, Comissão Cultural da Marinha, 2006. 

Voltando ao trabalho de Duarte Silva, ele refere que os feridos e os cadáveres foram transportados sob vigilância militar para o hospital e a casa mortuária. No dia seguinte, o administrador do concelho de Bissau contatou um dos capitães, Mestre Ocante Benunte, este apresentou-lhe as cinco condições dos grevistas para retomarem o trabalho. Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso publicam os sete telegramas enviados pelo Governador ao Ministro do Ultramar, vem em "Os Anos da Guerra Colonial", Quidnovi, 2010. Encetam-se conversações, fizeram-se novas contratações, depois retomou o trabalho e em 11 de agosto estavam em funcionamento 30 num total de 53 lanchas. 

O historiador Leopoldo Amado é taxativo dizendo que o PAI “não teve, pelo menos diretamente, uma ação ou influências decisivas nas ações que viriam a desembocar em Pidjiquiti”. Como seria de esperar, o descontentamento, a greve dos estivadores, aquela quantidade de mortos e feridos que cada um contabiliza à sua maneira, serão apresentados como um marco histórico, para o PAIGC passava-se da agitação nacionalista à fase superior da luta de libertação nacional.

António Carreira, que antes de ser sócio-gerente da Casa Gouveia tivera outras e variadas andanças (capataz de estradas, aspirante dos correios e telégrafos, aspirante do quadro administrativo, secretário da circunscrição civil e administrador da circunscrição civil, tudo na Guiné entre 1921 e 1954) e que se tornou persona non grata e acusado de autor moral da mortandade declarou em entrevista, passados quase vinte anos, que “os governantes da Guiné-Bissau têm-se manifestado hostis à minha pessoa por razões ligadas aos acontecimentos do Pidjiquiti em 1959, endossando-me a responsabilidade da ocorrência. Ora eu não me sinto com nenhuma responsabilidade direta no caso (…) O que para mim se apresenta curioso é que nunca tivessem apontado para os autores materiais do caso: o comandante militar, o comandante da polícia, e os restantes agentes do governo de então, na altura em que eu era um simples gestor comercial”. 

Para conhecer a obra prolífica de Carreira, recomenda-se a leitura do livro "António Carreira, Etnógrafo e Historiador", por João Lopes Filho, Fundação João Lopes, Cidade da Praia, 2015. Em "As voltas do passado, a guerra colonial e as lutas de libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, Tinta-da-China, 2018, há um trabalho de Sílvia Roque que praticamente nada mais adianta sobre o que até agora se escreveu. Luís Cabral, antigo Presidente da República, escreveu no seu livro "Crónica da Libertação", Edições Jornal, 1984, que o comportamento de Carreira foi de irredutibilidade, o que desencadeou a greve.

Depois da carga policial, vários grevistas e simpatizantes nacionalistas foram detidos. A autora escreve que o aumento de salários já teria sido aprovado pela CUF. Também refere que o trabalho forçado, após a II Guerra Mundial, passara a ser substituído pelo trabalho assalariado, baseado em salários muito baixos. A autora não deixa de se enredar na especulação, escrevendo: 

“Os acontecimentos do Pidjiquiti constituíram uma expressão real de uso excessivo de violência sem possibilidade de defesa, com requintes de teatralização desse excesso. São exemplos disso a referência a um comandante militar que teria atirado sobre cada uma das cabeças que se refugiaram no mar ou ao facto de apenas a corajosa reivindicação das mulheres junto do Palácio do Governador ter impedido que os corpos fossem queimados, conseguindo que fossem restituídos às famílias”.

Amílcar Cabral apresentará estes incidentes como um momento de viragem, será uma das consignas de toda a propaganda da guerra de libertação. Durante anos após a independência, os incidentes do Pidjiquiti tiveram um lugar relevante na consolidação do PAIGC enquanto personificação da nação, os anos foram gradualmente apagando das gerações mais jovens a simbólica do Pidjiquiti. E a comunicação também mudou, como mostra Sílvia Roque: 

“Durante as celebrações de 2014, enquanto Domingos Simões Pereira desafiava os guineenses para a criação de um museu em honra e memória de todos os resistentes, o secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores da Guiné afirmava que os atrasos nos pagamentos de salários punham em causa a realização dos sonhos dos mártires do Pidjiquiti”

 Confirmava-se a simbologia da desilusão.

"Lutas Laborais nos Primórdios da Guerra Colonial", por Jorge Ribeiro, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2018, debruça-se sobre o Pidjiquiti, as novidades do texto são mínimas. Associa-se diretamente o conflito laboral com António Carreira, dá-se uma analogia entre Carreira e o Coronel Carlos Gorgulho, responsável pelo massacre de Batepá, em S. Tomé e Príncipe, a 3 de fevereiro de 1953, ambos após estes desmandos horrendos foram retirados para Lisboa. 

O texto refere o avanço da Companhia estacionada no quartel-general armada com Mauser K98, mas quem avança para o cais do Pidjiquiti são os efetivos da PSP, empunhando espingardas LEE ENFIELD 7.7. Perde-se o controlo da situação, segue-se a carga de soldados e polícia.

“Para esta página da história da Guiné foram imprescindíveis a acção e o comportamento do Comandante dos Civilizados, Capitão José Manuel Severiano Teixeira, louvado e condecorado após o 25 de Abril pelos serviços prestados em África; e do governador da colónia, Capitão de Fragata António Peixoto Correia que, no fim da sua comissão na Guiné, foi chamado por Salazar para o cargo de Ministro do Ultramar”.

O autor refere a disparidade dos números indicados por Rafael Barbosa, Amílcar Cabral e Luís Cabral: Rafael diz ter visto e contado 52 corpos retirados das águas do Geba; Amílcar Cabral referiu 24 mortos e 35 feridos; Luís Cabral 24 mortos e 37 feridos graves. Mais tarde, Aristides Pereira e o próprio Luís Cabral atualizaram o número em 52 mortos.


terça-feira, 7 de março de 2023

Guiné 61/74 - 24124: Memórias cruzadas: A base (logística) de Sinchã Djassi / Hermancono, na fronteira com o Senegal (contributos de Carlos Silva, Leopoldo Amado e A. Marques Lopes)


Guiné > Região do Oio > Carta de Jumbembem (1953) / Escala 1/50 mil >  Posição relativa de Jumbembem e do "corredor de Lamel" (que partindo da estrada Farim-Jumbembem, acompanhava o curso do rio Lamel, afluente do rio Jumbembem, passando por Fantambã e Farincó até à fronteira)... Já em território senegalês havia a base (logística) de  Sintchã Djassi (assim chamada talvez em homenagem a Abel Djassi, nome de guerra de Amílcar Cabral ?!...) ou Hermancono  (também grafada como Hermacono ou até Hermangono). Na fronteira com o Senegal, estão sinalizados os números dos marcos, de 105 a 112. Era por aqui que se localizava a base.

Infogravuras: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Excerto de manuscrito do Carlos Silva, ex-fur mil Carlos Silva, ex-Fur Mil Arm Pes Inf, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). (Trata-se de um livro, inédito, sobre a sua experiência de vida na Guiné, aonde, de resto, foi por diversas vezes, a seguir à independência, em trabalho e em turismo de saudade). O nosso camarada é advogado de profissão; tem um valioso espólio documental (fotográfico e literário sobre a Guiné); é um histórico da nossa Tabanca Grande, para a qual entrou em 20/7/2007.

O manuscrito do IN, encontrado no corredorde  Lamel, em 3/3/1970, vem reproduzido também na História da Unidade, BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71), Cap II, pág. 20. Escrito em muito mau português, diz o seguinte (revisão / fixação de texto: LG):

Hermancono, 3-3-70

Oficiais, soldados e fantoches do exército colonial, estão a fazer muito ronco na estrada. Devem saber, e preparem-se,   [a base de] Canjambari já recebeu novo dirigente militar para vos 'tirar no abuso'.   Já estão muito atrevidos no caminho tanto de Bricama como de Sulucó. Temos que vos mostrar qual é o vosso lugar.

Ao nosso primeiro encontro todo o vosso comando tem de vir.

Assinado: FARP. Aviso ao Exército Colonial.




Excertos da História da Unidade - BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71), HU-Cap II -Pág. 20: 

(i) No dia 14 de março de 1970, pelas 8h30, forças da CCAÇ 2548 (Jumbembem, 1969/71) detetaram um acampamento IN a Oeste do marco fronteiriço nº 107. Lançado um golpe de mão, foram feridos 2 elementos IN, e capturado 1 LGFog e 2 granadas de RPG 2, entre outro material. O IN reagiu com armas automáticas e morteiro ligeiro, batendo a área do acampamento a partir da Repúbica do Senegal.

(ii) No dia seguinte, 15, forças da milícia de Cuntima, comandadas pelo cmdt da CCAÇ 2549, executaram uma patrulha de reconhecimento ao longo da fronteira até ao marco nº 105. Detetaram dois elementos IN, que perseguiram.

(iii) A 20 do mês, às 13h30, e durante a interdição do corredor de Lamel, forças da CCAÇ 2548 (Jumbembem) detetaram e perseguiram um grupo IN estimado em 80 elementos. que se deslocavam de Sul para Norte, a 400 metros da sudoeste da ponte. O IN não reagiu ao fogo das NT, e retirou para Norte. De Jumbembem form feitos 13 tiros de obus para a zona de retirada do IN. E, a seguir, a FAP, chamada a intervir, fez um ataque ao solo entre o rio Lamel e Fantambã. Feita uma  batida imediata, foram encontradas 10 granadas de RPG 2, entre outro material.

Infografias: Carlos Silva  / Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné (2023) 


1. O Carlos Silva teve a gentileza, no domingo passado, de me mandar cópia dos dois documentos que acima reproduzimos. Afinal, ele lembrava-se desta base (ou barraca), ou pelo menos do seu nome,Hermancono ou Hermacono. Ficaria no limite do subsetor de Jumbembem, mas já em território senegalês. Nos mails que trocámos, ele esclareceu:

(...) Luís, este nome   [Hermancono]  ficou-me na orelha, Consultei o meu livro e  História do Bat Caç 2879 e cá está ele.

Como referi participei na operação que fizemos à zona, mas não encontramos qualquer vestigio. Segue o panfleto que apanhamos em Lamel. (...)

(...) Eu andei por lá em fins de 1969, Mas quando fizemos a operação, não ouvi falar na base de Hermancono. Não está muito longe de Cumbamori. No meu livro dos Roncos de Farim  eu falo na 1° operação a Cumbamori em dezembro de 1967. (...)

(...) Durante toda a comissão nunca ouvi falar em tal base, apesar de ter ido lá. (...)

(...) As fotos do poste P24110 são de 1973, de certo os gajos deambulavam entre Cumbamori e Hermancono, esta designação não é guineense. (...)

Ao telefone, disse-me que já tinha andado  naquela estrada Ziguinchor-Dacar, duas vezes, quando foi à Guiné. Numa delas entrou por Cuntima, se não erro.

2. Pesquisando no nosso blogue, descobri que o toponónimo, Hermancono (*),  já sido citado mais do que uma vez: pelo historiador guineense, e nosso amigo, Leopoldo Amado (1960-2019), e pelo A. Marques Lopes, que reproduz   o Subintrep nº 32, de junho de 1971. Aqui vão alguns excertos:

(i) Leopoldo Amado, poste P 1566 (**)

(...) Com efeito, Cabral procurou a partir de 1971, estabelecer estruturas sociais de partido-Estado em Tigili/Iador/Sara/Zona Oeste (Biambi), Catió e Quintafine, enquanto que, por outro, se preocupava com as ameaças às áreas libertadas, traduzindo-se tal situação na polarização da sua actividade em torno da estrada Mansabá-Farim, na sua reacção ao reordenamento de Bissássema e na intenção de instalar forças no Unal, visando libertar corredores de infiltração que favorecessem os ataques aos centros urbanos. 

Assim, o PAIGC inicia, a partir desta altura, as acções contra Bissau e Bafatá, há muito anunciadas, num momento em que procede à desconcentração das unidades dos CE 199/A e 199/B, que se haviam deslocado para as áreas de Sano e Cumbamori (Senegal), dando por findo o esforço realizado na área de Barro-Bigene-Guidaje.

Nesta desconcentração, o CE 199/A regressou à área de Campada, enquanto o 199/B foi ocupar e reactivar a base de Hermancono, que voltou a constituir área fulcral na fronteira norte, praticamente abandona­da desde Fevereiro de 1971, aquando da sua transferência para Canjeno. 

Como consequência desta nova ocupação de Sinchã-Djassi, aumentou de forma considerável o trânsito pelo “corredor” do Lamel, que passou a ser o mais usado, seguindo-se-lhe, em menor grau de utilização, o de Canja. (...) (**)

(ii) A. Marques Lopes, poste P3258 (Subintrep nº 32, junho de 1971 - Itinerários de abastecimento do PAICG) (***)

(...) 

- Para a Frente de Morés/Nhacra

Para o Sector do Morés são utilizados os “corredores” de Lamel e Sitató, podendo também com menos frequência utilizar o de Sambuiá, segundo os itinerárioa que se referem:

“Corredor” de Lamel

Morés – estrada Mansabá/Farim sensivelmente em direcção a Biribão – Biribão – cambança do rio Canjambari nas proximidades da tabanca de Béssia – Bricama – cambança do rio Jumbembem – cambança do rio Lamel – estrada Jumbembem/Farim – Fambantã, seguindo depois um carreiro até um local nas proximidades da fronteira onde a coluna aguarda a chegada do material. 

Este vem da arrecadação existente na base de Sinchã Djassi e é transportado até ao referido local em viaturas, sendo ali entregue às colunas que o esperam. 

O regresso é feito pelo itinerário inverso, tendo o percurso (ida e volta) uma duração de cerca de seis dias. Os locais de pernoita pensa-se que serão em Biribão  [a sudeste do Olossato] e Fambantã.

O IN utiliza para movimentar as suas viaturas de reabastecimento às bases desta Frente a chamada “Estrada Grande”, isto é, a estrada que, a partir de Koundara, segue por Linnkiring – Velingará – Dabo – Kolda – Bantankoutou – Sonco – Sare Tening – Tanaf – Ierã – Samine – Ziguinchor. É pois a partir deste itinerário principal que saem ramificações que conduzem às diferentes bases. Assim,

- Para Faquina: Kolda – Bantankoutou – Sonco – Lenquerim – Faquina

As viaturas vão apenas até Bantankoutou. Os reabastecimentos a partir daqui são transportados por carregadores que em Lenquerim cambam a bolanha de canoa para passarem à base de Faquina.

- Para Sinchã Djassi (Hermancono): Kolda – Sare Tening – Hermacono

- Para a base de Cumbamori: 
Kolda – Tanaf – Ierã – Mankolecunda – Cumbamori

- Para Dungal: 
Kolda – Tanaf – Dungal

- Para Sano: Kolda – Samine – Sano

- Para Sikoum Bafatá: Kolda – Tanaf – Samine – Goudomp – Sekoum

O material e víveres vindos da República da. Guiné (Koundara) passa, como vimos,  em Dinnkiring e Kolda, locais onde é feito pelas autoridades da República do Senegal controle das viaturas e material transportado; a partir de Kolda o material é usualmente acompanhado por pessoal do Exército Senegalês, embora em escolta à distância.

No terminal da “Estrada Grande” encontra-se Zinguinchor, sede do comando da Inter-Região Norte, mas que no quadro da logística do PAIGC não parece desempanhar papel relevante dado que, segundo os elementos disponiveis, apenas apoiará os grupos sediados em M’Pack e Kassou.

O reabastecimento das Frentes do interior da Inter-Região Norte é feito por colunas de carregadores através dos “corredores” tradicionais de infiltração e suas variantes, sendo sempre feitos em movimentos vindos do interior, razão pela qual se descrevem estes “corredores” no sentido inverso àquele em que, até aqui, se tem descrito p fluxo dos reabastecimentos.

Estão detectados os seguintes:
  • “Corredor” de Sitató, com início em Faquina
  • “Corredor” de Sambuiá, com início em Cumbamori
  • “Corredor” de Lamel, com início em Sinchã Djassi [ / Hermancono]
  • “Corredor” de Sano, com início em Sano [pelo lado Este, entre Barro e Bigene - A.Marques Lopes]
  • “Corredor” de Canja, com início em Pirgui [pelo lado Oeste, entre Barro e Sedengal - A. Marques Lopes]
_______________

Notas do editor:

(*) Vd.  poste de 1 de março de  2023 > Guiné 61/74 - P24110: Memórias cruzadas: onde ficava a base (logística e operacional), do PAIGC, de Hermacono? Segundo informação recolhida por Cherno Baldé, junto de um antigo guerrilheiro, ficava na linha de fronteira com o Senegal, no vértice de um triângulo que tinha como base as tabancas (abandonadas) de Farincó e Fambantã, a oeste da estrada Farim-Jumbembem

(...) Comentários de Carlos Silva:

Conheci bem o nosso Sector de Farim e principalmente o nosso subsector de Jumbembem onde estivemos de 2/01/1970 a 16/6/1971.

Quando estivemos em Farim chegámos a fazer uma operação ao Dungal que fica na fronteira na qual eu não participei.

Fomos a Lambã duas  vezes, onde se dizia haver por lá uma base, andamos para diabo e nada.

Estivemos destacados no K3 / Saliqunhedim, e fizemos operações para esse lado para a bem conhecida Fátima onde tivemos contacto com IN e todas as Companhias por lá andaram.

Picagens para Lamel ponto de encontro de Farim/Jumbembem. Patrulhas e operações nessa área até ao rio Jumbembem/Farim/Cacheu.

Em Novembro de 1969, estava o meu 4º Pelotão destacado no K3 e a minha CCaç 2548 foi fazer nomadização para a fronteira norte Sitató/Cuntima onde tivemos o 1º morto a 28 de Novembro.

Palmilhamos todo o subsector de Farim enquanto ali permanecemos. A partir de Janeiro/69 até ao nosso regresso palmilhamos todo o nosso subsctor de Jumbembem que ia da picada Farim - Jumbembem - Cuntima até ao Senegal.

Fui diversas vezes emboscar para Farincó Mandiga, Fanbamtã,  Sare Soriã que fica a oeste de Jumbembem.

Muitas vezes para Sare Mancamã, Saman que fica a norte e fomos fazer operações para a fronteira para os Marcos 109 e 110,  Sare Sofi,  onde tivemos contactos com IN, bem como
fomos lá 2 ou 3 vezes buscar população.

Palmilhamos em picagens, patrulhas Jumbembem/Lamel; Jumbembem/Sare Tenem / Canjambari; Jumbembem/Norobanta, e em todos estes percursos levantámos muitas minas e tivémos azar com 2 camaradas, um ficou sem o pé no percurso Jumbembem/Sare Tenem / Canjambari e outro já a chegar ao termo da picagem Jumbembem/Norobanta.

Das operações à fronteira aos marcos, saímos de Jumbembem via Sare Mancamã, Samã e regressávamos via Galgega e apanhávamos as viaturas em Norabanta de regreeso a Jumbembem.

Tivémos contactos Fanbamtâ e Sare Soriâ bem como ao longo das picadas, principalmente Jumbembem/Lamel.

Nunca ouvi falar em Hermacono / Hermangono, mas perguntei aos meus amigos de Jumbembem que me disseram que existe no Senegal próximo da fronteira uma tabanca com esse nome, que não aparece nos mapas.

Como disse fomos a Lambã duas  vezes e não ouvi falar dessa tabanca. Para mim, Lambã ficou-me na memória porque da 2ª vez que lá fomos o meu camarada Furriel Enfermeiro já falecido, quando da retirada perdeu a pistola na bolanha e andamos a pisar o terreno até encontrá-la. (...)

(...) Cumbamori fica a uma dúzia de quilómetros a noroeste de Guidaje. Sambuiá (corredor de Sambuiá) fica a oeste de Bigene e a sul de Talicó, na picada de Farim - Bigene - Barro - Ingoré. Já fiz esta picada 2 vezes em férias, a primeira em 1997 ainda não havia a ponte de S Vicente,  e a 2ª vez já atravessei a ponte. (...)

(...) No nosso Sector de Farim enfrentávamos os Corredores de Lamel e Sitató. Em Lamel no meu tempo ficava lá emboscado e patrulhava a zona diariamente e alternadamente um pelotão de Farim; Nema ou Jumbembem.

Colunas e picagens desde 1970 até regressarmos, fazia-se colunas diárias para abastecimentos alimentares, transporte de cibes e materiais para a construção das tabancas.

De Jumbembem saíam 3 pelotões para picagens para sul, Lamel/Farim; para norte Norobanta/Cuntima e para este Sare Tenem / Canjambari.

Para além desta actividade das picagens, patrulhas, operações etc, ainda tivemos a tarefa de construir um aldeamento completo, demolição das tabancas velhas e construção de tabancas novas. (...)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade

Mário Beja Santos

Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.

Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.

Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.

A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.

Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Foi uma belíssima escritora, de um ecletismo com forte propensão para a literatura juvenil e uma vertente memorial de grande rigor e sobriedade. Nunca se deixou condicionar pelo facto de ser casada com António Ferro, o responsável pela propaganda do Estado Novo. O que aqui se refere é a sua vivência em Bolama, o pai era o responsável da capitania do Porto, chegou aqui pela primeira vez com 13 anos, foi uma estadia traumática, a mãe faleceu provavelmente de febre-amarela, foi recambiada com o irmão pequeno para Portugal, voltará mais tarde, entretanto o pai voltou a casar, há mais irmãos, mandou a roda da fortuna uma nova colocação em Bolama, ela praticamente omite a segunda estadia, mas que aquela Guiné a subjugou é bem patente nesta "África Raiz" publicada em 1966, é uma elegia onde se misturam a ode triunfal com atmosferas misteriosas, onde pesa muitíssimo o exotismo, a floresta densa, os intermináveis fios de água. Lê-se com imenso agrado esta poetisa marcada pelo modernismo, cantando a África mãe, empolgada, chamando-lhe mater e matriz: "tu, África és raiz, és raiz".

Um abraço do
Mário


Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense

Mário Beja Santos

A escritora Fernanda de Castro (1900-1994) viveu na infância em Bolama, e "África Raiz", poema publicado em 1966 é uma obra modernista eivada de recordações desse tempo juvenil em que o pai dirigia a capitania de Bolama, não faltam no livro as referências que a memória reteve, as florestas, rios de água, aromas, o sortilégio das noites africanas, batuques, a flor do cajueiro, as danças. 

À data da edição, Fernanda de Castro era já uma autora prolífica, detentora de uma obra volumosa que se estendia pela poesia, pelo romance, teatro, literatura infantil e romance. Mariazinha em África foi o seu maior sucesso, remexeu neste romance as vezes que foram necessárias, de acordo com a necessidade de mudar o olhar colonial, evolutivo, de acordo com o ideário do Estado Novo. O poema "África Raiz" é dedicado à terra de Bolama, onde a sua mãe faleceu e está sepultada.

O tom exaltativo e exultativo arranca logo nos primeiros versos:

“África,/ no teu corpo rugem feras,/ uivam fomes e medos ancestrais,/ no teu sangue há marés,/ na tua pele há dardos e punhais./ Ventre de Continente,/ és mater e matriz./ Ásia é semente, Europa é flor,/ outros serão essência ou tronco,/ tu, África, és raiz”

Fala-nos de florestas venenosas de gigantes, de ciclopes vegetais, de pirogas e crocodilos, do rastejar das cobras, do esvoaçar dos jagudis, é uma permanente apoteose de musicalidade, entremeando-se do cheiro do almíscar, dos corpos em convulsão, não faltam tapetes vegetais, florestas fechadas, contas e missangas, o inevitável poilão, e lança-se, empolgada, como que desafiando tudo quanto a memória reteve:

“Ó África, raiz de quantas Áfricas/ pelo mundo espalhadas lhe consentes./ África mítica dos mitos/ de cinco Continentes./ África negra em cujas veias corre/ um sangue denso e grosso./ África impenetrável, obstinada, desbravada a machado, troço a troço”

Atenta aos costumes do quotidiano, deixa-nos um outro apontamento da memória: 

“Mulheres e bajudas/ lavam roupa no rio./ Veias de sangue branco, os rios,/ quilómetros de veias que percorrem/ a terra calcinada,/ que alimentam/ o arroz e dessedentam/ os pés de milho e de mancarra./ Escondida no mangue,/ uma piroga, sem remos, sem amarra,/ parece um velho tronco,/ um crocodilo à tona de água”.

A elegia é permanente, marcou-lhe a juventude aquela Bolama, como veremos mais adiante no seu texto "Ao Fim da Memória I, 1906-1939", deixemo-nos por enquanto com a sua ode triunfal:

“África das manhãs de Paraíso, com pombas e gazelas e açucenas/, com doces frutos nunca proibidos,/ e cantos de marimbas e de avenas”

Há o sino da igreja, e logo me ocorreu que a Igreja de Bolama que ela frequentou foi devorada pelo incêndio, aquela em cuja missa participei oficiada em crioulo é outra, crianças e adultos cantando, talvez os convertidos Mancanha e Manjaco, Balanta e Baiote, Papel e Bijagó que ela também conheceu. Fernanda de Castro é uma sexagenária avançada quando produziu "África Raiz", brotou-lhe espontânea aquela África voluptuosa e seguramente as lembranças da jovem adolescente que ouviu trovões e se impressionou com o desabamento das águas, como escreveu:

“E de repente/ uma nuvem de chumbo tapa o Sol,/ como asa de agoiro,/ e um vento negro escarva, muge, arranca,/ com a fúria de um toiro./ O céu ruge trovões, estoira lumes/ nas copas incendiadas, as rajadas/ retalham como gumes/ de aceradas espadas,/ arrancam arrozais, abrem crateras,/ uivando como lobos,/ como esfaimadas feras./ Tudo é calor,/ suor,/ tudo é cinzento,/ o céu e o vento”.

Nas suas memórias, inevitavelmente que tudo começa pela apresentação de Bolama, onde chega com a mãe e o irmão, receção apoteótica do pai, lembra-se que ao longo do cais havia muita gente, “Deram-me na vista, acima de todos, os Bijagós com os seus saiotes de palha, os Mancanhas embrulhados em grandes panos azuis e os Mandingas com as suas cabaias de um branco imaculado”. Sobressaía o Palácio do Governo, o edifício mais imponente, mas sem rasto de beleza e ali perto o edifício da capitania, logo se agradou de um jardim em que havia bananeiras e papaeiras e uma grande quantidade de hibiscos de grandes flores encarnadas.

“A cidade de Bolama era na realidade uma pequena vila provinciana que poderia parecer alentejana, por exemplo, se não fossem os trajes garridos, os planos coloridos das mulheres, os balaios que traziam à cabeça, e se não fossem também os capacetes coloniais, que os brancos eram obrigados a usar se queriam cometer a imprudência de sair à hora do calor”.

 Criou amizades, a sua vida era simples e agradável, faziam a sesta sobre a proteção de grandes mosquiteiros de tule, à noite havia sempre visitas, ela tem 13 anos, não se apercebe das dores de cabeça da mãe que irá inopinadamente morrer de febre amarela. E é o regresso dramático a Lisboa com o irmãozinho, uma viagem que se arrasta com uma estadia inesperada em Cabo Verde. Manda a roda da fortuna que se diga que o pai irá de novo casar e anos depois será de novo colocado na Capitania de Bolama, viagem de navio, não se recorda exatamente se foi no Bolama se no Guiné, de novo uma avaria em Cabo Verde, ficaram um mês retidos em S. Vicente, onde um jovem se mostrou galante, ela totalmente indiferente e um belo dia chegaram a Bolama, não nos ficará registo do que aqui se passou.

O seu legado principal, insiste-se, é o romance "Mariazinha em África", um sucesso de décadas. Leopoldo Amado no seu trabalho sobre a literatura colonial guineense dar-lhe-á um grande apreço. Uma outra nota singular é referir que outra escritora passou por Bolama, e deixou-nos páginas tumultuosas da época das chuvas, foi Maria Archer.

Lê-se o testemunho de Fernanda de Castro e o que mais pesa é a morte da sua mãe, aquela noite em que ela e o irmão foram tirados do sono e rapidamente recambiados para Bissau:

“Eu estava exausta, sacudida por maus pressentimentos, mas apesar disso adormeci. Quando o meu pai chegou, desfeito, com ar alucinado e as lágrimas a correrem-lhe em fio, esqueceu as palavras que por certo preparara e disse-me apenas, apertando-me convulsivamente:
- Morreu! A tua mãe morreu há duas horas. E agora, agora, o que vai ser de nós. E eu não conseguia dizer nada, chorava também convulsivamente, misturando as minhas lágrimas com as dele.”


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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)