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sexta-feira, 12 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24309: Notas de leitura (1581): A economia guineense em 2017: oportunidades de import-export do lado português (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Encontrei na Feira da Ladra este dossier da Câmara Agrícola Lusófona que aporta um conjunto de elementos sobre os mercados guineenses até 2017. Graças aos dados mencionados, verifica-se que a alimentação guineense, sobretudo em meio rural, cobre uma boa parte das necessidades nutricionais, a despeito de um conjunto relevante de carências. É preocupante a tendência para a monocultura do caju, havendo quebras acentuadas em arroz e leguminosas, por exemplo. A inexistência de infraestruturas capazes não permite a exportação de frutas ou a sua industrialização, é um setor cheio de potencialidade. O dossier faz uma serena caraterização tanto da agricultura como do funcionamento dos mercados guineenses, desenvolve o setor produtivo e o consumo alimentar e deixa a sugestão para importantes oportunidades de exportação do lado português. Mais não seja, este dossier dá-nos informação de como estão os mercados em tempos de incerteza política.

Um abraço do
Mário



A economia guineense em 2017: oportunidades de import-export do lado português

Mário Beja Santos

Este dossier de mercado da Guiné-Bissau é da responsabilidade da Câmara Agrícola Lusófona, os dados apresentados, embora não seja clara a data desta publicação, vão até 2017, é importante este elemento cronológico, algumas das informações dadas estão seguramente desatualizadas. Logo no enquadramento se diz que a Guiné-Bissau estava a viver um período de crescimento económico, sendo as previsões de 4,8% para 2017 e de 5% para 2018, por exemplo. Houvera dois bons anos agrícolas mesmo num período de governação incerta. A fileira do caju é a principal fonte de receitas do país. Em 2015, o caju representou 82% com 210 milhões de euros num valor total exportado de 257 milhões. O dossier tem uma ficha-resumo do país, carateriza a população (o estrato etário dos 14-65 anos representa cerca de 56% da população total); metade da população encontra-se em áreas rurais. Segue-se a caraterização geral do país e dá-se conta de que os hábitos alimentares da população foram influenciados pela cultura gastronómica lusa, o que se reflete nas importações da cerveja, vinho, águas, alimentos processados, entre outros. As bebidas constituem assim a maior parte do valor das exportações portuguesas para a Guiné-Bissau.

O dossier não esquece a caraterização geográfica, é minucioso na observação dos solos, dá-nos depois uma caraterização económica e financeira. Assim chegamos ao setor produtivo e ao consumo alimentar, abre-se a porta para o que se consideram as oportunidades para o agro-negócio na Guiné-Bissau. A maior parte da população da Guiné-Bissau (58%) vive nas zonas rurais, temos os pequenos produtores camponeses e os “ponteiros”, os primeiros são responsáveis por cerca de 90% da população agrícola do país e os segundos resultam das 2200 concessões de terras, estando cerca de 1200 em atividade; as concessões correspondem a cerca de 9% da superfície total do país e às melhores terras. O caju veio absorver muito do tempo de trabalho anteriormente devotado às culturas alimentares, nomeadamente o arroz e o amendoim. Em termos de segurança alimentar, as consequências desta mudança foram evidenciadas em anos de menor sucesso na comercialização do caju, ficando as famílias desprovidas da sua principal fonte de alimento.

Embora as condições agro-climáticas da Guiné-Bissau favoreçam a existência de uma grande quantidade de frutas, a exportação de tais produções não tem sido possível, tudo por falta de instalações de conservação ou transformação, ou de circuitos de comercialização eficazes e também devido ao facto de as perdas de produção serem grandes no processo pós-colheita. A produção de arroz tem vindo a reduzir; a produção de cereais nos agregados cobre as necessidades alimentares de apenas oito meses do ano. O resto do consumo provém essencialmente do mercado, onde são comprados graças aos rendimentos monetários ou graças à troca principalmente por caju. O arroz cobre em média cinco meses das necessidades, enquanto os outros cereais cobrem em média dois meses. O amendoim e a mandioca são, a seguir ao arroz, as duas culturas anuais mais importantes. A produção média do amendoim em casca é estimada em 250 quilos por família.

A pecuária tem potencialidades para o desenvolvimento dos seus efetivos. Nos últimos dez anos o aumento mais significativo tem sido no gado caprino e ovino. A Guiné dispõe de recursos florestais consideráveis, com cerca de 2 milhões de hectares de superfície florestal e reservas em madeira estimadas em 48,3 milhões de metros cúbicos. Infelizmente, esta riqueza natural enfrenta um conjunto de problemas como a exploração económica abusiva ou as queimadas.

Cerca de 5% dos agregados familiares rurais têm um consumo alimentar pobre, 15% têm um consumo alimentar moderado e 81% têm um consumo alimentar aceitável.

A balança comercial da Guiné apresenta um saldo negativo, no domínio dos produtos agro-alimentares o saldo tem sido positivo nos últimos anos graças às boas campanhas de produção e comercialização do caju. A Índia é o principal cliente da Guiné-Bissau, adquiriu em 2016 a totalidade do valor exportado em caju com casca. As principais importações da Guiné devem-se a combustíveis minerais, cereais, preparados à base de cereais, equipamentos elétricos, bebidas, veículos automóveis, preparações alimentícias diversas e ferro e aço. A balança comercial agro-alimentar da Guiné-Bissau em relação a Portugal é inequivocamente favorável a Portugal. Em 2016, enquanto Portugal exportou para a Guiné-Bissau 21 milhões de euros em produtos agro-alimentares, esta apenas exportou para Portugal 6 mil euros em sucos e extratos vegetais. As exportações agro-alimentares portuguesas com destino à Guiné-Bissau são bebidas, laticínios e ovos, carne e miudezas, preparação de cereais, gorduras, preparações vegetais e frutas, enchidos e conservas, admite-se uma maior potencialidade exportadora, será o caso do agro-alimentar em preparações caldos e sopas, trincas de arroz, preparações para molhos, massas alimentícias, laticínios, entre outros. Já se referiu o peso que têm a cerveja, o vinho e as águas minerais nas exportações portuguesas. O dossier põe ênfase nas carnes frescas e refrigeradas, nas preparações à base de cereais, mas não deixa de referir que as taxas aduaneiras são altamente punitivas tanto para as gorduras vegetais como animais.

O documento da Câmara Agrícola Lusófona foca-se no agro-negócio e as pescas como motores de crescimento, mas está tudo dependente de um ambiente político e de orientações estratégicas que sejam favoráveis a infraestruturas, ao ambiente de negócios, ao desenvolvimento humano e à biodiversidade. Sendo o porto de Bissau a grande porta de entrada e de saída das trocas comerciais procede-se à sua minuciosa caraterização a que se segue a da rede rodoviária.

A última fase do dossier prende-se com o regime de investimento e os respetivos incentivos fiscais e dá-se uma relação de contatos úteis. Para saber mais sobre a Câmara Agrícola Lusófona e as suas atividades, sugere-se que se consulte o site https://www.calusofona.org/.

Praça dos Heróis Nacionais, Bissau, na atualidade
Leguminosas da Guiné-Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24298: Notas de leitura (1580): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
A sorte não favorece só os audazes, há bancas da Feira da Ladra onde se podem descobrir pepitas, esta conferência de António Júlio de Castro Fernandes tem muito que se lhe diga, recordo que em 1955 ele produziu, e seguramente que não era um exclusivo para a administração do BNU, um documento bem encorpado sobre a situação da Guiné e já numa previsão de mudanças geoestratégicas e geopolíticas, queixando-se da falta de qualidade dos funcionários da administração e da estagnação económica, baseada numa avidez de duas ou três culturas, de fraquíssima qualidade, só de puro escoamento em Portugal, escreveu para quem o quis ler que a Guiné em termos socioeconómicos e culturais tinha que dar uma grande volta. O que não aconteceu. Seguramente escalado para se dirigir à administração colonial, aos empresários locais, adoçou o discurso, nada de temores com subversões (houve quem previsse que os tumultos nacionalistas podiam começar pela Guiné), e vendeu a receita tão cara aos dirigentes do Estado Novo que a nossa presença em África era uma especificidade em prol da civilização ocidental e da mensagem cristã. No ano seguinte a esta alocução de fé e da inabalável crença do Estado Novo de que não haverá política de abandono, a subversão estará em marcha.

Um abraço do
Mário



Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas

Mário Beja Santos

Nome sonante do Estado Novo, economista, banqueiro, membro do Governo, Presidente da Comissão Executiva da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes era grande conhecedor da realidade económica da Guiné. Queria lembrar ao leitor o documento que assinou pelo seu punho em 1955 e enviado à administração do BNU, a que ele pertencia, documento que parcialmente transcrevi no meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", o BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019, onde revela que não se pode perder mais tempo numa atitude de desenvolvimento, estavam previstas grandes alterações em torno da colónia, era um risco não mudar o estado das coisas. Se o leitor estiver interessado tem o documento integral à sua disposição na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A conferência que ele vai proferir em 23 de abril de 1960 direciona-se para três temas: Portugal na Guiné; presente e futuro da Guiné; e condicionalismo político. Não traz nada de novo acerca do descobrimento da Guiné, a não ser não ter referenciado Nuno Tristão como o primeiro a chegar à região, mas sim Diogo Gomes, em 1456. Refere sumariamente a colonização e dirige-se ao auditório falando do presente e do futuro. Estamos em 1960, na fronteira norte está a República do Senegal que então fazia parte da Federação do Mali. “Sobre vários aspetos, a Guiné Portuguesa é um país singular, que se destaca pelas características próprias entre as paisagens do Sudão e o grande planalto da Guiné Superior, com a sua particular estrutura de terras baixas, irrigadas por rios largos e numerosos, um território meio continental e meio insular.”

Dá-nos uma água-forte do mosaico étnico, e discreteia sobre a economia, baseada na agricultura. “O ponto fraco do sistema reside na monocultura, não em sentido literal porque, na área da província, há três ou quatro culturas com relevante valor económico. Assim, temos: a mancarra em Farim, Bafatá e Gabu; a palmeira de azeite em Cacheu, Geba e Arquipélago de Bijagós; o arroz em Mansoa, Catió, Fulacunda, Bissau e São Domingos. É visível que a agricultura guineense está concentrada em número restrito de produtos: o amendoim, o coconote e o óleo de palma, que são artigos de exportação; o arroz e o milho, de consumo interno. O primeiro problema que se põe é o de transitar para um esquema em que os produtos cultivados sejam mais numerosos e em que as explorações evoluam no sentido da policultura. É preciso imprimir à economia agrícola da Guiné características de variedade e flexibilidade que lhe faltam. As grandes culturas tradicionais correspondem a direções que estão certas e bem pode dizer-se que têm sentido funcional. O arroz e o milho são os produtos-base da alimentação do indígena. As oleaginosas são o ouro da província. Mas não só podem aclimatar-se outras culturas como aquelas são suscetíveis de adquirir maior extensão. Há que vitalizar e enriquecer um sistema que se enquistou na rotina, sem que nela encontrasse um equilíbrio salutar.”

E tece considerações sobre os problemas da qualidade, o amendoim era de baixa qualidade, o óleo de palma dificilmente colocável no estrangeiro, a mancarra ia acarretar o empobrecimento dos solos, impunha-se sanear e valorizar a agricultura da Guiné, que se encontrava num quadro de estagnação. A indústria da Guiné pouco representava, as suas trinta e tantas unidades fabris eram complementares da lavoura. E espraia-se sobre os planos de fomento, a recuperação de terras para o arroz, um programa de regularização e dragagem do rio Geba, a construção de pontes sobre o Geba, o Corubal e o Cacheu, a conclusão da ponte do cais de Bissau e dos cais de Catió e Cacheu. Faz sempre menção ao I Plano de Fomento e ao II, onde se previra a instalação de uma estação agrária para aproveitamento dos terrenos alagados, ribeirinhos do Geba.

E assim se chegou à questão mais delicada, o condicionalismo político, socorre-se de um punhado de lugares comuns para falar da África Negra, do nacionalismo africano, pretende que fique claro que o continente não é nem homogéneo nem uniforme, da ebulição dos novos Estados parece que se deseja um regresso às origens, renasceram ódios, é intensa a hostilidade ao Ocidente, e faz uma observação de caráter pessoal:
“A África é de tal modo complemento da Europa que bem podemos admitir a hipótese de, passado algum tempo, se refazer a colaboração que está na ordem natural das coisas e arrefecer e apagar-se o ímpeto agressivo de um racismo negro que é de criação puramente artificial, produto da propaganda dos agitadores mais do que a expressão autêntica de uma aversão hereditária. Ouvimos por toda a África o tambor da guerra. Nem a África pode organizar-se unitariamente, porque nela não há fator de unidade, nem sequer lhe é possível organizar-se pela simples transformação dos territórios coloniais em Estados autónomos.”

E o político que abraçou o nacional sindicalismo e que se entusiasmou pelo corporativismo e é um peso pesado da União Nacional dá conta à audiência do que fará Portugal. Não se percebe como os responsáveis do Ocidente querem fazer frente à invasão comunista, parece que todos querem descolonizar e recomendam a descolonização a quem não a quer fazer, porque há a especificidade portuguesa. “Não conhecemos os equívocos em que outros tropeçam porque, dentro das nossas fronteiras, nos territórios portugueses, o nacionalismo só tem um sentido. Não há, no nosso Ultramar, nacionalismo que não seja português ou, se o preferirmos, que não seja nacional. Nós vivemos à margem dos equívocos em que outros se transviam. Como eles, nós não temos nações negras dentro dos limites em que se exerce a soberania portuguesa. Na nossa África, é efetiva a presença de uma nação, a Nação Portuguesa. Não corremos o risco de nos desnortearmos, ao ponto de nos atormentar as vigílias a ideia de que dominamos e recusamos o direito à vida a nações escravizadas. A nossa experiência africana é mais larga que a dos outros povos, mais longa e mais rica de conteúdo.”

Está dado o mote para avisar a audiência, os meios de comunicação e a opinião pública em geral de que não iremos praticar a política do abandono, a renunciar ao que é irrenunciável. E evoca-se a lição da história:
“Começámos por nos aventurar pelas rotas do Atlântico Sul e do Índico, lutando com as tempestades em frágeis caravelas, a dobrar os promontórios, de mandar as aguadas, aprender a conhecer o litoral do grande continente. Depois, fundámos os nossos estabelecimentos da costa. Desde logo nos aventurámos através do sertão inóspito, ganhando palmo a palmo a terra e as gentes alma a alma. É que, para nós, colonizar não era apenas criar balcões de comércio ou mesmo fazendas prósperas. Era serviço de Deus e da Pátria. Fomos em África soldados e missionários, mercadores e lavradores, mas fomos, acima de tudo e na mais larga acessão da palavra, homens humanizando outros homens.”

E na sua alocução não deixa de mencionar os valores materiais e morais da Civilização Ocidental e Cristã. E termina a sua conferência com o apelo à energia firme; a aceitação voluntária de sacrifícios e riscos, vivia-se a hora em que se propunha a Portugal o problema de sobreviver ou não sobreviver na sua dimensão mundial. Havia que estar unidos e confiar nos chefes e na aliança inquebrantável de todos os portugueses de boa vontade. Sagaz, não menciona uma só vez a erupção do nacionalismo africano na Guiné ou a subversão latente, não havia que descolonizar porque éramos todos portugueses. Bem silenciou as tensões já existentes, deverá ter considerado que era a comunicação adequada para comemorar a epopeia henriquina. No ano seguinte, tudo começará a ser diferente.

Imagem da época da sede da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, projeto do arquiteto Jorge Chaves, teve intervenções no interior de um jovem que seria um grande nome das artes plásticas portuguesas, José Escada
Desenho de António Júlio de Castro Fernandes, por Almada Negreiros, 1932
António Júlio de Castro Fernandes, retrato a óleo de Maluda, 1975
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24041: Notas de leitura (1550): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Tony Tcheka é nome proeminente da poesia guineense e aqui se deixa referência à sua comunicação num encontro de escritores de língua portuguesa, realizado em Luanda em 2015 sobre o tema da relação de escritores com as cidades, Tony Tcheka privilegiou discretear sobre a evolução das temáticas poéticas pós-independência, onde a criança e a mulher sobressaem, a primeira por constituir a dor constante da infância humilhada, a fase patente do subdesenvolvimento e da humilhação; a segunda, decorre do facto de a mulher se ocupar de todos os misteres, deita mão a tudo, produz, curva-se na bolanha, prepara o arroz para a família, na cidade deita mão a tudo, e a literatura guineense espelha muito bem a sua dor física e psicológica. Bem gostei de voltar à Feira da Ladra depois do intenso jejum pandémico, trouxe outras leituras de que vos vou dar conta, um antigo combatente de Olhão que veio matar saudades à Guiné, e o relatório produzido por um think tank, o Bow Group, muito próximo do Partido Conservador britânico, elaborado em 1961, em que se diz claramente que não há qualquer solução militar para o império colonial português.

Um abraço do
Mário



Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1)

Mário Beja Santos

Foi sábado de sol, o polícia a vigiar o cumprimento das normas, quem queria folhear e comprar alfarrábios usava obrigatoriamente máscara e luvas. Confesso que tinha saudades, eram meses sem visitas, compreensivelmente, ali me senti bem e entusiasmado, na fase de desconfinamento. A primeira surpresa foi o livrinho Literatura e Lusofonia 2015, desse encontro de escritores de Língua Portuguesa havia nomes sonantes como Pepetela, Manuel Rui e Tony Tcheka, poeta guineense que muito admiro. A UCCLA – União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa tem privilegiado estes encontros, o de 2015 foi em Luanda, a temática era a relação dos escritores com as cidades, a forma como as encaram e em que medida elas os inspiram. Como o nosso blogue, por definição está orientado para tudo quanto é Guiné, vamos dar a palavra a Tony Tcheka que discreteou sobre a criança, a mulher e a cidade na literatura guineense – Meninos da Terra Vermelha, alusão à cor da laterite.

Começou a sua intervenção com o poema Chamo-me Menino!, assim:
“Sou a criança pobre/ de uma rua sem nome/ num bairro escuro/ de covas fundas/ em gargantas/ fatalmente magras, carentes de pão/ e sem muita ambição/ Sou filho da miséria/ escancarada/ enteado da vida/ entreaberta/ Vivo na periferia/ passo no tempo/ com trejeitos d’homem/ Chamo-me Menino!/ Dou passas desde os cinco/ tenho doze chuvas/ uma cara operária/ sobre um corpo fininho/ cinco anos/ Sofro de raquitismo/ por comer com os olhos/ enquanto na garganta/ destilam bolas de saliva/ Meu peito nicotizado/ é mortalha e tantam/ arde e inflama/ como a chama! – Chamo-me Menino!”.

Tony Tcheka alude a jovens da geração que nos anos 1960, vivendo na cidade de Bissau, ia registando episódios diversos, apontamentos que inevitavelmente se prendiam com o sistema social e político. Iniciado o chamado processo de reconstrução nacional, Mário Pinto de Andrade deu acalento à publicação de muitos desses textos com o nome de Mantenhas para Quem Luta, antologia poética com 48 textos escritos em português, 1977. No ano seguinte seria editada uma segunda coletânea, a diversidade temática extravasava o colonialismo, a escravatura, a exaltação da liberdade e a esperança num futuro melhor. A investigador Filomena Embaló escreveu a propósito: “A questão de identidade não é apresentada como um fator de oposição entre o indivíduo e a sociedade na qual este evolui. Ela é analisada como um conflito pessoal do indivíduo, que consciente do seu desfasamento cultural em relação à sociedade de origem procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi afastado pela assimilação colonial”.

É neste contexto que aparecem a criança e a mulher, a par da terra libertada. Como Tony Tcheka escreve: “Criança trabalhadora, menino de rua, portador de deficiência, enfim, a realidade vigente que mais não é que o reflexo do seu próprio atraso de desenvolvimento, o que também coloca a infância à margem da saúde e da própria escola”. E cita vários poemas onde realçam os “meninus de kriason”, crianças entregues a supostos cuidados de famílias urbanas remediadas, com o fito de aprenderem a ser gente e a ter uma vida melhor. "São levadas para a cidade com o fito de aprenderem a vida. Entre o enunciado e a verdade ressalta a dimensão verdadeira da criança maltratada, a criança escravizada. Chegados à cidade ou noutros centros urbanos, na casa dos senhores, são confinados a um trabalho árduo e sem limites. São os primeiros a erguer-se, ainda antes dos raios de sol vencerem a madrugada, seguindo os caminhos das fontes para encher baldes e baldes de água e apanhar lenha para fazer crepitar o fogareiro e preparar o ‘matabicho’ dos senhores da casa e familiares. Nunca vão à escola e se falham nalguma labuta são severamente punidos. Há muitos deles, quando tudo se torna insuportável, só lhes resta a fuga para a rua, onde alimentam o batalhão dos Meninos da Rua".

Refere o autor que trinta anos depois, em 2010, foi lançada em Lisboa uma nova antologia juvenil da Guiné-Bissau, assinada por 23 jovens com poemas em português e kiriol. E o que se verifica? Que persistem os meninos de ontem e de hoje na poesia guineense, povoam espaços criativos, de igual modo também se regista a presença feminina. E Tony Tcheka questiona o que é a cidade dos meninos. “Sacudida ciclicamente por crises políticas e militares violentas, ela resiste e disponibiliza-se como palco das lides literárias que acontecem nos centros culturais nas embaixadas de países amigos”.
E o poeta continua:
“Quando os tempos são duros, trazendo lascas e bagos de dor, outras penas perscrutam a cidade dos meninos, atingido pelo macaréu da maldade, e os canhões orquestram valsas fúnebres que sentenciam a desertificação compulsiva da cidade (…) Durante mais de uma década, esta cidade de meninos não parou de ser fustigada e castigada por lâminas desembainhadas, amputando mentes, lascando corpos, suprimindo vidas”.

Falando de 2014, ano de eleição de José Maria Vaz, com todas as expetativas de reconciliação nacional, o poeta Tony Tcheka destaca o alívio que as promessas de paz trouxeram ao país, relembra que as garças e pelicanos fizeram a viagem de regresso ao seu habitat, que muitos pássaros voltaram a cantar o fim da madrugada, como se estivessem a anunciar um novo tempo de uma esperança resgatada. O mesmo poeta que exalta o sofrimento da criança também não esquece que a mulher surge como a fiel depositária dos valores e referências da idiossincrasia guineense. É camponesa, é pescadora, é mestre, professora. E deste modo termina a comunicação de Tony Tcheka:
“Nem sempre ser mulher é sinónimo de satisfação, ante adversidades de vária ordem instala-se a revolta que desagua na escrita de uma poeta: obrigado por esta dor/ por este desespero/ essa voz gigante/ ecoando em mim/ … / obrigada por este momento de angústia/ por esta raiva de ser mulher/ esta luz/ obrigado por este silêncio/ meu refúgio…/. Mas é também pelo verso de Odete Semedo que se percebe uma abordagem inovadora sintonizada com o género: … sou o rio que corre/ tropeçando em pedras e velas/ para chegar ao seu destino/ não sou mulher nem homem/ … apenas um pedaço deste chão.
Tanto tratadas, no entanto, são poucas as vozes femininas no universo literário guineense. Destacam-se: Odete Semedo; Saliatu Costa; Domingas Samy; Filomena Embaló; Teresa Montenegro; Eunice Borges; Mariana Ribeiro; Auzenda Nogueira; Filomena Correia; Gina Có; Irina Ramos e Rira Ié. Contudo, no segundo volume da antologia poética guineense, Traços no Tempo, participam já nove poetisas”
.

É este o registo que Tony Tcheka faz de crianças e mulheres na lírica guineense pós-independência. O outro documento que encontrei na Feira da Ladra intitula-se Retrato(s), o seu autor João Peres, edição do Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, é uma lindíssima romagem de saudade que iremos ver a seguir.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24034: Notas de leitura (1549): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15) (Mário Beja Santos)

sábado, 31 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22419: Os nossos seres, saberes e lazeres (462): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Fotogramos e adiamos, muitas vezes esquecemos, até àquele momento em que recebemos um severo aviso que pululam imagens a mais, então lá vamos lestos a preparar a limpeza. E quando tudo se espalha pelo ecrã do computador, rugimos de fúria, como foi possível ter tido tais deslumbramentos e tais omissões? E destarte aqui se têm preparado itinerâncias que metem culpabilização por ter omitido, esquecido ou negligenciado material captado para partilhar. Foi o que aconteceu, no caso concreto de hoje, com a visita, ainda decorriam as obras, nos passadiços da Ribeira de Quelhas, no Coentral Grande, Castanheira de Pera, em tempos idos, antes da coluna e das artroses se negarem à empreitada, aqui se subiu e desceu a contemplar este maravilhamento natural; e porque se visita a Feira da Ladra com uma certa regularidade nos alvores das manhãs de sábado, há um outro maravilhamento que nos acicata, olhar de frente o enfiamento entre a cidade e o Tejo, com Santa Apolónia pelo meio, aposta-se mais nestas imagens de inverno puro, este equívoco entre Lisboa noturna e o esplendoroso amanhecer, entre bruma e uma ficcionada camada de gordura; e visitara-se uma exposição sobre as moranças da Guiné e restaram imagens de outros lados do Museu de História Natural e da Ciência, até mesmo uma fotografia com sorrisos muito afetuosos; e guardara-se um remanescente de imagens de uma inesquecível exposição em Tomar. Avivam-se as saudades e partilha-se com os outros o que dessas saudades ficou, num estado de imensa cordialidade.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9)

Mário Beja Santos

Parte-se para um evento, leva-se a devida carga de curiosidade, casos há em que previamente se estuda o que se vai ver, é regular a vontade de partilhar o que se olhou e viu, aquilo que ganhou sentido e merece alguma cogitação. Será porventura o caso destas imagens em que houve, digo-o sinceramente, a determinação de as pôr em ordem e mostrá-las aqui, o diabo tece-as, entrepõem-se outros misteres, perde-se o rumo ao que se guarda na câmara, e acontece o dia em que se abre no ecrã do computador este caleidoscópio, sente-se inicialmente um amargo de boca, ora, mais vale tarde do que nunca, toca de cerzir ajuntamentos de imagens.

Visitei cheio de curiosidade as obras em fase de conclusão dos passadiços da Ribeira de Quelhas. Por aqui passei a partir de 1995, fiz o fim do ano a conhecer as aldeias serranas da Serra da Lousã, alguém me disse que devia ir ao Alto do Trevim e descer aos Coentrais, se tivesse gosto em ver um esplendor natural bem singular. O que aconteceu, ao tempo ainda a coluna vertebral me permitia, com calçado apropriado, calcorrear por fragas e empenas e desfrutar as cascatas cheias de água, um murmúrio quase genesíaco. E quando soube que íamos ter passadiços, logo ali fui espevitado pela curiosidade, isto salvo erro à volta de maio de 2020, vivíamos o primeiro aceso da pandemia. O concelho de Castanheira de Pera apostava numa oferta de lazer e turismo, e assim se decidira um passadiço de madeira, 1200 metros na margem direita da Ribeira das Quelhas, bem próximo do Coentral Grande. As obras tinham-se iniciado em dezembro de 2019 e chegaram a bom porto. Com muita alegria, encontrei no blogue Vagamundos, um texto de apresentação que com a devida vénia se reproduz:
“Ribeira das Quelhas, com as suas magníficas cascatas e lagoas, é uma das maiores maravilhas naturais da Serra da Lousã. Até há bem pouco tempo, para conseguir desvendar os seus segredos, era imperativo fazer um dos trilhos mais exigentes da Serra da Lousã, com um pouco de escalada à mistura, ou então seguir o curso da ribeira através da prática do canyoning. Mas temos boas notícias para si: no verão de 2020 nasceram os Passadiços da Ribeira das Quelhas, tornando muito mais acessível a visita a um dos locais mais belos e selvagens da Serra da Lousã.
A Ribeira das Quelhas nasce na Nascente dos Seixinhos, numa das vertentes da Serra da Lousã, conhecida pelo nome de Santo António da Neve, nome que recebeu por ser o lugar onde outrora haviam poços de neve, que serviam para armazenar a neve do inverno e conservá-la até ao verão, à imagem do que se fazia na Fábrica do Gelo do Montejunto. Posteriormente o gelo era levado para a Corte portuguesa em Lisboa, para que se pudessem refrescar durante os quentes verões lisboetas (sim, nessa altura já gostavam de comer sorvetes e beber um whisky “on the rocks”).
Desde a sua nascente, todo o percurso da Ribeira das Quelhas é feito por entre quelhas rochosas e penhascos de xisto e granito, resultando em idílicas cascatas, cada uma com o seu poço de água cristalina, que convida a inesquecíveis mergulhos nos dias quentes de verão. O enquadramento paisagístico é simplesmente brutal!”
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Sempre que me é possível, visito aos sábados ao amanhecer a Feira da Ladra, sonho em dar um pontapé e saltar uma pepita de ouro, o universo do bricabraque é extensível, vou sempre preparado para trazer os alfobres cheios ou vazios, só compro a gosto. Chegar ao amanhecer à Rua do Vale de Santo António, em pleno inverno, permite este espetáculo, é a noite iluminada, o Tejo ao fundo, o dia a clarear, com mais um quarto de hora aquele céu vai incendiar-se, será dia promissor, mas quem aqui tomou a fotografia ruma apressado à procura de pepitas, diademas sobre a forma de livros e toda aquela casta de traquitana que me adoça a existência, gostos não se discutem, o mais importante de tudo é sentirmos intimidade com esta pele que inventamos para decorar as nossas casas, para já não falar dos livros que são trampolins para a liberdade de espírito.
Fora visitar no Museu Nacional de História Natural e da Ciência uma exposição sobre as moranças da Guiné, era inevitável andar por ali a cirandar, foi o que aconteceu, entrei numa sala de aula do século XIX (aqui funcionou a Faculdade de Ciências, e aqui o incêndio devastador, em 1978, nos fez perder património de alto calibre). Contíguo à sala de aula, cujo teto me impressionou, funcionou uma zona laboratorial, só tenho pena da falta de luminosidade, e mais adiante captei um tema religioso, como, à saída da exposição, achei imensa graça a um desses temas de feira onde ainda hoje se podem tirar fotografias à la minuta e resolvi registar duas princesas sorridentes, a petiza estava bem feliz, exigira ver dinossauros e saía satisfeita.
Algures, entre novembro e dezembro de 2020, visitei a exposição Os Sítios da Pedra, no Complexo da Levada, em Tomar. Tudo me fascinou, considerei um achado a articulação perfeita encontrada por organizadores e artistas para pôr em diálogo o Nabão, uma construção multisecular, um aparato industrial, a pedra, a cantaria, o fascínio da escultura. Por ali cirandei para encontrar um móbil de todos estes sítios da pedra, naquele preciso lugar, com um curso de água a correr em permanência, um preciso lugar de origem templária e que marcou o fulgor da industrialização tomarense. Senti que aquela exposição era uma original sala de conversa de diferentes tempos, de diferentes misteres, operando silêncios mágicos, talvez uma brilhante homenagem a quem lava a pedra, desde a calçada à escultura artística. Muitos meses depois, deparei-me com estas imagens a que não dera destino e não hesitei em plantá-las aqui, saudando quem arquitetou esta bela exposição, mais a mais guardo Tomar no coração.

Ainda não é ponto final para as itinerâncias de onde respiguei estas imagens avulsas, vamos de seguida para o Jardim Botânico, foi visita distinta daquela que se fez ao Museu de História Natural e da Ciência, precisava de luz clamorosa para toda aquela riqueza vegetal, e vão ver como fui muito bem compensado.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22400: Os nossos seres, saberes e lazeres (461): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 7 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18496: Os nossos seres, saberes e lazeres (260): Uma visita à casa museu de um grande génio: Leal da Câmara (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Sempre considerei Tomás Júlio Leal da Câmara um génio no desenho de humor, levou uma vida fascinante e por razões de saúde da mulher, acolheu-se a um chão saloio, na Rinchoa, aquela casa museu é impressionante, espelha o seu talento transbordante, incluindo o mobiliário que desenhou e que se vendeu por muitas casas, tive a felicidade de todas as semanas me sentar numa sala de jantar que ele concebeu, era a casa dos meus padrinhos.
Tivemos três grandes desenhadores de humor que triunfaram fora de portas: Leal da Câmara, Emmerico Nunes e Vasco.
Dá gosto visitar esta casa museu, deferentemente conservada, sentir a atmosfera e lavar os olhos no museu onde estão exemplos concludentes de um desenhador a quem Paris abriu todas as portas, convém recordar que uma revista como L'Assiette au Beurre, onde ele desenhou as capas, era o topo das publicações humorísticas à escala europeia do seu tempo.

Um abraço do
Mário


Uma visita à casa museu de um grande génio: Leal da Câmara (1)

Beja Santos

Tudo começou na Feira da Ladra, deparou-se-me o livro “Ambições”, de Ana de Castro Osório, capa de Raquel Roque Gameiro. A memória prontamente remeteu para Leal da Câmara, protegido da escritora, inclusivamente afilhado de casamento. E daí memória viajou para casa dos meus padrinhos, em cuja sala de jantar primava o mobiliário que o nosso génio do desenho de humor da primeira metade do século XX concebeu, e móveis similares se podem encontrar na casa museu, situado na Rinchoa, no termo de Sintra, onde viveu desde os anos 1930 até à sua morte, em 1948. Meu dito meu feito, nesta mesma tarde vou matar saudades e ver alguns dos melhores desenhos de humor alguma vez feitos pelo talento português. Dito e feito.



Este aparador de sala de jantar, em exibição na Rinchoa, é luxuriante, típico da conceção de mestre de Leal da Câmara, com as ferragens em forma de coração, aquelas saliências pontiagudas e a pintura sobre vidro. Em casa dos meus padrinhos era diferente, enorme mesa de sala de jantar para 12 pessoas, dois armários junto à janela e numa das paredes um género de sofá tendo no meio um belíssimo vidro pintado com uma vista de Sintra. Dizia-me o meu padrinho que tinha ido com o pai dele a uma feira, mostrara-se maravilhado com aquela mobília, o industrial Agostinho Fernandes não se fizera rogado, comprara para o catraio todo o jogo da sala de jantar que ficara em armazém até aos esponsais. Tive pois a dita de conviver com este conjunto de Leal da Câmara até os meus padrinhos fecharem os olhos.




Consta da biografia deste génio que andou no curso de Agronomia e Veterinária, trocou-o pela profissão de jornalista, tinha um desenho acerado, fez do rei D. Carlos um bombo de festa, para fugir à captura judicial partiu para Espanha, onde também teve amargos de boca com as imagens que produziu da rainha Cristina, seguiu para Paris, tornou-se num dos mais famosos desenhadores de humor, todas as portas se lhe abriram a começar por aquela publicação de nomeada europeia L’Asiette au Beurre. Veio a guerra, regressou a Portugal, foi professor de desenho no Norte e em 1920 foi colocado na Escola Industrial de Fonseca Benevides, onde ensinava lavores femininos. Casa nesse ano com Júlia de Azevedo, Ana de Castro Osório apadrinha-os, em 1923 o casal vai para o campo, D. Júlia precisava de bons ares, compram uma casa saloia que vão aprimorar. Aqui estamos, por aqui deambulou o génio, aqui estão os seus sinais de vida, patentes na ornamentação. Dá gosto andar aqui à volta, tentar perceber as intervenções de alguém que sabia mais do que desenhar.





Primeiro o exterior, houve grandes obras de beneficiação em 1965, quando D. Júlia doou a casa à Câmara Municipal de Sintra com o encargo de nela funcionar um pequeno museu. Doou praticamente todo o recheio da casa, pinturas, gravuras, desenhos, aguarelas, guaches e a documentação do artista. Em 1992 houve obras de restauro e recuperação integral do edifício, mestre Leal da Câmara concebera um jardim estilo francês, não o viu nascer mas ele cá está, a recuperação é que conta e o bom gosto que preside a toda esta conservação do seu devoto zelador, Élvio Melim de Sousa, para que conste.


Um ano antes de falecer, Leal da Câmara fez uma série dedicada aos aliados vitoriosos, tenho sérias dúvidas que o generalíssimo Estaline tenha sido exibido em público e muito menos publicado em revista ou jornal. Confesso que desta série é Winston Churchill quem mais me empolga, pela economia do traço, naquelas escassas linhas estão todos os sinais iconográficos, o lacinho, a cartola, o charuto, as feições de bulldog carregadas de energia e dois olhos faiscantes sob pálpebras pesadas. Magnífico!

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18455: Os nossos seres, saberes e lazeres (259): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (8) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17018: Notas de leitura (926): "Diálogos Interditos, A Política Externa Portuguesa e a Guerra de África", II Volume, por Franco Nogueira, Editorial Intervenção, 1979 (Mário Beja Santos)

Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Durante mais de oito anos, o ministro Franco Nogueira procurou, raramente com sucesso, defender a ideia imperial junto de aliados, como os EUA, a Grã-Bretanha, o Brasil e a França. Neste volume vemos como os EUA queriam fazer bons negócios a propósito de matérias-primas vitais como a tantalite, e Franco Nogueira diz que a China e a URSS pagam melhor; a tensão com a Santa Sé, que terá o seu pico alto com a audiência que Paulo VI concederá aos líderes dos movimentos independentistas, em pleno Vaticano; estes diálogos deixam bem claro como nos íamos aproximando e aprofundando relações com a África do Sul, como a NATO e os próprios Estados Unidos exigiram e conseguiram a retirada dos F 86 da Guiné.
Prosa magnífica, ficamos com a imagem de um lutador incansável que tem poucas ilusões quanto aos apoios dos países ocidentais perante a progressão inabalável da luta armada na África Portuguesa. Não poucas vezes nestas conversas vários diplomatas observam que aquele esforço de guerra não era eterno, haveria que encontrar outras soluções.

Um abraço do
Mário


A política externa portuguesa e a guerra de África: Franco Nogueira

Beja Santos

Não há ida à Feira da Ladra em que não traga uma novidade com incidências colaterais guineenses. Remexia livros numa larga bancada quando me chamou à atenção o título: "Diálogos Interditos, A política externa portuguesa e a guerra de África", II Volume, por Franco Nogueira, Editorial Intervenção, 1979. Franco Nogueira foi ministro dos Negócios Estrangeiros desde 4 de Maio de 1961 a 6 de Outubro de 1969, o mesmo é dizer que viveu os anos cruciais da evolução da guerra, depois afastou-se de Marcello Caetano. Este volume comporta os anos de 1964 a 1969, nele estão reunidos diálogos com embaixadores acreditados em Lisboa, desde o Núncio Apostólico até aos diplomatas da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, mas também com grandes do mundo, como Dean Rusk e até Nixon. Franco Nogueira escreve primorosamente, foi aliás um promissor crítico literário antes e depois de iniciar a sua carreira diplomática. Um volume desta natureza, por definição, não tem contraditório, são conversas em privado em que os diplomatas tomam notas que podem dar origem a relatórios canalizados para as vias competentes. Mas o que releva destas conversas, em que Franco Nogueira obviamente brilha, é a demonstração de que estamos perante um diplomata muito bem equipado e muito bem documentado. Os temas dominantes passam pela guerra de África, pelos negócios que certos aliados do Estado Novo pretendiam fazer em Angola e Moçambique, temos também a reação da política portuguesa ao progressivo isolamento internacional, ao protesto da diplomacia portuguesa pelo que se passava fundamentalmente em Londres, Washington e Nova Iorque, mas há largas referências ao azedume de Salazar face às mudanças políticas no Vaticano. E deposita-se muita esperança no Malawi e África do Sul, Salazar passava por cima do apartheid, queria aliados fortes na África Austral.

Em 1964, Franco Nogueira protesta porque Washington tem conversações com Holden Roberto, o embaixador dos EUA em Lisboa também protesta com as incursões das tropas portuguesas do Congo. As conversas com o Núncio Apostólico são pouco amáveis: o bispo do Porto não aceita lugares em qualquer parte do mundo, o que incomoda Salazar; o bispo da Beira, D. Sebastião Soares Resende é outro incómodo, Monsenhor Furstenberg, o Núncio, procura descansar o ministro, argumentando que a igreja portuguesa aceita o regime político português e aproveita a circunstância para dizer que há uma lacuna no Episcopado, não existe uma grande figura filosófica e doutrinal. Ficamos a saber que Monsenhor Furstenberg não gostava do General De Gaulle e perguntava-se se na realidade a política dos EUA não era já orientada por uma profunda embora disfarçada infiltração comunista na Administração norte-americana. O Estado Novo torcia o nariz ao trabalho apostólico de João XXIII e estava em rota de colisão com Paulo VI: “Falando de infiltração comunista, dirige a conversa sobre política de João XIII, e as suas encíclicas, e perguntei se Sua Santidade Paulo VI não estaria tentando travar os perigos sobrevindos”. Segue-se uma conversa de mercearia política e de negócios chorudos entre Franco Nogueira e o Almirante Anderson, embaixador dos EUA: “Alusão de Anderson ao caso da tantalite de Moçambique. Aleguei de novo as nossas razões e sublinhei a diferença de preços: os americanos pagam cerca de 4.500 dólares, os chineses e os russos cerca de 9.000. Anderson vincou a questão de princípio. Comentei que os princípios pareciam jogar sempre contra nós. Anderson falou de auxílios à metrópole, que poderiam ser anulados. Repliquei vivamente que não sabia de nenhuns, e além disso não podia admitir que o governo americano considerasse Moçambique parte integrante da nação portuguesa só quando lhe convinha”. Este ano de 1964 revela tensões agudíssimas entre o Estado Novo e a Santa Sé. A ser verdade tudo quanto Franco Nogueira escreve o regime manifesta permanentemente hostilidade ou desconfiança à política da Cúria.


Estamos em 1985, Franco Nogueira é recebido em Washington por Dean Rusk, está presente Robert MacNamara, Secretário da Defesa. Obviamente que é o continente africano que interessa ao todo poderoso Dean Rusk, questiona longamente Franco Nogueira, este replica queixando-se das pressões para retirada dos aviões F86 da Guiné, o ministro português fala da defesa do Ocidente e da política ambígua dos EUA que consente auxílios aos inimigos de Portugal e depois deseja instalações em Cabo Verde para o auxílio em voos especiais.

E no fim do ano começa o problema rodesiano, a Grã-Bretanha insiste no embargo de petróleo para a Rodésia. Nova queixa de Franco Nogueira, depois de apontar para a destruição do regime de Ian Smith, que seria muito vantajoso para os interesses portugueses: “Comentei que já estávamos um pouco fatigados com uma visão dos nossos interesses que consistia sempre em satisfazer os interesses ou as conveniências do atual governo britânico. Nós não aprovávamos nem reprovávamos o governo de Ian Smith: mas não estávamos convencidos de que Ian Smith fosse para nós um perigo. Dizia-lhe francamente o seguinte: em todo este problema da Rodésia nunca escutáramos do governo de Londres uma só palavra de preocupação, de salvaguarda dos interesses portugueses”. Começa aqui um formidável jogo do gato e do rato, vale a pena ler toda esta prosa para perceber como a diplomacia é também arte da dissimulação, era patente que o regime português apoiava aquele aliado racista que constituía um tampão contra infiltrações da guerrilha, anda tudo à volta do Porto da Beira, em Abril de 1966 a pressão vai crescer com a vinda de Lord Walston que pretende receber garantias formais do governo português de que não cede combustível a Ian Smith. São dezenas e dezenas de páginas e argumentos e contra-argumentos, é um prazer ler toda esta encenação da esgrima entre diplomatas.

Em 1967, Franco Nogueira recebe Botha, ministro da defesa da África do Sul, discute-se o bloqueio da Beira, a política soviética, o apoio incondicional da África do Sul à presença portuguesa. Nesse mesmo ano, Nogueira desloca-se a Pretória o primeiro-ministro é bem claro: “O combate que Angola e Moçambique travavam era parte do conjunto, e este era constituído por toda a África meridional. Não tinha a menor dúvida em o confessar e em o afirmar: a luta de Portugal em Angola e Moçambique era absolutamente vital para a República da África do Sul. A África do Sul não poderia permitir-se uma derrota portuguesa naqueles territórios. A África do Sul estava pronta a auxiliar-nos com quanto pudesse, logo e na medida que o solicitássemos. E mais: a África do Sul estava preparada a intervir militarmente, com forças sul-africanas, para restabelecer a situação, se esta se tornasse grave e nós o pedíssemos”. Franco Nogueira, na resposta, diz ser-nos desnecessário firmar uma aliança militar formal entre os dois governos.

Documento da maior importância para conhecer os bastidores da diplomacia portuguesa no momento em que a guerra de África era a prioridade das prioridades.
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Notas do editor

Último poste da série de 30 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17004: Notas de leitura (925): "Os Alferes", por Mário de Carvalho, Editorial Caminho, 1989; e Editores Reunidos, 1994 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16552: Notas de leitura (885): Rescaldo de uma ida à Feira da Ladra, 17/9/2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,


Foi uma manhã em cheio, já nem falo de tralha avulsa como chávenas ou molduras, encontrei "Mar, Além Mar, Estudos e Ensaios" de Avelino Teixeira da Mota, publicados entre 1944 e 1947 e editados em 1972 pela junta de investigações do Ultramar, inclui trabalhos fundamentais deste grande mestre da historiografia guineense como é o caso da sua incontornável investigação sobre o descobrimento da Guiné.
V
erdadeira surpresa foi a brochura elaborada em 1969 sobre a Guiné alusiva ao Ano Internacional do Turismo Africano e onde se escreve, candidamente, que há excelentes oportunidades para investir na Guiné.
E continuamos a desfilar fotografias de uma determinada unidade militar que por ali andou entre 1959 e 1961, gozando as delícias da paz.

Um abraço do

Mário




Rescaldo de uma ida à Feira da Ladra, 17/9/2016

por Beja Santos


1969 foi o Ano Internacional do Turismo Africano e a Agência Geral do Ultramar produziu uma brochura alusiva, mostrando as atrações turísticas, comunicações, formalidades para a viagem, onde ficar, onde obter informações, não deixando de mencionar que a província tinha boas perspetivas para investimentos. Não resisto a mostrar-vos a praça Honório Barreto e um belo DS a introduzir um toque de vanguardismo; mais adiante temos o bar da Associação Comercial e Industrial de Bissau, projeto arquitetónico que foi muito acarinhado ao tempo e onde o pintor José Escada andou a trabalhar na decoração; e temos uma imagem da Praia das Escadinhas em Bubaque, seguramente estão ali militares e famílias a deliciar-se em águas tépidas.





Mais algumas fotografias referentes a uma unidade militar que andou pela Guiné entre 1959 e 1961. Impressiona a qualidade da fotografia, trata-se, como é óbvio, de imagens pacíficas, não se vislumbra mais do que curiosidade. Felizmente, as imagens têm datas e alguma explicação. Em 16 de Junho de 1960, temos uma gazela na granja, fica a incógnita se se tratará da Granja de Pessubé, onde trabalhou Amílcar Cabral de finais de 1952 a 1954. Nesse mesmo dia temos dois oficiais com poilões imponentes e escreve-se: “A. J. com o alferes Rui Cardoso junto de duas árvores tipo Guiné, perto da carreira de tiro nova”; estamos agora em Cacheu, a 2 de Fevereiro e diz a legenda que se experimenta remar numa canoa indígena junto ao cais fluvial de Cacheu; dias mais tarde, a 26 de Fevereiro, temos soldados brancos a piscarem à cana enquanto das mulheres indígenas passam por ali transportando garrafões de aguardente de cana; alguns dias antes, a 18, o fotógrafo está em Varela e regista um quadro pintado na sala de jantar do restaurante, menciona-se que a sala se encontra num alpendre género esplanada com largas vistas para o mar; e em 11 de Março temos a vista parcial do barco de guerra francês Le Bourguignon, ancorado no Pidjiquiti; e por último temos um jovem tenente a pôr a sua correspondência na caixa do correio. Subsistem dúvidas se este é o fotógrafo, é um jovem oficial que aparece em repetidas outras imagens, de um modo geral neutras e igualmente o jovem oficial guarda um ar tristonho, e veste um camuflado que, em rigor, não devia ter sido usado entre 1959 e 1961, na Guiné. Bom seria que alguém identificasse esta unidade militar, se bem que eu não escuse ir bater à porta do Arquivo Histórico-Militar.







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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16540: Notas de leitura (884): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 - Testemunho de Carlos de Matos Gomes (2) (Mário Beja Santos)