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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25174: (De) Caras (203): Nota solta (José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé, Canquelifá, 1973/74), com data de 13 de Fevereiro de 2024:

Nota solta

Caro Luís
Antes de mais as tuas melhoras.

Tenho tido pouca interação com o blogue mas não dispenso a sua leitura semanal. Gosto muito de seguir as publicações dos camaradas que habitualmente o fazem e que muito interesse me despertam.

Nesta altura do campeonato, em que só nos resta fazer a mala, vemos as coisas de forma diferente e, no meu caso, às vezes, assaltam-me momentos de lucidez que me espantam.

Sem preocupação de escalonar por importância é frequente concordar ou discordar de alguns “posts” ou comentários de outros camaradas sobre a temática da guerra na Guiné. Inibo-me de comentar por entender não ter grandes bases para tal até porque, e aí começa o problema, a guerra começou em 1963 e, naturalmente, as condições eram diferentes de 1973. Por outro lado, às comissões de 21/24 meses correspondiam da outra parte largos anos de guerrilha e o profundo conhecimento do terreno e a adaptabilidade ao mesmo.

Ainda na Metrópole senti que as coisas não eram levadas a sério. A vida continuava alegremente, excepto para os Pais que tinham filhos no Ultramar. Os irmãos já sabiam que mais tarde ou mais cedo iam lá parar, só não sabiam em que província e, portanto, havia que gozar a vida.

Em Leiria de passagem e depois a recruta em Santarém, onde encontrei gente de nível militar exigente mas sempre correcto, passei por Tavira onde encontrei um ambiente com ambições guerreiras mas perfeitamente anedótico onde cada um fazia o que o poder lhe permitia sem qualquer coerência.

Formação do batalhão no RI 15 em Tomar com destino à Guiné com muitos analfabetos e alguns “esperados” que, até um cego via, não tinham condições físicas para integrar uma companhia operacional.

Quando cheguei à Guiné, a Bolama, já que o “Niassa” ficou ao largo de Bissau e fomos transferidos diretamente para uma LDG (às cinco da tarde e chegámos a Bolama ao meio dia seguinte), e olhei para aquilo a primeira impressão que tive: “foi isto que estes gajos fizeram em 500 anos?”

Relativamente à guerra nunca pensei em ganhá-la porque, até outro cego via, que tal não era possível.
Descontando a diferença de armamento e da experiência em combate, com manifesta superioridade do adversário (digamos assim), o facto das unidades militares estarem em quadrícula (julgo que é assim que se diz) tornavam-nas num fácil alvo que permitia flagelações a partir das fronteiras dos países vizinhos, com intervalo para as refeições ou para satisfazer necessidades. Por vezes, apenas as valiosas intervenções das forças especiais no terreno permitiam algum descanso.

Por outro lado, as condições de vida nos aquartelamentos em que vivi eram desumanas e a fome era firme e constante, tal como a divisa do meu batalhão. Nunca percebi como é que uns se tratavam tão bem e outros passavam tão mal tendo em atenção que a dotação orçamental era semelhante.

Com o 25 de Abril a guerra na Guiné praticamente terminou tendo começado as negociações. A sobreposição do pessoal do exército colonial pelo PAIGC, pelo menos em Bissau, fez-se calmamente até Setembro, com a exceção da patifaria feita aos camaradas dos comandos africanos que ainda hoje me arrepia. Não estou em posição (nem quero) de julgar quem quer que seja mas aquela canalhice tornou a atormentar-me quando recentemente vi os Estados Unidos (e outros) abandonarem de um dia para o outro os seus colaboradores no Afeganistão.

Acabada a guerra, regresso à Metrópole, procura de emprego, constituição de família e luta constante para a sustentar o melhor possível, ambição natural de todos nós.

Após uma vida de trabalho, a almejada reforma (não venha por aí alguma patifaria) e o acompanhamento frequente dos netos, tarefa que se desempenha com alegria mas que denuncia algum cansaço próprio do avançar da idade (a pedalada começa a falhar).

Em consequência da reforma passei a receber uma prestação anual como ex-combatente que em 2023 foi de 171,90 € (em termos líquidos transformou-se em 107,90 €). Incomoda-me recebê-la por dois motivos: porque, afinal, grande parte é devolvida a quem a paga, isto é, dá com uma mão e tira com a outra, e porque não me faz falta, seria muito mais útil para reforçar o rendimento dos muitos que mais pecisados estão.

Também tive direito ao cartão de combatente que me permitiu ter um passe gratuito para os transportes urbanos (moro em Lisboa) que pode ser utilizado em toda a àrea metropolitana. Nas outras zonas do País não sei se é útil. Quanto ao PIN e à bandeira, dispenso. Contudo, não deixo de destacar a luta dos camaradas que o conseguiram.

Provavelmente, este arrazoado não tem interesse, mas é o que de momento se pode arranjar.

Um abraço
José João Domingos

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Nota do editor

Último post da série de 9 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25052: (De) Caras (201): O cap art 'comando' Nuno Rubim (1938-2023): fotos do meu álbum (Virgínio Briote, ex-alf mil 'cmd', cmdt Gr Diabólicos, Brá, 1965/67)

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Guiné 61/74 - 24376: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (36): As ostras do nosso (des)contentamento (Hélder Sousa / Luís Graça / José João Domingos / Valdemar Queiroz)


Guiné > Bissau > "O Arauto, 27 de Julho de 1967", o único jornal diário da província no nosso tempo> Anúncios de duas casas especializadas em ostras, em Bissau : Casa Afonso, no Chão de Papel; e o Miramar, que vendia uma travessa gigante de ostras (da rocha ou da pedra, em conglomerado) por 20 pesos... Dois anos depois ainda eram ao mesmo preço, quando por lá passei... E o Hélder Sousa também pagava 20 pesos, quatro anos depois, em 1971



Croqui da parte oriental da Bissau Velha, entre a Avenida da República (hoje, Av Amílcar Cabral) e a fortaleza da Amura. No 15 ficava o Hotel Miramar / Cais Bar... A antiga Rua Olivera Salazar é hoje a Rua Mendes Guerra. O Miramar ficava em frente à Casa Pintosinho (2, no croqui). Era aqui, ao lonmgo da década de 1960 e 1970, comíamos ostras, a 20 pesos cada travessa, quando vínhamos a Bissau... (*)

Infogravuras: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo!) > Agosto de 2020  >  Ostras ao natural, anti-Covid 19... Não, são de Có, Quinhamel ou do Saltinho... São da Lagoa de Óbidos (**)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Há coisas engraçadas, mas que parecem não ter explicação: os portugueses têm nas suas rias, lagoas, estuários... bancos de ostras das melhores do mundo (dizem os entendidos, e dizem os franceses que lhes chamam "les portugaises"... sem qualquer discriminação ou  conotação sexual)... 

Mas a generaliddade dos portugueses prefere  outros moluscos: a ameijoa, 0 berbigão, a navalha ou lingueirão, o percebe, o mexilhão, para não falar do "tremoço"... Há um preconceito atávico em relação à ostra (nome científico: Crassostrea Angulata)  (talvez devido ao  aparentemente repulsivo aspeto do seu interior...).  

Quem foi  à Guiné, pelo contrário, passou a ser fã da ostra, seja da ria Formosa, dos estuários do Sado e do Tejo ou até da lagoa de Óbidos... Amarga foi, porém, a ostra que deu nome a um infeliz operação, em que as NT sofreram uma emboscada com dois mortos, em 18 de outibro de 1969, no sector de Bula,  testemunhada  e filmada por jornalistas franceses.

Mas falemos das ostras do nosso contentamento, que se apanhavam em Có, balaios e balaios delas, e  que depois eram vendidas e comidas em Bissau... Registamos aqui alguns comentários ao poste P24372 (***)


(i) Luís Graça:

Viva o esparguete, que foi o fiel amigo do combatente ao longo da guerra... Mais as cavalas de conserva... Já poucos se lembram disto...

Chamar-lhe, ao esparguete, "atacadores da PM" (os atacadores brancos das botas da Polícia Militar...) é que é um achado humorístico...

7 de junho de 2023 às 06:32 

 Tem piada, o português não gosta de ostras, um excelente alimento... As nossas ostras, das melhores do mundo, vão para França. É como a história do porco preto espanhol que vem engordar nos nossos soutos... Não sabemos fazer presunto...

7 de junho de 2023 às 11:17

(ii) Hélder Sousa:
 
(...) Quanto a essa coisa de "o português não gostar de ostras", claro que só pode ser uma generalização pois os portugueses que estiveram na Guiné apreciavam (e apreciam) bastante essa iguaria. Não esquecer também a "sopa de ostras", que faz parte do roteiro gastronómico da Guiné-Bissau.

Tanto assim é que em muitas das "viagens do turismo de saudade" não faltam as idas a Quinhamel para comer ostras. E eram bem boas, as muitas que comi em Bissau. Boas e relativamente baratas.

No entanto devo confessar que também eu tinha um preconceito quantos "às ostras". Lembrava-me sempre as expressões "populares" que acompanhavam a expulsão de escarretas, daquelas bem cheias de muco e ranho com "lá vai ostra" e daí associar as situações à visão da ostra.

Depois, a luta com as faquinhas para chegar à ostra naqueles pedaços de "ostra da pedra", bem quentinhas, o molho de limão com piri-piri, o convívio, a visão das enormes travessas bem cheias, as "bazucas" a acompanhar, tudo isso ainda hoje é inesquecível.

Por cá havia viveiros naturais de ostras no Tejo e no Sado.

Quando regressei da Guiné e ainda antes vir para Setúbal, apanhando o "balanço" das experiências guineenses e o facto de o meu camarada TSF ser daqui de Setúbal e o pai trabalhar num despachante oficial que tratava dos despachos para França, onde são muito apreciadas, sempre voltei a comer essas iguarias.

Depois disso, com a entrada em funcionamento dos estaleiros navais da então Setenave, as ostras do Sado foram desaparecendo, dado que são muito sensíveis a elementos poluentes, embora agora se estejam a regenerar alguns bancos de ostras e que depois são tratadas em estação de depuramento.

Mas concedo que, na generalidade, os portugueses "não gostam de ostras"...

7 de junho de 2023 às 11:51  

(iii) Luís Graça

Também há ostras aqui perto da Lourinhã,  na Lagoa de Óbidos e, felizmente, cá em casa todos gostamos. Sou eu que as preparo.(**)

Confesso que também foi na Guiné, em Bissau, que comecei a apreciá-las. Depois quando ia à Galiza, passava por  Vigo, não perdendo a oportunidade de as voltar a saborear... As deliciosas ostras das "rias bajas".

Acho que temos de fazer mais pela divulgação da nossa ostra, que é um excelente alimento e é rica em cálcio... Vou publicar o teu comentário... E mais algum que apareça sobre as ostras de Có, ou de Quinhamel, ou do Saltinho (parece que também as há no Corubal)...

No meu tempo em Bambadinca tínhamos o camarão ou o lagostim do rio Geba... Nunca apanhei uma diarreia por causa  do marisco... Em África é sempre problemático comer marisco. 

7 de junho de 2023 às 12:54

2. Já agora vai aqui um destaque para um texto do José João Braga Domingos sobre "as outras de Bissau" (****):

(...) Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.
 
3. E, como as ostras são como as cerejas (o mal é começar), finalizamos com um comentário do Valdemar Queiroz ao poste P20388 (*),que vem enriqucer esta nossa série "No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande" (*****)

(...) Pois, estarei a fazer confusão. Estava convencido que seria na esplanada da 'Ultramarina', então seria na 'Miramar', na rua em frente do 'Pintosinho'... Já lá vai meio século.

E quanto a ostras, já as tinha comido e de grandes barrigadas. Nos anos 1961-62-63-64 era hábito o campismo selvagem em Troia, e eu mais três amigalhaços da Estefânia (Lisboa) íamos pra lá acampar no Verão.

Naquele tempo, Troia tinha o cais dos barcos, umas casas da colónia da GNR, no lado do rio, o resto era deserto, uns pequenos palheiros, uns poços abertos na areia e centenas de tendas de campismo.

Andava-se para os lados da Comporta e, antes de chegar à Carrasqueira, havia uma zona com um grande 'filão' de ameijoa branca e ostras, aos milhares. Era encher grandes sacadas à pressa, por causa da subida da maré, e depois nas tendas grandes barrigadas: ameijoas e ostras abertas numa panela, com um pouco de água no fundo e apenas temperadas com sal, só faltava a cervejola. 

Bons tempos, agora tudo aquilo faz parte do 'calote do BES'

28 de novembro de 2019 às 00:32 
___________

Notas do editor:



(...) Confesso:
aprendi a comer ostras em Bissau,
à beira do Geba,
no intervalo da guerra...
Ao natural, as ostras,
apenas com lima e piripiri.
Passei por Tavira
mas não me lembro das ostras que lá comi.
Se é que havia ostras, no último trimestre de 68,
na ria Formosa que servia de campo de tiro.
E, se as comi, eram amargas.
 
Se calhar, a maior parte de nós,
dos ex-combatentes,
aprendeu a comer ostras em Bissau...
Calhaus de ostras!...
Conglomerados!...
Com molho de lima e piripiri...
Passava-se um tarde
a matar a fome e a sede, 
à volta de uma travessa de ostras,
longe do Vietname,
que começava logo ali a partir de Nhacra.
A 20 pesos a travessa.
Não havia exercício mais anti-stressante
do que esse, de abrir e comer ostras,
nas esplanadas de Bissau,
à beira rio, com o cheiro a tarrafe,
e saudades do Tejo ou do Douro,
cada um tinha o seu rio de estimação. (...)

(***) Vd. poste de 6 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24372: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte II: A imaginação que era preciso ter para se comer "atacadores da PM com estilhaços"!... Trocando carne do restaurante "Solar dos 10", em Bissau, por produtos locais de Có (camarão, ostras, tomate...) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

(****) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"

(*****) Último poste da série >  12 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24310: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (35): chegou a primavera (mesmo sem "abril, águas mil"), que vai bem com (diz a 'Chef' Alice): (i) favas com casca, suadas, à moda alentejana; (ii) carapauzinhos fritos com arroz de tomate; e (iii) favas suadas à moda da Maria da Graça... Sem esquecer: (iv) o festival literário "Livros a Oeste (11ª edição, Lourinhã, 9-13 mai 2023); e ainda (v) a 14ª quinzena gastronómica do polvo (Lourinhã, 17-31 mai 2023)...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21947: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (11): "O Mendes" e "A independência"


1. E assim damos por finda a publicação desta série de memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74) enviadas ao nosso Blogue no dia 29 de Janeiro de 2021:


30 - O MENDES

Era o furriel miliciano enfermeiro da nossa Companhia. Mais do que um camarada, mais do que um camarigo (camarada e amigo) era um camarigueiro (camarada, amigo e companheiro).

A sua ambição civil era estudar medicina mas, circunstâncias da vida, obrigaram-no a adiar o sonho que, todavia, manteve sempre.

Tirada a especialidade foi colocado em Tomar e veio connosco para a Guiné.

A sua competência, calma e humanismo no tratamento dos doentes, civis ou militares, era excecional e, ser tratado pelo Mendes, era cura rápida e certa.

Homem afável, falava baixo e sempre com muita seriedade, sem nunca perder a calma, em particular com os seus subordinados a quem tratava como iguais e que muito o respeitavam.

Já na vida civil, encontrámo-nos casualmente duas ou três vezes e falava-me sempre na possibilidade de se organizar um convívio para rever a rapaziada de que ele tinha saudades. Levou esse convívio 30 longos anos a acontecer e, entretanto, o Mendes tinha-nos deixado.

Lá, onde estiver, saberá com certeza a estima e gratidão que todos nós lhe temos.


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31 - A INDEPENDÊNCIA

Após o 25 de abril, foram estabelecidos acordos com o PAIGC para a transferência dos poderes territoriais.

Em Bissau, antes da independência, só pontualmente se via pessoal do PAIGC, nomeadamente à noite no edifício dos CTT.

As coisas foram sendo feitas gradualmente e com grande descrição até à independência da Guiné-Bissau que, creio, se processou a 10 de setembro de 1974.

Regressei à Metrópole, evacuado, no dia 5 de setembro de 1974 e a minha companhia no dia seguinte.

Nos meses que passei em Bissau, depois do 25 de abril e antes do regresso, assisti a várias manifestações da população, a propósito de tudo e de mais alguma coisa, que normalmente decorriam sob um manto de preocupação ou tristeza o que colidia com o que devia ser a alegria de um povo acabado de ser libertado.

As pessoas acomodavam-se de pé, em camionetas de caixa aberta, deslocando-se em marcha lenta, e recitavam uma ladainha qualquer que não entendia, estando ausente aquela alegria espontânea própria do povo africano, mais parecendo um velório.

Na minha opinião, este comportamento indiciava a consciência de que o caminho da liberdade tinha muitos perigos e incertezas, em particular para aqueles que viviam nas cidades e que de alguma forma beneficiavam com a estadia dos militares portugueses na Guiné, assegurando com alguma facilidade a sua subsistência e a da família, objetivo prioritário em qualquer sociedade.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

HM 241 de Bissau


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


28 - A EVACUAÇÃO

A situação vivida em Canquelifá era prenúncio de doenças e tocou-me a mim mais uma dose de paludismo e, na recuperação, uma apendicite aguda com peritonite brava que me ia deixando lá ficar os ossos.

Após uma noite de vomitório constante o furriel enfermeiro, o nosso amigo Mendes, pelas seis da manhã do dia 20 de Abril de 1974, pediu a minha evacuação para o Hospital Militar de Bissau (HMB). O heli chegou pelas doze horas tendo saído quase de imediato em direção a Nova Lamego (Gabu) onde fui visto pelo médico que não concordou com o diagnóstico. Após uma longa espera pois um paraquedista tinha aproveitado para dar um salto, lá me levaram numa Berliet para a pista e, para esperar à sombra, puseram-me em cima da maca debaixo da traseira do veículo. Quando o heli baixou apanhei tanta poeira e terra que, semanas depois, hospitalizado, ainda possuía vestígios da poeirada.

Mas a coisa não ficou por aí, ainda piorou, pois o heli foi a Bambadinca buscar correio e a tripulação aproveitou para se refrescar, enquanto eu, ardendo em febre, ia chupando água com compressas molhadas.

Cheguei a Bissalanca já era noite e fui de ambulância para o HMB. Como era hora de jantar o atendimento demorou algum tempo. Por fim lá fui operado mas a recuperação correu mal.

HMB: lendo o correio

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29 - A VIDA NO HOSPITAL MILITAR DE BISSAU

A vida no Hospital Militar de Bissau [, HM 241,] era, em muitos casos, perfeitamente surrealista para quem estivesse atento.

Entrei no HMB a 20 de abril e, ainda nos cuidados intensivos, onde não me apercebia do decorrer do tempo, tomei conhecimento do 25 de abril que, a princípio, ninguém ali sabia o que era.

Já em recuperação, fui para uma enfermaria com outros camaradas onde, mesmo em mau estado, passei momentos inesquecíveis, tivesse eu arte para os contar. Mas, mesmo assim, atrevo-me a dar um lamiré.

O comer era basicamente arroz (bianda) pelo que me socorria de sandes, leite e sumos que o Martinho, o auxiliar da enfermaria, me ia comprar à cantina. Frequentemente o almoço não me chegava pelo que interpelava o Martinho sobre o assunto o qual me dava uma qualquer desculpa esfarrapada do género: como eu estava acamado e o almoço era servido na varanda da enfermaria decerto alguém o tinha comido. Até que, um dia, lá me consegui levantar e, de facto, o Martinho, que era desarranchado, batia-se prazenteiramente com o meu almoço.

Havia uma auxiliar, bajuda, muito bonita e elegante, trajando minissaia, que nos fazia a cama. Era certo e sabido que cada cama que a Carol fazia a visão que transmitia revigorava os doentes, principalmente os vizinhos do lado, um dos quais se debruçou tanto que caiu no chão da enfermaria.

O Lemos, furriel de outra Companhia do meu Batalhão, baixou ao HMB para a ala psiquiátrica. Nunca percebi se foi por doença ou estratagema mas de facto cada vez que me visitava parecia-me mais apanhado. Entretanto, teve alta, e, no mesmo dia, na Praça do Império, houve zaragata que meteu arma branca e o Lemos que nada tinha a ver com o assunto foi esfaqueado tendo de novo baixado ao HMB, agora para outro serviço. Passados dias foi visitar-me e transmitiu-me a sua grande preocupação com a cicatrização da costura pelo que perguntava frequentemente a minha opinião sobre o assunto, além de passar a vida ao espelho para aquilatar da evolução daquela marca corporal.

Um oficial superior foi operado às amígdalas no HMB. Porém, o quarto reservado para as maiores patentes estava ocupado por um militar de patente mais alta pelo que lhe terá sido proposto passar um curto período pós-operatório num quarto de oficiais de menor patente. Creio que recusou e foi recuperar para onde vivia. De noite, a situação ter-se-á complicado e, sem assistência adequada, terá falecido. Conto como me foi transmitido pois, embora estivesse internado no mesmo hospital e tivesse conhecimento geral da situação, não testemunhei os pormenores.

Havia um soldado que estava internado por ter apanhado com estilhaços de granada que, embora pequenos, eram muitos e lhe apanhavam grande parte do corpo, incluindo a cara. Porém, o seu estado não exigia que lhe fossem ministradas injecções, que normalmente eram fortíssimas e os efeitos da toma algo dolorosos o que fazia com que o pessoal procurasse fugir na hora da injecção. Ora, o rapaz acordava cedo e deambulava pelas instalações acompanhando o enfermeiro para observar o seu desempenho na aplicação dos medicamentos. Mas, não só fazia isso como tirava prazer em controlar os camaradas que procuravam fugir ao acto denunciando ao enfermeiro a sua localização.

As Senhoras do Movimento Nacional Feminino visitavam semanalmente os doentes hospitalizados no HMB. Levavam consigo sempre uma palavra amiga e cigarros ou leite, ofertando a cada um de nós uma coisa ou outra. A maioria dos doentes metropolitanos optava pelos cigarros (as enfermarias eram também salas de fumo), em contraste com alguns doentes africanos que agarravam ambas as coisas não percebendo, ou fingindo não perceber, que tinham que optar por uma e, perante isto, as Senhoras, lá transigiam desfalcando as suas reservas.

As visitas dos familiares aos doentes incidiam naturalmente sobre os de origem africana. Em muitos casos, o doente dormitava durante a visita e a família alimentava-se com o que o militar tinha disponível, bebiam o leite ou o sumo, comiam as bolachas, fumavam os cigarros e, a finalizar, ainda levavam algum dinheiro que este tivesse na gaveta. Uma hora depois iam-se embora sem que, nalguns casos, tivessem sequer falado com o doente.

Pouco passava de meados de maio de 1974 entrou no HMB um soldado do grupo “Os Vingadores”, liderado por Marcelino da Mata, hospitalizado na sequência de um acidente em Mansoa quando uma granada caíu de uma bolsa de transporte e explodiu. Esteve alguns dias internado e, diariamente, passava pela enfermaria um 1.º sargento metropolitano que, creio, dava apoio logístico ao grupo, abastecendo o doente de produtos alimentares e de higiene de acordo com os pedidos que este fazia.

Durante a estadia no HMB tive oportunidade de assistir a situações curiosas mas, para mim, o cúmulo do non-sense era uma espécie de praxe que alguns militares amputados faziam a doentes periquitos no Hospital.

Se podiam andar, todos os doentes gostavam de visitar as enfermarias procurando alguém conhecido. Nos locais onde havia pessoal amputado acontecia, por vezes, o doente nestas condições solicitar aos camaradas que por ali apareciam o favor de lhe coçar um dos membros inferiores, naturalmente o que tinha perdido, embaraçando deveras a vítima da brincadeira.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21916: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (9): "O relógio do Matos", "Há homens que metem medo" e "Canquelifá"

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21916: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (9): "O relógio do Matos", "Há homens que metem medo" e "Canquelifá"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


25 - O RELÓGIO DO MATOS

Num qualquer domingo de janeiro de 1974, fomos a Bissau vários camaradas em cujo grupo se incluía o Matos, regressado na véspera da Metrópole, onde tinha gozado férias.

Perto da Amura, quando íamos descer a escada de acesso à esplanada do Pelicano, que dava para o cais, estava um guineense vivaço a querer vender um relógio vistoso a preço de combate.

Ninguém se mostrou interessado no artigo, com exceção do Matos, que, por acaso, trazia no pulso um relógio que lhe fora oferecido dias antes, durante as férias, mas que não era tão vistoso. Feito o negócio que, para além de dinheiro vivo, incluiu a transferência do relógio do Matos para o vendedor, descemos a escada para a esplanada a fim de tomar um refresco adequado ao final de tarde que se aproximava.

Sentados à mesa há poucos minutos, alguém repara que os ponteiros do relógio acabado de adquirir não tinham movimento e alertou o Matos. Este, subiu a escada num ápice à procura do vendedor para desfazer o negócio por incumprimento de uma das partes. Nunca mais o viu.

Também aqui a necessidade aguçou o engenho.

Bissau: Esplanada do Pelicano (estou de costas) e, da esquerda para a direita: o Machado da 3.ª CCAÇ, o Cibrão, o Carmo, o Caetano e o Matos (já falecido)


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26 - HÁ HOMENS QUE METEM MEDO

Em janeiro de 1974, tendo já passado por Bolama e pelo Setor de Aldeia Formosa, ter feito uma dezena de colunas a Farim e uma a Guidaje, sem ter tido confrontos e baixas, o Cardoso, 1.º Cabo, resolveu pedir para o PIFAS a passagem de um disco dedicado à Companhia cujo cognome seria, no seu entender, “Há homens que metem medo”, verso retirado de uma cantiga interpretada por um conjunto musical na altura com alguma popularidade na Metrópole e cuja passagem ele solicitava.

Continuamos a fazer colunas a Farim sem qualquer problema. Porém, sempre que éramos substituídos, e isso aconteceu por duas vezes, a coluna tinha problemas.

No final de março de 1974 fomos para Canquelifá substituir a 3.ª Companhia do nosso Batalhão, que por lá passou um mau bocado, e o grande problema que enfrentámos foi sobreviver naquele buraco onde faltava quase tudo.

Perante isto, o tal cognome arranjado pelo Cardoso pegou entre o pessoal e até parecia que era ajustado porque nos 14 meses passados na Guiné apenas tivemos dois ou três militares evacuados por doença.

O facto de termos comandante e graduados muito atentos e rigorosos na forma cuidada como as tropas se deviam movimentar no terreno, ajudou certamente a evitar alguns conflitos. De resto, foi pura sorte, ou estivemos sempre à hora certa no local certo.


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Canquelifá - © Foto de Adão Cruz

27 - CANQUELIFÁ

No final de março de 1974, fomos para Canquelifá substituir a 3.ª Companhia do nosso Batalhão, que tinha lá passado um mau bocado onde, creio, ficamos em sobreposição com a CCAÇ 3545 que ainda passou um bocado pior.

Lá fomos de LDG até ao Xime e, depois, em coluna, passando por Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche e Canquelifá.

Entre Piche e Canquelifá a coluna parou várias vezes para se proceder à desativação de minas anticarro. O pessoal deslocava-se apeado, fora dos trilhos habituais. Mesmo assim, um dos paraquedistas que fazia segurança, a quem faltavam poucos dias para terminar a comissão, acionou uma mina anticarro e ficou quase desfeito.

O cheiro dos legumes frescos em decomposição chegava ao aquartelamento muito antes da coluna.

Lá chegámos ao destino. Um buraco com condições indescritíveis ocupado por jovens cujo recente sofrimento lhes estava estampado nos rostos e que, apesar disso, ainda conseguiam dar alguma alegria tocando e cantando, nomeadamente uma adaptação do fado do estudante às vicissitudes passadas naquela terra.

Os vários poços de água ficaram incapazes pois devido às constantes flagelações continham no seu interior animais domésticos em decomposição. A captação de água ficava a algumas centenas de metros e exigia forte segurança e, mesmo assim, a água tinha que ser filtrada. Ora, não havia filtros pelo que a purificação da água era feita num latão com uma torneirita no fundo e, de baixo para cima, com diversas camadas de pedras, areia e cinza. Por este processo conseguiam-se apenas poucos litros de água por hora o que em situação de carência de outras bebidas, como cerveja e leite, que era frequente, tornava o ato de matar a sede muito complicado.

Ao nível da alimentação as coisas também estavam más por escassez de reses e as que havia tinham tal magreza que era difícil tirar delas mais do que os ossos. Aliás, as vacas que por ali andavam mais pareciam mortas que vivas.

O ambiente naquele espaço era doentio e assustador. Vivíamos em abrigos onde mal nos podíamos mexer.

Fui encarregado de receber a cantina que a CCAÇ 3545 explorava e, suprema ironia, do seu conteúdo constavam três garrafas de espumante “Fita Azul” que ainda há pouco tempo vi à venda num supermercado.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"


Guiné > Região do Oio > K3 > 1973 > O José João Domingos: paragem da coluna para Farim

Foto (e legenda): © José João Domingos  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


22 - AS COLUNAS PARA FARIM E GUIDAJE

A partir de outubro passamos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com passagem em Nhacra, Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia independente de açorianos (ou madeirenses) que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada.

Em novembro ou dezembro, uma das colunas estendeu-se a Guidaje. Lá fomos andando, um bocado receosos, porque uns meses antes tinha sido um fim do mundo naquela zona. Até Binta tudo correu bem mas, a partir daí, as coisas complicaram-se porque o comandante do esquadrão das Panhard, com justa prudência, exigia um carro rebenta minas com um rodado semelhante ao daqueles veículos. O rodado da Berliet que desempenhava tal função não cobria o rasto daqueles carros. Vai não vai, anda não anda, e lá foi um Unimog a desempenhar a função.

Pelo caminho, metia respeito observar os sinais dos combates ocorridos em maio de 1973, quando ainda estávamos na Metrópole, com várias viaturas militares consumidas pelo fogo, perto da picada. Mas, enfim, lá chegámos a Guidaje sem contratempos.

Enquanto nos instalavamos fomo-nos apercebendo do estado psicológico de grande desânimo em que se encontravam os camaradas ali colocados, apesar de seis meses passados sobre a ocorrência. Mostraram-nos um dos abrigos onde teriam morrido vários camaradas, as valas onde também morreu gente e, mais impressionante, as campas de algumas das vítimas das flagelações e combates que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram.

Estivemos até tarde à conversa, ouvindo camaradas a contar as situações horríveis por si vividas, contadas de forma dorida, não para impressionar periquitos, antes buscando uma palavra de ânimo e solidariedade de outros que, mais novitos e não tendo passado por situação semelhante, estavam ainda com alguma força psíquica para os animar.

De manhã cedo, o regresso, que tardou porque quem tinha a incumbência de fazer a segurança não estava para isso. Conversa e mais conversa, lá chegaram a um consenso, mas fiquei com a impressão de que segurança não houve, apenas sorte, mais uma vez.



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23 - OS ENGRAXADORES

Nas deslocações a Bissau tinha por hábito frequentar o café do Bento, 5.ª Rep, embora também fosse, por vezes, ao Império e à Ronda.

Mal o cliente se sentava na esplanada apareciam miúdos guineenses a oferecer os seus préstimos, de engraxador de sapatos ou de fornecedor de mancarra.

No caso dos engraxadores, se o cliente estava recetivo, acordava-se o preço, conforme fossem sapatos ou botas o calçado a engraxar. Se o cliente não queria o serviço o garoto mantinha-se perto dos sapatos, normalmente com bastante pó, e, como quem não quer a coisa, ia passando a escova num dos sapatos e insistindo na prestação do serviço que o eventual cliente ia rejeitando. Porém, quando este olhava para os pés verificava que um dos sapatos estava bastante mais limpo que o outro e acabava muitas vezes por contratar a engraxadela.

Um exemplo concreto de que a necessidade aguça o engenho.


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24 - AS OSTRAS DE BISSAU

Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):



19 - O ALBERTO

Logo no início da nossa estadia no Ilondé começou diariamente a aparecer à entrada da nossa tenda o Alberto, um guineense de 12 ou 13 anos, humilde e educado, filho de uma das lavadeiras, residente naquela localidade, que sabia ler e escrever, o que lhe dava algum estatuto junto do pessoal pois funcionava como tradutor de crioulo que também nos ia ensinando.

A nossa tenda tinha 8 habitantes e todos gostavam do Alberto. O seu trabalho era reduzido, assentando na varredura diária do chão da tenda e um qualquer recado, a troco de um ou outro peso que lhe íamos dando e, por vezes, de algumas guloseimas que recebíamos de casa.

A esta distância tenho ideia que a nenhum de nós passou pela cabeça que o Alberto estaria feito com o inimigo. Contudo, hoje, acho estranho o seu relacionamento connosco tendo em conta que na localidade moravam dezenas de jovens da mesma idade de cuja existência apenas nos apercebíamos quando havia cinema no quartel. Assim ou assado, estimávamos o Alberto e procuramos sempre ajudá-lo, nomeadamente, fornecendo-lhe com a maior rapidez possível os resultados de cada jornada do campeonato nacional de futebol, disputado na Metrópole, que ele seguia religiosamente através de um caderninho onde apontava os jogos e os respetivos resultados.

Dada a abundância de roupa que não me servia para nada resolvi, um dia, dar umas calças ao Alberto. Ora, na época, os africanos eram muito vaidosos e extravagantes com o vestuário e a roupa tinha que ficar bem justa. Ao vestir as calças o Alberto disse logo que não as queria por serem demasiado largas. Agarrei no Alberto e nas calças e fui a Bissauzinho onde havia alfaiates de rua que logo ali ajustaram as calças ao gosto do cliente. Custou a brincadeira setenta pesos, tanto como pagava mensalmente à lavadeira, mas valeu a pena ver a alegria do Alberto.

Enfim, as coisas mudaram e nunca mais soube do Alberto. Oxalá a vida lhe tenha sorrido.


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20 - O SIPAIO

Era frequente sair a porta de armas, que ficava junto à estrada para Bissalanga ou Quinhamel, e fumar um cigarro debaixo de uma árvore onde alguns elementos da população se juntavam em amena cavaqueira, em crioulo, da qual pouco ou nada entendia.

Gostava daquela gente, que tinha tão pouco e vivia aparentemente feliz. Por razões culturais, que transcendiam o meu entendimento, a riqueza dos homens media-se pela quantidade de mulheres e de animais que possuíam. As mulheres eram consideradas como animais, avaliadas em cotejo com estes, e eram elas que angariavam os meios de sustento da família através do seu trabalho, fosse como lavadeiras fosse como domésticas.

Naquele dia, estava um grupo mais numeroso que o habitual e, entre eles, um sujeito vestido com uma farda que não conhecia e que, pensei, ser uma qualquer autoridade local que designei de sipaio (ou cipaio).

A certa altura, no decorrer da conversa, o tal sipaio afastou-se alguns metros e ajoelhou-se. Tal movimento despertou-me a atenção e pensei que o sujeito ia rezar, mesmo sem tapete. Um minuto depois vejo-o a remexer na terra, levantar-se, sacudir as calças, aproximar-se de novo do grupo e retomar a conversa. Afinal tinha estado a urinar.

Recordei então que, de facto, pelos caminhos da Guiné por onde tinha andado, nunca me apercebi da presença de dejetos humanos produzidos por esta gente e, testemunhando aquela atitude, percebi porquê.


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21 - O EXPRESSO DO ILONDÉ

Diariamente, uma pequena camioneta de passageiros que fazia a ligação Ilondé – Bissau estacionava na estrada, quase em frente à porta de armas.

Uma hora antes da partida, com um calor quase insuportável, já muitos passageiros estavam instalados nos respetivos lugares.

A carga mais volumosa ia no tejadilho a que se acedia por uma escada existente na traseira da camioneta.

Porém, o mais engraçado era o transporte dos animais, principalmente cabras, galinhas e porcos, que iam normalmente do lado da janela ao colo dos seus proprietários, sendo que as cabras se instalavam paulatinamente com o focinho de fora aguardando o arranque da viatura.

Pouco mais tarde, aparecia uma carrinha Toyota, de caixa aberta, que arrebanhava o resto do pessoal que não tivesse tido lugar na carreira normal e, uns em pé, junto à cabine, outros sentados, no chão da caixa, com os respetivos tarecos, lá partiam para Bissau.

Estou em crer que esta carrinha desempenhava a função de desdobramento.

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Nota do editor

Último poste da série de11 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", Os incêndios" e "O prostíbulo"

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", "Os incêndios" e "O prostíbulo"

1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


16 - A REUNIÃO

Instalados em tendas de campanha, com doze moradores em cada uma, péssima comida servida ao ar livre, ausência de latrinas e de chuveiros, fizeram com que o comandante da Companhia reunisse o pessoal nas imediações do aquartelamento, a pretexto de um exercício, procurando saber quais as maiores carências sentidas para de alguma forma as poder minorar.

Várias intervenções apontaram para as reais dificuldades que os militares sentiam mas a maioria dos problemas apontados não colheram grande adesão. Com maior insistência por parte do comandante na identificação dos problemas houve quem apontasse problemas que nem existiam. Contudo, uma das questões levantadas que concitou a quase unanimidade dos presentes foi a escassez de vinho às refeições, problema que o comandante prometeu resolver de imediato.

Assim, na refeição seguinte, apareceu vinho com abundância. Claro que a quantidade era praticamente a mesma, continha era mais gelo.

Aliás, a distribuição do vinho tinha momentos caricatos. Quando algum soldado menos dado à bebida abdicava da sua ração de vinho logo o imediatamente a seguir, ou o anterior, propunham-se recebê-la. Contudo, ressaltava um problema logístico que era a inexistência de segundo copo. Sem problemas, o soldado beneficiado ingeria logo ali a ração do camarada e transportava depois a sua para acompanhar o repasto.

Esta reunião marcou-me bastante pois a uma boa intenção, rara naquele meio, correspondeu uma insensibilidade total daqueles que dela podiam tirar benefício e que nem disso se aperceberam. Aliás, e por mim falo, grande parte dos militares participantes naquela guerra nem tinham bem consciência do sarilho em que estavam metidos.

Ilondé: hora de pôr a escrita e a leitura em dia. Da esquerda para a direita: eu, o Silva, o Cibrão e o Costa (de costas). Em pé está o Chaves

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17 - OS INCÊNDIOS

No sentido de melhorar a instalação do pessoal, até que o aquartelamento fosse construído, foram erguidas duas instalações de capim que pretendiam ser o refeitório e a messe.

Creio que o refeitório nunca foi equipado com mesas e bancos e, portanto, nunca foi utilizado como tal.

A messe era dividida ao meio por uma cerca de pequenos troncos em X, para que não se misturassem oficiais e sargentos, embora estivessem todos à vista, e a conversa tinha que ser comedida pois o nosso comandante de Batalhão jogava bridge com outros oficiais e precisava de concentração. Ao fundo, tinha um balcão de atendimento também separado pela mesma cerca com um frigorífico alimentado a petróleo. Era possível comer uma sandes e beber uma cerveja sempre que o rancho não era apelativo. E havia fiado.

Um dia, talvez por avaria do frigorífico, em horário de serviço, a parede de capim incendiou-se e a messe ardeu e, com ela, arderam as existências, as notas em caixa e …o livro de fiados, cuja regularização ficou logo feita.

Porém, antes, um grupo de soldados, cuja tenda era contígua à que eu habitava, tinham no intervalo entre ambas instalado um pequeno bar, feito de capim, onde vendiam café instântaneo e que para atrair clientela dispunha do jornal “A Bola”, que um deles assinava.

Um domingo, resolveram fazer um almoço de bacalhau cozido para o qual tinham convidado dois ou três amigos de outras unidades. Por mau funcionamento da máquina a petróleo, ou por qualquer outro motivo, o bar incendiou-se tendo o fogo alastrado por acção do vento para a tenda contígua (que não a minha), onde viviam os proprietários do bar, e consumido tudo o que lá se encontrava, incluindo cerca de uma dezena de G3 e respetivas munições e algumas granadas.

A situação estava complicada e só por acaso não fez vítimas graves devido ao rebentamento das munições e granadas. Para dominar o fogo veio o carro da água e um soldado mais solidário saltou para a porta do pendura com o carro em andamento para ajudar a combater o fogo, mas, por infelicidade, estatelou-se no chão e deslocou um ombro.

Pagou cara a solidariedade, pois estava prestes a vir de férias e, com o tempo de recuperação e a resolução do respetivo auto, estas esfumaram-se.

Ilondé: o incêndio no café

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18 - O PROSTÍBULO

O desenrascanço dos portugueses, em geral, e dos soldados em condições difíceis de sobrevivência, em particular, dariam um bom livro, filme ou exposição (se isso já não foi feito).

No Ilondé, em péssimas condições de instalação já antes descritas, com doze soldados a viver em cada tenda, com todos os apetrechos militares e civis, a convivência por vezes era complicada. Mas, o pessoal era capaz de fazer milagres para melhorar essas condições e, havia um caso, logo na primeira tenda do lado da estrada, a um canto do arame farpado, onde essa convivência era exemplar.

Num dia de pré, ao cair da noite, comecei a ver algum movimento nesse canto do aquartelamento com a presença de várias raparigas do lado de fora, em amena cavaqueira com alguns soldados, e um africano, com ar cabo-verdiano, que, soube depois, se fazia transportar numa carrinha de caixa aberta. Pensei que fosse pessoal da população e não liguei mais ao assunto. Contudo, no mês seguinte, reparei no mesmo cenário, também em dia de pré, o que me levou a concluir que ali havia gato.

Até que, em conversa com um dos soldados, fiquei a par da situação. Nos dias de pré, previamente conhecidos, havia alguém que contactava com o tal cabo-verdiano que, ao cair da noite, trazia as moças para o local previamente combinado. Para que a função não fosse feita em condições desconfortáveis, as raparigas entravam para a retaguarda da tenda e aí, num colchão militar, devolviam aos usuários a calma necessária para enfrentar as agruras da vida até ao mês seguinte. Antes de iniciar a função procedia-se ao pagamento, cujo montante não apurei, e, satisfeitas as necessidades, o militar ia à vida que a moça tinha ainda clientes para atender.

Contudo, havia que proceder ainda a um pagamento adicional ao soldado que tinha cedido o colchão para o efeito, pois não era prático andar cada um com o seu colchão às costas, entre tendas, que estas coisas fazem-se de forma discreta. Normalmente, o cedente do colchão fazia rendimento suficiente para ter o mesmo benefício sem avançar com o seu dinheiro.


Ilondé: passeio domingueiro ao Biombo. À frente o P. Costa; 2ª linha: o Carmo, o Domingos, o Silva, o Martins e o Alves; 3ª linha: o Chaves, o Pinto e o Cibrão
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21872: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (5): "A carreira para Brá"; "Ilondé" e "Desenrascanço"

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21872: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (5): "A carreira para Brá"; "Ilondé" e "Desenrascanço"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


13 - A CARREIRA PARA BRÁ

Enquanto estivemos nos Adidos, a aguardar colocação, deslocávamo-nos com alguma frequência ao centro de Bissau, fosse para ir telefonar ao Correio, comer ostras frente ao Mussá, na rua da Polícia, beber um café no Bento, no Império ou na Ronda, tomar ao fim da tarde um gin tónico na esplanada do Pelicano ou jantar no Solar dos Dez.

Havia transporte do Exército mas, por conveniência, de vez em quando fazíamos a viagem de autocarro, com a população local, e, para mim, era uma viagem deliciosa não obstante os odores e a gritaria que tinha de suportar.

Um belo dia, durante o trajeto, o autocarro, com portas automáticas, apinhado, parou para entradas e saídas. Empurrão daqui, empurrão dali, o pessoal lá se foi ajustando no espaço disponível. Contudo, no arranque, um guineense ficou com o corpo de fora e as pernas para dentro da porta traseira do autocarro o que gerou alarme imediato com a pronta imobilização da viatura. Tornou a tentar entrar no autocarro e, quando ia a subir, a porta fechou-se novamente e, no arranque, logo abortado, ficou com a cabeça dentro do autocarro e as pernas de fora. Finalmente lá conseguiu entrar totalmente dentro do autocarro e, com toda a gente a rir incluindo o próprio, lá seguimos viagem.

Uma situação que, na Metrópole, daria ensejo a forte discussão foi ali um momento de boa disposição.

Adidos: momento de descontração

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14 - ILONDÉ

Após alguns dias passados nos Adidos fomos para o Ilondé, aquartelamento situado entre Bissalanca e Quinhamel, que apenas possuía dois edifícios que serviam para a instalação do comando do Batalhão e das Companhias, secretarias, depósito de géneros e de armamento e um pequeno bar que servia à porta. Aliás, naquele local ia ser construído um novo aquartelamento cuja obra teve início mas duvido que tenha sido terminada.

O pessoal ficou instalado em tendas de campanha. Não havia latrinas nem banho. Para obviar ao problema foram cavados alguns metros de trincheira para onde a rapaziada defecava diretamente. A questão dos banhos era solucionada no rio que passava próximo, com grande dificuldade para os que não queriam tomar banho diretamente no rio, pois era preciso esperar que o latão enterrado na margem enchesse e, depois, com meia cabaça proceder à molha, ensaboamento e retirada do sabonete (Lifebuoy), situação semelhante à vivida em Colibuia só que agora com mais gente. As nativas que lavavam a roupa em local próximo passavam o tempo do nosso banho na risota, fazendo entre si comentários em crioulo que não percebíamos mas facilmente adivinhávamos.

Mas, o pior sucedeu após alguns dias naquela situação pelo facto de, com o vento, o papel higiénico utilizado andar a voar por todo o acampamento, situação que deu lugar à formação na parada das forças acampadas perante as quais foi feito um discurso tardio sobre a forma de resolver o problema, que passava pela utilização de uma pá de areia de cada vez que se usava a latrina improvisada. Não sei se saiu à ordem qualquer orientação sobre o assunto mas, se saiu, gostaria de saber os termos em que foi feita.
Ilondé: a minha tabanca (e de mais 7). O Caetano e eu (em pé)

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15 - DESENRASCANÇO

Com o pessoal instalado em tendas de campanha começou, logo no primeiro dia, a procura por melhores condições de vida dentro das circunstâncias que incluiam a inexistência de latrinas e banhos.

As tendas foram sendo abertas na parte de tràs, junto ao arame, e com ajuda da vegetação existente formava-se um acrescento significativo (atrasado) da tenda que servia de sala de estar e de comer (não havia refeitório).

Com madeira aproveitada faziam-se mesas e pequenos armários para guardar os utensílios de necessidade constante.

O pessoal mais apto para a área comercial construiu uma pequena estrutura coberta com capim, onde era servido café instantâneo e se lia o jornal com alguns dias de atraso.

Alguns dias passados, apareceu um jogo de matraquilhos, instalado ao ar livre, que constituia receita da Companhia e cujo montante foi progressivamente minguando, embora o pessoal jogasse mais ou menos o mesmo.

Entretanto, com a resolução do problema das latrinas e dos banhos, o pessoal partiu para um estádio superior de conforto tendo-se dedicado afanosamente a melhorar as suas condições de vida das formas mais diversas.

Porém, a cereja no topo do bolo era a cadeira de baloiço feita de um barril de vinho.

Ilondé: a minha tabanca (e de mais 7), a mesa exterior e as cadeiras de baloiço. Da esquerda para a direita: o Pinto, o Chaves, o Caetano, o Mendes e o Domingos (à civil)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21858: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (4): "O Machado"; "O Tiago e a pena" e "Viagem para Bissau"

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21858: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (4): "O Machado"; "O Tiago e a pena" e "Viagem para Bissau"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


10 - O MACHADO

Numa deslocação de reconhecimento e emboscada numa zona que supostamente o inimigo frequentava e que durou dois dias e uma noite, atravessámos várias bolanhas para chegar ao local referenciado onde encontrámos vestígios antigos de presença humana.

Retiramos do objetivo e procuramos no regresso um local para passar a noite que se aproximava. Instalamo-nos, perto das 18H00, para comer a ração de combate e dormir, quando, logo a seguir, desabou uma carga de água que estimo, porque não tinha relógio, terá durado algumas horas. O pessoal foi-se encostando às árvores, em pequenos grupos, cobrindo-se com os panos de tenda que alguns levavam mas que não impediram uma molha geral.

Algum tempo depois de passada a tempestade, noite cerrada, alguém aflito chama pelo graduado do seu pelotão que logo o manda calar. Mas, a cegarrega continuou em tom mais baixo, com grande aflição, pelo que o graduado se deslocou ao local onde pediam a sua presença e perguntou ao militar, sem o ver, a causa de tão grande aflição. O Machado disse que não tinha uma perna, afirmação que causou algum alvoroço, com alguém a comentar que teria sido algum bicho, o que angustiou ainda mais o soldado. Era uma situação complicada de resolver, a meio da noite, sem se ver nada. Tendo-se acalmado, o Machado verificou que afinal tinha a perna mas não a sentia, situação bem mais favorável.

O que aconteceu, está bem de ver, é que o Machado completamente ensopado deitou-se em posição fetal, adormeceu e com ele adormeceu a perna sobre a qual se deitou.

Ao alvorecer, sem chuva, com o chilrear dos pássaros qual despertador amigo, iniciámos o regresso ao quartel com o Machado a andar perfeitamente e, por dentro, a chilrear também. Claro que não se livrou de alguns remoques dos companheiros.


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11 - O TIAGO E A PENA

Estávamos alguns militares junto ao cavalo de frisa, porta de armas do quartel, à espera da viatura proveniente de Cumbijã para irmos ao médico a Aldeia Formosa.

Também ali estavam dois jovens guineenses que se puseram na brincadeira, enquanto a viatura não chegava, medindo forças, rindo, até que um derrubou o outro e o manietou.

Sentado numa pedra, junto deles, estava o Tiago, com uma pena na mão, riscando o chão, perfeitamente concentrado na sua tarefa. Entretanto, o jovem que estava dominado contorcia-se, rindo, para se libertar do domínio do outro e quanto mais se contorcia mais o que estava por cima aumentava o seu esforço para o manter quieto.

A dada altura pareceu-me haver qualquer anomalia na brincadeira e olhei para os dois engalfinhados no chão e para o Tiago, que estava junto deles. Então, percebi que o jovem que estava dominado contorcia-se mais porque o Tiago viu ali um pé à mão de semear e, paulatinamente, começou a fazer-lhe cócegas com a pena levando o jovem a esforçar-se cada vez para se libertar sem que o outro aliviasse a pressão exercida, por não perceber o que se passava nas suas costas.

Confesso que não tenho a certeza, mas creio que o jovem não conseguiu conter as águas.


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12 - VIAGEM PARA BISSAU

Em outubro de 1973, saímos de Colibuia para os Adidos, em Brá – Bissau, tendo a viagem sido feita de Lancha de Desembarque Média (LDM) a partir de Buba. Na viagem, já de noite, estalou uma tempestade assustadora que deixou o pessoal e a bagagem completamente encharcados.

Na bagagem havia malas de todo o tipo e feitio. Umas, em plástico ou pele, de cores diversas, com vistosos e seguros fechos, que pareciam aguentar bem aquela chuvada e mais umas quantas. Outras, de cartão revestido com tecido, com ar de que aos primeiros pingos de chuva se desfariam.

Eu tinha uma mala mais pequena de pele que, se bem informado, seria suficiente para toda a comissão, e tinha outra maior de cartão revestido a tecido.

Fosse pela colocação mais ou menos privilegiada de cada uma das malas no espaço a elas destinado, fosse pela qualidade das mesmas, a verdade é que a mala de cartão chegou em excelentes condições e a mala de pele ficou encharcada na base tendo-se estragado alguma da bagagem e os sinais da intempérie duraram o resto da sua vida.

Lá se chegou a Bissau e, na nossa deslocação para os Adidos, atravessámos a cidade de Berliet sendo praxados pelos militares que circulavam nas ruas, parte substancial da população que se movimentava em Bissau, com o tradicional piu-piu. Chateados, respondíamos com o “vai para o mato, malandro” adequado.

Adidos: a estender roupa e, depois, ficar à espera que seque e proceder à sua recolha para não mudar de dono
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21849: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (3): "Colibuia"; "O banho e o atavio" e "Os esperados"

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21849: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (3): "Colibuia"; "O banho e o atavio" e "Os esperados"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


7 - COLIBUIA

A minha Companhia foi colocada em Colibuia, aquartelamento situado na estrada entre Aldeia Formosa e Cumbijã, alcatroada, com sinais de um forte rebentamento perto da zona de abastecimento de água.

Curiosamente, a minha memória, que até nem é má, recorda pouco do dispositivo interior deste aquartelamento, onde permaneci dois meses.

O seu perímetro seria o de um retângulo semelhante a um campo de futebol pelado e tinha 4 ou 5 casernas sendo a mais pequena para os oficiais e sargentos, tinha 4 postos de observação e vigilância, latrinas, zona de banho (sem chuveiro), cozinha, pequena messe que incluía um bar de janela que servia para o exterior e, talvez, refeitório.

O perímetro era vedado com duas fiadas de arame farpado, onde se dependuravam garrafas vazias de cerveja que constituíam um acréscimo de segurança importante no caso de intrusão, e entre elas alguns fornilhos. A entrada, que dava para a estrada, tinha um cavalo de frisa.

O armamento fixo constava de um morteiro de 81mm.

No canto direito do lado da mata situava-se a caserna do pelotão da milícia e um posto de vigilância por ele controlado. Era o local ideal para se desenfiarem e durante as rondas verificava-se que o posto de vigilância estava sempre deserto. Enfim, por ali não havia perigo.


Aspecto do aquartelamento de Colibuia, provavelmente em 1973. Foto: © António Murta

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Distintivo da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4516


8 - O BANHO E O ATAVIO

Colibuia era um aquartelamento ao nível do pior que vi na Guiné. Ficava cada vez mais invejoso à medida que ia sabendo da existência de alguns que até tinham piscina.

As tarefas cometidas à Companhia, para além da defesa do aquartelamento, tinham a ver com o patrulhamento diário da zona envolvente, o abastecimento de água e géneros alimentícios e, periodicamente, emboscadas e participação em operações que exigiam a passagem da noite no mato.

No regresso do cumprimento das tarefas era normal o pessoal querer tomar banho. Essa função desenvolvia-se sob uma estrutura construída com troncos de árvore que suportava um latão que, cheio, levava cerca de 200 litros de água. A meio da estrutura, ao nível da cintura dos utentes, existiam umas tábuas com cerca de meio metro de altura que preservavam a intimidade dos banhistas, com excepção da entrada que estava voltada para o arame. O depósito não tinha chuveiro mas apenas um furo que se tapava e destapava com uma pequena cunha de madeira, permitindo apenas a saída de um fiozinho de água gastando o utente largos minutos para molhar o corpo e ainda mais tempo para tirar o sabão (Lifebuoy). Como, normalmente, havia mais que um banhista o seguinte molhava-se enquanto o outro, calmamente, se ensaboava e assim sucessivamente.

Após o banho, o pessoal vestia-se à civil: calção, tronco nu e chinelos. O calção era a grande moda na altura e tinha a sua origem no corte das pernas das calças levadas da Metrópole que não serviam para nada. Pessoalmente, transportei para a Guiné uma mala cheia de roupa que apenas serviu para tornar mais penosas as várias mudanças de instalações com que fui contemplado.

Conclui-se, assim, que a consciência que eu tinha da guerra e das circunstâncias em que ela se desenrolava,  era tipo turística mas que rapidamente se modificou.


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9 - OS ESPERADOS

Existia no Exército uma figura de mancebo que se denominava o esperado (ou coisa parecida), que, não sendo incorporado logo após a inspeção,  poderia sê-lo mais tarde, durante um período de 4 ou 5 anos, conforme as necessidades de pessoal.

Do meu pelotão, inicialmente com 25 homens, faziam parte 4 esperados, com idades próximas de 25 anos, sendo que um até já tinha 27 anos, oriundo do Brasil em passo de corrida para cumprir o serviço militar em Portugal, trazendo consigo duas hérnias e um jeito singular para assar frangos e fazer pão. De todos eles apenas um, o Silva, integrou sempre o pelotão nas suas saídas e o seu raquitismo não o impedia de ser um dos mais firmes e constantes. Um dia, perante um calmeirão que no mato se lastimava amargamente do peso da HK21 e respetivas munições, logo ali o Silva se ofereceu para proceder ao seu transporte e manuseamento.

Se, por um lado, me entristecia a situação daqueles rapazes com nítidas debilidades físicas, incorporados como atiradores de infantaria e depois desviados para outras tarefas, por outro lado apeteceu-me dar um grande abraço ao Silva e dizer-lhe o orgulho que sentia em o ter na minha secção.

Mas, era assim que se ganhavam guerras?

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21839: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (2): "Pira desenfiado"; "A praxe" e "Os Ray-Ban"

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21839: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (2): "Pira desenfiado"; "A praxe" e "Os Ray-Ban"


1. Recomeçamos hoje a publicação das Memórias do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), interrompidas em 2015, e reenviadas ao Blogue em mensagem do dia 29 de Janeiro de 2021.
Trata-se de uma série de curtas estórias que culminam com a independência da Guiné.



4 - PIRA DESENFIADO

Saídos de Bolama, aportámos a Buba com destino a Aldeia Formosa (Quebo). A coluna partiu pela picada de ligação que estava em péssimo estado pois corria a época das chuvas. Após largas horas de caminho, chegámos a Mampatá onde demorámos pouco tempo para deixar o que era para lá ficar e também alguém que não era para ficar.

Evoluindo para Aldeia, que era relativamente perto, ninguém se apercebeu que faltava um soldado da CCS, cuja especialidade não recordo, mas cuja silhueta a esta distância me lembra um jovem alto, magro, sempre com um livro ou caderno debaixo do braço e um semblante ausente.
Após a chegada ao aquartelamento, onde habitava o BCAÇ 4513, alguém deu pela sua ausência e, após uma rápida inspeção ao pessoal, concluiu-se que teria ficado em Mampatá.

Pôs-se a hipótese de ir uma viatura buscá-lo a Mampatá mas, confesso, não me recordo se chegou a partir e o encontrou no caminho ou se, entretanto, ele teria chegado ao quartel pelos seus pés.
Nunca mais o vi e chegou-me aos ouvidos que teria sido evacuado para a Metrópole.

Esperteza? Talvez. Mas, do que não tenho dúvida é que bastava olhar para ele para se perceber que não devia estar ali.

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5 - A PRAXE

A primeira noite que passamos em Aldeia Formosa foi difícil em termos logísticos pois, além de estarmos a ração de combate, dormimos 11 furriéis num pequeno quarto deitados em colchões de ar,  que em poucas horas ficavam vazios, após uma cansativa viagem desde Bolama.

Cansados e famintos, deitámo-nos, vestidos, no nosso canto. Pouco passava das 23 horas apareceu um camarada do Batalhão residente, também furriel, com a finalidade de aplicar uma praxe aos periquitos que consistia, grosso modo, numa chuveirada. O pessoal, chateado, não achou piada à situação mas o cavalheiro argumentava que era tradição e o enfermeiro, chegado dias antes, já tinha sido submetido à tal praxe o qual, aliás, confirmou.

A coisa estava a azedar e, alguns berros depois, o dito cujo meteu a viola no saco e foi praxar para outro lado.

O que ele não percebeu é que a sorte dele e o azar do enfermeiro foi este ter chegado antes e sozinho.


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6 - OS RAY-BAN

Estava o BCAÇ 4516 estacionado na zona de Aldeia Formosa, em sobreposição com o BCAÇ 4513, quando foi convocado para uma operação de 4 dias, com o nome de código “Operação Pertinente”, juntamente com outras forças, com o objetivo de chegar ao Unal que era área frequentada pelo inimigo (IN).

A deslocação fez-se de véspera para Buba e, aí chegados, a ração de combate, dormimos pelos cantos nessa noite.

Dos locais onde passei Buba constituía para mim o ideal para fazer o serviço militar na Guiné: bons banhos e peixe fresco. Como invejava aqueles camaradas.

A meio da manhã iniciou-se a operação com a presença do oficial de operações do meu Batalhão, protegendo os olhos do sol por uns óculos Ray-Ban, dando palpites sobre a deslocação do pessoal que foi feita de viatura até ao ponto de entrada na mata.

Quando o pessoal se apercebeu de que o solista ficava a banhos em Buba, começou a “cuspir fininho” de dentro das viaturas e a coisa tornou-se desagradável mas o homem fez-se de desentendido.

Creio que foi por aí que ouvi (ou disse) pela primeira vez: “vai para o mato, malandro!”


Textos: © José João Domingos
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Nota do editor:

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