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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24898: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): Pequeno glossário do português... à moda do Porto


Porto > 2016 > Zona Histórica do Porto > "Pormenor do Morro de Penaventosa visto do miradouro da Vitória. Casario, Sé Catedral, Paço Episcopal e Igreja de S. Lourenço, mais conhecida como Igreja dos Grilos"... 

Foto (e legenda) do nosso saudoso camarada, e grande fotógrafo, amante da "Invicta", o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017) (ex-Fur Mil Arm Pes Inf, Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), membro do Bando do Café Progresso.  Publicada  no seu blogue A Vida em Fotos (2 de setembro de 2016), que ele criou em março de 2010 e que alimentou, com grande rigor e  paixão, até fevereiro de 2017, a escassos dois meses de morrer (7 de abril de 2017). É  uma das mais completas fotogalerias do Porto, que eu conheço.  Foto reproduzida aqui com a devida vénia... e com muita saudade.


1. Nesta série sobre os "falares" da gente do nosso tempo de meninos e moços (*), não podia faltar o calão e a gíria do Porto, que é mais do que a cidade, a zona histórica, a  Invicta... "O Porto é uma "Naçom", o Porto e o Grande Porto, ultrapassando as barreiras físicas do rio Douro e da estrada da circunvalação.  

Os nossos camaradas do Norte até trocavavam os bês pelos vês, de indignação,  se a gente não postasse aqui o "galizo" deles... Ora eu não quero que eles digam que eu tenho a mania de ser "dono da estação de São Bento", até porque já tenho uma costela nortenha (daqui a dois anos  vai fazer meio século desde que "cambei" pela primeira vez o rio Douro, na Arrábida, e depois o Tâmega,  em Canaveses)... 

Para que não me chamem mouro, sarraceno, sulista, e outros mimos, aqui vai uma pequena amostra que recolhi, em cima do joelho,  e que atesta a riqueza, a plasticidade, a criatividade, a graça, a verve, o pícaro, o humor  dos falantes da língua portuguesa da "Inbicta"... Outros contributos, e nomeadamente dos camaradas nortenhos, serão bem vindos. Naturalmente que algumas  destas pérolas linguísticas também circulam pelo Sul. E outras podem ter caido em desuso...
LG


Pequeno glossário do português
... à moda do Porto

Alapar –  Assentar
Amarfanhar – Apertar, roubar
Amassos – Troca de carícias
Andar à gosma – Viver à custa dos outros, andar na moinice
Andar de calcantes  Andar a pé
Andor biolete - Desanda
Andrades - Adeptos do FC Porto (não cofundir com "tripeiros")
Apanhador – Pá para o lixo
Arpoar - Fazer uma conquista amorosa
Arreganhar a tachá – Rir à  gargalhada
Arrostar postas de pescada –  Rir à gargalhada
Azeiteiro – Rufia, malandro, chulo

Badalhoca – Porca, desmazelada, prostituta; também nome de uma famosa tasca no Porto
Badeleira  – Mulher que fala demais
Barona – Beata, ponta do cigarro
Basqueiro – Barulho ("Alto basqueiro)
Benha ! – Venha! (termo usado pelos arrumadores de carros)
Besuntas – Mulher muito gorda
Bezana – Bebedeira
Bisga – Escarro
Bitaites – Palpites, dicas, bocas
Bófia –  Polícia
Bóias  Mamas, seios
Bolacha – Bofetada
Boa (boua) como milho  – Diz-se de uma mulher gira
Briol  Frio
 

Cabeça de giz – Polícia sinaleiro (figura cada vez mais rara)
Cachaço – Bofetada no pescoço
Caga e tosse –  Não anda nem desanda
Calacantes baris – Sapato fino
Canalha – Criançada
Carago –  Caraças; forma eufemística de dizer c...alho (o falo, o orgão sexual masculino; do esanhol, "carago")
Cav(b)alão  –  Mulher "atoucinhada" (como diria o Camilo Castel Branco) e de pêlo na venta
Chá de bico – Clister
Chaço – Carro velho,  também "chocolateira"
Choninhas  Gajo mole, sem iniciativa (também se diz "Cunanas")
Chotegane – Arma, arma de cano curto (do inglês, "short gun")
Chica –  Menstruação 
Chuço – Guarda chuva
Coiras – Chatas, más. 
Coirão –  Indivíduo reles com cabedal de respeito
Cor de burro quando foge – Diz-se quando não se sabe a cor de algo
Cresce e aparece  Desanda
Croque – Pequeno murro na cabeça com os nós dos dedos
 

Dar corda aos sapatos 
– Deitar a fugir
Dar corda aos v(b)itorinos – Correr
Dar de frosques – Fugir
Dar lhe a filoxera  Desmaiar
Dar o garfeiro todo – Doer os dentes
Dia de pica-boi  Dia de trabalho
Deitar a fateixa  Conquistar (uma mulher)
Desatinar Dar uma volta
Dobradiças – Joelhos

Encher a mula – Comer muito
Enchousadela – Bater, tareia
Engrupir – Enganar
Estapor – Estupor, mau, cruel
Estar de beiços – Estar amuado
Estar de gesso – Diz-se de alguém que não trabalha
Estar com os bitorinos encharcados – Estar bêbado
Esticar o pernil – Morrer
Estrugido – Sarilho, encrenca ("Meter-se num estrugido"). mas também ligação amorosa ("Ter um estrugido")


Fajardice Trafulhice
Falar para a central – Falar sem ser ouvido ou ouvir sem prestar atenção. 
Faneca – Gaja boa, bonita
Fino  Imperial (cerveja)
Fino como um alho  – Esperto, vivaço, sagaz, astucioso
Fisgar –  Engatar
Flauta 
– Pénis
Foguete – Buraco nas meias (collants)
Foleiro das garulas  – 

Gabardina 
 Preservativo (masculino)
Galga  Mentira, mas também pénis
Galgueiro – Mentiroso
Gangada – Seita, grupo de rapazes, normalmente organizado
Garulas  –  Pernas ("foleiro das garulas", mal ds pernas)
Grav(b)eto  Dinheiro
Grito  Frio
Guna – Ranhoso; rapaz ou rapariga de origem social baixa, de "bairro camarário" que usa roupas de marca, por vezes brincos e boné de pala virado ao contrário

Ir de saco – Ser preso
Ir fazer tijolos  – Morrer
Ir medir caixotes – Morrer

Jeco – Cão

Laurear / laurear a pev(b)ide – Passear, pavonear-se 
Labagice – Porcaria, mistura de comida
Lázaro – Idoso, asilado
Leiteira  Sorte
Leiteirão – Sortudo
Lontra – Pessoa obesa, gorda, que come muito
Lostra  Chapada, estalo

Mais v (b)ale uma rua do Porto que a Gaia toda (lê-se: "cagai-a toda") 
Mamona – Pessoa interesseira
Mandar uma bisga  Escarrar para o chão
Mandar uma traulitada – Dar um murro
Mânfio – Sabidola, astuto
Manguela – Malandro, indivíduo preguiçoso
Martelar – Fazer sexo
Matrona – Mulher desmazelada
Meter os garfos    Palmar, tirar dos bolsos de alguém
Micar  – Perceber, entender,observar
Mijão – Sortudo, "leiteiro"
Mitra - Infiltrado
Moina – Polícia
Molete – Pão, carcaça
Mor – Termo utilizado pelas vendedeiras, abreviatura de «amor» 
Morcão – Estúpido, lorpa

Nardo  – Pénis (também se diz sarda, morcela)
Narizinho de cheiro – Diz-se de alguém que se ofende facilmente, vidrinho
Negócio das carnes – Prostituição

Ouras (Ter) – Ficar atordoado, enjoado

Paiba – Cigarro de substância ilegal
Paleógrafo – Conversa fiada ( “Gajo cheio de paleógrafo”)
Pandeireta – Mulher velha
Pandorca –  Badalhoca, mostrengo, vasculho
Pasteleira – Bicicleta velha, pesada
Passar a ferro – Possuir sexualmente; atropelar
Pastelão – Omeleta; patanisca;  pessoa muito lenta
Pastor – Palerma
Peixão –  Mulher que dá nas vistas, lasca, traço
Picar o ponto – Namorar
Pinoca –   Indivíduo bem arranjado
Pipi da tabela   Todo pinoca, bem vestido, efeminado
Pito - Crica, vagina, mas também frango ("Bibó Pito da Maria")
Play-mobil – Polícia; agente da autoridade
Pôr-se a fancos  – Estar atento, ter cautela
Presunto  – Parolo

Quilhar  – Usado como em “vai-te lixar”

Rópia 
 Vaidade
 
Sameira – Carica, sama,
Selo – Mancha, sujidade nas cuecas
Sêmea – Rabo de mulher
Sertã – Frigideiram da cabeça
Sofrer da cuca –  Não regular bem da cabeça
Sostra – Pessoa preguiçosa

Tecla Três – Anormal, deficiente (por analogia da tecla 3 dos telemóveis)
Toura – Mulher jeitosa
Trav(b)esseira - almofada
Trengo – Atrasado, apalermado
Tripas a moda do Porto  Dobrada
Tripeiro  – Natural do Porto (não confundir com "andrade", adepto do FCP)
Tótil – Muito, “bué”, "manga de" (como se dizia na Guiné)
Trombil – Cara, "fuças"

V(b)ai-te, Afonso 
 Vai-te quilhar, lixar, f...der
V(b)ai no Batalha – Mentira, filme (referência ao cinema Batalha)
V(b)agem – Feijão verde
V(b)ergar a mola – Trabalhar
V(b)idrinho  Diz-se de alguém que é muito suscetível
V(b)ira-v(b)entos  Volúvel

Zaruca 
 O mesmo que sofrer da cuca
Zequinha – Pessoa meio apalermada

Com os contributos de: António Graça de Abreu, Carlos Vinhal, Fernando Ribeiro, Joaquim Costa, Jorge Teixeira, Valdemar Queiroz
________

Fontes (além dos dicionários de português e da Net):
  • Almeida, José João - Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas (recolha de José João Almeida,. Universidade do Minho. 2023. Disponível em https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf
  • Brito, João Carlos - Dicionário de Calão do Porto. Editora Lugar da Palavra, 2016 (Tem mais de 4 mil verbetes ou entradas)
  • Pacheco, Hélder - Porto: outra cidade. Porto: Campo das Letars, 1997.
  • Praça, Afonso - Novo Dicionário de Calão", 2ª ed. rev. Lisboa, Editorial Notícias, 2001.
  • Simões, Guilherme Augusto - Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1985.
___________

Nota do editor:

terça-feira, 8 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23057: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXIV: O regresso a casa, com a cidade do Porto a abrir os seus braços só para mim



Porto > Parte Ribeirinha da Zona Histórica do Porto, ao final do dia > c. 2016 > Foto do nosso saudoso camarada, e grande fotógrafo, amante da "Invicta", o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017) (ex-Fur Mil Arm Pes Inf, Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70). Publicada em 5 de setembro de 2016, na sua página do Facebook Jorge Portojo  (seu nome artístico), a escassos meses da sua morte, em 7 de abril de 2017. Reproduzido aqui com a devida vénia...

Quem vem e atravessa o rio
junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende até ao mar.

(...) E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa.

letra de Carlos Tê, música de Rui Veloso)



Foto nº 1 > Uma imagem vale mais do que mil palavras...O Joaquim Costa, de braços abertos


Foto nº 2 >  O Vago Mestre Ferreira, o homem do arroz com estilhaços e o amigo Machado de óculos escuros


Foto nº 3 > O meu grande amigo Afonso... O homem da “caminhada louca” com o olhar cúmplice da sua esposa Luísa

Sobral do Monte Agraço> 20 de Abril de 2002 > O meu 1.º encontro-convívio, o 6º da CCAV 8351, "Os TIgres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74)

Fotos (e legeendas) © Joaquim Costa  (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. Foi também professor.

Já saiu o seu livro de memórias (, a sua história de vida),
de que temos estado a editar largos excertos, por cortesia sua.
Tem um pósfácio da autoria do nosso editor Luís Graça (*)



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (**)

Parte XXIV - O regresso a casa

Estranhamente o dia da partida e a viagem para Portugal foram vividos quase em silêncio. Só quando se avistou Lisboa,  o pessoal gritou de felicidade e cantou: “cheira bem cheira a Lisboa”, mas sem grande entusiasmo. 

Sentia-se um ambiente estranho. Alegre, descontraído e ao mesmo tempo contido. O fim das hostilidades e uma pequena brisa do vendaval do PREC, que também chegou ao Cumbijã, talvez possam explicar esta melancolia.

Chegados a Lisboa, foi tudo muito rápido: Partida para um quartel que não faço ideia qual, nem onde fica, desfazendo-me de tudo que me recordasse a Guiné (deitei, literalmente, tudo num caixote de lixo, até os “roncos” de Nhacobá e muitas fotografias)... 

E mal nos despedimos uns dos outros, apenas uns acenos de circunstância com aqueles que nos cruzavámos na azáfama de nos libertamos “rapidamente e em força” (onde é que eu já ouvi isto?) dos último três anos.

Chegado ao Porto (Campanhã), pese embora a sofreguidão em rever a família, uma força vinda das entranhas, levou-me ao centro da cidade, apanhando um comboio com destino à estação de S. Bento com o dia ainda a romper. 

Quatro anos de estudante fizeram desta cidade a minha casa. A esta hora poucas pessoas se viam nas ruas e nos transportes. Senti a cidade a abrir os seus braços só para mim. Foi a primeira sensação do regresso a casa,  depois de uma longa e cansativa viagem.

Caminhei quase sozinho pelos Aliados, sentindo a falta do café Astória e do Imperial, este com a sua imponente porta giratória e o engraxador residente. Subi os Clérigos, passei pelo Estrela, o Aviz, o Piolho e ainda pelo Ceuta, felizmente, tal como os deixei. 

Respirei fundo várias vezes, chegando mesmo a limpar uma lágrima por este abraço da cidade que adotei e se me entranhou.

Durante uns anos nem falei nem queria ouvir falar da Guiné. Encontrei mais tarde o Portilho, o Albuquerque, o Beires, o Parola, o Félix e o Caetano em Itália (Veneza), em conversas de circunstância, não fazendo uma única referência à Guiné, procurando abreviar a conversa e fugir daqueles encontros como a fugir do passado recente.

Passados 28 anos depois do regresso da Guiné,  fiquei maravilhado com a carta do Tomé a convocar-me para o 6º encontro da companhia, em Sobral de Monte Agraço.  Com o entusiasmado até as lágrimas me vieram aos olhos com a perspetiva de rever aquela maravilhosa família.

No dia marcado lá abalei eu, mais nervoso do que quando embarquei para a Guiné.

Chegado ao local marcado na carta do Tomé: o mercado municipal, avistei, ainda dentro do carro, um grupo de idosos, não reconhecendo ninguém comentei com a minha mulher e o meu filho Ricardo: "De maneira nenhuma este grupo de idosos (já mais para lá do que para cá), é o pessoal da minha companhia"...

Abri a janela do carro e perguntei a uma pessoa que passava se aquele edifício, onde estavam os idosos, era o mercado municipal, confirmando que sim. Vai daí telefonei ao Tomé a saber se o grupo já tinha abalado para a igreja. Informa-me que não e que todo o pessoal ainda se encontrava junto ao mercado. 

Entretanto, o meu filho Ricardo, que tinha visto comigo, nos dias anteriores, as fotografias da Guiné que tinham escapado ao caixote do lixo em Lisboa, identificou o Afonso. Afinal, aquele grupo de idosos eram os temidos Tigres do Cumbijã

Tal como na Guiné, mantive o hábito de não me ver ao espelho!!!

(Continua)

3. Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.(*)

O livro, saído neste último Natal de 2021, aguarda a melhor oportunidade para a sua apresentação ao público.

Mas podem desde já serem feitos pedidos ao autor: valor 10 € (livro + custas de envio), a transferir para o seu NIB que será enviado juntamente com o livro.

Os pedidos devem ser feitos para o e-mail:


indicando o endereço postal.



____________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 1 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22954: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXIII: Velhice vai no Bissau, Ó-lé-lé...lé-lé...

quarta-feira, 17 de março de 2021

Guiné 61/74: P22014: Memórias cruzadas: 18 de novembro de 1969: uma dia (a)normal no HM 241, Bissau, um dia na vida do cap cubano Pedro Rodriguez Peralta, ferido em combate e helievacuado [Jorge Narciso, ex-1º cabo esp, MMA, BA, 12 (Bissalanca, 1969/71) / Jorge Teixeira 'Portojo' (1945-2017), ex-fur mil, Pel Can s/r 2054 (Catió, 1968/70 ) / Manuela Gonçalves (Nela), esposa do ex-alf mil Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60 (São Domingos, 1969)]



Guiné > Bissau > Bissalanca > BA 12 (1969/71) > Jorge Narciso, ex-1º cabo especialista MMA, junto a um helicóptero Alouette III.

Foto: © Jorge Narciso (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné > Região do Cacheu > Pel Caç Nat 60 > Estrada São Domingos - Susana > 13 de novembro de 1969 > A primeira mina A/C detetada e levantada: na imagem o alf mil Nelson Gonçalves e o 1º cabo Manuel Seleiro.



Guiné > Região do Cacheu > Pel Caç Nat 60 > Estrada São Domingos - Susana > 13 de novembro de 1969 > O estado em que ficou a viatura, Unimog, em que ia o alf mil Nelson Gonçalves.


Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Onze anos depois, reproduz-se aqui um poste do Jorge Narciso (*) com um comentário ao poste P5741 (**) do nosso saudoso Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2107) (**)

O pretexto é a efeméride da captura, ferimento e helievacuação do cap cubana Pedro Rodriguez Peralta, no corredor de Guileje, em 18 de novembro de 1969 (***).

Foi numa terça-feira (, depois de ter lançada na sexta-feira anterior), andava a Apolo XII já em órbita lunar, com 3 astronautos a bordo (, como se pode ler no título de caixa alta da edição do  vespertino "Diário de Lisboa", desse dia...)


Lisboa > Semanário "Expresso" >Edição
de 15 de dezembro de 1973 >O capitão
cubano Peralta no Tribunal Militar
de 1º instância. Uma foto  que a censura
não deixou publicar.
Um dia de azar, esse dia 18 (e, ao mesmo tempo,  de sorte) para um cubano, apanhado em emboscada, montada para o 'Nino' Vieira, no corredor de Guileje (ou "corredor da morte"), pelos nosos camaradas do BCP 12... Ficou para a história como a Op Jove (16-18 de novembro de 1969). 

Apesar de ferido, com gravidade, o cubano 
foi salvo pelos seus captores e enviado, de helicóptero, para o HM 241, em Bissau, onde a equipa cirúrgica  (onde se incluia o camarada José Pardete Ferreira) fez o seu melhor para lhe salvar o seu braço direito. 

Há dois testemunhos sobre esse dia,
 que vale a  pena  "repescar", o do Jorge Narciso,  1º cabo especialista MMA, BA 12, 
Bissalanca  (1969/71) e o  do  Jorge (Teixeira, (Portojo,  ex-fur mil arm pes inf, 
Pelotão de Canhões S/R 2054  (Catió, 1968/70)  (foto abaixo). 


Jorge Teixeira (Portojo)
(1945-2017)
Mas uns dias antes, a 13, na quinta-feira anterior [na véspera da Apolo XII ser lançada], o alf mil Nelson Gonçalves, cmdt do Pel Caç Nat 60, é também ferido gravemente, em combate: o Unimog em que seguia, accionou uma mina A/C.  

Dias mais tarde, acorda,  sem um perna, num quartdo do HM 241, Bissau... Justamente  na cama ao lado,  está um estrangeiro, o cap cubano Peralta. 

O drama foi-nos contados pela sua esposa, a Manuela Gonçalves (Nela) , membro da nossa Tabanca Grande da primeira hora, em dois postes de  2006 (****).

Nessa altura, em novembro de 1969, a Nela era uma jovem estudante universitára, vivendo a guerra à distância, mas com a morte na alma, com o seu namorada, Nelson Gonçalves, a combater na Guinjé... Já casada, anos depois, desloca-se à Guiné-Bissau, com a família, para exorcizar os seus fantasmas... Da paixão à cooperação foi um passo... Por volta de 2005/2006, descobriu o nosso blogue, que passou a visitar regularmente-

Na altura em que tanto o Pedro Rodriguez Peralta como o Nelson Gonçalves foram parar ao HM 241, um dos cirurgiões que lá estava colocado, era o nosso camarada José Pardete Ferreira (1941-2021)... (E já lá estava, internado,  com problemas do foro respiratóriio, o Jorge Portojo: da varanda sua enfermeria, no 1º andar, tinha vista desafogada  para o heliporto.)

Recorde-se que, no seu livro "O Paparratos", o José Pardete Ferreira  conta-nos que, por razões de segurança, o enfermo (e prisioneiro) Peralta mudou de cama e de enfermaria, mas quem não gostou nada da troca foi "um pobre de um alferes miliciano", com uma perna amputada por um mina (não A/P mas A/C), que ficou no lugar do cubano... Lamentava-se ele [, sabemos agora quem era, o Nelson Gonçalves], e com razão: "Se os gajos [o PAIGC] cá vierem, quem lerpa sou eu"... (p. 145) (***).

Registe-se, para a história, o nome, já esquecido, da Maria Zulmira Pereira André (1931-2010), a nossa Maria Zulmira [, foto à direita],  tenente graduada enfermeira paraquedista: foi ela quem,  competente e denodamente, acompanhou a evacução Ypsilon do cap Peralta. Resta saber quem era o peilo do AL III.


2. Um dia nas nossas vidas...

por Jorge Narciso [, foto atual, à esquerda] (#)


De Jorge (Narciso)  para Jorge [, Teixeira, 'Portojo', infelizmente já falecido em 2017]

Caro: Ao passar hoje pelo blogue, de imediato me chamou a atenção a foto do heli aterrado no HM 2141, Bissau, contida no teu poste

E como a ti, também ela me suscitou um tal corropio de lembranças, que, acredita-me, quase me atordoam. Tentando alinhar ideias:

Como mecânico dos helis, foi exactamente 

Bissau > 1969 > O Heliporto do HM 241.
Foto de Jorge Teixeira (Portojo)
(2010)
no Hospital Militar que (excepção feita, naturalmente, à BA 12, em Bisslanac) mais vezes aterrei na Guiné. E também a mim as recordações que suscita, serão tudo menos agradáveis. Seja a da lembrança das condições (fisicas e ou psicológicas) infra-humanas de homens que para ali transportei, seja a indescritível visão da sala de horrores, chamada triagem, onde eles eram colocados; de cada vez que ali tinha que ir recuperar macas. São imagens que jamais se esquecem.

Mas outra lembrança conseguiste, com o teu poste, desenterrar do fundo do meu subconsciente, a da evacuação do Capitão Peralta, a qual passo a transmitir, a quente, tal como a memória me debita.

Antes porém e à falta de outros registos, resolvi ir ao Google e digitar: Capitão Peralta.

Resultados:

(i)  Ferido e capturado em 18 de novembro de  1969 durante a operação Jove, realizada pelos Páras [BCP 12] entre os dias 16 e 19, no corredor de Guileje;

(ii) A  base dessa operação, a partir de onde os Paras foram heli-transportados, foi Aldeia Formosa.

Vamos agora à minha memória, que espero não me esteja a atraiçoar, sequer a iludir, e na qual (apesar da evidente redução de neurónios) quero ainda confiar.

Coloco os resultados dessa pesquisa em dois planos:  das quase certeza (ou com menor grau de falibilidade) e o das incertezas associadas, que evidencio entre parêntesis.

Assim:

(1) Eu só não estava no voo em que viste o Capitão Peralta aterrar no HM 241, pelas condições extraordimárias em que decorreu essa evacuação, cujos contornos passo a descrever.

(2) Em operações como esta, em que, independemente da Tropa participante, a base se situava num aquatalamentos longe de Bissau, para aí se deslocavam normalmente: 5 helis + 1 helicanhão, transportando uma equipa de manutenção e uma enfermeira paraquedista.

Dali partiam, então, fazendo as viagens necessárias para, transportando 5 ou 6 militares por heli, os colocar, protegidos pelo canhão, na ZOPS..

Se a operação se resumia a um dia, permaneciam os helis nessa base em alerta, para: evacuações, eventuais transportes das Tropas para outras posições na mesma ZOPS e finalmente para a sua recuperação no final da Operação.

Nos casos em que a Operação fosse por mais de um dia, ficaria em todos os dias em que esse decorresse e na base da mesma, no minimo um heli de alerta (com Piloto, Mecânico e Enfermeira) para eventuais evacuações e o helicanhão para protecção destas e para intervenções de tiro, se solicitadas.

(3) Nesta operação em particular, a Op Jove, é seguro que estive presente, desde logo porque recordo perfeitamente o objectivo apontado para a mesma (nos helis e durante os voos, mesmo que não quiséssemos, ouvíamos muita informação dita classificada): captura do 'Nino'Vieira. .

(4) No dia 18 de novembro de 1969 (Precisei a data na citada consulta na Net), portanto no 3º dia da Operaçãp, voei (seguramemte de Aldeia Formosa) para essa ZOPS onde aterrei [, no corredor de Guileje], no helicóptero que fez a evacuação do Capitão Peralta, não continuando no voo para o HM de Bissau,

Porquê?

(5) Os Alouette III têm capacidade para transportar 6 passageiros, para além do piloto (este e mais dois à frente) e até 4 no banco traseiro.

Em evacuações com feridos em maca, essa capacidade ficava reduzida, pois para além dos 3 lugares à frente, normalmente ocupados pela tripulação (Piloto, Mecânico e Enfermeira, na maioria dos casos), apenas é possivel alojar 1 ou 2 macas na rectaguarda, que, por transportadas transversalemente, impedem (ou dificultam, algumas vezes me tocou vir meio sentado meio em pé, nas abas da maca) utilizar os lugares traseiros.

No caso desta evacuação (Cap Peralta), tendo sido determinado, no terreno, que o capturado devia ser acompanhado no voo por escolta armada, foi necessário ocupar, por quem a fez, um dos lugares destinados à tripulação.

Para resolver o problema e - repito - se a memória não me atraiçoa, registou-se um caso que me lembre único:

(6) O helicanhão, que fazia a protecção à evacuação, aterrou na ZOPS, nele tendo embarcado o mecânico (eu próprio) e voado (junto ao apontador) para Aldeia Formosa, donde posteriormente regressei a Bissau (outra nebulosa, é que não me recordo como - noutro heli ? de DO 27 ? ), pois no helicanhão não foi concerteza.

Como remate a estes factos, este voo no helicanhão foi para mim perturbante, pois que uns meses antes (Julho de 1969. o eu 3º mès de Guiné) estive também para voar (nesse caso por experiência passiva que, para sorte minha, não concretizei) no retorno duma outra Operação em Galomaro, voo esse com um fim trágico, traduzido no despenhmento do heli (a que assisti) ocorrido em Bafatá, com a morte do meu comandante, o maj pilav Rodrigues  e dum camarada de todos os dias, o Machadinho - como lhe chamávamos - , Mecânico de Armamento/Apontador.

Um dia destes tentarei fazer o relato que me for possivel desta outra dramática ocorrência.

Voltando ao poste e à tua solicitação ao Jorge Félix (tantos Jorges), quase seguramente ele ainda estava nessa data na Guiné.

Como atrás referi, não me lembro se terá sido inclusive participante nos factos, em qualquer caso terá certamente presente memórias relacionadas e, quem sabe, como tem a sorte (que a FAP me coartou) de ter os seus registos de voo, pode buscar nos mesmos confirmações.

[# Título, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste poste P22014]

_______________

Notas do editor:



(**) Vd. poste de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5741: Blogoterapia (142): Aquela janela virada para o heliporto (Jorge Teixeira/Portojo)
 

HM 241 > Novembro de  1969 > O
Jorge Teixeira (Portojo)
à janela...


(...) Estava lá eu na tal janela virada... no primeiro quarto, do primeiro andar, frente, direito, do HM 241, em Bissau,  e ouvi chegar um Heli. Logo os habitantes vinham ver do que se tratava, pois além de ser um passatempo a contabilização dos que chegavam por este meio transportados, queríamos sempre saber de quem se tratava. Porque até poderia ser um dos nossos mais íntimos. 

Neste dia quem chegou foi um barbudo (fiz uma foto, que veio para os amigos da metrópole, mas como tantas outras, desapareceu).. Pensámos, pelo seu aspecto: "Olha um Fuza. Fodeu-se"... Mas não era, soube à noite quando fiz a ronda do costume para passar o tempo, estranhando ver Comandos de sentinela à porta, que era um cubano, de nome Peralta. Não me dizia nada. Depois disse. Por isso a tal foto para a rapaziada da metrópole... Mais tarde, anos depois, soube da sua libertação [em 15 de setembro de 1974]..

Mas a conclusão é: Será que o Jorge Félix  [, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1968/70] se recorda ou até terá dado a sua colaboração a esta operação?

Por casualidade, o José Manuel  Cancela também estava hospedado, na mesma altura, no mesmo Hotel Militar de Bissau. Mas no terceiro apartamento. Só o soubemos há dias quando entreguei esta foto - entre outras - para o Carmelita digitalizar e ele viu. Estórias de vida." (...) 

Vd. também poste de 1 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10747: Blogues da nossa blogosfera (60): Memórias de Outros Tempos - A Estadia no HM 241, no Blogue Coisas da Vida (Jorge Teixeira - Portojo)

(***) Vd. postes de:


15 ede março de  2021 > Guiné 61/74 - P22008: Notas de leitura (1346): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte III: Rui Angel, aliás, Pedro Rodriguez Peralta, capitão do exército cubano, o mais famoso prisioneiro da guerra colonial... Aqui tratado com humor desconcertante (e humanidade) (Luís Graça)

(****) Vd. postes de: 

8 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P596: Dia Internacional da Mulher (1): Sara Martins, presente! (José Martins) e A Guerra no Feminino (Manuela Gonçalves)

(...) Que se passava? Um aerograma de um amigo, Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha rebentado com o Unimog, quando ele [, o Nelson Gonçalves,]e o seu pelotão, o Pel Caç Nat 60 (*****),  seguiam numa patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma. Era dia 13 de Novembro de 1969, 10:30 da manhã.

Restava-me esperar que o trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma tia, que prestava serviço no Hospital em Bissau. E de longe fui acompanhando o seu estado! Mais tarde um lacónico aerograma dele, muito parco em palavras, cheio de silêncios, confirmava-a.

Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado! (...)

26 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P634: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)

 (...) O flagelo das minas continua e não sei mesmo se muitas delas não serão ainda daquelas que foram colocadas na guerra colonial. A coincidência transportou-me até  [13 de] Novembro de 69.

Foi naquela mesmo estrada - de São Domingos para Susana - numa operação de reconhecimento da via, que o Unimog em que o maridão seguia, pisou uma mina anti-carro. No Unimog, uma outra mina anti-carro, levantada cerca de 300 metros antes, era transportada atrás e, por mero acaso, não rebentou, o que teria sido catastrófico para todo o pelotão!

A mina tinha sido accionada pelo pneu do lado direito, pelo que o maridão foi atirado para fora, em estado crítico, não tendo o condutor sofrido senão pequenos ferimentos, apesar da força do embate!

Um helicópetro transportou-o para Bissau, tendo acordado uns dias mais tarde numa cama no Hospital Militar, sem uma perna e tendo por companheiro de quarto o capitão Peralta, cubano, cuja captura tão noticiada era nos media de então. (...)



(*****)  Sobre o Pel Caç Nat 60 e a mina que vitimou o alf mil Nelson Gonçalves: Vd. postse:

 Guiné: Pel Caç Nat 60 > 

Terça-feira, 7 de maio de 2019 > P185: Aniversário do Pel Caç Nat (60)

Quarta-feira, 4 de novembro de  2009  > P13: O Nhambalã

(i) Foi formado a 7 de Maio de 1968, em S. Domingos;

(ii) estve com a CCS/BCaç.1933, CCaç. 1790, CCaç. 1791, em São Domingos, de maio a fins de novembro de 1968;

(iii) seguiram para Ingoré, ficando adidos à CCaç 1801 de novembro de 1968 até agosto de 1969;

(iv) reegressaram a a S. Domingos, em agosto de 1969, fiacando adidos à CCav 2539.

(vi) ficaria aquartelado em S. Domingos /Susana, até ao ano de 1974;

(vii) o primeiro comandante  foi  o ex-alf mil  Luís Almeida, rendido pelo ex-alf mil Nélson Gonçalves 
(, ao tempo do BCAV 2876, São Domibgos, 1969/71);

(viii) a 13 de novembro, de 1969 a viatura em que seguia  o Nelsom Gonçalves, acionou uma mina anti-carro sendo este sido ferido com gravidade, e helievacuado para o HM 241 e depois para o HMP;

(ix )de vovembro de 1969 a janeiro de 1970, o pelotão foi comandado pelo ex-fur mil  Rocha.

(x) em janeiro de 1970 o ex-alf mil Hugo Guerra comandava o pelotão,  sendo ferido no dia 10 de Março,  quando o 1º cabo Manuel Seleiro desativava uma mina anti-pessoal.(...)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21855: O segredo de... (34): Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando (testemunho recolhido por José Ferreira da Silva)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 

O nosso tertuliano José Ferreira da Silva (,, o "Silva da CART 1689") com o protagonista desta história, o camarada Dionísio Cunha , aqui à direita. 


Foto (e legenda): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. É um segredo... que já não é segredo (****). Foi recolhido e divulgado há cerca de 8 anos, pelo nosso camarada (e escritor, com três livros publicados), o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com mais de 160 referências no nosso blogue.


Foi publicado na sua série "Outras memórias da minha guerra" (e mais tarde reproduzido em livro, o I volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", Lisboa, Chiado Books, 2016) (*).

Já na altura tive ocasião de dar os parabéns ao Dionísio e ao Zé Ferreira pela coragem, frontalidade, autenticidade e honestidade deste testemunho. Não tinha na altura (nem tenho ainda hoje) razões para pôr em causa a sua veracidade nem o rigor da recolha do Zé Ferreira. Sei que ele levou alguns meses a confirmar e acertar certos pormenores. E obteve aautorização do Dionísio para publicar esta "história", primeiro no nosso blogue (*) e depois em livro [, vd, imagem da capa à esquerda].

Eu próprio falei, há dias, no dia 24 de janeiro passado, com o Dionísio. E mais uma vez ele não levantou qualquer objecção a que o seu testemunho pudesse ser de novo reproduzido, agora, nesta série, "O segredo de...". Disse-me: "Tudo o que lá está foi verdade"...

Por sua vez,eu retorqui-lhe que um dia ainda haverá um cineasta que pegue  nesta história já esquecida, mas reveladora da importância que têm os valores humanos, na paz e na guerra.  E repeti o que tinha comentado há oito anos atrás:

 "Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um 'fait-divers' da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma. (...) Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande."... 

Sei que o Dionísio não é utente das redes sociais, não conhece o nosso blogue, não tem computador nem endereço de email... Mas tem um filho que é informático, e a quem vou pedir um dia destes uma foto do pai, do tempo da Guiné, para o apresentar formalmente à Tabanca Grande e sentá-lo à sombra do nosso poilão, como ele tão justamente  merece. 

Continua ligado ao Centro Social e Paroquial de Valbom. Estava em casa com a sua Ângela, um e outro já com alguns problemas de saúde  próprios da idade. Desejei felicidade a ambos.

E vamos agora "ouvir (e saber ouvir)" o seu testemunho (****), reproduzido com talento, detalhe e rigor pelo Zé Ferreira.  Mesmo que para aqueles que já o conhecem, o depoimento merece ser lido, relido e comentado. 

O único ponto de discórdia (, já discuti isso com o Zé Ferreira),  é o nome da operação, referida no texto: estamos a publicar a história da 3ª CCmds (1964/66), na versão de João Borges, e em maio de 1967 não parece ter havido nenhuma Op Azimute: houve duas no Oio (Op  Vermute, a 10 de maio;  e Op Vinagre, a 17; e uma terceira, na ponta Matar, na região de Cacheu, a 26 de maio). 

Pela descrição do Dionísio (que não se lembrava já do nome da operação, o Zé Ferreira é que lhe chamou Op  Azimute),  admitimos nós que possa ter sido  a Op Vermute, mas o relatório  parece ter sido omisso quanto a eventuais baixas civis. O que não admira: quem conheceu a realidade operacional do CTIG, sabe que os nossos relatórios de operações por vezes pecavam, uns por excesso, outros por defeito. Confronte-se, entretanto,  as declarações do Dionísio com o resumo da Op Vermute feito pelo João Borges, infelizmente já falecido em 2005  (***):

(...) "Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume." (...) [Dionísio Cunha]


Resumo  da Op Vermute, segundo João Borges (***)





Feia > Fiães > 2 de dezembro de 2017 > Sessão de apresentação dos Volumes  I e II de "Memórias Boas da Minha Guerra", do nosso camarada José Ferreita da Silva.   

"O  cmnbatente  da 3.ª CComandos, Dionísio Cunha - protagonista da história “É Guerra, é Guerra (Será?)”, pág,119, I Volume - fala da guerra, da sua justeza e da sua condição de desertor, de que se orgulha muito, segundo diz. Preso na Metrópole, voltou à Guiné e à sua Unidade, tendo participado voluntariamente em perigosas operações até terminar a sua comissão de serviço." (**)

Foto (e legenda): José Ferreira da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O segredo de Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando

por José Ferreira da Silva


Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial, oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, a destinava à próxima quadra natalícia.

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:

– Quem está doente?

Logo a resposta veio célere:

– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:

– Onde andaste?

– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.

– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.


A paixão, aos 18, pela Ângela, de 14

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom [Gondomar] . Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano [Azevedo], no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:

– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.

– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.

– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.

–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino, das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “Livre”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “Apurado  para todo o Serviço Militar”. Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal tenente  Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.


Maio de 1967 : No Oio, três mulheres mortas, 
com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas, vivos.


Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no RALIS de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.

E ele iniciou:

"Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) (***), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de dois de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e,  após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o subcomandante Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos."


O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:


"Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça."


Saudades da Ângela e uma 'boleia' no Uige até casa, clandestino,  
no meio da comissão
 

"Estávamos aquartelados em Brá, Bissau,  e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o navio Uíge, que havia trazido mais militares (BART 1913) [, desembarcado em 1 de maio de 1967] e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa,  fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.

Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 

– O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras."


Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre [, leia-se: "Voz da Liberdade"], programa do conhecido Manuel Alegre. Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:

–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.

– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:

– Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.


Eh!, pá, estás f..., sabes o que é um  desertor?!


Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca,  encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:

– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:

– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?

– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.

– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu alferes Sampaio Faria.

"Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou duas vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor 'Comando' Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó."

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta operação, o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.


Voluntário para a Op Bola de Fogo: 
a salvação do Dionísio

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

– Entretanto, o sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: 'Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra comissão de serviço'.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:

– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?

– Foi a informação que chegou do Quartel-General – respondeu o Sargento.

O Dionísio saiu ao encontro do Capitão:

– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.

– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – prguntou o Capitão.

– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.

– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação – disse o Capitão.

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rolls Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até 15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.

– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.

José Ferreira da Silva
___________

Post scriptum do autor:

Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:

– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.

– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?

– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?

– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

[Revisão / fixação de texto /título e subtítulos, 
para efeitos de publicação deste poste: LG. 
Com a devida vénia, ao José Ferreira da Silva e ao Dionísio Cunha]

 
2. Comentários dos nossos leitores [em 2013; repare-se que três, infelizmente, já não fazem parte da lista dos vivos: o Jorge Teixeira 'Portojo', o Luís Faria e o Mário Vasconcelos]  (*)

(i) Fernando Gouveia

Luís Graça: Aqui tens a história, inderectamente contada pelo próprio, estória um pouco romanceada incluida no meu livro NA KONTRA KA KONTRA, a páginas 139. O Dionildo da minha estória, como podes ver, chama-se efectivamente Dionísio. (...)
 
19 de março de 2013 às 13:12
 
(ii) Luís Graça

Fernando, tinha ideia de ter ouvido esta história ... do "arco da velha". Algures... Afinal, foi no teu livro. Dou os parabéns, aos dois, ao Dionísio e ao José Ferreira...

Não tenho razões para pôr em causa a veracidade do testemunho do Dionísio e o relato do Silva. De resto, no blogue é proibido julgar um camarada. Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um "fait-divers" da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma.

Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande. (...)

19 de março de 2013 às 17:04

(iii) Carlos Silva

Olá,  Luís: A história do nosso camarada "melro" Dionísio Cunha e aqui contada pelo Zé Ferreira já é conhecida no seio da nossa Tabanca dos Melros, creio que desde a altura [2010/2011] que o Fernando Gouveia tomou conhecimento.

De facto a história das crianças é arrepiante ...

Quanto a conheceres pessoalmente o Dionísio Cunha, tu que vais várias vezes ao Norte, porque não apareces num 2º sábado de um mês à Tabanca para conviver com a rapaziada ?

Pode ser que ouças mais histórias por lá. (...)
 
19 de março de 2013 às 17:54

(iv) Jorge Teixeira

Eu estava lá, ou por outra, estava cá a ouvir com atenção a história do Dionísio (estava mesmo em frente dele), mas também estive lá na guerra e como costumo dizer, aquilo em certas situações mais parecia a guerra do Solnado:

- Porra! Mas o que é que eu estou aqui a fazer, esta guerra nem é minha, aproveito a boleia do Uíge e vou mas é para casa! Se bem o pensou, melhor o fez!

Também sei que se contam muitas "estórias", mas estar ali frente ao Dionísio a ouvir a sua narrativa fluída e sem artifícios, sem dar ares de quem se estava a armar, foi impressionante.

Se porventura inventou alguma coisa foi sem maldade, porque via-se mesmo que não era fanfarrão e não estava a inventar.

Tempos de guerra. (...=)

20 de março de 2013 às 00:29
 
(v) Luis Faria

Gostei de ler.

A crueza da passagem (?) referente às crianças, reconduziu-me lá para as bandas de Capó,  Teixeira Pinto (Balanguerez). Vd. Poste P7172 de 24 Out 2010.

Por vezes a guerra obriga a tomada de opções com potenciais implicações, sempre dificeis de tomar e a meu ver nunca mais esquecidas! (...)


20 de março de 2013 às 10:48

(vi)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Ao apresentar estes dois camaradas, sabia que o Silva era capaz, como ninguém, de anotar e escrever de forma notável esta história de vida do Dionísio.

Não conheço o relato do Fernando Gouveia, mas presumo que também deve ser interessante.

Se bem me lembro há uma "Pasta" aqui no blogue referente ao capítulo dos desertores. A quem muita gente chamou de covardes. Parte da história do Dionísio poderia ser contada e arquivada nessa "Pasta". Alguém teria coragem de lhe chamar covarde ? (...)

2 de abril de 2013 às 13:40

 (vii) Mário Vasconcelos

Na verdade, este testemunho ou depoimento dava um perfeito filme.

O Dionísio é de facto, pelas descrições feitas, um grande militar, ao qual acrescenta situações mirabolantes, mas compreensivas. A leitura deu-me um bom dia para hoje.

Um abraço ao nosso camarada com votos de uma vida cheia de tudo. Ele merece-o, como tantos outros afinal.

14 de abril de 2014 às 13:18

 (viii) Ze de Lamego

Meus caros amigose camaradas.Adorei! Nunca tinha ouvido uma estoria deste cariz.Vou querer conhecer o ator.Consehuiu emocionar-me.Ao Ze Ferreira apenas dizer-lhe que continue a dar-nos o prazer de ler os seus escritos,pois são sempre de uma rigorosa veracidade.Abraço-vos. Ze de Lamego

14 de abril de 2014 às 14:17

 (ix)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Zé Lamego Pereira, já estiveste várias vezes ao lado dele. Pelo menos na mesma sala.
Na próxima vou-te apresentá-lo.

14 de abril de 2014 às 15:44

(x) Silva da Cart 1689 [José Ferreira da Silva]:

Caros amigos,

Tal como mostram algumas fotos, o Dionísio contou a história diante alguns camaradas, na Tabanca dos Melros (*). Daí até à sua publicação, foram vários meses. Como se tratava de um relato verídico, procurei que todo o resto também o fosse. Até porque os nomes se mantiveram os verdadeiros. 

Por outro lado, foi preciso aferir das coincidências ligadas à minha pessoa (Companhia de Comandos), ao desembarque do meu Batalhão, o  1913 (Uíge, Bissau, 1 de Maio de 1967) e à minha Cart 1689 (Gandembel, Op Bola de Fogo). Desloquei-me algumas vezes ao encontro do Dionísio e, com ele, efectuei algumas correcções.

Resta-me agradecer ao Dionísio pela sua disponibilidade e pela sua verticalidade nos testemunhos que me prestou. (...)

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Notas do editor: