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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24775: Notas de leitura (1626):"Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização", por Pedro Rabaçal; Marcador Editora (Editorial Presença), 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de uma iniciativa de divulgação, abarca a presença portuguesa em vários continentes, o capítulo dedicado à Guiné afigura-se-nos no essencial correto, menos correto o capítulo que dedica a descolonização, a bibliografia apresentada é muito precária e alguns dislates não impedem de considerar que a obra cumpre a sua função meramente expositiva e didática.

Um abraço do
Mário



Portugueses em África: uma breve história da nossa presença na Guiné

Mário Beja Santos

A
obra intitula-se Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização, por Pedro Rabaçal, Marcador Editora (Editorial Presença), 2017. É uma obra de divulgação por alguém que tem no seu currículo o gosto por investigar, veja-se os títulos do que já publicou na Marcador Editora: 100 heróis e vilões que fizeram a História de Portugal; Imperadores Romanos, a vida de 30 Césares; Os grandes ditadores da História; 100 datas que fizeram a História de Portugal. Abarcando todas as parcelas do Império Português, ao longo de cerca de 150 anos, seleciona-se o que sobre a Guiné escreveu.

Tem um capítulo autónomo intitulado Guiné, a rebelde. Inevitavelmente fala nos lançados e tangomaus, no Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Alvares de Almada, nos piratas e presídios, na edificação da fortaleza de Cacheu, no enorme refluxo marcado pela Dinastia Filipina e a tentativa, após a Restauração, para melhorar a presença portuguesa; dá-nos um breve quadro da missionação e dos seus magros resultados; estamos chegados ao tráfico negreiro, a par do assédio francês e britânico, dá conta de que altas figuras da mestiçagem prosperavam com o comércio negreiro, caso de Caetano Nosolini e a sua mulher Aurélia Correia, e faz uma exposição digna de destaque:
“A atividade negreira de Caetano Nosolini correspondia à maioria da média anual de 2000 negros vendidos a Cuba. Enquanto não eram vendidos, trabalhavam nas suas plantações de café, amendoim, arroz, milho. As acusações e protestos contra Nosolini não passaram de uma brisa aquando das suas nomeações para governador interino da Guiné. Uma delas era a do homicídio do capitão mercador francês Dumaige, seguida da sua prisão e absolvição. A anulação da indemnização não teve efeito, dado a marinha francesa ter confiscado várias toneladas de mercadorias de Nosolini, sob a ameaça do uso da força.

O combate ao tráfico de negreiros significou o fim da prosperidade mercantil da Guiné no início do século XIX. As reduzidas guarnições locais passaram a ser pagas em géneros, como panos e barras de ferro, remunerações cuja a modéstia e lentidão despertavam frequentes atos de indisciplina. O hábito de enviar degredados merece ser exemplificado pelo caso do capitão-mor Manuel Pinto Gouveia, nomeado em 1905 e acompanhado de uma guarnição de 150 criminosos.
Um rival e concorrente de Nosolini, o também negreiro Joaquim António de Matos, não soube reconverter-se a novas atividades com a abolição da escravatura. E os negócios não lhe correram bem, como quando a Royal Navy destruiu o seu estabelecimento na ilha das Galinhas e libertou os escravos, em 1842”.


O autor debruça-se sobre os assédios francês e britânico, prossegue com os confrontos entre português e autóctones e o papel exercido por Honório Pereira Barreto. São referenciados vários desastres, como Bolor (1878) e a derrota de 15 de janeiro de 1886, num afluente do Rio Grande de Buba. Trata-se de um período de enorme instabilidade, em que os residentes dentro de Bissau vivem na maior das inseguranças. Mas tentou-se a expansão militar, sempre com enormes dificuldades e assim se chegou à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. A narrativa destaca as campanhas do capitão Teixeira Pinto, as violências do seu braço direito, Abdul Indjai e entramos num capítulo sobre a modernização da economia. Extinta a escravatura, a agricultura e a exploração madeireira passaram a ser as principais riquezas da Guiné, alargou-se a relação dos produtos de exportação, chegou-se ao século XX com o comércio externo nas mãos de sete casas comerciais (três francesas, uma franco-britânica, uma alemã e uma belga, e uma única portuguesa). Somente 18% do comércio externo da Guiné era realizado com Portugal (isto de 1909 até 1913), o controlo português surgiu em 1927 com a criação da CUF.

O autor refere a questão das grandes carências, da divisão entre civilizados, assimilados e indígenas, o período de transformações trazidos por Sarmento Rodrigues. E procede a uma inflexão, dedica um capítulo às rebeldias guineenses e às respetivas operações ditas de pacificação que culminam com a rendição da ilha de Canhabaque em fevereiro de 1936.

Inevitavelmente que irá falar da Guiné no capítulo dedicado à Guerra Colonial, há poucas novidades: o início de guerra em janeiro de 1963, a Operação Tridente, a natureza dos armamentos das tropas portugueses e guineenses, a chegada dos técnicos cubanos em 1965, as tentativas de Spínola em reverter os avanços do PAIGC, as ofensivas diplomáticas de Amílcar Cabral, os desastres da Operação Mar Verde, como Sékou Touré se aproveitou desta operação para proceder a uma nova purga sangrenta na República de Conacri; e temos a questão cabo-verdiana como um dos motores do assassinato de Amílcar Cabral mas o autor não perde a oportunidade para referir outros hipotéticos responsáveis.

Faz perguntas:
“O que o Estado Novo tencionava ao ajudar membros do PAIGC a tomar o poder dentro do partido? Fazê-lo mudar de lado? Uma simples aliança temporária contra o inimigo comum? Quem sabe, enfraquecer e dividir o PAIGC, o que soa mais provável. Porém, a eliminação de Amílcar Cabral acabou por não dar em nada.
Uma vez decapitado, o PAIGC deixou crescer outra cabeça dirigente, como uma hidra, e os respetivos combatentes lutaram com a maior firmeza, ansiosos por vingar a morte do líder. O escândalo internacional perante a morte de um famoso e respeitado não foi de certeza uma vitória diplomática para Portugal. O crime não serviu de nada ao Estado Novo nem ao colonialismo português. Amílcar Cabral era um homem, mas nenhuma bala podia eliminar as suas ideias”
.

Trata-se, pois, de um livro de divulgação, dá-se como certos elementos altamente discutíveis e jamais comprovados, é mais uma obra a juntar aos extenso reportório de tantos outros títulos orientados pelo prazer de fazer histórias breves do Império Português.

Cerimónia em frente do Palácio do Governador, Bolama, década de 1930
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Notas do editor

Último poste da série de 16 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24762: Notas de leitura (1625): "Militar(es) Forçado(s), por Maximino R. Costa; edição de autor, 2017 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24724: Historiografia da presença portuguesa em África (388): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Tenho para mim que esta revista ilustrada das Colónias Portuguesas é uma publicação que merece a maior atenção dos investigadores e historiadores. Repare-se no mapa hoje publicado, e com data de 31 de dezembro de 1887, onde, estou em crer, se procurar reproduzir fidedignamente as fazendas agrícolas que marcavam claramente o que era a presença portuguesa fundamentalmente no sul da colónia, comércio esse, ponto curioso, que será severamente abalado no mesmo ano em que a Guiné será desafetada de Cabo Verde, 1886. Não será por acaso que os números desta publicação referentes a 1887 e parte de 1888 estejam escritos num tom tão lamentoso, a Guiné é dada como perdida, o que deve chamar a nossa atenção para a grande importância comercial que tinha Ziguinchor e o tráfego comercial no Casamansa. A revista mostra imagens espantosas do desenvolvimento em Angola, usos e costumes na Índia e Timor, enfim, é uma publicação que só pelas suas ilustrações de altíssima qualidade merecia que um editor as publicasse, mostram a saga portuguesa quando o sonho do império africano se tornara numa frutuosa aventura comercial.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Estamos agora em janeiro de 1887, sou forçado a folhear delicadamente o volume, está muito combalido, o papel esgarçou, despegou-se da lombada, há cortes e remendos, impõe-se o maior cuidado, é volume histórico. Estão ausentes quaisquer imagens da Guiné, o leitor que se prepare para comentários do editor e de um leitor que se assina A. B. (presumivelmente Augusto Barros, que se apresentou em 1883), predomina um tom lamentoso, derrotista, lendo estes escritos parece que a Guiné portuguesa bateu no fundo.

Começa-se por um comentário do editor logo no número de janeiro:
“Nesta província onde se presenceia continuada decadência, tudo são empregos para uns e para outros, com ordenados mesquinhos e pobres; tudo feito sem nenhum critério, sem nenhum estudo que proceda à criação desses mil empregosinhos, mais funestos que úteis à administração pública.
As forças públicas, apesar dos mais honrados esforços, tende à sua frente um oficial dedicado e de subido merecimento, continuam no mais grave abandono, pois que em vez de soldados se lhes apresentam essa coorte de malfeitores, que a metrópole, com todos os seus recursos, recusa e não quer nas suas fileiras.”


Segue-se um longo silêncio, estamos agora no número do mês de setembro, o comentário é quase tétrico, a narrativa apocalítica:
“A Guiné portuguesa está perdida, e, contudo, é uma das mais belas das nossas províncias ultramarinas. Cortada por dois grandes rios, o Rio Grande de Bolola e o Geba, formam na sua foz um grandioso estuário, orlado de todos os lados da mais surpreendente vegetação, têm as suas nascentes nos célebres territórios de Futa-Djalon, onde os grande mananciais auríferos, a fertilidade do sono, o espíritos agrícola e industrial dos seus habitantes, causa inveja às melhores colónias do mundo.
Em 1886, quando pela primeira vez tivemos ocasião de conhecer esta colónia, estava ela no seu esplendor comercial. A agricultura florescia, trabalhava-se, havia vida e ânimo para novos empreendimentos e viam-se as águas num e noutro rio cobertas de navios de alto bordo, franceses, suecos, ingleses, russos, espanhóis, italianos, etc., que ali iam tomar importantes carregamentos de diversa produção do país.
O ouro e o marfim encontravam-se igualmente no comércio. Hoje, na nossa Guiné, tudo é triste, medonho, pobre, desgraçado. Assim o quiseram os homens que legislam sem o conhecimento das colónias.
A produção atualmente nem a um terço atinge, e as propriedades estão completamente abandonadas. Um silêncio de morte reina hoje, onde tanta vida, tanto trabalho e tanta atividade houve ainda há pouco tempo.

Santa Cruz de Buba, situada na margem direita do Rio Grande, que tanto florescia como centro do melhor negócio com todos os povos circunvizinhos, lá está na mesma tristíssima situação: nenhum comércio, tudo abandonado! O comércio da amêndoa de palma, que fornecia a permutação com os Bijagós, enfraqueceu igualmente e restaria a borracha, que na província aumentou em proporção notável nos últimos tempos, se não fosse também perdendo o seu valor, porque os gentios lhe juntam matérias estranhas, com ainda derrubam as árvores para lhe aproveitar todo o suco leitoso, porque não conhecem os simplicíssimos processos para tal fim empregados.
Em Geba, empório do comércio com as tribos mais trabalhadoras da costa leste de África, em cera, couros, ouro, marfim, etc., está igualmente aniquilado; tais foram as funestas negociações de Paris para a delimitação das nossas fronteiras nestas colónias, que melhor fora vender de vez.
É em 1883 onde se acentua mais violentamente este desgraçado estado de coisas.
A grande baixa dos produtos coloniais, o enfraquecimento do solo, as guerras constantes entre os naturais, levaram igualmente um enorme desastre àquela colónia; mas se isto era motivo para tomar em atenção os meios que conviria adotar para contrabalançar tais prejuízos, lançaram impostos tão excessivos na propriedade rústica, que ocasionou a sua fatal ruína.”


Permito-me agora dois comentários. O primeiro atende à referência que o autor faz a dois rios, o de Buba e o Geba, o que significa que em 1886 não havia comércio e navegação no Corubal, este rio sim com nascente e foz, tal como o Geba. O autor lamenta a convenção luso-francesa mas não faz nenhuma referência à quantidade de território recebido para o interior, exatamente em direção a Futa-Djalon, e aonde a nossa presença nem chegava a ser meramente simbólica.

O segundo refere-se a um mapa que vos mostro com muito orgulho e que tem a ver com o abandono completo das fazendas agrícolas, está datado de 31 de dezembro de 1887, as duas folhas estão muito maltratadas, estou convencido de que se trata de um mapa jamais referenciado pela historiografia da Guiné, corresponde ao desaparecimento dos entrepostos comerciais fundamentalmente no Tombali e no Quínara, produto acima de tudo das guerras do Forreá.

Estamos agora em 1888, mantém-se o tom lamentoso, é momento de dar a palavra a A. S., é uma jeremiada pegada:
“Choremos a perda do nosso Casamansa, mas ponhamos também luto carregado todos os anos no aniversário da assinatura do tratado dos limites franco-lusitano, porque se é verdade que perdemos, para sempre, aquele riquíssimo empório de comércio, é dever nosso também memorar os que como Honório Barreto, e outros, souberam honrar o nome português.” E escreve mais adiante: “Em 1835, o nome de francês ainda era ali completamente desconhecido, e no Rio só se conhecia o nome português, ainda como no Cacine e no Nalu, ainda há poucos anos. Mas no que ninguém pensou, nem poderia pensar, é que o sertão correspondente à nossa colónia pudesse por um instante ter contestação, por limitar com o de régulos Futa-Fulas. A questão foi o futuro que os franceses salvaguardaram, e que nós, implicitamente, desprezamos.”

E assim termina o libelo acusatório:
“O primeiro governador, em lugar de desenvolver energia e atividade de castigar rebeldes, ocupar o fortificar os lugares que ocupava, concentrava os seus cuidados em organizar repartições, montar secretarias, fazer regulamentos, nomear comissões, que tudo leva demoras, escrever ofícios e relatórios sobre o estado em que encontrara a colónia!
Dez anos após a autonomia, cometem-se os mesmos erros iniciais. A Guiné tem descido, e continuará a descer, se não se reformar a sua administração, até que o governo se há de ver na dura e triste necessidade de a ligar novamente a Cabo Verde, senão a vê-la perdida para sempre. Acudam à Guiné.”

Assina A. S., repito que é suposto ser Augusto Barros, já colaborador em 1883.

Creio tratar-se de um mapa credor da atenção dos historiadores, mostra as fazendas agrícolas então existentes, nomeadamente no sul e que foram abandonadas, na sua quase totalidade, até 1886

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24705: Historiografia da presença portuguesa em África (387): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24542: Historiografia da presença portuguesa em África (380): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Jamais outro Presidente da República passará tanto tempo na Guiné como Craveiro Lopes, chegado a 2 de maio de 1955, parte na fragata Bartolomeu Dias com destino a Cabo Verde a 14 de maio. Bem vistas as coisas, vai visitar a obra de Sarmento Rodrigues, agora ministro do Ultramar, anda sempre a seu lado, e sempre ovacionado por régulos e população. Tirando o dia de repouso na praia de Varela, o Presidente da República não se escusou a dias com farta agenda, não eram só sessões de cumprimentos e desfiles, visitou obra feita e ainda por fazer, caso da ponte sob o Corubal. O programa foi bem talhado, não restam dúvidas, porventura Craveiro Lopes não se apercebeu que a grandeza dos empreendimentos que visitou do modo geral eram de fresca data, por ali andou um tufão de construções mal tinha acabado a Segunda Guerra Mundial e não havia discurso em que Sarmento Rodrigues não dissesse claramente que se impunha a reabilitar a condição humana daquela gente africana, empenhou-se em fazer escolas e instalações de saúde, remodelou os serviços relacionados com as doenças tropicais, esteve sempre bem acolitado por gente entusiasta como Manuel Pereira Crespo ou Avelino Teixeira da Mota. Não pôde reverter o irremediável, caso da decadência de Bolama, Bissau tornara-se macrocéfala, os negócios, quase todos, abandonaram a antiga capital, Bolama ficou reduzida a um mero entreposto, a uma cidade espectral onde avultavam alguns monumentos e uma bela tipografia. Curiosamente, por esse tempo da visita de Craveiro Lopes começa a vicejar, ainda que ténue, o sentimento nacionalista.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (6)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15 horas locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou. Segue para Bafatá, visita o Gabu, numa outra etapa vai até Farim, percorre o rio Cacheu a bordo do Mandovi, descansa na praia de Varela. Visita um vastíssimo número de empreendimentos, desde instalações de saúde, missionários, discursa, condecora e premeia, não faltarão desfiles étnicos, espetáculos musicais, dançarinos.

Entrámos na derradeira etapa, obrigatório visitar Cacheu, o jornalista Rodrigues Matias introduz uma nota histórica:
“Chipala, rei das terras dos Burames (será Brames?), tinha uma das suas mais florescentes povoações na margem do rio de S. Domingos, a 25 quilómetros da foz. E na povoação se fundara e prosperara, a primeira feitoria portuguesa da Guiné, de que será feitor Manuel Lopes Cardoso. Os Papéis de Cancanda admitiam em fraternal convívio os moradores portugueses da feitoria dentro da povoação Burame. E Lopes Cardoso insinuou a Chipala que bem andaria o rei se lhe permitisse a construção de um forte no lugar da feitoria, para defesa do porto e moradores. Chipala aquiesceu ao pedido e a fortaleza surgiu construída e artilhada à custa dos residentes portugueses, no ano de 1588. Houve tentativas de assalto, rechaçadas. Vieram a este porto navios embarcar mancarra, óleo de palma e coconote. Surgiu a Companhia de Cacheu e, mais tarde, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde. Depois, Farim concentrou o comércio da mancarra, do óleo de palma e das madeiras.”

Craveiro Lopes visita o velho forte pela manhã de 12 de maio, tinha sido restaurado em 1946. À saída do recinto, apresentam cumprimentos as Nharas ou Donas Cristoas, resquício da missionação católica dos velhos tempos da ocupação. Manda uma secular tradição que o Homem Grande de Lisboa seja transportado aos ombros das Donas, e Craveiro Lopes, manifestamente contrafeito, sentou-se numa cadeira enfeitada de panos, apoiada sobre duas longas varas. E as Nharas transportaram o Chefe-de-Estado, ele insistiu numa curta distância. Seguiu-se a visita ao monumento a Honório Pereira Barreto.

Regressa a Teixeira Pinto, sobe a uma tribuna sob uma chuva de pétalas de flores, recebe cumprimentos, houve desfile de grupos representativos dos povos da região, erguiam enormes listéis com os nomes de Costa de Baixo, Jata, Pecixe, Calequisse, entre outros; raparigas Manjacas de Pecixe, mulheres levando à cabeça esteiras, cestos, cabazes e mais artefactos de tecelagem manual de palha, mulheres pescadoras, caçadores, desfilaram garbosamente. Craveiro Lopes, no final, entregou prendas, desde medalhas a fotografias e bandeiras nacionais.

O jornalista Rodrigues Matias regressa à descrição de carater etnográfico e etnológico, desta vez foca-se nos manjacos e transcreve apontamentos do livro de António Carreira, Vida Social dos Manjacos. Após um magnífico almoço volante, a caravana ruma para Bissau, passando por Bula, Bissorã e Mansoa. Craveiro Lopes visita a Missão de Santo António de Bula, um internato com oficinas de mecânica, serralharia, carpintaria e alfaiataria. A viagem prossegue por Binar, Biambi, Encheia, houve paragem em Bissorã. O Presidente da República visita a Estação Zootécnica, recebe um presente, um magnífico exemplar de gato almiscarado, espécie rara que depois será enviada para o Jardim Zoológico de Lisboa. Rodrigues Matias dá-nos mais apontamentos, desta vez sobre a etnia Balanta, elaborados pelo administrador Alberto Gomes Pimentel.

A caravana chega a Mansoa, nova chuva de flores, apresenta-lhe cumprimentos o administrador, James Pinto Bull. Craveiro Lopes entrega medalhas, cinturões com talabarte, fotografias e bandeiras. Desfilam os povos da região: Donas, Porto Gole, Binar e Bissorã. É também presenteado com danças e o jornalista não resiste a descrever: “Um bailarino principiou a bailar. Paramentado como para as festas da circuncisão, viam-se-lhe apenas os pés. Envolvendo-lhe a cabeça até aos ombros, em que se apoiava um cesto alto, sustentando um monumental par de chifres. Ao fundo das costas, uma canasta pendurada, grandes abanicos nos ombros. Molhos de sisal a cobrirem-lhe os braços e as pernas.”

Ainda há uma curta paragem em Safim, segue-se uma entrada triunfal em Bissau, cortejos automóveis, carrinhas e camiões. Craveiro Lopes regressa ao Palácio do Governo e agradece a todos tão deslumbrante receção. Assim se chegou a 13 de maio, o Presidente da República visita no Biombo as enormes várzeas de arroz. O resto do dia estava destinado à receção de entidades que tinham assuntos a expor. Por seu lado, o ministro Sarmento Rodrigues recebeu um grupo de 22 diplomados pela Escola Superior Colonial (depois Instituto Superior de Estudos Ultramarinos). Craveiro Lopes ofereceu no Palácio do Governo um banquete seguido de receção e baile. Há brindes e o Presidente da República discursa, trata a Guiné como filha mais velha da expansão ultramarina, enumera e congratula-se com os progressos que observou.

Melo e Alvim agradece por seu turno e faz uma longa referência ao que se fez e ao que se pretende fazer. Destaca-se aqui um ponto: “Estudos recentemente levados a efeito parecem demonstrar a possibilidade da cultura do algodão. O cajueiro, a palmeira de Samatra, as fibras têxteis, a cana sacarina, as citrinas e bananas, podem constituir novos fatores de riqueza.” Há baile, assim acabou o último dia de digressão.

A 14 de maio, Craveiro Lopes e comitiva têm a partida assegurada para Cabo Verde. A Companhia de Caçadores Indígenas constitui a guarda de honra, junta-se uma multidão pela Avenida da República até o Pidjiquiti, sobem para a fragata Bartolomeu Dias, o Lima vai seguir na sua esteira. Também é hora do jornalista se despedir, ele confessa que vem altamente impressionado com a obra que o governador Sarmento Rodrigues deixou na Guiné.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes e Salazar: no princípio do mandato presidencial mantiveram uma boa relação
Fortaleza de Cacheu
Canchungo
Os CTT de Mansoa
Fragata Bartolomeu Dias
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24529: Historiografia da presença portuguesa em África (379): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Corresponde a um período em que Carreira desbravou imensa documentação nos arquivos, toda esta pesquisa sobre o comércio negreiro destinado primordialmente ao continente americano. Esta análise sectorial mostra claramente a crescente vigilância inglesa nas águas destes pontos da costa africana, mas igualmente muito ativa nas Antilhas. Resistiu-se por todos os meios, tentou-se enganar a vigilância, e a ninguém assombra que a escravatura tivesse recrudescido entre os povos da região, à falta da exportação. Ao tempo começa o comércio da mancarra, é uma nova lógica comercial que se instala, incentivar culturas e propor novos mercados de exportação, favoráveis aos propósitos coloniais. Aqui se deixa o testemunho de agradecimento a todos estes trabalhos pioneiros de Carreira, a historiografia anterior sempre fugiu a decifrar e a mostrar os cenários deste hediondo comércio.

Um abraço do
Mário



As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde

Mário Beja Santos

A Junta de Investigações Científica do Ultramar deu à estampa em 1981 um trabalho de António Carreira intitulado “O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”. Aqui se tem feito referência ao conjunto de obras de Carreira sobre o comércio negreiro, ele foi um pioneiro nestes estudos que hoje conhecem franco desenvolvimento. Aqui se pretende somente fazer referência, formalmente abolido que estava o tráfico, à sua repressão, o investigador alega escassez de informações nas pesquisas arquivísticas que fez. Atenda-se ao que ele escreve:
“Tudo indica que os negociantes de escravos residentes em Cabo Verde se tornaram extremamente dinâmicos a partir dos primeiros anos do século XIX – talvez na razão do aperto da fiscalização. Pelo menos é o que se conclui dos relatos das comissões mistas, quer a sediada na Boa Vista, quer a da Serra Leoa e pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com bandeira portuguesa e passaporte concedido pelo governo de Cabo Verde. À sombra dessa proteção acolhiam-se armadores espanhóis e um ou outro brasileiro, isto se falar numa espécie de caçadores furtivos procedentes de outras áreas.
Das listas oficiais de navios apresados, de 1835 a 1839, com escravos a bordo ou por simples indícios de se dedicarem ao tráfico e dos que foram declarados suspeitos de implicação no tráfico pelas comissões missões, referenciamos 36 armadores com um total de 55 navios. De entre os condenados, 14 transportavam escravos e 25 teriam a bordo mercadorias próprias para o negócio da escravatura.
Também estavam sujeitos a apresamento e confisco do casco os navios que tivessem: escotilhas com grades abertas; repartimentos, coberta corrida ou separações em maior número que é costume; tábuas aparelhadas para formar segunda escotilha; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção; maior quantidade de água em pipas ou tanques do que é necessário para o consumo da tripulação; quantidades extraordinárias de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho do que a necessária para o uso da equipagem; quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne, peixe salgado, farinha de pau, mandioca, milho ou outras farinhas.
Pode dizer-se que se preparava o caminho que viria a permitir aos ingleses a imposição a Portugal das estipulações do Tratado de 3 de julho de 1842”
.

E assim nos aproximamos concretamente do comércio negreiro nos rios da Guiné e Cabo Verde. Carreira faz referência a uma carta de maio de 1835, o embaixador inglês Howard de Walden comunica ao ministro português que fora apresada em 14 de agosto de 1834 na ilha de Cuba a escuna Felicidade transportando a bordo 174 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Desembarcados os escravos, a escuna foi levada para Serra Leoa e aí entregue à comissão mista. A escuna Felicidade estava inscrita no arquivo da Praia, nota-se, no entanto, uma discrepância em vários elementos, mas não deixa de ser flagrante a coincidência do nome do navio e o número de escravos apresados. Entre 1836 e 1839 terão sido apresadas embarcações com uma média anual de cerca de 1000 escravos. Interrogando-se quanto aos portos em que teriam sido embarcados os escravos, Carreira diz que talvez se possam apontar os rios Casamansa, Cacheu, Geba, ilhas de Bissau e dos Bijagós ou nas rias do Sul – Nuno, Pongo e ilha dos Ídolos – como sendo as áreas de procedência da maioria das carregações.

Continuamos a citar António Carreira:
“Para o volume de escravos apresados, os 41 transportados pela escuna Liberal que navegava com passaporte passado pelo governo de Cabo Verde, e detectados pelo brigue brisk, a 14 de abril de 1839, constituíram uma gota de água no imenso oceano de tráfico ilícito. E daquele número unicamente 3 foram dados como pertencentes a Honório Pereira Barreto, por cuja infração foi condenado pela comissão mista à pena de incapacidade de exercício de funções públicas por 5 anos, agravada com a multa de 2 contos de réis! Foi inegavelmente uma condenação política, a que talvez não tivesse sido estranha a influência dos próprios patrícios que lhe invejam a posição preponderante que desfrutava.
No actual estado das pesquisas arquivísticas sobre a matéria (arquivos de Lisboa e de Cabo Verde – já que na Guiné há absolutamente nada) apenas podemos indicar outro caso de tráfego ilícito, não por apresamento de navios e/ou escravos, este registado na correspondência da comissão mista da Serra Leoa e o Ministério da Marinha e do Ultramar. Ao dar a conhecer ao governo de Cabo Verde as conclusões da referida comissão, o Ministério dizia: O rio Nuno há 3 anos que não tem sido visitado por um navio de escravos; contudo, tem sofrido a influência do muito ativo comércio estabelecido em Bissau, de onde são enviados agentes ao rio Nuno a fim de comprar escravos que mandam para Bissau em ocasião oportuna. O negociante Caetano Nosolini tem tido a maior parte deste negócio e emprega para este fim em rio Nuno dois agentes europeus, além de gente de cor empregada em seu serviço. De 1841 em diante, a documentação encontrada alude com frequência a navios suspeitos em circulação nos rios de Guiné e a navios usando ilegalmente a bandeira portuguesa”
.

Tudo levava a crer que o comércio negreiro sofrera uma baixa sensível em quase todos os bens conhecidos mercados da costa africana, tão intensa era a vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira reflete do seguinte modo:
“É muito possível que em uma ou outra região os naturais tivessem assaltado e destruídos as instalações de recolha de escravos, libertando-os; mas isso sem carácter generalizado, pois na altura os régulos islamizados haviam já lançado a campanha contra os animistas, reduzindo-os à escravidão, e vendendo uns aos negreiros europeus (através dos Djilas) e outros no interior do continente, onde os utilizavam como força de trabalho, necessária à manutenção de todo o séquito próprio de régulos Fulas e Mandingas”. Carreira observa ainda que o tráfico ilícito continuava nas ilhas de Cabo Verde e mostra documentação. Há um relatório do Diretor da Alfândega de Bissau, datado de 22 de dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira onde se afirma que em 1842 cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Carreira observa que esta informação não lhe parecesse inteiramente exata quanto a Bissau, pelo menos, e cita documentação contraditória. E, escreve mais adiante: “Tudo indica que houve um recrudescimento do tráfico ilícito nas zonas do interior que utilizavam Bissau como o melhor porto de saída de escravos, sobretudo oriundos de Geba. Por essa altura já havia sido desencadeada a guerra (1840) entre Fulas e Mandingas, e que viria a terminar com a derrota dos últimos, em 1853. E os vencidos nestas lutas, como era norma, foram vendidos nos mercados do interior e outras vezes levados para os portos da costa e negociados com os europeus, ou então passavam a engrossar os exércitos dos régulos e utilizados em trabalhos agrícolas e outras atividades de interesse mais direto dos chefes políticos e religiosos, designadamente no cultivo da mancarra”.

O investigador reconhece que traçou um panorama necessariamente parcelar e incompleto, teve mesmo que desistir de tentar fazer a contabilidade do número aproximado de escravos movimentados e portos onde teriam sido embarcados.


Castelo de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses na Costa do Ouro (hoje Gana) em 1482, de onde saíram mais de 30 mil escravos rumo ao Brasil, em navios portugueses.
Foto com a devida vénia a vinteculturaesociedade

Cartaz do previsto Simpósio Internacional Cacheu Caminho de Escravos, bem procurei documentação, nada encontrei, provavelmente foi cancelado atendendo à pandemia
Foto com a devida vénia a Plataforma9

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Detetam-se substanciais diferenças entre o mandato de Sarmento Rodrigues e o de Raimundo Serrão, o primeiro é sempre atravessado por obras, fala-se permanentemente em desenvolvimento, em cultura, na estrutura viária, na continuação dos projetos habitacionais já incrementados por Ricardo Vaz Monteiro, a que o capitão-tenente Sarmento Rodrigues não só deu seguimento como ampliou, é um mandato frenético de visitas científicas, produz-se literatura como jamais acontecera na colónia, aqui chegaram visitantes como o jornalista Norberto Lopes, o geógrafo Orlando Ribeiro, o combate contra a doença do sono e o conhecimento do potencial dos solos, a zoologia e outros domínios científicos entraram em franco desenvolvimento; lendo estas atas, fica-se com a ideia de que o Eng.º Raimundo Serrão pretendeu pôr ordem administrativa e completar o trabalho de Sarmento Rodrigues, mas perpassa nesta documentação de que não só se cingiu aos regulamentos, aos créditos, à preocupação com os orçamentos anuais, o sistema educativo ganhou forma.Sublinhe-se que há lacunas apreciáveis nesta documentação, salta-se de 1951 para 1955, já estamos no mandato de Diogo de Mello e Alvim. Esta documentação, mesmo com grandes lacunas, chegará até ao governador Spínola, mas não abrangerá todo o seu mandato.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (6)

Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

É bem curioso o termo de comparação do que foram as sessões do Conselho durante o mandato de Sarmento Rodrigues e as do seu sucessor, o Eng.º Raimundo António Rodrigues Serrão, ele preside à sessão de 22 de agosto de 1949, depois de um interregno depois da partida de Sarmento Rodrigues e a presidência do Encarregado de Governo, como vimos no texto anterior. O presidente é saudado efusivamente, é lembrado o seu antecessor e procede-se a uma citação de Honório Pereira Barreto, extrai-se de uma carta que o tenente-coronel dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar em que apelava à criação de escolas primárias e à formação e oficiais mecânicos os parágrafos alusivos, e depois o orador recorda a premência de se criarem postos móveis de ensino, de se restabelecer o ensino profissional, de se criar uma escola agropecuária e dar um maior apoio ao ensino missionário. O governador Serrão agradece os cumprimentos e toda a sessão é preenchida pelo projeto do Orçamento para 1950.

Não quero cansar o leitor com as minudências da generalidade destas sessões: crédito para a conclusão das obras de centros de saúde e escolas destinadas às populações indígenas; créditos para outros melhoramentos públicos; discussão de matérias alfandegárias; reforma pautal; telegrama enviado ao Governo pela reeleição do Marechal Carmona; orgânica da Caixa de Aposentações; abonos de ajudas de custo devidas a funcionários por deslocações em serviço oficial aos territórios vizinhos; mais emolumentos, créditos. E subitamente entramos em assuntos educativos, o regulamento do Colégio Liceu de Bissau, estabelecimento do ensino particular que passou a ter existência legal. Retenho um comentário do governador: “Quanto às escolas técnicas, nada justifica a sua existência sem que haja liceu; quanto ao Liceu, já expus para o ministro das Colónias a conveniência de vir o júri do Liceu de Cabo Verde examinar os alunos, como se faz em Timor e em diversos liceus de Angola”. A tónica educativa é retomada em 13 de abril de 1950, consideram-se oficialmente válidos os exames do curso geral dos liceus a realizar em Bissau, a que hão de ser submetidos os alunos do ensino particular e temos uma novidade: estava resolvido o problema liceal da Guiné com o Diploma legislativo 1/179, finais de março, 1950. Registo, ao longo de 1950 e 1951, ainda outras iniciativas: projeto do Regulamento das Indústrias da Guiné, mais créditos, imposto de justiça, prossegue a discussão sobre as indústrias na Guiné, Orçamento da Guiné para 1951, Regulamento das Armas; projeto regulamento sobre o horário de trabalho dos não-indígenas e Regulamento de Identificação dos Indígenas; alteração da tabela geral do imposto de selo; queixas sobre o mau funcionamento da Central Elétrica de Bissau; proposta de construção de uma leprosaria para o internato de leprosos; criação de serviços administrativos; telegrama de consternação pelo falecimento do Marechal Carmona.

E estamos em maio de 1951 e discutem-se as matérias dos horários de trabalho. Justifica-se uma breve análise: o período de trabalho diário do pessoal não-indígena dos estabelecimentos comerciais industriais não poderá ser superior a 8 horas; definem-se tais estabelecimentos; o número total de horas de trabalho semanal dos empregados de escritório nunca poderá ser superior a 36 horas e meia e dos empregados comerciais industriais a 48 horas; nos estabelecimentos comerciais dos pequenos centros e nos estabelecimentos industriais que revistam caráter marcadamente rural poderão os respetivos empregados ser isentos do horário de trabalho mediante autorização dada pelo chefe dos serviços de administração civil; é isento de horário de trabalho o pessoal em serviço doméstico; são também dispensados de horário de trabalho as obras de construção civil de caráter doméstico ou agrícola que não estejam localizadas em povoações de categoria igual ou superior a sedes de Concelho; a construção e a reparação de vias de comunicação pode ser dispensada da observância das disposições deste diploma; a idade mínima de admissão ao trabalho nos estabelecimentos comerciais ou industriais é fixada, para qualquer dos sexos, nos 14 anos completos e os menores nestas condições deverão saber ler, escrever e contar corretamente, sem o que não poderão ser empregados; o período de trabalho diário deve ser interrompido pelo menos por um descanso que não poderá ser inferior a 2 horas, depois de 4 a 5 horas de trabalho consecutivo; o domingo é o dia de descanso semanal em toda a colónia e o trabalho prestado ao domingo deverá ser sempre pago pelo dobro; os feriados nacionais serão equiparados, para todos os efeitos, ao domingo ou ao dia excecionalmente destinado ao descanso semanal; excetuam-se destas disposições, além dos estabelecimentos industriais de laboração contínua, dos serviços urbanos de transportes em comum, as farmácias, fotografias, hospitais, casas de saúde, balneários, hotéis, restaurantes e similares, estabelecimentos de venda de géneros alimentícios, tabacarias, agências funerárias, agências de navegação, padarias, etc. Trata-se de um diploma bastante detalhado, envolve os horários de trabalho, menciona a intervenção dos organismos corporativos, interrupções e laboração contínua bem como o trabalho por turnos e o trabalho noturno, hora de abertura e encerramento, o papel das autoridades, as multas por incumprimento.

As publicações respeitantes às atas do Conselho de Governo da Guiné, que estou a analisar na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, têm imensas lacunas, salta-se de 1951 para 1955, a Ata N.º 1, com data de 1 de outubro, é presidida pelo Governador Diogo de Mello e Alvim, o padre Cruz Amaral sublinha a circunstância de ser a primeira vez, desde 1935, que um elemento missionário tem lugar neste Conselho.

(continua)
Imagem do então Liceu Honório Barreto, Arquivo Histórico Ultramarino (por volta de 1960), com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Procurei nos Anais do Clube Militar Naval, no âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, artigos assinados por oficiais da Marinha. Encontrei um texto sobre a definição das fronteiras, a importante comunicação de Teixeira da Mota, logo em janeiro de 1946 dado como certo e seguro que Nuno Tristão fora frechado por Mandingas, mas na região do rio Gâmbia, aquela expedição não chegara a terras da Guiné; e por último uma apreciação muito desgostosa do Contra-Almirante Aprá que participara nas operações na península de Bissau em 1894 e que ficara consternado com a falta de preparativos do Governador, segundo Aprá perdera-se a oportunidade de ficar a dominar os povos residentes na península de Bissau.

Um abraço do
Mário



Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947)

Mário Beja Santos

Compulsando números antigos da prestigiada publicação "Anais do Clube Militar Naval", detive-me nos 76 e 77 anos da publicação, 1946 e 1947, respetivamente. Logo com o artigo intitulado "As Fronteiras", escrito pelo Capitão de Mar-e-Guerra Tancredo de Morais. O oficial começa por referir os limites que André Alvares de Almada, no seu Tratado Breve, tratado de 1594 propõe para a região da Senegâmbia, teoricamente território ocupado pelos portugueses: do rio Senegal à Serra Leoa. Ao tempo, esta Senegâmbia era uma espécie de morgadio de Cabo Verde. Os portugueses reconheciam a soberania dos régulos que lhes vendiam os escravos. A questão dos limites vai complicar-se com a chegada dos holandeses, que não encontraram qualquer resistência, que se estabeleceram em Arguim e depois na Goreia, ilha que ninguém defendia – aqui ficaram até 1677, data em que uma esquadra francesa os expulsou. Os ingleses estabeleceram-se na Serra Leoa, não houve qualquer reivindicação portuguesa. Os nossos diferendos diplomáticos serão com a Grã-Bretanha por causa da questão de Bolama e com a França quando esta procedeu a uma ocupação insidiosa do Casamansa. O autor dá-nos um resumo do envio de protestos para Paris e para o Senegal, a diplomacia francesa chegou ao descaro de informar que tinham sido os primeiros a chegar… Honório Pereira Barreto, sempre franco e leal, não deixou de descrever o que era a presença portuguesa em Ziguinchor: “Ziguinchor tinha 7 soldados, era defendida por uma paliçada e uma artilharia desmontada. Devia a sua conservação à família Carvalho Alvarenga. O seu comércio, que era importante, achava-se nas mãos dos franceses, depois que se havia estabelecido em Selho”.

O autor não deixa de chamar a atenção que a reação diplomática à ocupação britânica foi tíbia e insegura. Em vez de se apresentarem factos da ocupação desde o século XV, o mais que se pôde obter foram documentos que datavam do reinado de D. José. E menciona a sentença arbitral do presidente dos EUA, Ulysses Grant. As fronteiras definitivas vão surgir na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, mas os franceses ainda irão exigir, no processo de sucessivas retificações, mais algumas porções de terra.

Ainda em 1946, no número de março a abril, merece o devido relevo a referência à conferência que Teixeira da Mota proferiu em Bissau em 6 de janeiro desse ano, na abertura do V Centenário da Descoberta da Guiné. Com subtileza, o autor traça em longo preâmbulo considerações sobre a verdade em História, e a obrigação de ir desmantelando tabus e mitos. Era na época dado como assente que o primeiro descobridor que chegara a Guiné fora Nuno Tristão, aparece agora um oficial da Marinha, um jovem historiador, ainda por cima ajudante do Governador, a dizer que nada se passou assim. Descreve a descida progressiva da costa ocidental africana, a passagem do Cabo Bojador em 1434, no ano seguinte o mesmo Gil Eanes e Gonçalves Baldaia iniciaram a exploração da Mauritânia e chegaram a Angra dos Ruivos; e no ano seguinte o mesmo Baldaia foi ao Rio de Ouro e à Pedra da Galé. Seguem-se expedições em 1441 em que aparece pela primeira vez o nome de Nuno Tristão; em 1443 são descobertas as ilhas de Arguim e das Garças , foi um dado fundamental para o projeto henriquino, ergue-se em Arguim uma feitoria, tudo por causa do negócio do ouro; no ano seguinte, o cavaleiro-navegador Lançarote descobre mais ilhas, chegava-se à costa da Mauritânia, era a Terra dos Negros; em 1444, Diniz Dias avançava ao longo da costa dos Jalofos e descobria o Cabo Verde – os portugueses aproximavam-se das fontes do ouro. No Senegal e no Cabo Verde souberam pelos Jalofos que perto, para o sul, corria um largo rio, o rio Gâmbia, onde também abundava o ouro. Em 1446 larga do Algarve uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, leva a bordo 30 homens. Chega ao Cabo dos Mastros, Nuno Tristão e os 30 homens embarcam em dois batéis, são cercados por canoas de indígenas e atingidos por flechas envenenadas, Nuno Tristão é uma das vítimas mortais. E Teixeira da Mota conclui: “Nuno Tristão não passou na realidade do Estuário Salum-Jumbas, que é propriamente um conjunto de braços de mar que se estende por algumas dezenas de milhas um pouco ao norte da foz do Gâmbia. Os indígenas que mataram Nuno Tristão eram Mandingas. Nuno Tristão não esteve, portanto, em 1446 em território atualmente português, mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das etnias que pululam a Guiné Portuguesa. Quis o destino que esse contacto se manifestasse da forma brutal que o caracteriza. Os poderosos imperadores do Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Níger, em Niani, sua capital, dirigiam os vastos domínios, ignoravam talvez a existência daquele chefe mandinga. Enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso levantava-se a portuguesa”.

Temos por último o artigo intitulado "A Companhia de Guerra da Marinha na Campanha da Guiné de 1944", aparece no 77.º ano, número de janeiro e fevereiro de 1947, assina A. Aprá, Contra-Almirante. Ele refere-se à companhia de guerra da Marinha que embarcou em Lisboa no transporte África, isto em fins de março de 1894, passou o mês de abril em Bissau apetrechar-se, havia que comprar chapéus de palha em Cabo Verde, fizeram-se a bordo polainas, bornais de lona e manteve-se a atividade física e os preparativos militares com exercícios diários no ilhéu do Rei. A Guiné era um distrito militar autónomo, quem iria conduzir as operações era o governador, o Coronel de Artilharia Vasconcelos e Sá. A coluna saiu de Bissau a 10 de maio, foram considerados importantes aspetos logísticos como o recrutamento de carregadores para transportar água e munições. O efetivo da companhia era 259 homens; tinha uma seção de metralhadoras com 25 praças e 1 oficial, 1 médico com 3 enfermeiros e 6 maqueiros, participava ainda uma seção de administração naval. E relata que tudo começou numa confusão na distribuição de cargas pelos carregadores, só se pôde partir às 8 da manhã, avançaram sobre Antim, fazendo fogo sobre o objetivo, só perto dele é que se verificou resistência, quando se chegou a Antim a povoação estava completamente vazia. Começou a falta de água, os rebeldes só apareciam dando tiros isolados. Depois das 2 da tarde chegou a ordem de retirar com as devidas precauções, esta companhia de guerra da Marinha veio acompanhada por uma companhia de Angola. Verificou-se uma enorme agitação porque os carregadores procederam a saque, isto quando havia punhetes para transportar, e o contingente militar acusava fadiga, e temia-se que os rebeldes atacassem a qualquer momento. Regressou-se ao acampamento de Antim depois de 7 horas de marcha, não havia a menor provisão de água e a refeição preparada era um autêntico desastre só no dia seguinte é que apareceu água e um rancho decente.

Aguardavam-se ordens para que esta companhia de Marinha saísse do Alto de Antim e avançasse sobre Antula. Houve troca de impressões sobre a ordem de marcha, à tarde veio ordem do governador dizendo que era tarde para começar a marcha sobre Antula e no dia seguinte chegava a notícia de que o mesmo governador considerava ser suficiente o castigo dado ao gentio; mais tarde regressou-se à praça de Bissau onde se embarcou no navio África. E o contra-almirante Aprá termina com uma apreciação altamente crítica:
“Assim terminou a campanha de 1894, mandada acabar por quem direito. Foi incompleto o serviço? Sim. Mas foi a primeira vez que uma força europeia de uma certa importância entrou em operações de guerra na Guiné. Nada estava preparado, não havia planos, organização, nem se pensou em abastecimentos.
Se tivesse havido um verdadeiro Estado-Maior, e serviços administrativos regulares, se tivesse havido um modesto serviço de transportes e não estivessem na mão de carregadores gentios que só marcham com as forças para matar, roubar e incendiar, enchendo-se de despojos e abandonando as nossas cargas, tenho o pressentimento que a companhia de Marinha que, no dia 10 de maio, tinha ganho um verdadeira ascendente sobre o gentio fugia apavorado com o nosso avanço, essa companhia sozinha tinha feito ocupação da ilha de Bissau. Do exposto se concluí que a coluna organizada em 1894 não foi encarregada da ocupação militar da ilha de Bissau, foi como diz o Governador e o Governo Central concordou, um castigo dado ao indígena pelos altos de selvajaria anteriormente praticados. É a este ponto que quero chegar, não pode considerar-se um desastre que em campanha me parece ser sinónimo de derrota”
.

E assim termina a colaboração alusiva ao V Centenário da Descoberta da Guiné nos Anais do Clube Militar Naval.


Uma bela fotografia de Andrea Wurzenberger captada na Guiné, com a devida vénia
Um comboio de embarcações comerciais no rio Geba
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23700: Historiografia da presença portuguesa em África (338): Viagens por alguns títulos do Boletim Geral das Colónias (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23674: Historiografia da presença portuguesa em África (337): Viagem por alguns títulos da Coleção Pelo Império, da Agência Geral das Colónias (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
A coleção Pelo Império teve vida afortunada nas décadas de 1930 e 1940, são escassas as referências a acontecimentos guineenses, dedica-se uma monografia a Honório Pereira Barreto, há uma referência à obra de Senna Barcelos e temos depois algumas expedições militares, que aqui se transcrevem. Pode ser que no desenvolvimento desta pesquisa ainda surja mais alguma surpresa. Estava mergulhado nesta leitura quando retirei de um cartapácio dedicado ao Boletim Geral das Colónias algumas apreciações do antigo Governador Leite de Magalhães, que em 1931 foi retirado da Guiné numa revolta republicana de que aqui já se fez larga referência. O artigo em causa foi publicado em julho de 1932, é um pouco mais do que uma mera curiosidade.

Um abraço do
Mário



Viagem por alguns títulos da Coleção Pelo Império, da Agência Geral das Colónias

Mário Beja Santos

Nas décadas de 1930 e 1940, a Agência Geral das Colónias publicou um número impressionante de monografias referentes a figuras distintas da colonização, operações de ocupação e pacificação, e até investigadores e políticos marcantes ligados à criação do Império Africano.

O número 118, publicado em 1947, é dedicado a Cristiano José de Senna Barcelos, figura da Armada de grande distinção, no blogue já se fez larga referência aos seus "Subsídios para a História de Cabo Verde e da Guiné". É autor do texto o Tenente-Coronel Joaquim Duarte Silva. Vejamos um resumo que pode levar o leitor a interessar-se pelas investigações de Senna Barcelos, do maior relevo para o conhecimento da Guiné. Este oficial da Armada começou por escrever em 1892 um Roteiro do Arquipélago de Cabo Verde, um trabalho de caráter técnico, evidenciou aqui as qualidades de meticuloso investigador. Era natural da ilha Brava, sua terra natal. Em janeiro de 1899 foi nomeado para proceder, com a máxima economia, a estudos geográficos e hidrográficos no Arquipélago de Cabo Verde, auferindo apenas os seus vencimentos como se tivesse embarcado em qualquer dos navios em serviço no arquipélago.

Indiscutivelmente a sua obra capital são os "Subsídios para História de Guiné e Cabo Verde". A Academia Real das Ciências de Lisboa tomou a seu cargo a publicação do trabalho. Estes subsídios compõem sete partes, vão de desde 1470 a 1889. Escreve o autor Senna Barcelos se distingue pelo desassombro das suas opiniões, não gostava de louvaminhar e nunca escondeu o martírio do povo cabo-verdiano. Era um martírio que inspirava comentários acerbos, verdadeiros gritos de revolta. Senna Barcelos criticou profundamente as medidas tomadas por D. Manuel I como as de autorizar a execução de brancos e de pretos cristãos que se mostrassem rebeldes em sair da Guiné, bem como também criticou a penas brutais aplicadas aos lançados da Guiné, apesar de eles muitas vezes serem traidores à Pátria, colocando-se ao serviço de estrangeiros como pilotos e práticos nos rios e portos da Guiné – aplicava-se-lhes a pena de morte em caso de reincidência. Como Comandante da Canhoneira Rio Ave, tomou parte em operações militares e foi condecorado com a Cruz de Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada.

Do número 55 desta coleção, com o título Glórias e Martírios da Colónia Portuguesa, tendo como autor o General Ferreira Martins, vejamos as referências à Guiné, com destaque para a campanha de 1908. Em dezembro do ano anterior chegaram à colonia o Capitão Ilídio Nazaré e o Tenente D. José de Serpa Pimentel, respetivamente Chefe e Subchefe do Estado-Maior da futura expedição. Nazaré foi encarregado do comando de um destacamento incumbido de proteger o restabelecimento das comunicações telegráficas que os Biafadas tinham cortado na região de Quínara, estavam revoltados no início de 1908. Em 19 de março desse ano desembarcava a expedição de Macuas destinada a castigar o régulo Infali Soncó. O Governador Oliveira Muzanty conduzia as operações. Juntou-se uma companhia da Marinha, uma companhia mista da Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas), em 1 de abril foram transportados para o Xime, ponto de concentração. Do Xime seguiram para Bambadinca, daqui para Canturé, aqui se travou o primeiro combate, houve resistência, mas a povoação foi assaltada e incendiada. Mais adiante destrui-se a tabanca de Madina, último reduto do régulo, a 9 era hasteada a bandeira portuguesa no Cuor. Chegou, entretanto, uma companhia de Macuas, forneceram-lhe armas, ficaram acantonados em Carenquecunda.

A expedição militar volta-se agora contra os Papéis insubmissos, a artilharia bombardeou Intim, Badim e Antula, os aguerridos Papéis atacaram a coluna, mas as povoações caíram, tivemos baixas. Deu-se combate muito duro no alto do Intim, foi o último ataque dos Papéis e Balantas, a campanha de 1908 terminou em 11 de maio.

Segue-se a referência à campanha do Oio de 1913, liderada pelo Capitão Teixeira Pinto. Ele contou com a ajuda de Vasco Calvet de Magalhães, Administrador da Circunscrição de Bafatá, e da Abdul Injai, andou disfarçado de comerciante para reconhecer a área, na direção Mansoa-Farim. Descreve-se os ataques gizados por Teixeira Pinto, ele conta com um pelotão de Infantaria, duas peças de artilharia e centenas de auxiliares, está apoiada por duas lanchas-canhoneiras, encontra resistências, mas vai marchando a coluna para Morés, há recontro, destroem-se tabancas, distingue-se pelo seu heroísmo e bravura Abdul Injai. Em 7 de junho de 1913 a bandeira portuguesa foi hasteada em Mansabá.

O autor dedica um capítulo aos mártires da Guiné, 1914, refere abundantemente a resistência encontrada para ocupação ao longo do século XIX, assassínio de governadores, a chacina de Jefunco, em 1878, da força comandada pelo Tenente Calisto dos Santos, todos massacrados e muito mais. Escreve o autor: “Ao findar o século, pode dizer-se que as únicas regiões onde era reconhecida a nossa autoridade eram as ocupadas pelos povos Mandigas e Fulas, à exceção do Oio, onde, em 1897, uma pequena coluna comandada pelo Tenente Graça Falcão foi trucidada, escapando milagrosamente este oficial, mas não tendo a mesma feliz sorte o Tenente António Caetano e o Alferes Luís António. Seguiram-se, no primeiro decénio do século atual, as campanhas, menos infelizes, empreendidas de 1901 a 1909 pelos Governadores Júdice Biker e Muzanty”.

E descreve os trágicos acontecimentos de 5 de fevereiro de 1914, saiu de Mansoa um pelotão de Cavalaria comandado pelo Alferes Manuel Augusto Pedro, com a missão de reconhecer o local onde conviria lançar uma ponte. Segundo a narrativa de um sobrevivente, a coluna foi atacada pelo gentil de Braia, a massa atacante empurrou o pelotão do Alferes Pedro para junto do rio. Aqui foi morto a tiro, os outros tentaram salvar-se caminhando para o lodo onde foram trucidados à catanada, entretanto subia a maré, não foi possível tirar o cadáver do alferes do lodo nem dos restantes soldados do pelotão, veio uma força auxiliar, mas era tarde.

Aqui se põe fim aos apontamentos tirados da Coleção Pelo Império, vamos separadamente fazer referência a um curioso documento assinado pelo antigo Governador Leite de Magalhães e publicado no Boletim Geral das Colónias, em 1932.


José Henriques de Mello
Pelotão da Companhia Mista. Fotografia de José Henriques de Mello
No Xime, durante a campanha do Cuor, 1908. Fotografia de José Henriques de Mello
No Xime, manufatura do rancho de Infantaria, 1908. Fotografia de José Henriques de Mello
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Notas do editor:

- Fotos editadas por CV

Último poste da série de 28 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23650: Historiografia da presença portuguesa em África (336): Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23569: In Memoriam (451): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (4): “Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 26 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
É a hora da despedida do António Estácio, saboreei a releitura da sua pesquisa sobre a presença portuguesa na Guiné, não há revelações surpreendentes, mas uma enumeração exaustiva de eventos, vamos ter informações em catadupa desde a criação de Bolama até à sua viagem de despedida, falará comovidamente da família, do convívio, das brincadeiras com outros meninos, é tocante. Minucioso, não esquece tanto as guerras de pacificação como a questão de Bolama, bateu à porta de muita gente, neste texto recolheu o testemunho de alguém que viveu no ilhéu do Rei e que descreve a intensidade fabril daquela Casa Gouveia; viajaremos por diferentes tempos, ouviremos falar de muita gente, fas publicações, dos escritores e em dado momento ele lembra-nos Fernanda de Castro que era filha do capitão do porto de Bolama, aqui morreu sua mãe, aqui ela encontrará inspiração para aquele que terá sido o best seller infanto-juvenil do Estado Novo, Mariazinha em África. Há que confessar que António Estácio adoeceu entretanto e a edição ressentiu-se da falta de revisão. Mas o que é mais relevante é que esta viagem a Bolama é um testamento de amor que não esqueceremos tão cedo.

Um abraço do
Mário


Gratas recordações do confrade António Estácio:
“Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude

Mário Beja Santos

Deste livro, edição de autor, 2016, nesse mesmo ano aqui deixei as minhas impressões de leitura, o meu pasmo com o acervo informativo que Estácio foi recolhendo, primeiro sobre a história da nossa presença na Guiné, antes de 1879, quando esta foi desafetada de Cabo Verde. Estácio leu muito, e não se limitou ao Boletim Oficial da Guiné. Leu António Loureiro da Fonseca que recorda aos vindouros o sangue que se derramou em sucessivas guerras. Não esquece os dados essenciais dessa nossa presença, desde as companhias de tipo majestático, o comércio de Cacheu e Ziguinchor, a questão de Bolama, a criação do seu município em setembro de 1871, entre tantíssimos exemplos que eu aqui podia relevar.

Recorre a testemunhos de gente do seu tempo, caso do Manuel Duarte Freire que era filho de trabalhador da Casa Gouveia e que descreve a vida no ilhéu do Rei, ficamos a saber um pouco mais sobre a CUF:
“No ilhéu do Rei, local onde a CUF tinha o seu complexo industrial, talvez o único e o maior que me lembre, o qual era composto por vários armazéns, de enorme capacidade, consoante o tipo de mercadoria a que se destinasse, como, por exemplo, de 30.000 toneladas para o amendoim, 10.000 toneladas de arroz em casca e de várias toneladas de coconote. Tinha uma fábrica de descasque de arroz, outra para mancarra e uma outra de aproveitamento de óleo. Na fábrica destinada ao descasque de mancarra ficava a de óleo de amendoim, sendo esta ali construída no ano de 1956, ou seja, no mesmo ano em que foi construída uma ponte nova que tornou possível a atracagem de barcos de maior dimensão. No ilhéu, havia tratores para mudar e transportar as mercadorias, assim como as diversas balanças para assegurarem as pesagens. No caso do descasque de arroz, ele era ali processado e embalado, enviando-se para Bissau ou carregando-se para outros destinos, quer fosse Lisboa ou diversos países. A mancarra foi ali descascada, ensacada e enviada para a metrópole, onde era produzido o conhecido Óleo Fula. Porém, a partir de 1957, a fábrica de óleo da ilha do Rei começou a separar logo e a produzir o óleo, farinhas, sabão, glicerina e o Óleo Fula passou a ser logo ali produzido. Todos os resíduos foram aproveitados para farinhas que eram exportadas para a Holanda, o mesmo sucedendo com o sabão e a glicerina. Este é o meu testemunho, vivido no ilhéu do Rei, na boa e velha Guiné, onde cheguei em 15 de março de 1951 e permaneci até 1958. Regressei com a finalidade de continuar a estudar em Tomar, tendo tido a sorte de ir parar onde havia tantos guineenses amigos e de quem guardo imensas saudades (certamente que Manuel Duarte Freire se refere ao Colégio Nun’Álvares, instituição de ensino onde estudaram muitos guineenses)".


Nesta curta memória é inviável elencar a farta pesquisa de Estácio, põe o enfoque no período republicano, fala-nos da Liga Africana, Liga Guineense e Centro Escolar Republicano; não esquece a bravura de Sebastião Casqueiro e as operações militares no Churo, a ocupação do Oio, as operações de Teixeira Pinto, transcreve mesmo as narrativas do próprio Capitão João Teixeira Pinto. E há o contraditório, o advogado Loff de Vasconcelos a apresentar queixa-crime contra Teixeira Pinto e Abdul Indjai, indicando um rol de testemunhas de grande peso socioeconómico, era a contestação ao que se chamou o regime abusivo de Teixeira Pinto. E se isto se trata de uma listagem impressionante de nomes, informações em catadupa sobre acontecimentos de vária ordem, nomeações, inaugurações, muitos recortes de notícias publicadas na imprensa local.

Não esquece Honório Pereira Barreto, a presença de Gago Coutinho, a governação de Velez Caroço, o acidente com a Esquadra Balbo, as visitar alemãs, a autorização dada a Pan American de faz escala em Bolama; em 1947 dá-se a inauguração da carreira aérea Dacar-Bissau, por avião e Junker 52 da Air France; e a participação de dezenas de guineenses das etnias Bijagó, Balanta e Fula na I Exposição Colonial Portuguesa, capitaneava a participação um bravo militar, o régulo Mamadu Sissé, acompanhado de quatro mulheres e dois filhos; não são esquecidos os periódicos (todos eles de vida breve); a revolta republicana de 1931 e a sua precária Junta Governativa; a figura do escritor e publicista Fausto Duarte; e em 1953 chega a Guiné o professor Paulo Quintela à frente de um grupo de antigos estudantes de Coimbra; e até o Manuel Joaquim do cinema não é esquecido.

Convém abreviar, aqui se endereça um derradeiro abraço de saudade a este confrade que irá lembrar emotivamente a vida familiar, os seus amigos, irá ouvi-los e não se coibirá de dizer que estava a viver as mais belas recordações da sua vida. Não esquece o nome de escritores e evoca Fernanda de Castro que viveu em Bolama, autora de um impressionante bestseller infantojuvenil que marcou gerações, Mariazinha em África, fui buscar a minha edição da Ática, de 1947, com desenhos de Ofélia Marques, e transcrevo algumas passagens:
“Dum lado e doutro da estrada, só se viam arrozais, arrozais verdes, arrozais a perder de vista… Estava calor, um calor de rachar, mas o ar deslocado pelo carro em movimento dava uma sensação de frescura a Mariazinha e a Ana Maria. Pássaros de todas as cores, de todos os feitios, voavam sobre o arrozal. Insetos enormes vinham esborrachar-se de encontro aos vidros do automóvel. Uma cobra amarela, pintalgada de preto, rastejava ao longo da estrada. E nem uma árvore, nem um arbusto, nem uma sombra no horizonte.
Pouco a pouco, porém, a paisagem foi mudando. Às superfícies cultivadas dos arrozais sucedia-se agora o capim, capim alto, serrado, onde uma fauna perigosa e hostil proliferava, palpitava, rastejava… Árvores enormes, a princípio isoladas, pareciam sentinelas à beira da floresta”
.


E, mais adiante:
“Meia hora depois, surgia Buba, terra de maravilha! Nem casas, nem barcos, nem carros, nenhum sinal de civilização. Os raros comerciantes brancos que ali viviam, tinham as suas casas no interior, muito longe do cais, e este cais rudimentar era o único vestígio da passagem dos brancos por aquelas terras.
No rebocador, os marinheiros manobravam para atracar e todos se preparavam já para o desembarque.
A região não podia ser mais bonita! Bananeiras carregadas de bananas vinham quase até ao rio. Borboletas que pareciam flores e flores que pareciam pássaros confundiam-se, nas árvores, com os frutos coloridos – as mangas, as goiabas, os cajus.
- Olha, Ana Maria! – exclamou Mariazinha. – O cais está cheio de gente!
Com efeito, no cais apinhavam-se dezenas, centenas de pretos, alguns dos quais tocavam uma música estranha nuns instrumentos ainda mais estranhos. O barulho era ensurdecedor… Raparigas e mulheres, embrulhadas em panos berrantes, com lenços vistosos na cabeça e fios de contas de vidro em volta do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos, batiam palmas a compasso e sorriam para os brancos; pretinhos nus, com enfiadas de sementes vermelhas em volta da barriga, guinchavam e saltavam como macaquinhos; separados dos outros, estavam os tocadores, que tocavam tantã e uns instrumentos esquisitos que pareciam violinos mal feitos. E, ao longo do cais, uma multidão colorida acenava, gritava, barafustava, uma multidão amiga que abriu alas à passagem dos brancos e depois os seguiu, em cortejo, até a casa do Administrador.”


Ainda encontrei uma outra obra da responsabilidade do António Estácio mas dedicada à escola de regentes agrícolas que ele frequentou, seguramente outro belo testemunho de saudade.
Porto de Bolama, 1912
Bolama, fachada do Banco Nacional Ultramarino, mais tarde Hotel Turismo
Monumento aos aviadores italianos caídos em desastre aéreo, no início da década de 1930
Lembranças da velha Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)