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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25174: (De) Caras (203): Nota solta (José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé, Canquelifá, 1973/74), com data de 13 de Fevereiro de 2024:

Nota solta

Caro Luís
Antes de mais as tuas melhoras.

Tenho tido pouca interação com o blogue mas não dispenso a sua leitura semanal. Gosto muito de seguir as publicações dos camaradas que habitualmente o fazem e que muito interesse me despertam.

Nesta altura do campeonato, em que só nos resta fazer a mala, vemos as coisas de forma diferente e, no meu caso, às vezes, assaltam-me momentos de lucidez que me espantam.

Sem preocupação de escalonar por importância é frequente concordar ou discordar de alguns “posts” ou comentários de outros camaradas sobre a temática da guerra na Guiné. Inibo-me de comentar por entender não ter grandes bases para tal até porque, e aí começa o problema, a guerra começou em 1963 e, naturalmente, as condições eram diferentes de 1973. Por outro lado, às comissões de 21/24 meses correspondiam da outra parte largos anos de guerrilha e o profundo conhecimento do terreno e a adaptabilidade ao mesmo.

Ainda na Metrópole senti que as coisas não eram levadas a sério. A vida continuava alegremente, excepto para os Pais que tinham filhos no Ultramar. Os irmãos já sabiam que mais tarde ou mais cedo iam lá parar, só não sabiam em que província e, portanto, havia que gozar a vida.

Em Leiria de passagem e depois a recruta em Santarém, onde encontrei gente de nível militar exigente mas sempre correcto, passei por Tavira onde encontrei um ambiente com ambições guerreiras mas perfeitamente anedótico onde cada um fazia o que o poder lhe permitia sem qualquer coerência.

Formação do batalhão no RI 15 em Tomar com destino à Guiné com muitos analfabetos e alguns “esperados” que, até um cego via, não tinham condições físicas para integrar uma companhia operacional.

Quando cheguei à Guiné, a Bolama, já que o “Niassa” ficou ao largo de Bissau e fomos transferidos diretamente para uma LDG (às cinco da tarde e chegámos a Bolama ao meio dia seguinte), e olhei para aquilo a primeira impressão que tive: “foi isto que estes gajos fizeram em 500 anos?”

Relativamente à guerra nunca pensei em ganhá-la porque, até outro cego via, que tal não era possível.
Descontando a diferença de armamento e da experiência em combate, com manifesta superioridade do adversário (digamos assim), o facto das unidades militares estarem em quadrícula (julgo que é assim que se diz) tornavam-nas num fácil alvo que permitia flagelações a partir das fronteiras dos países vizinhos, com intervalo para as refeições ou para satisfazer necessidades. Por vezes, apenas as valiosas intervenções das forças especiais no terreno permitiam algum descanso.

Por outro lado, as condições de vida nos aquartelamentos em que vivi eram desumanas e a fome era firme e constante, tal como a divisa do meu batalhão. Nunca percebi como é que uns se tratavam tão bem e outros passavam tão mal tendo em atenção que a dotação orçamental era semelhante.

Com o 25 de Abril a guerra na Guiné praticamente terminou tendo começado as negociações. A sobreposição do pessoal do exército colonial pelo PAIGC, pelo menos em Bissau, fez-se calmamente até Setembro, com a exceção da patifaria feita aos camaradas dos comandos africanos que ainda hoje me arrepia. Não estou em posição (nem quero) de julgar quem quer que seja mas aquela canalhice tornou a atormentar-me quando recentemente vi os Estados Unidos (e outros) abandonarem de um dia para o outro os seus colaboradores no Afeganistão.

Acabada a guerra, regresso à Metrópole, procura de emprego, constituição de família e luta constante para a sustentar o melhor possível, ambição natural de todos nós.

Após uma vida de trabalho, a almejada reforma (não venha por aí alguma patifaria) e o acompanhamento frequente dos netos, tarefa que se desempenha com alegria mas que denuncia algum cansaço próprio do avançar da idade (a pedalada começa a falhar).

Em consequência da reforma passei a receber uma prestação anual como ex-combatente que em 2023 foi de 171,90 € (em termos líquidos transformou-se em 107,90 €). Incomoda-me recebê-la por dois motivos: porque, afinal, grande parte é devolvida a quem a paga, isto é, dá com uma mão e tira com a outra, e porque não me faz falta, seria muito mais útil para reforçar o rendimento dos muitos que mais pecisados estão.

Também tive direito ao cartão de combatente que me permitiu ter um passe gratuito para os transportes urbanos (moro em Lisboa) que pode ser utilizado em toda a àrea metropolitana. Nas outras zonas do País não sei se é útil. Quanto ao PIN e à bandeira, dispenso. Contudo, não deixo de destacar a luta dos camaradas que o conseguiram.

Provavelmente, este arrazoado não tem interesse, mas é o que de momento se pode arranjar.

Um abraço
José João Domingos

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Nota do editor

Último post da série de 9 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25052: (De) Caras (201): O cap art 'comando' Nuno Rubim (1938-2023): fotos do meu álbum (Virgínio Briote, ex-alf mil 'cmd', cmdt Gr Diabólicos, Brá, 1965/67)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21947: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (11): "O Mendes" e "A independência"


1. E assim damos por finda a publicação desta série de memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74) enviadas ao nosso Blogue no dia 29 de Janeiro de 2021:


30 - O MENDES

Era o furriel miliciano enfermeiro da nossa Companhia. Mais do que um camarada, mais do que um camarigo (camarada e amigo) era um camarigueiro (camarada, amigo e companheiro).

A sua ambição civil era estudar medicina mas, circunstâncias da vida, obrigaram-no a adiar o sonho que, todavia, manteve sempre.

Tirada a especialidade foi colocado em Tomar e veio connosco para a Guiné.

A sua competência, calma e humanismo no tratamento dos doentes, civis ou militares, era excecional e, ser tratado pelo Mendes, era cura rápida e certa.

Homem afável, falava baixo e sempre com muita seriedade, sem nunca perder a calma, em particular com os seus subordinados a quem tratava como iguais e que muito o respeitavam.

Já na vida civil, encontrámo-nos casualmente duas ou três vezes e falava-me sempre na possibilidade de se organizar um convívio para rever a rapaziada de que ele tinha saudades. Levou esse convívio 30 longos anos a acontecer e, entretanto, o Mendes tinha-nos deixado.

Lá, onde estiver, saberá com certeza a estima e gratidão que todos nós lhe temos.


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31 - A INDEPENDÊNCIA

Após o 25 de abril, foram estabelecidos acordos com o PAIGC para a transferência dos poderes territoriais.

Em Bissau, antes da independência, só pontualmente se via pessoal do PAIGC, nomeadamente à noite no edifício dos CTT.

As coisas foram sendo feitas gradualmente e com grande descrição até à independência da Guiné-Bissau que, creio, se processou a 10 de setembro de 1974.

Regressei à Metrópole, evacuado, no dia 5 de setembro de 1974 e a minha companhia no dia seguinte.

Nos meses que passei em Bissau, depois do 25 de abril e antes do regresso, assisti a várias manifestações da população, a propósito de tudo e de mais alguma coisa, que normalmente decorriam sob um manto de preocupação ou tristeza o que colidia com o que devia ser a alegria de um povo acabado de ser libertado.

As pessoas acomodavam-se de pé, em camionetas de caixa aberta, deslocando-se em marcha lenta, e recitavam uma ladainha qualquer que não entendia, estando ausente aquela alegria espontânea própria do povo africano, mais parecendo um velório.

Na minha opinião, este comportamento indiciava a consciência de que o caminho da liberdade tinha muitos perigos e incertezas, em particular para aqueles que viviam nas cidades e que de alguma forma beneficiavam com a estadia dos militares portugueses na Guiné, assegurando com alguma facilidade a sua subsistência e a da família, objetivo prioritário em qualquer sociedade.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"


Guiné > Região do Oio > K3 > 1973 > O José João Domingos: paragem da coluna para Farim

Foto (e legenda): © José João Domingos  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


22 - AS COLUNAS PARA FARIM E GUIDAJE

A partir de outubro passamos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com passagem em Nhacra, Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia independente de açorianos (ou madeirenses) que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada.

Em novembro ou dezembro, uma das colunas estendeu-se a Guidaje. Lá fomos andando, um bocado receosos, porque uns meses antes tinha sido um fim do mundo naquela zona. Até Binta tudo correu bem mas, a partir daí, as coisas complicaram-se porque o comandante do esquadrão das Panhard, com justa prudência, exigia um carro rebenta minas com um rodado semelhante ao daqueles veículos. O rodado da Berliet que desempenhava tal função não cobria o rasto daqueles carros. Vai não vai, anda não anda, e lá foi um Unimog a desempenhar a função.

Pelo caminho, metia respeito observar os sinais dos combates ocorridos em maio de 1973, quando ainda estávamos na Metrópole, com várias viaturas militares consumidas pelo fogo, perto da picada. Mas, enfim, lá chegámos a Guidaje sem contratempos.

Enquanto nos instalavamos fomo-nos apercebendo do estado psicológico de grande desânimo em que se encontravam os camaradas ali colocados, apesar de seis meses passados sobre a ocorrência. Mostraram-nos um dos abrigos onde teriam morrido vários camaradas, as valas onde também morreu gente e, mais impressionante, as campas de algumas das vítimas das flagelações e combates que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram.

Estivemos até tarde à conversa, ouvindo camaradas a contar as situações horríveis por si vividas, contadas de forma dorida, não para impressionar periquitos, antes buscando uma palavra de ânimo e solidariedade de outros que, mais novitos e não tendo passado por situação semelhante, estavam ainda com alguma força psíquica para os animar.

De manhã cedo, o regresso, que tardou porque quem tinha a incumbência de fazer a segurança não estava para isso. Conversa e mais conversa, lá chegaram a um consenso, mas fiquei com a impressão de que segurança não houve, apenas sorte, mais uma vez.



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23 - OS ENGRAXADORES

Nas deslocações a Bissau tinha por hábito frequentar o café do Bento, 5.ª Rep, embora também fosse, por vezes, ao Império e à Ronda.

Mal o cliente se sentava na esplanada apareciam miúdos guineenses a oferecer os seus préstimos, de engraxador de sapatos ou de fornecedor de mancarra.

No caso dos engraxadores, se o cliente estava recetivo, acordava-se o preço, conforme fossem sapatos ou botas o calçado a engraxar. Se o cliente não queria o serviço o garoto mantinha-se perto dos sapatos, normalmente com bastante pó, e, como quem não quer a coisa, ia passando a escova num dos sapatos e insistindo na prestação do serviço que o eventual cliente ia rejeitando. Porém, quando este olhava para os pés verificava que um dos sapatos estava bastante mais limpo que o outro e acabava muitas vezes por contratar a engraxadela.

Um exemplo concreto de que a necessidade aguça o engenho.


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24 - AS OSTRAS DE BISSAU

Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):



19 - O ALBERTO

Logo no início da nossa estadia no Ilondé começou diariamente a aparecer à entrada da nossa tenda o Alberto, um guineense de 12 ou 13 anos, humilde e educado, filho de uma das lavadeiras, residente naquela localidade, que sabia ler e escrever, o que lhe dava algum estatuto junto do pessoal pois funcionava como tradutor de crioulo que também nos ia ensinando.

A nossa tenda tinha 8 habitantes e todos gostavam do Alberto. O seu trabalho era reduzido, assentando na varredura diária do chão da tenda e um qualquer recado, a troco de um ou outro peso que lhe íamos dando e, por vezes, de algumas guloseimas que recebíamos de casa.

A esta distância tenho ideia que a nenhum de nós passou pela cabeça que o Alberto estaria feito com o inimigo. Contudo, hoje, acho estranho o seu relacionamento connosco tendo em conta que na localidade moravam dezenas de jovens da mesma idade de cuja existência apenas nos apercebíamos quando havia cinema no quartel. Assim ou assado, estimávamos o Alberto e procuramos sempre ajudá-lo, nomeadamente, fornecendo-lhe com a maior rapidez possível os resultados de cada jornada do campeonato nacional de futebol, disputado na Metrópole, que ele seguia religiosamente através de um caderninho onde apontava os jogos e os respetivos resultados.

Dada a abundância de roupa que não me servia para nada resolvi, um dia, dar umas calças ao Alberto. Ora, na época, os africanos eram muito vaidosos e extravagantes com o vestuário e a roupa tinha que ficar bem justa. Ao vestir as calças o Alberto disse logo que não as queria por serem demasiado largas. Agarrei no Alberto e nas calças e fui a Bissauzinho onde havia alfaiates de rua que logo ali ajustaram as calças ao gosto do cliente. Custou a brincadeira setenta pesos, tanto como pagava mensalmente à lavadeira, mas valeu a pena ver a alegria do Alberto.

Enfim, as coisas mudaram e nunca mais soube do Alberto. Oxalá a vida lhe tenha sorrido.


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20 - O SIPAIO

Era frequente sair a porta de armas, que ficava junto à estrada para Bissalanga ou Quinhamel, e fumar um cigarro debaixo de uma árvore onde alguns elementos da população se juntavam em amena cavaqueira, em crioulo, da qual pouco ou nada entendia.

Gostava daquela gente, que tinha tão pouco e vivia aparentemente feliz. Por razões culturais, que transcendiam o meu entendimento, a riqueza dos homens media-se pela quantidade de mulheres e de animais que possuíam. As mulheres eram consideradas como animais, avaliadas em cotejo com estes, e eram elas que angariavam os meios de sustento da família através do seu trabalho, fosse como lavadeiras fosse como domésticas.

Naquele dia, estava um grupo mais numeroso que o habitual e, entre eles, um sujeito vestido com uma farda que não conhecia e que, pensei, ser uma qualquer autoridade local que designei de sipaio (ou cipaio).

A certa altura, no decorrer da conversa, o tal sipaio afastou-se alguns metros e ajoelhou-se. Tal movimento despertou-me a atenção e pensei que o sujeito ia rezar, mesmo sem tapete. Um minuto depois vejo-o a remexer na terra, levantar-se, sacudir as calças, aproximar-se de novo do grupo e retomar a conversa. Afinal tinha estado a urinar.

Recordei então que, de facto, pelos caminhos da Guiné por onde tinha andado, nunca me apercebi da presença de dejetos humanos produzidos por esta gente e, testemunhando aquela atitude, percebi porquê.


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21 - O EXPRESSO DO ILONDÉ

Diariamente, uma pequena camioneta de passageiros que fazia a ligação Ilondé – Bissau estacionava na estrada, quase em frente à porta de armas.

Uma hora antes da partida, com um calor quase insuportável, já muitos passageiros estavam instalados nos respetivos lugares.

A carga mais volumosa ia no tejadilho a que se acedia por uma escada existente na traseira da camioneta.

Porém, o mais engraçado era o transporte dos animais, principalmente cabras, galinhas e porcos, que iam normalmente do lado da janela ao colo dos seus proprietários, sendo que as cabras se instalavam paulatinamente com o focinho de fora aguardando o arranque da viatura.

Pouco mais tarde, aparecia uma carrinha Toyota, de caixa aberta, que arrebanhava o resto do pessoal que não tivesse tido lugar na carreira normal e, uns em pé, junto à cabine, outros sentados, no chão da caixa, com os respetivos tarecos, lá partiam para Bissau.

Estou em crer que esta carrinha desempenhava a função de desdobramento.

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Nota do editor

Último poste da série de11 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", Os incêndios" e "O prostíbulo"

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", "Os incêndios" e "O prostíbulo"

1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


16 - A REUNIÃO

Instalados em tendas de campanha, com doze moradores em cada uma, péssima comida servida ao ar livre, ausência de latrinas e de chuveiros, fizeram com que o comandante da Companhia reunisse o pessoal nas imediações do aquartelamento, a pretexto de um exercício, procurando saber quais as maiores carências sentidas para de alguma forma as poder minorar.

Várias intervenções apontaram para as reais dificuldades que os militares sentiam mas a maioria dos problemas apontados não colheram grande adesão. Com maior insistência por parte do comandante na identificação dos problemas houve quem apontasse problemas que nem existiam. Contudo, uma das questões levantadas que concitou a quase unanimidade dos presentes foi a escassez de vinho às refeições, problema que o comandante prometeu resolver de imediato.

Assim, na refeição seguinte, apareceu vinho com abundância. Claro que a quantidade era praticamente a mesma, continha era mais gelo.

Aliás, a distribuição do vinho tinha momentos caricatos. Quando algum soldado menos dado à bebida abdicava da sua ração de vinho logo o imediatamente a seguir, ou o anterior, propunham-se recebê-la. Contudo, ressaltava um problema logístico que era a inexistência de segundo copo. Sem problemas, o soldado beneficiado ingeria logo ali a ração do camarada e transportava depois a sua para acompanhar o repasto.

Esta reunião marcou-me bastante pois a uma boa intenção, rara naquele meio, correspondeu uma insensibilidade total daqueles que dela podiam tirar benefício e que nem disso se aperceberam. Aliás, e por mim falo, grande parte dos militares participantes naquela guerra nem tinham bem consciência do sarilho em que estavam metidos.

Ilondé: hora de pôr a escrita e a leitura em dia. Da esquerda para a direita: eu, o Silva, o Cibrão e o Costa (de costas). Em pé está o Chaves

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17 - OS INCÊNDIOS

No sentido de melhorar a instalação do pessoal, até que o aquartelamento fosse construído, foram erguidas duas instalações de capim que pretendiam ser o refeitório e a messe.

Creio que o refeitório nunca foi equipado com mesas e bancos e, portanto, nunca foi utilizado como tal.

A messe era dividida ao meio por uma cerca de pequenos troncos em X, para que não se misturassem oficiais e sargentos, embora estivessem todos à vista, e a conversa tinha que ser comedida pois o nosso comandante de Batalhão jogava bridge com outros oficiais e precisava de concentração. Ao fundo, tinha um balcão de atendimento também separado pela mesma cerca com um frigorífico alimentado a petróleo. Era possível comer uma sandes e beber uma cerveja sempre que o rancho não era apelativo. E havia fiado.

Um dia, talvez por avaria do frigorífico, em horário de serviço, a parede de capim incendiou-se e a messe ardeu e, com ela, arderam as existências, as notas em caixa e …o livro de fiados, cuja regularização ficou logo feita.

Porém, antes, um grupo de soldados, cuja tenda era contígua à que eu habitava, tinham no intervalo entre ambas instalado um pequeno bar, feito de capim, onde vendiam café instântaneo e que para atrair clientela dispunha do jornal “A Bola”, que um deles assinava.

Um domingo, resolveram fazer um almoço de bacalhau cozido para o qual tinham convidado dois ou três amigos de outras unidades. Por mau funcionamento da máquina a petróleo, ou por qualquer outro motivo, o bar incendiou-se tendo o fogo alastrado por acção do vento para a tenda contígua (que não a minha), onde viviam os proprietários do bar, e consumido tudo o que lá se encontrava, incluindo cerca de uma dezena de G3 e respetivas munições e algumas granadas.

A situação estava complicada e só por acaso não fez vítimas graves devido ao rebentamento das munições e granadas. Para dominar o fogo veio o carro da água e um soldado mais solidário saltou para a porta do pendura com o carro em andamento para ajudar a combater o fogo, mas, por infelicidade, estatelou-se no chão e deslocou um ombro.

Pagou cara a solidariedade, pois estava prestes a vir de férias e, com o tempo de recuperação e a resolução do respetivo auto, estas esfumaram-se.

Ilondé: o incêndio no café

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18 - O PROSTÍBULO

O desenrascanço dos portugueses, em geral, e dos soldados em condições difíceis de sobrevivência, em particular, dariam um bom livro, filme ou exposição (se isso já não foi feito).

No Ilondé, em péssimas condições de instalação já antes descritas, com doze soldados a viver em cada tenda, com todos os apetrechos militares e civis, a convivência por vezes era complicada. Mas, o pessoal era capaz de fazer milagres para melhorar essas condições e, havia um caso, logo na primeira tenda do lado da estrada, a um canto do arame farpado, onde essa convivência era exemplar.

Num dia de pré, ao cair da noite, comecei a ver algum movimento nesse canto do aquartelamento com a presença de várias raparigas do lado de fora, em amena cavaqueira com alguns soldados, e um africano, com ar cabo-verdiano, que, soube depois, se fazia transportar numa carrinha de caixa aberta. Pensei que fosse pessoal da população e não liguei mais ao assunto. Contudo, no mês seguinte, reparei no mesmo cenário, também em dia de pré, o que me levou a concluir que ali havia gato.

Até que, em conversa com um dos soldados, fiquei a par da situação. Nos dias de pré, previamente conhecidos, havia alguém que contactava com o tal cabo-verdiano que, ao cair da noite, trazia as moças para o local previamente combinado. Para que a função não fosse feita em condições desconfortáveis, as raparigas entravam para a retaguarda da tenda e aí, num colchão militar, devolviam aos usuários a calma necessária para enfrentar as agruras da vida até ao mês seguinte. Antes de iniciar a função procedia-se ao pagamento, cujo montante não apurei, e, satisfeitas as necessidades, o militar ia à vida que a moça tinha ainda clientes para atender.

Contudo, havia que proceder ainda a um pagamento adicional ao soldado que tinha cedido o colchão para o efeito, pois não era prático andar cada um com o seu colchão às costas, entre tendas, que estas coisas fazem-se de forma discreta. Normalmente, o cedente do colchão fazia rendimento suficiente para ter o mesmo benefício sem avançar com o seu dinheiro.


Ilondé: passeio domingueiro ao Biombo. À frente o P. Costa; 2ª linha: o Carmo, o Domingos, o Silva, o Martins e o Alves; 3ª linha: o Chaves, o Pinto e o Cibrão
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21872: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (5): "A carreira para Brá"; "Ilondé" e "Desenrascanço"

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21872: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (5): "A carreira para Brá"; "Ilondé" e "Desenrascanço"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


13 - A CARREIRA PARA BRÁ

Enquanto estivemos nos Adidos, a aguardar colocação, deslocávamo-nos com alguma frequência ao centro de Bissau, fosse para ir telefonar ao Correio, comer ostras frente ao Mussá, na rua da Polícia, beber um café no Bento, no Império ou na Ronda, tomar ao fim da tarde um gin tónico na esplanada do Pelicano ou jantar no Solar dos Dez.

Havia transporte do Exército mas, por conveniência, de vez em quando fazíamos a viagem de autocarro, com a população local, e, para mim, era uma viagem deliciosa não obstante os odores e a gritaria que tinha de suportar.

Um belo dia, durante o trajeto, o autocarro, com portas automáticas, apinhado, parou para entradas e saídas. Empurrão daqui, empurrão dali, o pessoal lá se foi ajustando no espaço disponível. Contudo, no arranque, um guineense ficou com o corpo de fora e as pernas para dentro da porta traseira do autocarro o que gerou alarme imediato com a pronta imobilização da viatura. Tornou a tentar entrar no autocarro e, quando ia a subir, a porta fechou-se novamente e, no arranque, logo abortado, ficou com a cabeça dentro do autocarro e as pernas de fora. Finalmente lá conseguiu entrar totalmente dentro do autocarro e, com toda a gente a rir incluindo o próprio, lá seguimos viagem.

Uma situação que, na Metrópole, daria ensejo a forte discussão foi ali um momento de boa disposição.

Adidos: momento de descontração

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14 - ILONDÉ

Após alguns dias passados nos Adidos fomos para o Ilondé, aquartelamento situado entre Bissalanca e Quinhamel, que apenas possuía dois edifícios que serviam para a instalação do comando do Batalhão e das Companhias, secretarias, depósito de géneros e de armamento e um pequeno bar que servia à porta. Aliás, naquele local ia ser construído um novo aquartelamento cuja obra teve início mas duvido que tenha sido terminada.

O pessoal ficou instalado em tendas de campanha. Não havia latrinas nem banho. Para obviar ao problema foram cavados alguns metros de trincheira para onde a rapaziada defecava diretamente. A questão dos banhos era solucionada no rio que passava próximo, com grande dificuldade para os que não queriam tomar banho diretamente no rio, pois era preciso esperar que o latão enterrado na margem enchesse e, depois, com meia cabaça proceder à molha, ensaboamento e retirada do sabonete (Lifebuoy), situação semelhante à vivida em Colibuia só que agora com mais gente. As nativas que lavavam a roupa em local próximo passavam o tempo do nosso banho na risota, fazendo entre si comentários em crioulo que não percebíamos mas facilmente adivinhávamos.

Mas, o pior sucedeu após alguns dias naquela situação pelo facto de, com o vento, o papel higiénico utilizado andar a voar por todo o acampamento, situação que deu lugar à formação na parada das forças acampadas perante as quais foi feito um discurso tardio sobre a forma de resolver o problema, que passava pela utilização de uma pá de areia de cada vez que se usava a latrina improvisada. Não sei se saiu à ordem qualquer orientação sobre o assunto mas, se saiu, gostaria de saber os termos em que foi feita.
Ilondé: a minha tabanca (e de mais 7). O Caetano e eu (em pé)

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15 - DESENRASCANÇO

Com o pessoal instalado em tendas de campanha começou, logo no primeiro dia, a procura por melhores condições de vida dentro das circunstâncias que incluiam a inexistência de latrinas e banhos.

As tendas foram sendo abertas na parte de tràs, junto ao arame, e com ajuda da vegetação existente formava-se um acrescento significativo (atrasado) da tenda que servia de sala de estar e de comer (não havia refeitório).

Com madeira aproveitada faziam-se mesas e pequenos armários para guardar os utensílios de necessidade constante.

O pessoal mais apto para a área comercial construiu uma pequena estrutura coberta com capim, onde era servido café instantâneo e se lia o jornal com alguns dias de atraso.

Alguns dias passados, apareceu um jogo de matraquilhos, instalado ao ar livre, que constituia receita da Companhia e cujo montante foi progressivamente minguando, embora o pessoal jogasse mais ou menos o mesmo.

Entretanto, com a resolução do problema das latrinas e dos banhos, o pessoal partiu para um estádio superior de conforto tendo-se dedicado afanosamente a melhorar as suas condições de vida das formas mais diversas.

Porém, a cereja no topo do bolo era a cadeira de baloiço feita de um barril de vinho.

Ilondé: a minha tabanca (e de mais 7), a mesa exterior e as cadeiras de baloiço. Da esquerda para a direita: o Pinto, o Chaves, o Caetano, o Mendes e o Domingos (à civil)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21858: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (4): "O Machado"; "O Tiago e a pena" e "Viagem para Bissau"

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14727: Tabanca Grande (467): José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (Colibuia, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), 691.º Grã-Tabanqueiro

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo tertuliano José João Braga Domingos, ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), com data de 3 de Junho de 2015:

Caros Camaradas
Já há alguns anos que frequento o blogue para criar ainda mais saudades.
A sua existência é uma excelente ideia e agradeço reconhecidamente aos que cuidam da sua manutenção.
Reparei que existe pouca participação do pessoal que esteve na Guiné em 1973-1974 (talvez por acharem não ter cumprido o que esperavam deles). Por isso, puxei pela memória e mais de 40 anos depois fiz uma resenha da passagem da minha Companhia (e de mim próprio) pela Guiné.
Se lhe encontrarem algum mérito façam dela a utilização que entenderem.
Quase trinta anos depois do regresso esta Companhia reuniu-se pela primeira vez num convívio e foi formidável. Temos continuado a encontrar-nos e no próximo dia 6 de Junho lá estaremos na Quinta das Carrascas, Carrascas, Alcobaça.

Um abraço
José João Domingos
Ex-Fur Mil At Inf

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BCAÇ 4516 - 2.ª CCAÇ

Esta descrição tem com certeza alguns erros e omissões. As recordações são as de cada um e as versões do mesmo facto serão tantas e tão diversas quantos os seus narradores. Por isso mesmo, não consultei qualquer documentação ou camarada para validar o que escrevi que saiu apenas da minha memória ou da falta dela.

Após formação do Batalhão no RI 15 em Tomar, embarque em Alcântara, no navio “Niassa”, no dia 6 de Julho de 1973 com destino à Guiné. Despedida com a presença de uma multidão de familiares, namoradas e amigos dos militares que partiam.

No barco boas condições de alojamento, higiene e alimentação que, com o decorrer dos dias, se iam nitidamente degradando. Por outro lado, as diferentes condições de transporte dos militares das várias patentes não potenciavam o espírito de grupo indispensável a quem ia viver dois anos em circunstâncias muito duras.

Chegado ao porto de Bissau, após escala no Funchal para receber uma Companhia Independente, uma semana depois, sexta-feira 13 de julho de 1973.

Largas horas entre o fundear do navio (não acostou), em que se processou a distribuição de correio e à desinfestação do navio, e o desembarque para uma LDG com destino a Bolama.

O BCAÇ 4516 estava destinado a Teixeira Pinto mas tinha havido alteração na distribuição das tropas e ficaria como unidade de intervenção. A divisa do Batalhão era “Firmes e Constantes”.

Instalado na LDG, no meio de grande confusão de bagagem, indaguei junto de alguém da tripulação pelo local de satisfação das necessidades básicas e, obtida a resposta, conclui que tinha chegado à guerra.

A LDG de vez em quando andava uns metros mas, meia dúzia de horas depois, ainda víamos as luzes de Bissau. Já clareava quando, finalmente, se pôs a caminho tendo chegado a Bolama cerca do meio-dia.

O desembarque foi um quadro surrealista. Apareceram dezenas de crianças negras propondo-se transportar as bagagens dos militares até ao quartel, que era próximo, a troco de uns pesos. Era doloroso vê-los a arfar debaixo de malas maiores do que eles, sendo frequente os donos das malas pagar-lhes e fazerem eles o serviço. Entretanto, aqueles que não tinham arranjado cliente colocavam-se ao lado dum recém-chegado que transportasse um saco de plástico e, subrepticiamente, no meio da barafunda, com as unhas iam produzindo rasgões no saco até que o seu conteúdo caísse no chão após o que em bando disputavam os despojos.

À vista de uma cidade que tinha sido capital da Guiné Portuguesa fiquei dececionado e perguntei-me que civilização, após 500 anos de domínio, apenas consegue produzir uma cidade daquelas, com edifícios degradados (o hotel, residência dos oficiais, estava escorado) e as ruas sem asfalto. Salvava-se a piscina, junto ao mar, o quiosque perto da entrada onde se bebia um café manhoso e o restaurante do cabo-verdiano onde se comia leitão (já velhote) muito mal escanhoado.

O patriotismo que levava na bagagem: o meu respeito pela nossa bandeira, o arrepio que sempre me causava a audição do hino nacional e o meu orgulho de ser português, contra tudo e contra todos, levou um forte abanão.

Um mês em Bolama a tirar a IAO deu-nos mais preparação do que toda a instrução na Metrópole, em particular para adaptação ao clima na época das chuvas. A experiência com a época seca viria mais tarde e foi bem mais dolorosa pois as noites no mato faziam abanar o corpo todo e as consequências estão hoje bem presentes.

No dia 3 de Agosto de 1973, dia de festa do PAIGC, fomos brindados com cerca de uma dezena de disparos de morteiro 120mm que causaram sete ou oito vítimas mortais, entre militares e população. Só por sorte não aconteceu uma tragédia ainda maior pois o pessoal estava preparado para o jantar e algumas das granadas explodiram bem perto do aquartelamento. O obus do CIM retaliou passada mais de meia hora sendo provável que os autores já estivessem bem longe. Por precaução, fomos dormir para a mata nos arredores da cidade.

Durante a instrução o general Spínola deslocou-se a Bolama para receber o BCAÇ 4516, na presença dos representantes das forças vivas locais, com uma parada de tempo exagerado e alguns desfalecimentos. Na reunião com oficiais e sargentos, realizada no tal hotel, lembro-me bem do general Spínola dizer, entre outras coisas que não fixei, que “a guerra em África não se mantinha devido aos grandes rasgos de visão da retaguarda”.
De facto, era claro que aquela guerra não tinha saída para o nosso lado. A conquista de populações tão diversas teria que ter sido feita muitas décadas atrás se o País tivesse gente com visão no seu comando. Por outro lado, a concessão da independência traria consequências para os territórios mais apetecíveis sob o nosso domínio. Também o final da guerra do Vietname iria com certeza trazer problemas acrescidos para as nossas tropas por maior disponibilidade dos fornecedores de armamento.

Na segunda quinzena de Agosto lá fomos de LDG para Buba, com destino ao setor de Aldeia Formosa (Quebo). O caminho entre Buba e Aldeia, com paragem em Nhala e Mampatá, demorou uma eternidade para um periquito mas perfeitamente normal para o resto do pessoal, atendendo à época das chuvas.

Chegados a Aldeia pôs-se a questão do aboletamento tendo o pessoal ficado muito mal instalado nos primeiros dias, em sobreposição com o BCAÇ 4513.

Passados dias fomos integrados numa força militar conjunta para efetuar uma operação, creio que o nome era “Operação Pertinente”, cujo objetivo era chegar ao Unal. Para além do BAÇ 4516 entraram na força uma CCAV e outra do BCAÇ 4513.
Foram 4 dias de operação a partir de Buba, com chuvadas intensas, cujo objetivo não foi alcançado tendo apenas servido para treino operacional do BCAÇ 4516.
No regresso o primeiro paludismo e, em poucos dias, 10 kg a menos.

E lá fomos todos distribuídos pelo setor de Aldeia: 1.ª CCAÇ: Cumbijã; 2.ª CCAÇ: Colibuia e 3.ª CCAÇ: Nhacobá. A CCS ficou em Aldeia.

Ficou, portanto, a minha companhia estacionada em Colibuia, tendo adstrito um pelotão de milícia e dispondo de um morteiro de 81mm. Fazíamos o patrulhamento diário da zona e, periodicamente, estacionávamos uma noite no mato. Os confrontos mais frequentes foram com as abelhas. Diariamente procedíamos ao abastecimento de água numa fonte entre Colibuia e Aldeia, cuja estrada era de alcatrão, num local particularmente exposto a ataques o que obrigava a medidas de segurança rigorosas.

O aquartelamento não teria maior área que um campo de futebol sem bancadas e o telhado das casernas era em chapa de zinco tornando-as um forno a energia solar. A segurança do perímetro era feita com duas fiadas de arame farpado e, no meio, alguns fornilhos. Mas, finalmente, tínhamos a nossa casa.

A comida era péssima e escassa, não existindo alternativa no aquartelamento. Nestas condições, não faltavam clientes para o posto médico de Aldeia.
Contudo, se houve tempo em que senti grande liberdade em relação ao espartilho militar foram esses dois meses. Ninguém se preocupava com o tamanho do cabelo e da barba, com o ataviamento e com a ordem unida. Tomar banho era uma necessidade diária cuja concretização tinha alguma coisa de épico pois, devido à escassez de água, o caudal saído do buraco do depósito da água (que não chuveiro porque gastava mais) era pouco superior à baba de um menino o que permitia que se fumasse durante o banho, entre o acto de molhar e o de ensaboar, quando se dava a vez a outro.

Em Outubro, substituídos pela 3.ª CCAÇ, deslocámo-nos para Bissau (Adidos), durante alguns dias, tendo sido depois colocados no Ilondé, entre Bissalanca e Quinhamel, em tendas de campanha, sem latrinas, tendo sido aberta uma vala para onde as tropas defecavam directamente, e sem refeitório, sendo a comida feita e distribuída ao ar livre. O tempo passado até serem construídas as latrinas e os chuveiros dava para uma longa metragem de situações caricatas.

Passámos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com paragem em Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia de açorianos que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada. Uma das colunas estendeu-se a Guidaje e vimos bem as sequelas dos ataques de Maio de 1973 quer materiais quer psicológicos com destaque para as campas de algumas vítimas daquela acção que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram e a quem presto homenagem.
Participámos ainda em várias operações no terreno e fizemos segurança entre Bissau e Mansoa ao Ministro do Ultramar.

Entretanto, a 1.ª CCAÇ foi para Binta fazer segurança à construção da estrada Binta-Guidage e a 3.ª CCAÇ foi para o Ilondé em trânsito para Canquelifá. A CCS ficou no Ilondé.

Em Fevereiro/Março de 1974 estive de férias na Metrópole. Estava em Lisboa quando se deu o levantamento das Caldas da Rainha em 16 de Março e, embora sem êxito, deu para perceber que alguma coisa estava finalmente a mudar. No regresso de férias trouxe na mala um exemplar do livro “Portugal e o Futuro” de autoria do general Spínola.

No final de Março nova mudança, agora para Canquelifá, a substituir a 3.ª CCAÇ que passou lá um mau bocado. Outro buraco, sem comida e sem água potável.

O segundo paludismo, em poucos dias menos 10kg e, na recuperação, uma peritonite que me mandou evacuado para o HM 241 de Bissau, e cujo tratamento correu muito mal. Esta evacuação, a 20 de Abril de 1974, dava também um filme pois evacuado de helicóptero em Canquelifá pelas 12h00 cheguei ao HM pelas 20h00 horas, após paragens em Nova Lamego (para um salto de pára-quedas) e Bambadinca (para receber correio e lanche). Com um peso de 80kg à chegada trouxe 53kg à partida.

No Hospital, ainda nos cuidados intensivos, tomei conhecimento do 25 de Abril. Foi uma alegria enorme plena de esperança em dias melhores para nós e para o nosso País.
Seguiram-se dias de grande expectativa cheios de bocas e palpites que confundiam os que não estavam por dentro da revolução.

Por mero acaso, estava nos Adidos, assisti a uma reunião feita na parada de Brá, com o pessoal dos Comandos africanos, na altura da sua desmobilização, onde lhes foram prometidos benefícios e protecção que, foi depois voz corrente, teriam sido esquecidos.

A minha Companhia regressa de Canquelifá e passa a fazer segurança a Bissau até à independência da Guiné-Bissau em Setembro de 1974.

Em linhas gerais está aqui um pouco da minha história e da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4516.

Foram tempos difíceis mas ficaram recordações para toda a vida, boas e más, tristes e alegres. Talvez um dia me disponha a contar alguns episódios a que assisti e que representam bem a forma como os portugueses são desenrascados ou, antes, como encontram soluções para resolver problemas em contextos complicados.

Gostaria de destacar ainda alguns factos que considero muito importantes na estadia desta Companhia na Guiné:

1 – O seu comandante, capitão miliciano, foi muito competente na defesa dos seus homens e no trabalho operacional.

2 – Todos comiam do rancho, sendo que os soldados comiam primeiro e o que restava era para oficiais e sargentos.

3 – Estando definido o custo unitário de cada refeição, nunca percebi porque comíamos tão mal (estivemos quase sempre dependentes de outros em matéria de alimentação) e outros que fomos conhecendo comiam bem melhor.

Pessoalmente, adorei o povo da Guiné que considero puro e justo apesar de notar aqui e ali a influência perniciosa oriunda da Metrópole. Acho, também, que aquela terra se entranha em nós (ou nós nela) e, apesar das condições difíceis, sinto que ainda hoje a tenho em mim.




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2. Comentário do editor

Caro camarada Domingos
Desde já, bem aparecido na Tabanca Grande, escolhe um lugar sob o nosso poilão e dispõe-te a cumprir a promessa que fazes: Talvez um dia me disponha a contar alguns episódios a que assisti e que representam bem a forma como os portugueses são desenrascados ou, antes, como encontram soluções para resolver problemas em contextos complicados.

Como referes, há algum défice de memórias da nossa presença na Guiné depois do 25 de Abril até à nossa retirada, talvez porque da parte de quem viveu esses tempos haja uma espécie de conflito de interesses, por um lado os momentos difíceis vividos antes da revolução e por outro a euforia do fim da guerra que contrastará com um sentimento de missão não cumprida. Não sei se pensas assim.
No vosso tempo havia já muita malta com convicções e ideais contra a guerra colonial, que ficaram contentes com o desenrolar da situação, e outros camaradas que por formação ideológica ou suposto dever patriótico talvez ficassem frustrados com aquela retirada sem glória.
Acredito que em muitas Unidades a indisciplina imperasse, pois já ninguém teria mão nos militares que queriam regressar depressa a casa e esquecer aquele pesadelo.

Como vês há aqui muita matéria da qual te podes valer para desenvolver a tua colaboração.

Aqui fica um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores Luís Graça, Eduardo Magalhães e eu próprio.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14705: Tabanca Grande (466): Joaquim Fernando Monteiro Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Ganjauará, 1972/74) - 690.º Grã-Tabanqueiro

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14291: Fotos à procura de... uma legenda (53): Os "Unidos de Mampadá", à despedida, em Nhala, em agosto de 1974... (António Murta / António Carvalho / José Manuel Lopes)


Foto 1A


Foto 1B


Foto 2A


Foto 2B

Guiné > Região de Tombali > Nhala (a nordeste de Buba) > 1974 > Agosto de 1974 >  Os "Unidos de Mampatá", em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala (2ª CCAÇ/BCAÇ 4513)... Recorde-se que a CART 6250 foi mobilizada, pelo RAP 2, partiu para o TO da Guiné em 27/6/1972 e regressou em 24/8/1974. Esteve em Mampatá e Ilondé.Comandante: cav mil inf  Luís de Jesus  Ferreira Marcelino, nosso grã-tabanqueiro.

Fotos (e legenda): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Comentário do António Murta (*) [ex-alf mil inf , Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513. Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74]

Olá, José Carlos [Gabriel]. Então não te lembras do rapazinho do saco da TAP? Era o Alf Capelão e chegou a ir várias vezes a Nhala em diligências do seu ofício, sujeitando-se às partidas escabrosas dos alferes anfitriões.

Não recordo o nome dele, nem da maioria dos que aparecem nas fotos, embora me lembre de todos. Agora sei os nomes do António Carvalho (camisa aberta, cinturão, cigarro na boca), e do José Manuel Lopes (à esquerda, camisola azul, bigodinho), porque os encontrei aqui na Tabanca Grande. 

Já quanto ao Alf Carlos Farinha, (por trás à esquerda, de óculos escuros, a esconder-se do fotógrafo, aliás, todos os alferes ficaram na parte de trás do grupo), quanto a ele, dizia, nunca me esqueci do seu nome nem do seu rosto, porque chegámos a ser parceiros de "quarto", aquando da minha estadia em Mampatá com o meu Grupo de Combate. 

O Capelão, confesso, não sei se pertencia à CART 6250 de Mampatá. Que eram todos camaradas magníficos, não tenho dúvidas, Cap Luís Marcelino incluído, também ele camarada tabanqueiro.

António Murta (ou só Murta, para os conhecidos!)

22 de fevereiro de 2015 às 00:35 


2. Comentário do António Carvalho (*) [ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74]

Com referência à 2ª foto [2A e 2B]

Na cabine do Unimog: o Zé Manel, da Régua, na frente, de calções às riscas;  e, por trás, o Nina (Mecânico). [Foto 2A]

Entre as Bandeiras: na frente o levanta-minas (Vilas Boas) , de óculos, sentado [Foto 2A]; por trás,  o Vieira da Madeira, de cigarro na boca e bandeira na mâo; por trás deste, o Carlos Farinha (só se lhe vê a cabeça) era o Alferes que substituía o Capitão [Foto 2A].

À direita das bandeiras ( da esquerda para a direita): Quarto da frente, Rato (de camisola vermelha), eu (de camisa camuflada, calças nº 1 e chinelos de dedo), o capelão do Batalhão e o Simões (professor da companhia) [Foto 2B].

Sete de trás: Benvindo ?  Transmissões? Alferes do Pel Caç Nat,  Pinto... O rapaz da camisa à Jimmy Hendrix, seria o  Murta? Alferes Esteves, de Mirandela e o Fernandes de Lisboa (cigarro na mão esquerda) [Foto 2B] (**)

Carvalho de Mampatá

22 de fevereiro de 2015 às 03:37


3. Poema do Josema [José Manuel Lopes], já aqui publicado há uns largos atrás, e onde se evocam alguns dos supracitados "Unidos de Mampatá" (***)... 

[Na altura, em março de 2008, ainda não o conhecia pessoalmente, falávamos ao telefone... Dele escrevi que se tratava de "uma voz muito original, pessoal, uma surpreendente revelação da escrita poética sobre a guerra colonial na Guiné".] (LG]

Calor, cansaço, suor,
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior,
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa;
nem tudo é mau, afinal,
não é o Douro, eu sei,
nem o Tejo de Lisboa,
são outros os horizontes,
falta o xisto e o granito,
as encostas e os montes,
mas diga-se, na verdade,
há o Carvalho, 
há o Rosa,
há um hino à amizade,
há o Gomes e o Vieira,
a sonhar com a Madeira,
há o Farinha e o Polónia,
gestos [d]e solidariedade,
há o Esteves e o Pinheiro,
amigos e sinceridade,
há o Nina e até amor,
também sofrimento e dor,
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Josema

Mampatá, 1974


[fixação de texto: LG]
________________


(**) Último poste da série > 15 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14261: Fotos à procura de... uma legenda (52): a boeira, de Candoz, também conhecida por alvéola ou lavandisca, noutros sítios (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 28 de março de 2008 >  Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...

Para ter acesso à maioria dos poemas publicados (série "Poemário do José Manuel"), vd  poste de 29 de setembro de  2009 > Guiné 63/74 - P5033: Poemário do José Manuel (30): O sol queima em Colibuia...

Vd. ainda poste de 27 de fevereiro de 2008 >  Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9409: Tabanca Grande (319): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil da CCAÇ 4641 (Mansoa e Ilondé, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado), com data de 25 de Janeiro de 2012:

Caros editores
O Vítor Caseiro não é novo no blogue. Mas tem-se portado como um outsider... Já o encontrei por várias vezes - no Encontro Nacional em Monte Real, em apresentações de livros em Lisboa, nos convívios da Tabanca do Centro, também em Monte Real. Parece que agora o convenci a deixar o anonimato e candidatar-se a um lugar de tertuliano na Tabanca Grande. Vai daí, resolveu descarregar-me tudo em cima - apresentação, foto da Guiné (podia ser o primo, que ninguém notava...), foto actual, e uma 1ª história, para começar. E eu que me desenrasque a enviar-vos o material e a apadrinhar a sua entrada...

Não me lembro de ele o ter dito, mas o Vítor é de Leiria. Quando do seu aniversário (nasceu em 27 de Junho de 1961), não sendo tertuliano enviei-lhe pessoalmente um postal de parabéns, que naturalmente não enviei para publicação no blogue. Por curiosidade junto também esse postal; e isso lembra-me que o Vítor é bastante empenhado em acções de solidariedade para com os seus conterrâneos, tendo sido até há pouco tempo dirigente da AMBESSE - Associação de Melhoramentos e Bem Estar Social de Santa Eufémia (Leiria).

Tratem bem do rapaz...
Abraço.
Miguel


Do Padrinho Miguel para o afilhado Vítor. Prenda de aniversário do ano passado


2. A minha apresentação:
Eu, Vítor Caseiro ex-Furriel Miliciano da CCaç 4641

Quando estava colocado no RI 14 em Viseu, saiu em ordem de serviço a minha mobilização para Angola (26 de Setembro de 1972). Apresentei-me no RI 16 em Évora para formar a CCaç 4641. Entretanto, no início de Maio, a Companhia foi informada do embarque para Angola agendada para o dia 8 de Junho de 1973.

Em 23 de Maio às 12h recebemos ordens para nos apresentarmos às 6h do dia seguinte, no aeroporto de Figo Maduro. No dia do embarque, quando nos preparávamos para entrar no avião, fomos informados que já não iríamos para Angola, mas sim para a Guiné. Depois de várias manifestações de revolta da nossa parte, tentámos recusar o embarque. Foi quando chegou um pelotão da P.M. e nos forçou a entrar no avião.

Após o desembarque na Guiné, o oficial superior que nos fez a receção, informou-nos que a nossa Companhia era a primeira de outras que vinham em reforço do contingente militar na Guiné. Daí seguimos para o Cumeré para fazer novo I.A.O. e mais tarde para Mansoa substituindo a 3.ª Companhia do Batalhão 4612 que foi deslocado em apoio de Gadamael, que estava a ferro e fogo. Estávamos no famoso Maio de 73, altura em que se desencadearam as maiores operações de ataque pelo inimigo por toda a Guiné. Foi neste mês que se deram os cercos aos aquartelamentos de Guidaje e Guileje, sendo este abandonado pelas nossas tropas. Este inédito acontecimento foi o motivo da nossa Companhia ter ordem de embarque em menos de 24 horas.

Ao fim de 13 meses de Guiné, a minha Companhia foi deslocada para Ilondé, onde passámos a fazer colunas de abastecimento de Bissau para Farim.

O final da nossa comissão, foi fazer segurança e proteção ao Palácio do Governador.


3. Comentário de CV:

Caro Vítor Caseiro, não te abro a porta porque já és um frequentador da Tabanca, se não da Sede, pelo menos das filiais. Quer nos convívios da Tabanca Grande quer na Tabanca do Centro, apareces regularmente e já conheces muita da malta.

Espero que o Miguel não leve a mal eu ter começado a tua apresentação com a sua mensagem, mas acho ter as minhas razões.
Primeiro porque não podias ter melhor padrinho. Ele, o Miguel, é único, tem um sentido de humor sem limites e é um camaradão.
Segundo, se reparares, ele diz que nasceste em 1961, logo não é um amigo qualquer. Nos tempos em que os aumentos são diários, ele faz-te um desconto de 17,4% na idade. A mim os meus amigos costumam dizer que não me dão mais de 62 anos, ao que respondo, obrigado, mas tenho 63. Tu não, tens aí um amigo a sério. Já agora, que dizes se aceitarmos como certo 1951 o ano do teu nascimento?
Terceiro porque ele tratou dos teus papéis, tudo direitinho, como os padres que despacham aquele assunto chato e complexo dos papéis para casar. É pena que não tratem dos do divórcio, mas compreende-se porque o ofício deles é ligar e não desligar. O electricista é que faz as duas coisas.
Quarto... vamos ficar por aqui ou damos importância a mais ao Miguel.

Posto isto, camarada Caseiro, o melhor é sentares-te a trabalhar e mandares a tua segunda colaboração, a primeira segue dentro de momentos, e já agora, por favor, se fizeres mais um pouco de esforço mandas directo para nós. É que já devemos imensos favores ao Miguel e ele não pára de cobrar.

Os teus trabalhos, esperemos que muitos, devem ser enviados para luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e para um dos editores de serviço: carlos.vinha@gmail.com e/ou magalhaesribeiro04@gmail.com

Já agora podíamos trocar galhardetes. Uma vez que te demos os nossos endereços, esperamos o teu. Desta feita vamos enviar a mensagem de boas vindas via Miguel Pessoa.

Posto isto, resta, em nome da tertúlia, enviar-te um abraço de boas vindas.

Pelos editores
Carlos Vinhal




4. Uma história

Todos os militares combatentes têm as suas histórias para contar.
Eu, também tenho as minhas e vou passar a descrever a primeira.

No dia 23 de Maio de 1973, dia em que a minha Companhia recebeu ordem de embarque para o dia seguinte, estava eu de sargento de dia no RI 16 em Évora e só no final do dia foi possível proceder à minha rendição. Durante toda essa tarde os meus camaradas fizeram as compras que entenderam necessárias, como por exemplo, as divisas para os novos postos, entre outras. Quando desembarcámos no aeroporto de Bissalanca a Companhia formou-se em parada militar para ser recebida pelo Chefe das 2.ª e 3.ª REP/QG/CTIG, Sr. Major Porfírio dos Santos. Pertencendo eu ao 1.º Pelotão fiquei “cara a cara” com este. Após o seu discurso o Sr. Major ordenou-me que o acompanhasse a um gabinete onde estava um 1.º Cabo Escriturário ao qual deu a ordem de passar uma guia de marcha para eu ser transferido para um aquartelamento (cujo nome não fixei). Após esta ordem, o 1.º Cabo informou-me que ia para um sitio onde todos os dias se morria. Naquele momento senti o desmoronar de todos os meus 20 anos de juventude (já era pai de um filho com 8 meses). Ainda não estava recomposto do choque emocional da mudança brusca de não embarcar para Angola mas sim para a Guiné (onde a guerra e o clima eram devastadores) e já estava a sofrer outro revés psicológico.

Algum tempo depois, o capitão da minha Companhia questionou o Major Porfírio sobre o que se estava a passar comigo, foi nessa altura que este afirmou que eu ao chegar com divisas de Cabo Miliciano, seria porque vinha debaixo de um castigo militar (uma porrada ). Após o esclarecimento do equívoco tudo voltou à forma inicial e regressei à Companhia que esperava nas viaturas que nos haviam de levar para o campo militar do Cumeré.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9394: Tabanca Grande (318): Carlos Milheirão, ex-Alf Mil da CCAÇ 4152/73 (Gadamael e Cufar, 1974)