Mostrar mensagens com a etiqueta Gen Craveiro Lopes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Gen Craveiro Lopes. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25031: Historiografia da presença portuguesa em África (402): Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Outros antes de mim, e com incontestável competência reconheceram a importância da governação de Sarmento Rodrigues que governou a Guiné num momento de viragem da política colonial. Por exemplo, merece toda a atenção o ensaio que António Duarte Silva dedicou à personagem e ao período, recomenda-se a leitura: https://journals.openedition.org/cultura/586. O governador impõe-se pelo programa de trabalho, pela vontade de congregar esforços, sabe ao que vem, respeita os projetos em andamento deixados pelos antecessores, cumulam-no de ofertas, ele agradece e traça mais projetos, de tal modo que o seu sucessor, Raimundo Serrão, no essencial concluiu-lhe a obra. Percorreu a Guiné de uma ponta à outra, diz-se maníaco pelas árvores e pelas plantas, está cercado de gente muito competente, e à Guiné chegam num quase turbilhão especialistas em medicina tropical, um eminente geógrafo, figuras proeminentes da investigação tropical, geólogos, jornalistas, a Guiné saiu do torpor, aparecem escolas, hospitais, fontanários. Alguma coisa de muito sério aconteceu, quando Sarmento Rodrigues regressa à Guiné em 1955, na comitiva de Craveiro Lopes, a propaganda do regime não esconde que ele é figura triunfante, as populações não o esqueceram, ele tinha posto a Guiné no mapa.

Um abraço do
Mário



Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa

Mário Beja Santos

Não é por puro acaso que escolhi a governação de Manuel Sarmento Rodrigues como o termo da viagem antológica dos textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. É visto como uma escolha inédita, o ministro que o nomeia não os conhece, o futuro governador é um homem que não esconde a sua independência, é um crente nos valores do Império, conhecido pelo rigor e pelo pragmatismo. E de uma seriedade que já não se usa, quando toma posse em 15 de março de 1945, já sabe a dimensão das tarefas que tem pela frente, e dirá em público que começará por acabar as obras de quem o antecedeu. Nesse ato de posse, não lhe falta o desassombro: “Se me disserem que na Guiné tudo está por fazer, não devemos espantar-nos.” E fala do património deixado pelos seus antecedentes, a Guiné entrara numa nova via de desenvolvimento: “O ministro enfrenta um vasto programa de melhoramento na Colónia para a realização dos quais já começaram a trabalhar os organismos superiores do Ministério. Habitações, saneamento, águas e hospitais; pontes, portos, obras hidráulicas, aeroportos, farolagem; missões científicas de geodesia, hidrografia, zoologia, antropologia, botânica, medicina, etc.; desenvolvimento do serviço missionário, na parte religiosa e na parte do ensino indígena; defesa militar da Colónia; assistência às atividades económicas; ensino dos indígenas em agricultura, pecuária e artes e ofícios; e outros.”

Já está em Bissau, vai ser empossado, avisa a classe política, os funcionários, os militares, os empresários. Reafirma o que dissera ao ministro Marcelo Caetano: “Temos uma vasta lista de obras projetadas para um período que desejaríamos que fosse bastante curto. Coloco à frente as construções por acabar e que pretendo arrumar: Palácio, Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários em Bissau, o monumento ao Esforço da Raça, edifício da Praça do Império, cuja origem quase se desconhece e outras tentativas dispersas pela colónia, aguardando que as acabem.”

Faz questão de dar ampla publicitação ao que diz aos administradores, quer transparência, respeito pelos direitos dos indígenas, eles devem ser acompanhados pela administração, não esconde ser um humanista e diz: “Nada de estatísticas rosadamente falsas, nem problemas a que se volte a cara para não os resolver. É preciso que tudo seja são e posto à luz do dia.” Isto é afirmado em 4 de novembro de 1946. É um obcecado pelo trabalho, tem uma informação atualizada sobre tudo o que se está a fazer em prol do desenvolvimento, desde fontanários a campos de futebol, escolas e creches, desenvolvimento agrícola, sente-se atraído por novas espécies e novas culturas, como dirá em 1947: “Plantámos este ano muitos campos de cajueiros. Haveremos de prosseguir no mesmo ritmo para o próximo ano, pois que bem se viu ser fácil conseguir que as plantas vinguem. E dentro de alguns anos será uma nova riqueza que existirá na colónia. Deve ser mania minha a defesa e expansão das árvores, sobretudo de fruta. Mas creio que muito pior seria consentir na sistemática derruba, feita a qualquer pretexto.”

Há textos em que podemos apreciar como o governador domina na perfeição os dossiês, veja-se este conjunto de documentários que ele profere no Concelho de Governo em 8 de fevereiro desse ano. Aborda as instalações dos serviços públicos em Bissau; a propósito da conclusão do Palácio do Governo alude à transferência de serviços; aguarda-se dinheiro para pôr de pé o museu e a biblioteca; não esconde as imensas obras que se impõem, elenca um vasto conjunto de postos administrativos, secretarias das administrações, residências dos administradores; aguarda os estudos para a construção da ponte do Impernal, há reparações de envergadura nas pontes de Bolama e Mansoa e uma verdadeira reconstrução da ponte de Bafatá; ainda não é possível criar a ligação do Norte com o Sul da colónia, conta poder adquirir jangadas a motor; virá em breve a Missão Hidrográfica; prevê-se para 1948 um novo local acostável para os navios de longo curso, no porto de Bissau; seria em breve publicado o Regulamente dos Serviços de Saúde da Colónia, prevê igualmente para breve a resolução das águas em Bissau e também em Bolama; impõem-se uma redistribuição das forças militares; aborda a necessidade de se revolucionarem os métodos agrícolas, fornecer aos indígenas melhores sementes; aborda as vacinas para os animais, pretende que se aumente a rede telefónica, quer mais bibliotecas. E termina: “Quando vim para esta colónia, chamado do serviço onde me encontrava, não foi certamente para aqui estar e durar. Não tenho intenção de durar, de assistir placidamente ao desenrolar lento da vida, assim de atuar num ritmo veloz. Conto que ao sair desta colónia não tenho onde me acusar de deixar qualquer coisa feita. A obra que surgir será de todos, e que eu não sirva senão para os animar na confiança nas suas capacidades.”

Não esconde em todas estas circunstâncias que é um cultor do detalhe, que não lhe escapa a visão de conjunto, veio com a incumbência de mudar hábitos de civilização e por vezes refere que sente desconsolo: “Alguns régulos do Gabu pediram e levaram carros. Não tendo podido acompanhar-lhes as atividades, nem sei como os têm utilizado. Se consideraram apenas agradar-me pessoalmente levando-os para apodrecerem ociosos, enganam-se. No entanto, eles já eu vi circulando-o numa estrada, carregando arroz. Mas em que estado! As rodas laqueantes, uma delas sem cavilha, outra com ela metida ao contrário! As autoridades têm o dever de olhar para estas coisas, de ensinar e acompanhar o indígena. Estes simples engenhos precisam de ser estimados, conservados, reparados, multiplicados, tudo no local, com os recursos locais, visto que com outras não foram eles feitos.”

Sempre que é oportuno esclarece que muito do que se está a fazer é obra dos seus antecessores: “Não são iniciativas minhas. Tudo tinha sido começado ou projetado pelos meus ilustres antecessores.” Sarmento Rodrigues era seguramente um homem influente, a sua obra impressionava e ele não esconde que em Lisboa se lhe abriam os cordões à bolsa, e di-lo publicamente:
“Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-me um avião Tiger e os dois mil contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública. Do Ministério das Colónia, então, não houve facilidade que não fosse concedida, por todos os seus departamentos.
O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem e que nunca poderiam ter execução sem eles.”


É uma governação que decorre em tempo vertiginoso, ao abandonar a coordenação da Guiné deixa um museu, o boletim cultural que continua a ser uma referência, todas as obras encetadas pelos seus antecessores foram concluídas, estão em curso iniciativas que irão dominar a atividade do seu sucessor, Raimundo Serrão. Sarmento Rodrigues procura apagar-se, enquanto todos lhe batem as palmas pela sua dinâmica de governação, dirá em jeito de despedida: “As obras que todos vemos nada valem por si; apenas significam que num dado momento houve, sobre esta terra escaldante, um grupo de homens que viveu em harmonia para as construir.” Recorda o leitor que quando ocorreu a visita do presidente Craveiro Lopes em 1955 Sarmento Rodrigues fará parte da comitiva e as reportagens publicadas não puderam esconder que era em toda a parte recebido com aplauso, não houvera antes governador como ele, traçou uma trajetória para a cultura, para o ensino, para uma miríade de infraestruturas, fez criar hospitais, estimulou boas relações com as colónias vizinhas.

E nesta vertigem aconteceu que a Guiné passou a figurar no mapa do império como terra de oportunidades, a Guiné passou a ter um lugar no mapa e até na História, ele aproveitou intensamente as comemorações em 1946 do quinto centenário da chegada à costa da Guiné; e cruzaram-se com a mesma intensidade cientistas e homens de letras que deixaram relatos inapagáveis; o desenvolvimento humano dos indígenas guineenses deu um passo em frente, atacou-se as doenças do sono e outras doenças tropicas, abriram-se postos sanitários. Dir-me-ão que nem tudo foi róseo, é verdade, o ensino não conheceu o mesmo dinamismo que o das infraestruturas, continuaram a faltar recursos humanos. Mas o fundamental é que este governador deixou uma semente de exigência e nada mais voltou aos tempos da pura exploração e do aleatório do trabalho forçado.

Manuel Sarmento Rodrigues
Um torneio internacional de futebol em Bissau do tempo do governador Sarmento Rodrigues
Fotografia de Bissau em 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
Travessia do rio Impernal, 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25007: Historiografia da presença portuguesa em África (401): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24542: Historiografia da presença portuguesa em África (380): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Jamais outro Presidente da República passará tanto tempo na Guiné como Craveiro Lopes, chegado a 2 de maio de 1955, parte na fragata Bartolomeu Dias com destino a Cabo Verde a 14 de maio. Bem vistas as coisas, vai visitar a obra de Sarmento Rodrigues, agora ministro do Ultramar, anda sempre a seu lado, e sempre ovacionado por régulos e população. Tirando o dia de repouso na praia de Varela, o Presidente da República não se escusou a dias com farta agenda, não eram só sessões de cumprimentos e desfiles, visitou obra feita e ainda por fazer, caso da ponte sob o Corubal. O programa foi bem talhado, não restam dúvidas, porventura Craveiro Lopes não se apercebeu que a grandeza dos empreendimentos que visitou do modo geral eram de fresca data, por ali andou um tufão de construções mal tinha acabado a Segunda Guerra Mundial e não havia discurso em que Sarmento Rodrigues não dissesse claramente que se impunha a reabilitar a condição humana daquela gente africana, empenhou-se em fazer escolas e instalações de saúde, remodelou os serviços relacionados com as doenças tropicais, esteve sempre bem acolitado por gente entusiasta como Manuel Pereira Crespo ou Avelino Teixeira da Mota. Não pôde reverter o irremediável, caso da decadência de Bolama, Bissau tornara-se macrocéfala, os negócios, quase todos, abandonaram a antiga capital, Bolama ficou reduzida a um mero entreposto, a uma cidade espectral onde avultavam alguns monumentos e uma bela tipografia. Curiosamente, por esse tempo da visita de Craveiro Lopes começa a vicejar, ainda que ténue, o sentimento nacionalista.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (6)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15 horas locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou. Segue para Bafatá, visita o Gabu, numa outra etapa vai até Farim, percorre o rio Cacheu a bordo do Mandovi, descansa na praia de Varela. Visita um vastíssimo número de empreendimentos, desde instalações de saúde, missionários, discursa, condecora e premeia, não faltarão desfiles étnicos, espetáculos musicais, dançarinos.

Entrámos na derradeira etapa, obrigatório visitar Cacheu, o jornalista Rodrigues Matias introduz uma nota histórica:
“Chipala, rei das terras dos Burames (será Brames?), tinha uma das suas mais florescentes povoações na margem do rio de S. Domingos, a 25 quilómetros da foz. E na povoação se fundara e prosperara, a primeira feitoria portuguesa da Guiné, de que será feitor Manuel Lopes Cardoso. Os Papéis de Cancanda admitiam em fraternal convívio os moradores portugueses da feitoria dentro da povoação Burame. E Lopes Cardoso insinuou a Chipala que bem andaria o rei se lhe permitisse a construção de um forte no lugar da feitoria, para defesa do porto e moradores. Chipala aquiesceu ao pedido e a fortaleza surgiu construída e artilhada à custa dos residentes portugueses, no ano de 1588. Houve tentativas de assalto, rechaçadas. Vieram a este porto navios embarcar mancarra, óleo de palma e coconote. Surgiu a Companhia de Cacheu e, mais tarde, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde. Depois, Farim concentrou o comércio da mancarra, do óleo de palma e das madeiras.”

Craveiro Lopes visita o velho forte pela manhã de 12 de maio, tinha sido restaurado em 1946. À saída do recinto, apresentam cumprimentos as Nharas ou Donas Cristoas, resquício da missionação católica dos velhos tempos da ocupação. Manda uma secular tradição que o Homem Grande de Lisboa seja transportado aos ombros das Donas, e Craveiro Lopes, manifestamente contrafeito, sentou-se numa cadeira enfeitada de panos, apoiada sobre duas longas varas. E as Nharas transportaram o Chefe-de-Estado, ele insistiu numa curta distância. Seguiu-se a visita ao monumento a Honório Pereira Barreto.

Regressa a Teixeira Pinto, sobe a uma tribuna sob uma chuva de pétalas de flores, recebe cumprimentos, houve desfile de grupos representativos dos povos da região, erguiam enormes listéis com os nomes de Costa de Baixo, Jata, Pecixe, Calequisse, entre outros; raparigas Manjacas de Pecixe, mulheres levando à cabeça esteiras, cestos, cabazes e mais artefactos de tecelagem manual de palha, mulheres pescadoras, caçadores, desfilaram garbosamente. Craveiro Lopes, no final, entregou prendas, desde medalhas a fotografias e bandeiras nacionais.

O jornalista Rodrigues Matias regressa à descrição de carater etnográfico e etnológico, desta vez foca-se nos manjacos e transcreve apontamentos do livro de António Carreira, Vida Social dos Manjacos. Após um magnífico almoço volante, a caravana ruma para Bissau, passando por Bula, Bissorã e Mansoa. Craveiro Lopes visita a Missão de Santo António de Bula, um internato com oficinas de mecânica, serralharia, carpintaria e alfaiataria. A viagem prossegue por Binar, Biambi, Encheia, houve paragem em Bissorã. O Presidente da República visita a Estação Zootécnica, recebe um presente, um magnífico exemplar de gato almiscarado, espécie rara que depois será enviada para o Jardim Zoológico de Lisboa. Rodrigues Matias dá-nos mais apontamentos, desta vez sobre a etnia Balanta, elaborados pelo administrador Alberto Gomes Pimentel.

A caravana chega a Mansoa, nova chuva de flores, apresenta-lhe cumprimentos o administrador, James Pinto Bull. Craveiro Lopes entrega medalhas, cinturões com talabarte, fotografias e bandeiras. Desfilam os povos da região: Donas, Porto Gole, Binar e Bissorã. É também presenteado com danças e o jornalista não resiste a descrever: “Um bailarino principiou a bailar. Paramentado como para as festas da circuncisão, viam-se-lhe apenas os pés. Envolvendo-lhe a cabeça até aos ombros, em que se apoiava um cesto alto, sustentando um monumental par de chifres. Ao fundo das costas, uma canasta pendurada, grandes abanicos nos ombros. Molhos de sisal a cobrirem-lhe os braços e as pernas.”

Ainda há uma curta paragem em Safim, segue-se uma entrada triunfal em Bissau, cortejos automóveis, carrinhas e camiões. Craveiro Lopes regressa ao Palácio do Governo e agradece a todos tão deslumbrante receção. Assim se chegou a 13 de maio, o Presidente da República visita no Biombo as enormes várzeas de arroz. O resto do dia estava destinado à receção de entidades que tinham assuntos a expor. Por seu lado, o ministro Sarmento Rodrigues recebeu um grupo de 22 diplomados pela Escola Superior Colonial (depois Instituto Superior de Estudos Ultramarinos). Craveiro Lopes ofereceu no Palácio do Governo um banquete seguido de receção e baile. Há brindes e o Presidente da República discursa, trata a Guiné como filha mais velha da expansão ultramarina, enumera e congratula-se com os progressos que observou.

Melo e Alvim agradece por seu turno e faz uma longa referência ao que se fez e ao que se pretende fazer. Destaca-se aqui um ponto: “Estudos recentemente levados a efeito parecem demonstrar a possibilidade da cultura do algodão. O cajueiro, a palmeira de Samatra, as fibras têxteis, a cana sacarina, as citrinas e bananas, podem constituir novos fatores de riqueza.” Há baile, assim acabou o último dia de digressão.

A 14 de maio, Craveiro Lopes e comitiva têm a partida assegurada para Cabo Verde. A Companhia de Caçadores Indígenas constitui a guarda de honra, junta-se uma multidão pela Avenida da República até o Pidjiquiti, sobem para a fragata Bartolomeu Dias, o Lima vai seguir na sua esteira. Também é hora do jornalista se despedir, ele confessa que vem altamente impressionado com a obra que o governador Sarmento Rodrigues deixou na Guiné.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes e Salazar: no princípio do mandato presidencial mantiveram uma boa relação
Fortaleza de Cacheu
Canchungo
Os CTT de Mansoa
Fragata Bartolomeu Dias
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24529: Historiografia da presença portuguesa em África (379): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24529: Historiografia da presença portuguesa em África (379): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Depois da pernoita em Bafatá, Craveiro Lopes segue por via aérea até Farim, chega cedinho, tem um dia azafamado pela frente, é recebido com pompa e circunstância, assiste ao desfile dos povos de Farim, sobe a bordo do navio hidrográfico Mandovi, Pereira Crespo (futuro ministro da Marinha) expõe-lhe o que há de mais relevante na missão geo-hidrográfica que ele coordena, uma das maiores missões científicas alguma vez efetuada na Guiné, seguem-se curtas visitas a Binta, Barro e S. Domingos, e depois em caravana encaminham-se até Varela, janta e pernoita, o dia seguinte é para andar em fatos de banho mas que ninguém se atreva a tirar fotografias às figuras proeminentes da comitiva presidencial, os Felupes deram mote à festa, fizeram demonstração de lutas e até houve um concurso de lançamento de setas ao alvo. Então a comitiva parte para Teixeira Pinto, vão primeiro a Cacheu, segue-se a receção triunfal em Teixeira Pinto e o jornalista regista que houve almoçarada e tanto.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (5)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou.

Seguirá para o Leste, de Gabu a Bafatá. Estamos agora a 10 de maio, o jornalista Rodrigues Matias aproveita para retomar alguns aspetos históricos e lendários, vai centrar-se em “Dindim Bancô”, e vai contar-nos que nos tempos da derrocada do Império Mandé, os quatro filhos de Djalibá partiram a correr mundo, viajaram para Sul, atravessaram as imensas brenhas do Firdu, acamparam um dia junto à margem de um grande rio sereno, então decidiram separar-se. O primeiro regressou à sua pátria, Giba, o segundo, continuou a sua cavalgada para além do rio e foi erguer morança junto do rio seguinte, onde veio a florescer a velha Geba, que Bafatá destronou; Mansoná, o terceiro, fez a sua morança num local que veio a ser Mansoa; o quarto, Cabi, avançou para Leste, fundou Gabu. Mas acabaram todos por ter saudades e regressaram à pátria se bem que tenham retornado muitas vezes, os seus encontros são sempre na margem do Cacheu. Giba foi sepultado no chão dos encontros. O mesmo aconteceu com Mansoná. E Cabi pediu às gentes do Gabu que o transportassem junto das sepulturas dos seus irmãos, seria aqui que queria ser enterrado – foi neste local que mais tarde nasceu a população de Farim. Chamaram-lhe os mandingas, em árabe “Dindim Bancó” – a terra das mais lindas raparigas. E o jornalista que acompanha Craveiro Lopes também recorda que em 1641 o Capitão-Mor Gonçalo Ayala fundou a povoação de Farim com cristãos trazidos de Geba.

Pois bem, Craveiro Lopes chegou às 8 horas da manhã a Farim, vindo de Bafatá. Recebeu uma salva à chegada do avião, com 21 tiros de uma bataria de caçadores mandigas envergando a vestimenta profissional e adornados de grande profusão de troféus de caça, tiros das históricas “longas” (as espingardas de carregar pela boca). O povo apinhou-se em volta do automóvel.

Sessão de boas-vindas com os discursos da praxe, desfile dos povos de Farim, subiram à tribuna os régulos da região, Craveiro Lopes condecorou e ofereceu como presentes cinturões militares com talabarte. Finda a cerimónia, tomou lugar a bordo do navio hidrográfico “Mandovi”, vai começar a descida do Cacheu. Então, o jornalista tem um jorro de inspiração:
“À passagem do Mandovi arrastam-se invisivelmente no mistério do tarrafe crocodilos sujos que se escondem no fundo das águas; e o pânico estonteia cabecitas matizadas de aves de todas as cores, que abandonam a segurança da penumbra do mangal para turbilhonarem no céu, como ébrios de luz, em cata de copas altas por entre as quais não ronquem jacarés a vapor, pintados de branco, sujando firmamento de fumo e levando por vezes no ventre quem se diverte a cuspir a morte, em balas de carabina de precisão. A fauna alada do mangal das margens do Cacheu não gosta, por princípio, de ouvir de perto o trabalhar das máquinas e o espadanar das hélices dos navios.”

Aqui e acolá há visitas, a Binta e a Barro, depois para-se em S. Domingos, aqui estão concentrados milhares de Felupes e Sossos, novamente sessão de boas-vindas e cumprimentos, entrega de medalhas, cinturão, retratos e bandeiras nacionais. A caravana presidencial ultrapassou Susana e chegou a Varela ao cair da tarde, para jantar e dormir.

Estamos agora a 11 de maio, impossível não descrever a praia branca de Varela, estância de turismo, o jornalista esmera-se: “Hoje, protegem-na dos ventos do interior e dos mosquitos dos charcos, milhões de casuarinas e de eucaliptos, que encharcam a terra de sombra deliciosa. Na frescura da mata, alvejam paredes brancas de vivendas novas, abrindo varandas de tijolo para os caminhos saibrados a areão vermelhento. Sobre uma falésia que domina o mar, ao cabo da praia, um restaurante modelar prolonga-se em esplanada de cómodas cadeiras de ferro, com guarda-sóis armados em lona multicolor a resguardar as mesas.”

A cidade francesa de Ziguinchor escolheu Varela para sua estância de mar. Numa região em que a África é lodo, Varela é um bordado de areia, onde só o tarrafe acompanha a fímbria dos canais, Varela erguei a sua floresta maravilhosa de casuarinas, frente ao azul glauco do mar. E na oportunidade refere as reservas da Guiné: a mata do Cantanhez, a lagoa de Cufada e Varela. Descre minuciosamente a lei da caça que saiu do punho de Sarmento Rodrigues.

Houve repouso todo o dia, os ilustres visitantes passearam-se na praia, banharam-se, bebericaram, divertiram-se. Mas nada de imagens. À noite, no largo fronteiro ao restaurante, os Felupes lutaram e fizeram concurso de lançamento de setas ao alvo. Mais uma vez Rodrigues Matias aproveita a oportunidade para descrever uma etnia, no caso vertente serão os Felupes e as informações que ele nos dá são retiradas do livro Babel Negra, de Landerset Simões.

Chega de vilegiatura, no dia 12, Craveiro Lopes parte por via aérea para Teixeira Pinto, é recebido com a comitiva pelo administrador da circunscrição de Cacheu. Raparigas europeias lançam flores, estão perfeitamente alinhados os alunos das escolas. Vai seguir-se a descrição da viagem para Cacheu e regresso a Teixeira Pinto, onde se segue um lauto almoço

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Visita do Presidente da República Francisco Craveiro Lopes a África. Craveiro Lopes, em primeiro plano, à direita, passa revista à guarda de honra, na Federação da Rodésia e Niassalândia, também conhecida como Federação Centro-Africana. Tratou-se de um território da coroa britânica, que abrangia a Rodésia do Sul, a Rodésia do Norte e a Niassalândia, extinto em 1963
O navio patrulha “Mandovi”
Rio Cacheu
Avenida principal de Canchungo (Teixeira Pinto) na atualidade
Farim na década de 1960
Pormenor da Fortaleza de Cacheu inserida no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24505: Historiografia da presença portuguesa em África (378): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24505: Historiografia da presença portuguesa em África (378): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Estamos agora numa verdadeira maratona, depois de missa na capelinha de Catió, a comitiva parte a 8 de maio passando por Aldeia Formosa e paragem no Saltinho, a ponte que terá o seu nome só estará concluída em agosto do ano seguinte, é aguardada com grande expetativa para melhorar a situação de pessoas e mercadorias. Descerrada a placa alusiva à visita, segue-se pelo Xitole, Bambadinca e chega-se a Bafatá. A partir deste momento não vão parar as referências elogiosas ao trabalho de Sarmento Rodrigues, nem aqui nem no Gabu, aliás o ministro do Ultramar é padrinho do filho do régulo de Chanha, Madiu Embaló. E fico a saber que perto de Nova Lamego fica a gruta neolítica de Nhampassaré, nela se fala muito frugalmente no Google. Craveiro Lopes pernoita em Bafatá e agora segue para Farim, o jornalista mete-se ao caminho num jipe, irá conhecer a extensa e densa floresta do Oio e aproveita a circunstância para publicar largo texto sobre a etnia Mandinga retirado de um dos clássicos de António Carreira, "Mandingas da Guiné Portuguesa".

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou.

Estamos agora a 8 de maio, o jornalista Rodrigues Matias vai-nos traçar o dia movimentado da comitiva presidencial. Craveiro Lopes assiste ao amanhecer a uma missa na capelita branca de Nossa Senhora de Fátima em Catió, e começam os encómios: “Deve esta simples missa de domingo ter valido no espírito da população nativa, por muitos eloquentes discursos e muita argumentação dos missionários católicos.” A viagem vai de Catió a Aldeia Formosa e Saltinho, diz-se que há muitas nativas com saias de seda e homens com chapéus de coco empenhando vergastas com retratos do Homem-Grande na ponta. Neste dia ir-se-á falar muito de alguém que marcou profundamente a Guiné, Sarmento Rodrigues. Diz o jornalista no Saltinho: “Por sobre os topos dos rochedos, com a água a escoar-se-lhe por baixo, através dos aquedutos, ao longo de centenas de metros, passa, desde o tempo do governador Sarmento Rodrigues, a estrada de cimento para Bafatá.”

Craveiro Lopes veio assistir ao trabalho da construção da ponte que terá o seu nome. Estará concluída em agosto de 1956, tem quatro vãos com o comprimento total de 144 metros. Esta infraestrutura permitirá mais rápida ligação com a parte Sul da província e, assim, mais facilmente a circunscrição de Bafatá poderá encaminhar os seus produtos para os portos fluviais da Guiné. Craveiro Lopes descerrou uma placa alusiva a esta visita, imagem que se publicou no texto anterior.

O destino seguinte é Bafatá, para lá chegar percorre-se Xitole, Bambadinca e atravessa-se a ponte sobre o Colufi. O jornalista observa que agora estamos à vista desarmada em terra de Fulas, é outra coisa: “Quem viaja pelo interior de África, cedo se habitua ao espetáculo comum do nativo normalmente vestido com muita deficiência e pouco asseio. Por isso, a estranheza o assalta, ao entrar na região dos Fulas. Tudo é diferente. Há um ar lavado e um aroma de civilização cobrindo tudo.” A cavalo ou a pé, avistam-se os régulos paramentados de guarnições de prata e ouro. O administrador, na sessão solene, agradece o foral concedido a Bafatá e prontamente tece elogios a Sarmento Rodrigues: “Há alguns anos tivemos um governador desta província que jamais podemos esquecer, por ter dedicado a Bafatá o maior carinho e amor, desenvolvendo-a, tanto cultural como economicamente. Deve-lhe Bafatá escolas, hospital, enfermeiros, pontes, estradas, fontes, água, parte do seu cais. Mas, acima de tudo, o carinho e a bondade com que a todos tratava, quer a civilizados que a indígenas. Ainda como governador desta província, idealizou a grande obra que V.ª Ex.ª vai inaugurar: a ponte Salazar.” E, de seguida, a ponte foi mesmo inaugurada. O jornalista aproveita para citar Fausto Duarte e como este estudioso se referiu às dificuldades sentidas nas investigações quanto à origem dos Fulas, e aproveita o relato para descrever aspetos etnológicos e etnográficos importantes quanto a esta etnia.

À noite, Craveiro Lopes assistiu a um torneio de luta envolvendo Fulas e Mandingas. O jornalista faz-nos uma bonita descrição: “Joelho em terra. Coreografia de mãos. Cabeça contra cabeça. Pega pelos antebraços. Salto de uma das mãos para as espáduas. Um molho de músculos espantosamente retesados. Bailados de pés, em cata de equilíbrio estável. Rodopios para a esquerda e para a direita. Um dos contendores levanta o outro do chão e, rapidamente, sem lhe dar tempo a que os pés se fixem de novo na areia, estende-o de costas em terra.”

Dorme-se em Bafatá e o jornalista aproveita para nos dar uns apontamentos históricos: “Filhos de Geba, conduzidos pelo Capitão-Mor Gonçalo Gamboa Ayala foram plantar de estaca a povoação de Farim. Tinha presídio com guarnição, ambulância, aquartelamentos, escola régia e fonte de água potável. Em 1907, é transferida a residência oficial de Geba para Bafatá e no ano seguinte juntaram-se ao presídio a ambulância e a escola régia e foi criada uma estação telégrafo-postal. Em 1912, era criada a circunscrição de Geba, com sede em Bafatá. Dois anos depois, ligada à margem esquerda do Colufi, por uma ponte, a povoação era vila. Geba morreu.”

Estamos agora a 9 de maio, Craveiro Lopes vai visitar o Gabu. A caravana segue logo de manhã para Nova Lamego. O jornalista dá-nos informações: “A circunscrição do Gabu foi criada em 1931, compreendendo 9 mil quilómetros dos territórios da parte Leste da Guiné. Foi sua sede, até 1948, a vila de Gabu Sara, agora batizada Nova Lamego, em homenagem à terra de naturalidade do homem que a fundou junto à povoação Fula de Sara e que lhe deu o primeiro nome de Vila Lamego – o Tenente A. Leopoldo.” É uma povoação essencialmente comercial. Ficamos a saber que a maioria da população indígena é islamizada, composta principalmente por Fulas-pretos e Fulas-forros, aparecendo, por ordem decrescente, os Mandingas e os Fula-Fulas. É após esta exposição que ele nos vai dar uma importante informação sobre o passado da Guiné: “Perto de Nova Lamego fica a gruta de Nhampassaré, estação neolítica de grande importância, descoberta recentemente pelo Dr. Amílcar Mateus, e onde forma encontradas centenas de objetos de pedra lascada, de pedra polida e cerâmica com gravuras incisas e estampadas em quartzo, quartzite e dolerito. É esta a primeira descoberta do género na Guiné.”

Haverá desfile dos povos da região. Antes, Craveiro Lopes entregou a cinco dos régulos presentes medalhas de prata e cinturões de prata com talabarte; a outros, medalhas de cobre, medalhas comemorativas, bandeiras e retratos. Haverá um cortejo apoteótico, uma série de bailados, não faltará música de todos os instrumentos. Craveiro Lopes visitou a fonte de Cabo Sara, mandada construir em 1945, na sequência da “política de água potável”, gizada por Sarmento Rodrigues. Ficamos a saber que o então ministro do Ultramar era padrinho de Manuel Maria Sarmento Rodrigues Embaló, este era filho do régulo Fula-forro de Chanha, Madiu Embaló.

A comitiva presidencial regressa de avião até Bafatá, o jornalista aproveita para conversar com um dos onze régulos do Gabu, Alarba Embaló, este não esconde uma admiração profunda por Sarmento Rodrigues, é um fervoroso adepto do desenvolvimento rural, quer mais tratores e mais escolas. Regressado a Bafatá, Craveiro Lopes não para, vai visitar os belos jardins do Parque das Águas, a enfermaria regional e a missão católica.

A comitiva presidencial jantou e pernoitou em Bafatá, partindo de manhã cedo para Farim. O jornalista foi de jipe, cerca de 80 quilómetros atravessando as florestas do Oio. Ele julga que tem todo o sentido, indo a comitiva em direção a Farim, onde predominam os Mandingas, fazer uma larga citação sobre esta etnia, elementos que ele vai buscar a um importante livro de António Carreira.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes durante a visita de Isabel II a Portugal, 1957
Ponte Craveiro Lopes, imagem do nosso blogue
Bafatá e a Ponte Salazar
Imagem antiga do mercado de Bafatá

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
O rei da festa deste texto é o jornalista-cronista que acompanhou Craveiro Lopes em maio de 1955 à Guiné, é a matéria do primeiro volume que aqui se trata, o segundo volume prende-se com a continuação da viagem para Cabo Verde. Inusitadamente, o jornalista Rodrigues Matias sai do registo encomiástico, deixa Craveiro Lopes no altar e saúda a natureza, o feitiço africano entrou-lhe nas veias, como aqui se procura exemplificar. E mesmo quando tem que engalanar o ilustre visitante, a sua prosa parece assombrada, estes dias que já leva na Guiné trouxeram feitiço, ora vejam como termina um verdadeiro vendaval de dança Nalu na receção de Catió: "Um Sol de fogo chameja sobre o terreiro. Os nativos bailam, suando como esponjas espremidas. A três metros de alto, as caraças de trapo e madeira pintada esfuminham-se num turbilhão de poeira e, de cinco em cinco segundos, um rugido de dezenas de milhares de vozes grita vivas a Craveiro Lopes e a Portugal." De Catió, Craveiro Lopes irá a Cufar, regressando a Catió para pernoitar.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É Governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda. Continuamos a acompanhar o relato do jornalista Rodrigues Matias, verificará agora o leitor que ele nos aparece manifestamente inspirado. A ilustre comitiva partiu para São João, tinha então população predominantemente Biafada, temos agora um estirão de 42 km até Fulacunda. Diz-nos que a região é a das mais ricas de caça e, toda a Guiné, abundam aqui os búfalos, as gazelas, as cabras de mato e até os leopardos.

A prosa do narrador esmalta-se:
“A clareira por onde rolam os automóveis, remendada a vermelhões de baga-baga, foi machadada no corpo denso da floresta hidrófila, que ao Sul do Geba avança desde o mar, ladeando lalas e pântanos, através do Forreá, até ao limite das paragens montanhosas do Boé.
Vê-se neve na Guiné. Parece, mas não é. O grande poilão que se ergue no meio da neve, abre, a 40 metros de altura, a sua copa imensa sobre a vegetação que o circunda. E da mancha verde-escura da sua ramaria cerrada sacudida pela brisa, desprendem-se e caem flocos brancos de sumaúma chiada, que cobrem tudo por debaixo, vestindo a terra de brancores de neve…
Ébrios ainda da luz da manhã, que acende fulgurações tremeluzentes, na orvalheira do capim, esvoaçam, às sacudidelas bandos de rolas esmeraldinas, um solitário noitibó rabilongo, a freirinha, e a face laranja, habitantes das clareiras abertas.”


Após esta exuberância inusitada, Craveiro Lopes desembarca e recebe cumprimentos do administrador de Fulacunda, os cipaios apresentam armas, descreve Fulacunda, este nome quer dizer lugar de Fulas, é a região da Guiné mais rica de espécies florestais, estranhamente não tem serrações. Veladamente, tece uma crítica: “Fulacunda ficou sempre um produto de reforma administrativa, com autoridade, mas sem alma que a faça crescer. Deram-lhe, em 1946, um campo de aterragem, um quartel para cipaios e uma fonte pública em lugar aprazível, decorada com um painel de azulejos. Traçaram-lhe, à ilharga, na mesma altura, uma espantosa reserva de caça. No entanto, Fulacunda continua como a descrevemos.” E ficamos a saber que a estrada de Fulacunda vai até Catió. Craveiro Lopes procede à condecoração de quatro régulos, o régulo de Fulacunda ofertou duas pequenas onças, destinadas ao Jardim Zoológico de Lisboa.

Seguiu-se o habitual desfile dos povos da região, apresentando-se em grande maioria os Biafadas de Fulacunda, de São João e do Cubisseco, os Fulas de Buba, os Balantas de Tite e os representantes de grupos menos numerosos. A viagem agora continua rumo a Catió, mas o autor aproveita para fazer uma descrição detalhadíssima dos Biafadas, com base no trabalho do administrador Octávio C. Gomes Barbosa, intitulado “Breve Notícia dos Carateres Étnicos dos Indígenas da Tribo Biafada” publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, N.º 2, 1946.

Já chegámos a Catió, é sede de circunscrição. E vamos aprender com o relato do nosso jornalista. Catió nasceu da teimosia de um comerciante, de nome Abel Gil de Matos, mas a história de Catió vem de mais longe, vem do século XIX e da China. O que se segue já mereceu escritos do nosso saudoso António Estácio e do investigador Philip Havik. Vamos aos factos. Dois chineses, acusados de crime de homicídio e jogo clandestino, depois de condenados vieram para aqui desterrados. E o autor esclarece que a Guiné continuava então a ser uma verdadeira terra de degredo, bom local para desterro de assassinos. Pois bem, os dois chineses dedicaram-se à pesca, adquiriram embarcações e ganharam intimidade com os nativos, tendo-lhes pedido informações de terras que pudessem cultivar. Terão assim obtido a revelação de que no continente, subindo um grande rio até a umas terras mal conhecidas se encontravam enormes extensões de boa terra inundada, onde era abundante a produção do arrozal. Começava assim a sua aventura, cultivaram e foram bem-sucedidos. Depois, correu fama entre os Balantas de algures, no Tombali, a terra era milagrosa e produzia ouro sobre a forma de arroz.

Bissau e Bolama pasmaram com a qualidade do arroz do Tombali, cabo-verdianos e europeus pediram concessões de terrenos. Instalou-se um posto administrativo em Sugá, mas um comerciante discordou do local e assim nasceu Catió, hoje povoado de primeira, tem estação radiotelegráfica, delegação de saúde, capela e escola missionária, bem como recinto de jogos. Ponto curioso é haver povoados na circunscrição com nomes de inconfundível sabor chinês, como é o caso de Com-Hane.

Baseando-se no relato do ex-governador Carvalho Viegas, de sua obra Guiné Portuguesa, o jornalista faz-nos uma descrição do povo Nalu, dado o facto da circunscrição de Catió ser o chão característico dos Nalus. O jornalista já pôs de parte os seus enleios de prosador esmerado, agora o que pesa é o estilo noticiário. “Ao desembarcar do automóvel presidencial no topo da artéria, uma espécie de loucura coletiva se apossou daquelas dezenas de milhares de pessoas, que irromperam em vivas e palmas.” Craveiro Lopes entregou o seu retrato encaixilhado aos quatro régulos da região.

Estamos perante um jornalista que gosta da etnologia e da etnografia, a descrição que se segue é a observação das danças Nalus, é uma escrita empolgada:
“Os marinheiros tinham assentado no terreno as suas marimbas, em bataria, e percutiam-nas elevadamente, conduzindo os pés dos bailarinos em paralelo á dança das baquetas saltitantes. Lembravam executantes de ‘mssau’ zavala, acompanhando a contracanto a narração de pecados de amor que atraíssem sobre a tabanca as iras das divindades.
E dois bailarinos de exceção, os campós, metidos em saiões de monstros encimados de caraças horrendas varriam o terreno em fúrias de rodopio estonteante. Uma das caraças, vagamente sugerindo cabeça de cavalo, com cabeças amarelas de tachas luzindo ao Sol e riscos de zarcão circundando os olhos por sobre uma bocarra de alvaiade e lama, erguiam-se a mais de 3 metros, gesticulando hieróglifos macabros de ameaça, de espanto, de ataque e de fuga, de raiva e de medo.
Era a grande máscara da dança Nalu, aterrorizando os espíritos maus que vagueiam pelos matos do Tombali, para que o pavor os confunda e os afaste do trilho dos passos do Homem Grande, em cuja honra pipilavam as marimbas da tribo e dançava em festa o povo das suas tabancas.
Depois, entrou em cena a formação dos grandes tambores Nalus, presos à cintura de mais bailarinos, cuja fila executa marcações de reta, de círculo, de arco e de triângulo. As macetas batem na pele de todos os bombos ao mesmo tempo, ao ritmo lento de um comando que ninguém sabe de onde vem, e que faz a todos os dançarinos avançar a perna direita, fletir o joelho esquerdo, executar um golpe de rins, jogar a cabeça para trás, avançar ou recuar um passo. Conjuntamente, corpos e tambores executam a pancada uníssona, coletiva, lenta como o desespero. Depois, a fila faz repentinamente meia-volta e gira em sentido oposto. O ritmo das macetas acelera. Os tambores agitam-se, a golpes de rins mais frequentes.
E o cavalão-caraça, montado sob o bailarino estrela que obedece às marimbas, entra de novo em cena, faz vénias aos tambores e manda-os a anunciar aos longes, por bolanhas e matagais, que o Homem Grande chegou à terra dos Nalus e traz consigo a paz e a alegria e a fertilidade dos arrozais de Catió.”


E digam-me lá se este jornalista não estava verdadeiramente inspirado, a gravar as suas emoções para uma literatura luso-guineense.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
General Craveiro Lopes
Diário da Manhã de 11 de maio, general Craveiro Lopes junto da estátua de Nuno Tristão, imagem do Museu da Presidência, com a devida vénia
Placa evocativa da visita de Craveiro Lopes durante a construção da ponte sob o Corubal, maio de 1955, imagem de Albano Costa, com a devida vénia
1.ª página do Diário Popular de 7 de maio de 1955
De Bolama para São João
De São João para Fulacunda

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Há momentos nesta viagem presidencial em que se pressente, que mesmo discretamente na retaguarda, é o ministro do Ultramar que regozija com o legado deixado em cerca de 3 anos de governação. Onde quer que chegue a comitiva presidencial, Sarmento Rodrigues é recebido com a maior cordialidade, tanto pelos agentes coloniais, empresários, administrativos, como pelas autoridades gentílicas e o povo que desassombradamente o saúda. O que se passou em Bissau é flagrante, está tudo marcado pela gestão de Sarmento Rodrigues, dos equipamentos de saúde à educação, às infraestruturas desportivas, às melhorias da ponte do cais de Pidjiquiti. A viagem a Bolama de certo modo deixa o jornalista consternado, fala nas populações em delírio, mas não esconde a dor e a melancolia que aquela cidade ao abandono provoca, houve manifesta incapacidade de gerir com equilíbrio a transferência da capital, Sarmento Rodrigues ainda tentou um acordo com os potentados económicos para estes se manterem firmes naquela região agrícola tão exuberante, mas os negócios foram-se transferindo para Bissau, inexoravelmente Bolama caiu no esquecimento, o que assombra quando o seu património era tão interessante.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o Dispensário do Mal de Hansen, percorreu três exposições que o jornalista (presume-se Rodrigues Matias, ele aparece como coordenador dos dois volumes a que aqui se faz referência do diário da viagem) classifica a primeira como consoladora, a segunda como banal (à primeira vista) e a terceira macabra. O ilustre visitante recebe uma lembrança, um bordado com as palavras “Seja bem-vindo”, trabalhado a linhas encarnadas sobre linho branco. Das três mulheres doentes que haviam bordado aquele pano, uma não tinha dedos nem mãos. O jornalista foi ao seu encontro e dá-nos um quadro comovente. Enquanto Craveiro Lopes se mantém no Dispensário, o jornalista visita a Cumura, povoação do posto de Prábis, escolhida em tempos pelo comandante Sarmento Rodrigues para local de isolamento dos leprosos contagiosos. E diz-nos o jornalista que ali vivem, num mundo reduzido em pouco, mais de duas centenas de infelizes de ambos os sexos.

Bor, onde Craveiro Lopes se dirigiu após a visita ao Dispensário, é um desconhecido éden da ilha de Bissau, a 6 km da cidade. Ali foi criado um Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida, a cargo das Missões Católicas. A designação foi mudada para Asilo de Infância Desvalida de Bor. O ilustre visitante distribui a cada criança um pacote de rebuçados. Craveiro Lopes foi inesperadamente visitar o posto de Prábis. No caminho passou sob um maravilhoso túnel de cajueiros, e diz-nos o jornalista que se tratava de um pormenor que iria ter ocasião de apreciar largamente pelo interior: milhões de cajueiros plantados ao longo de todas as estradas da Guiné.

Findo o programa da manhã, vamos ao da tarde. Craveiro Lopes comparece ao grande festival militar, escolar e desportivo no Estádio de Bissau. Ao centro do campo de futebol formavam a tropa, a mocidade portuguesa, uma companhia de caçadores indígenas, 60 filiados do Centro de Milícias; atrás deste contingente, estão centenas de alunos das escolas oficiais e missionárias, 200 atletas dos clubes desportivos e uma coluna de tropa de segunda linha. Depois do desfile, realizou-se a final de um torneio de futebol entre o Sport Lisboa e Bissau (o Benfica local) e o Clube Futebol Os Balantas (o Belenenses local), ganhou o primeiro. Seguidamente, foram agraciados clubes desportivos e 17 chefes indígenas do concelho de Bissau. Craveiro Lopes sai do estádio em apoteose.

É nesta circunstância que o jornalista aproveita para descrever o concelho de Bissau lembrando que da sua população de 30 mil habitantes, há 22 mil da etnia Papel e 5 mil da etnia Balanta. A 6 de maio, a ilustre comitiva parte para Bolama no aviso Bartolomeu Dias, sem, porém, o jornalista nos ter descrito ao pormenor a nova ponte do cais do Pidjiquiti. Ele trata Bolama como a capital que foi, a visita presidencial é um tanto apresentada como uma romagem de saudade, um misto de peregrinação e desagravo. Faz-se a história da ocupação da primeira capital da Guiné e subitamente surge-nos uma referência a Silva Gouveia, o homem que criou um potentado económico na Guiné: “Silva Gouveia, que chegara à Guiné tão moço como pobre, dedicava-se à pesca; depois abrira padaria e casa de comidas para as praças da guarnição, na rua Marquês d’Ávila; em seguida, arranjara-se a construir edifícios de pedra e cal e requerera licença para lançar um muro-cais em frente da sua maior instalação. Era o colosso a desferir o voo para o grande triunfo que o esperava.”

Há laivos de melancolia nas descrições que se seguem. Bissau, em crise de crescimento repentino, comprava, para cobrir mais casas, as telhas que os proprietários bolamenses arrancavam das suas moradias abandonadas. Mas o jornalista está ali para pintar a cena em cores triunfais, temos a população em massa a acompanhar a viagem de Craveiro Lopes até aos Paços do Concelho, este o edifício da mais elevada categoria arquitetónica. Seguem-se os discursos do presidente da autarquia e do representante do comércio local – todos sonham com o revigoramento de Bolama. No final da sessão, foi lida a portaria que concede escudo de armas e bandeira própria à cidade de Bolama, Craveiro Lopes entregou nas mãos do presidente de autarquia a bandeira já com brasão, entre os calorosos aplausos de toda a assistência.

Segue-se um curioso desfile regional de gentes congregadas no largo Teixeira Pinto, não vai faltar dança frenética. Depois ficamos a saber que no concelho de Bolama não predominam em número os Bijagós, mas sim os Mancanhas. Por entre os dançarinos, um velho exótico passeava despreocupadamente um crocodilo pela arreata de um cordel de juta, o bicho arrastado pela trela dava sinais evidentes de um aborrecimento quase mortal.

Depois do almoço, um trepidante programa de visitas: ao quarte da Companhia Indígena de Engenhos; ao Hospital Regional de Bolama; à Missão Católica e à Igreja de S. José. E vem um encómio do jornalista: “Deixou esta visita ao sr. general Craveiro Lopes a impressão de que a cidade de Bolama se não resigna à condição de vencida pelo facto de ter deixado de ser a capital.”

Segue-se a visita à propriedade Gã Moriá, da firma Silva Gouveia, Craveiro Lopes é recebido pelo administrador D. Diogo de Melo. A Câmara de Bolama ofereceu um Porto de Honra no salão de festas da sede dos Bombeiros Voluntários, a que estiveram presentes todas as autoridades e “a melhor sociedade de Bolama”. À noite, da varanda do Palácio, Craveiro Lopes assistiu às danças Bijagós. O jornalista esmera-se a descrever tais danças, diz que é quase um teatro, logo na intenção do bailado, o bailarino, ajudado pelo corpo de baile que o acompanha, descreve as fases do seu envolvimento com a mulher pretendida, vê-se que esteve atento e que sentiu a densidade daquele processo cultural e artístico.

A 7 de maio, a ilustre comitiva reembarca de regresso às terras do continente. Antes, o jornalista refere que se avista o plano de água em que desciam as grandes aeronaves das primeiras travessias, pista maravilhosa de 6 km de comprimento e 1,8 de largura, no braço de mar chamado Gã Pessoa. Fala-se do desastre aéreo que vitimou os aviadores italianos. Estamos agora a caminho de Fulacunda.


Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Retrato oficial de Craveiro Lopes no Museu da Presidência, pintura de Eduardo Malta
Dispensário do Mal de Hansen, Guiné Portuguesa
Imagem de uma reportagem da RTP na Guiné no tempo do governador Peixoto Correia
Paços do Concelho de Bolama, já em adiantado estado de ruína
Igreja de S. José, Bolama
Uma das mais admiráveis fotografias de Bolama, publicada no livro "Bijagós: Património Arquitetónico", pelos arquitectos Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade e o fotógrafo Francisco Nogueira; Edições Tinta-da-China, 2016

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24452: Historiografia da presença portuguesa em África (375): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Craveiro Lopes foi o primeiro Presidente da República a visitar a Guiné, percorrerá nesse ano e no ano seguinte as parcelas africanas do nosso Império. Estamos no ano em que António Júlio Castro Fernandes, antigo ministro da Economia, administrador do BNU e figura grada do regime produzirá um documento que é uma radiografia do Estado da Guiné, advertindo nas entrelinhas os riscos e ameaças que andam no ar, e que ganharão corpo 3 anos depois, com a independência da Guiné-Conacri. Se me decidi a fazer o relatório desta viagem é porque ele permite ver com nitidez a obra do Comandante Sarmento Rodrigues, a Guiné ainda é um fim do mundo mas ganhou corpo administrativo, assomou uma componente cultural. O jornalista que acompanhou a viagem do General Craveiro Lopes dirá que naquele Porto de Honra oferecido pelas atividades económicas, a mesa primava por cristais e pratas e cravos vermelhos. Enquanto isto é dito, Castro Fernandes no seu documento deixa escrito preto no branco que toda aquela classe de gentes dos negócios primava pela mediocridade, havia que gerar um impulso regenerativo, antes que fosse tarde.

Um abraço do
Mário


O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (1)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do Presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Seja como for, quando começar a guerra, a Força Aérea Portuguesa irá investir mundos e fundos para tornar aquele aeroporto digno desse nome.

De Bissalanca até à Sé foi o carro presidencial escoltado por 40 cavaleiros Fulas e Mandingas. Haverá uma cerimónia no Alto do Crim, o presidente da edilidade entrega-lhe a chave da cidade, entre muitas ovações. A comitiva chega à Sé, são todos recebidos pelo Prefeito-Apostólico, D. Martinho da Silva Carvalhosa, haverá Te Deum. Segue-se uma sessão de boas-vindas nos Paços dos Concelho, que culmina com o discurso do Governador Melo e Alvim. Terminada a cerimónia, o Chefe de Estado segue para o Palácio acompanhado por uma multidão. Ali há um jantar oficial e depois vão para a varanda ver estralejar foguetes, vão aparecendo pela Praça do Império cavaleiros, gente curiosa.

Estamos já a 3 de maio, Craveiro Lopes vai prestar homenagem a Nuno Tristão, uma escultura de bronze da autoria de António Duarte, vai descerrar uma placa de bronze, é a primeira de uma longa série, discursa, fala da História da Guiné, da sua descoberta, muitas palmas. E daqui segue para a fortaleza de S. José de Bissau, no tempo do Governador Sarmento Rodrigues houve aqui muitas obras, reconstruiu-se o baluarte de Puana, repararam-se as muralhas e os parapeitos. Faz uma visita ciceronada pelo Comandante-Militar, Coronel Neves e Castro. Descerra-se nova lápide comemorativa. Na parada, ergue-se o monumento aos Heróis da Ocupação, realizado sobre projeto do topógrafo Raúl Lomelino. E a ilustre comitiva parte para nova inauguração, a nova Escola Paroquial das Missões Católicas D. Berta Craveiro Lopes, esta descerra uma placa de mármore e procede-se a uma visita às quatro salas de aula da escola, prontas para acolherem 400 alunos.

No cumprimento das suas obrigações, Craveiro Lopes regressa ao Palácio para receber o Governador da Gâmbia. O jornalista aproveita para dizer que o Alto-Comissário da África Ocidental Francesa fora recebido na véspera, no aeroporto, tal como o enviado especial do Presidente da República do Líbano (a colónia libanesa tem peso económico e financeiro na Guiné). Ao princípio da tarde realiza-se a visita ao Hospital Central de Bissau, a comitiva oficial é recebida pelo Diretor, Dr. Rui Roncon. É aqui que o jornalista não se contém nos epitalâmios e no endeusamento presidencial: “A alegria de ver o Presidente morfiniza a tortura dos achaques”.

À noite, nos jardins do Palácio, Melo e Alvim ofereceu um “Pôr-do-Sol”, que reuniu “a melhor sociedade da província” e a totalidade das individualidades nacionais e estrangeiras presentes da capital.
“Deram a nota elegante da festa as senhoras da sociedade local, que capricharam em apresentar-se com modelos do melhor corte, alguns diretamente recebidos dos costureiros parisienses.”

Estamos chegados a 4 de maio, Craveiro Lopes vai inaugurar a estátua de Teixeira Pinto, no Alto do Crim, obra do escultor Euclides Vaz, que representou o pacificador da Guiné fardado, segurando a pistola na mão direita caída ao longo do corpo. Há discurso do Comandante Militar e Craveiro Lopes descerra lápide. E partem todos para o Bloco Industrial da Sociedade Comercial Ultramarina, Craveiro Lopes é recebido pelo principal dirigente da empresa, António Júlio de Castro Fernandes, antigo ministro, figura política grada do regime, Administrador do BNU (nesse ano, produzirá um documento de indiscutível importância cujas páginas essenciais estão transcritas no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné"). Segue-se visita à fábrica de descasque de arroz, outra de óleos vegetais, segue a itinerância pela central elétrica privativa e por uma fábrica de sabões. Não há detença, daqui ruma-se para a Escola Primária Dr. Oliveira Salazar. Mais uma lápide descerrada. A seguir, teve lugar a inauguração do Lar Santa Isabel, destinado aos sem lar.

Estamos já na parte da tarde, realiza-se uma sessão cultural no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. O Comandante Teixeira da Mota irá proferir uma conferência de dezenas de páginas, elenca a obra feita por esta entidade, refere os trabalhos de Fausto Duarte e Alexandre Barbosa, entre outros. Não deixa de relevar a colaboração da Missão Geoidrográfica da Guiné. No final, foi oferecia a Craveiro Lopes uma medalha artística de bronze da autoria de Anjos Teixeira, mandada fazer exclusivamente para comemorar esta visita. O Presidente visita o “incipiente” Museu da Guiné. Continua a não fazer pausas, as atividades económicas da Guiné oferecem ao Presidente e comitiva um Porto de Honra e o jornalista refere a atmosfera aprimorada da mesa, “semeada de cristais, pratas e cravos vermelhos”.

Já estamos a 5 de maio, Craveiro Lopes começa o dia visitando o “Dispensário do Mal de Hansen”. Está à sua espera o Dr. Rui Roncon e o médico leprólogo Mário Veiga. Será um dia muito movimentado, como iremos ver.

General Craveiro Lopes e a Sr.ª D. Berta, 1952
Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Ponte Craveiro Lopes sobre o Corubal
(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24436: Historiografia da presença portuguesa em África (374): Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê? (Mário Beja Santos)