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sexta-feira, 13 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20730: Casos: a verdade sobre... (8): O campo penal da Ilha das Galinhas e o Campo de Trabalho de Chão Bom (ou Tarrafal II)


Cabo Verde > Ilha de Santiago > Concelho de Tarrafal > Chão Bom ("Txon Bon") >  Julho de 2018 > O antigo antigo Campo Penal do Tarrafal (1936-1954) e depois Campo de Trabalho de Chão Bom (1961-1974) > Hoje Museu da Resistência > Entrada exterior


Cabo Verde > Ilha de Santiago > Concelho de Tarrafal > Chão Bom ("Txon Bon") >  Julho de 2018 > O antigo antigo Campo Penal do Tarrafal (1936-1954) e depois Campo de Trabalho de Chão Bom (1961-1974) > Hoje Museu da Resistência > Entrada interior

Fotos (e legendas): © Hélder Sousa (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Lisboa > IndieLisboa'10 > 7º Festival Internacional de Cinema Independente > Culturgest > 23 de Abril de 2010 > Sessão de estreia do filme "Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta", produção e realização de de Diana Andringa (Portugal, 2009, 90'' > Não se trata de fotogramas mas de imagens obtidas por máquina fotográfica durante a exibição do filme (com a devida vénia à realizadora a quem não pedi expressamenete autorização...), e editadas por mim >  Reprodução da Portaria nº 18539, de 17 de junho de 1961, que cria o Campo de Trabalho de Chão Bom... (Não se diz aonde, e muito menos há referência ao antigo campo do Tarrafal, encerrado em 1954...Deixa-se para o "regulamento", a aprovar pelo Ministro do Ultramar, os detalhes da sua localização, organização e funcionamento.)



1. Como é sabido (, antes do 25 de Abril, poucos o sabiam...), a "colónia penal de Cabo Verde", no Tarrafal,  ilha de Santiago, foi criada em 1936, e ficou tristemente conhecida como "campo da morte lenta". Surge na sequência da grande reforma do sistema prisional de 1936 (Decreto-Lei n.º 26 539, de 23 de Abril de 1936), da autoria do professor doutor José Beleza dos Santos, da Unversidade de Coimbra. (Nasceu em Vila da Feira, em 1885, morreu em Lisboa, 1962).

Era destinada a presos políticos, opositores do regime do Estado Novo... Dez por cento dos presos, de um total de 340 que por lá passaram, entre 1936 e 1954, morreram, na sequência das duras condições de detenção: sevícias, maus tratos, alimentação, alojamento, higiene, cuidados sanitários, isolamento, clima, etc.

Eram nossos concidadãos, de diferentes opções político-ideológicas (comunistas, anarquistas, republicanos...), sobretudo "arraia-miúda", como diria o cronista Fernão Lopes (c. 1380/90 - c. 1460), o nosso primeiro historiógrafo... Eram marinheiros, estivadores, operários, artesãos, empregados de escritório e de comércio, etc., dos mais diversos pontos do país, da Marinha Grande a Vila Nova de Foz Côa, de Lisboa a Castro Verde, de Almada a Vila Nova de Gaia.
Apesar da vitória das "forças democráticas", os "Aliados", em 1945, sobre as potências do Eixo (os "regimes nazifascistas" da Alemanha, Itália e Japão...), o campo (de concentração) do Tarrafal só foi fechado... quase vinte anos depois, em 1954!... Dizem que por "pressão internacional"...


 2. Vai reabrir, todavia, na sequência da guerra colonial, que se inicia em Angola, em 1961, mas com outro nome, um eufemismo "Campo de Trabalho do Chão Bom" (CTCB) (sic)... Desta vez para detenção dos "terroristas angolanos" (, como eram tratados, na época, os nacionalistas que lutacam contra o colonialismo português).
Haverá, no entanto,  mais campos para detenção de nacionalistas africanos durante a guerra do ultramar, e com condições de detenção bem mais duras, e de que pouco se fala entre nós: Missombo e São Nicolau, em Angola; Machava e Madalane, em Moçambique... Na Guiné, já existia a "colónia penal  e agrícola" da Ilha das Galinhas (, fundada em 1934) (*)... 
No Tarrafal, ou melhor do Campo de Trabalho de Chão Bom, na 2ª fase, dita "africana (1961-1974), morreram apenas 3 homens, por doença, incluindo 2 guineenses, com sequência, muito provavelmente,  dos "maus tratos" recebidos na altura da sua prisão pela PIDE...
Já em São Nicolau, no Sul de Angola, e segundo a historiadora Dalila Mateus ("A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974", Lisboa, Terramar, 2004), terão morrido "de doença", só entre 1969 e 1972, "bem mais de uma centena de pessoas". Em 1972, em Angola, em São Nicolau havia 123 presos, enquanto no Missombo estavam 874.

Há quem diga que o Tarrafal, nesta fase, não era assim tão "mau"... (Chamemos-lhe Tarrafal II).

O jornalista e investigador cabo-verdiano, José Vicente Lopes, que já se cruzou connosco no nosso blogue (**), tem uma obra de referência sobre o Tarrafal: "Tarrafal - Chão Bom; memórias e verdades", 2 volumes, Praia, IIPC - Instituto de Investigação e do Património Cultural, 2010.  Ainda não não conhecemos o original, mas também acesso a uma extensa recensão bibliográfica, feita pelo  José Pedro Castanheira (Expresso, revista Atual, 14 de agosto de 2010: "Tarrafal: Verdades e mentiras do Campo de Trabalho de Chão Bom").
Também é desta ano, 2010, o documento de hora e meia produzido e realizado pela Diana Andringa "Tarrafal,  Memórias do Campo da Morte Lenta".  (Vd. poste P6204, de 21 de abril de 2010.)


2. Os "deportados" foram chegando ao CTCB / Tarrafal, em várias levas, a última em 1972 (14 elementos do MPLA).

Na primeira leva, em 1961,  vieram angolanos (n=107), de vários movimentos, com destaque para o MPLA.... Todos eles "condenados em tribunal"... Numa segunda leva, em 4/9/1962, vieram os pobres dos guineenses (, os 100, para ser um número redondo), mesmo sem julgamento, que já não havia nem tempo, nem paciência, nem juízes, nem leis para os julgar... Já andava tudo nervoso em Bissau e em Lisboa...Nessa centena de "deportados" guineenses, estava também o Inácio Soares de Carvalho (***)...

Os guineenses foram alojados numa ala separada. Em 1964 saíram cerca de 60 guineenses, sem qualquer culpa formada nem julgamento, sendo os restantes libertados em 30 de Julho de 1969, no âmbito da política "Por uma Guiné Melhor", do Governador Geral e Com-Chefe António Spínola.

Recorde-se que, ao todo, Spínola mandou libertar 92 presos políticos, incluindo um dos históricos do PAIGC, Rafael Barbosa (1926-2007), detido na colónia penal da Ilha das Galinhas, nos Bijagós (, nunca tendo sido "tarrafalista": não se sabe porquê, mas a PIDE quis tê-lo à mão, no território da Guiné)...  Foi escolhido para discursar no 10º aniversário do Massacre do Pi(n)djiguiti, em 3 de agosto de 1969, agradecendo em seu nome e dos  outros prisioneiros o gesto de Spínola. Esse momento foi terrível para o antigo nº 2 do PAI(GC). O labéu de "colaboracionista" colou-se à sua pele. Será julgado e condenado à morte depois da independência, pena que lhe será comutada por 'Nino' Vieira,

Antes de serem soltos do CTCB (Tarrafal II), parece que tinham que responder a um questonário e fazer uma declaração de confissão de arrependimento", e em que se comprometiam a nunca mais se envolver em atividades contra a segurança do Estado.... Três deles ter-se-ão recusado a responder, incluindo Aristides Barbosa e Mário Mamadú Turé... Curiosamente, por coincidência ou não,   em janeiro de 1972,  em Conacri, estes dois últimos irão figurar  no grupo de dissidentes do PAIGC que estarão no complô para prender e/ou assassinar Amílcar Cabral.

Mas também estiveram lá, no CTCB, 20 cabo-verdianos, militantes do PAIGC... Os últimos presos foram libertados com o 25 de Abril de 1974, aliás um semana depois em 1 de Maio. Mas o PAIGC, ao que escreve o csbo-verdiano José Vicente Lopes,  cedo se apoderou do CTCB e meteu lá dentro, passado algum tempo,  70 "opositores", militantes de outros movimentos (como a UDC e UPICV)... (Às vezes, até parece que a História se repete...).
Caricatas são as visitas que a Cruz Vermelha Internacional faz ao  CTCB,  por duas vezes, em fevereiro de 1969 e em fins de 1971... Os seus delegados parece que ficam com uma boa impressão do lugar... Aquilo, afinal,  não era "assim tão mau": os presos até tinham algumas "regalias", como idas semanais à praia, sessões de cinema, biblioteca (oferecida pela Fundação Calouste Gulbenkian), consultas no hospital da cidade da Praia, possibilidade de prosseguir os estudos e fazer exames, e até de escrever livros como o "Luuanda", do Luandino Veira... (***)

Dos 238 presos angolanos, guineenses e cabo-verdianos que estiveram no Tarrafal, na 2ª fase (1961-1973), apenas menos de um quarto (cerca de 50) estavam ainda vivos, por ocasião do Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, que teve lugar entre 28 de Abril e 1 de Maio de 2009.

Mas, segundo José Vicente Lopes, o autor do livro, em 2 volumes,  "Tarrafal - Chão Bom; memórias e verdades", 85 a 90% dos guineenses "tarrafalistas" já tinham morrido. Foi o caso do Inácio Soares de Carvalho (,cabo-verdiano, nascido em 1916, mas levado em criança para a Guiné, com os seus pais): voltou para a Praia, sua terra natal, em finais de 1970, cinquenta e tal anos depois, muito provavelmente desgostoso com (e ignorado por) o seu partido; morreu em 1994. (****)  _______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12383: Memória dos lugares (257): Ilha das Galinhas em 1968 (José António Viegas)

(...) Sobre a "colónia penal agrícola" (sic) da Ilha das Galinhas, vd.

Casa Comum > Arquivos > Arquivo Amílcar Cabral

Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07063.036.028
Título: Promulgação de medidas de assistência geral pelo Governo da Colónia da Guiné
Assunto: Cópia do Diploma Legislativo n.º 884 (Boletim Oficial n.º 44, de 29 de Outubro de 1934) sobre a promulgação de medidas de assistência geral pelo Governo da Colónia da Guiné. Instituição do reformatório de Menores e Asilo da Infância Desvalida de Bor; criação da Colónia Penal Agrícola da Ilha das Galinhas.
Data: Segunda, 29 de Outubro de 1934
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Operação de Cadigue / com. em 1-3-1963 / Notas gerência mercearias.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral (...)

Citação:
(1934), "Promulgação de medidas de assistência geral pelo Governo da Colónia da Guiné", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42954 (2013-12-4)

 (**) Vd. postes de

15 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14150: Casos: a verdade sobre... (1) Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 (Virgínio Briote / Amadu Djaló / José Vicente Lopes)

15 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14151: Casos: a verdade sobre... (2): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte II (Virgínio Briote / Rachid Bari, ex-sold trms, CCAÇ 21, Bambadinca, 1973/74, natural do Quebo e residente em Portugal)

17 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14156: Casos: a verdade sobre... (3): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte III (Luís Graça / José Vicente Lopes / José Manuel Matos Dinis)
e
18 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14160: Casos: a verdade sobre... (4): Jaime Mota (1940-1974), combatente do PAIGC, natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde, morto em 7 de janeiro de 1974, em Canquelifá por forças da CCAÇ 21 - Parte IV: "Guerra é guerra, meu irmão", dizia-me em 2008 o antigo guerrilheiro Braima Cassamá que reencontrei em Guileje (José Teixeira)

Vd. também postes de:
3 de agosto de  2012 > Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)

6 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)

10 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10247: Notas de leitura (390): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (3) (Mário Beja Santos)

(***) Último poste da série > 27 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14194: Casos: a verdade sobre... (7): O tema da Guerra da Guiné a imputar-nos a execução de detidos, de prisioneiros e da mutilação dos cadáveres voltou à Tabanca Grande (Manuel Luís Lomba)

(***) Vd. poste de 9 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20717: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - V ( e última) Parte (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

sábado, 13 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19098: Agenda cultural (651): Lisboa, Casa do Alentejo, dia 20, sábado, 15h30: Homenagem a Sofia Pomba Guerra (1906-1976), farmacêutica, professora, feminista e destacada opositora ao regime de Salazar, em Moçambique e Guiné-Bissau




[Maria] Sofia Pomba Guerra (1906-1976)


1. Mensagem de Luís arvalho, com data de 12 do corrente, às 10h52

 Assunto -Homenagem a Sofia Pomba Guerra: destacada opositora a Salazar na Guiné


Caro Luís Graça, bom dia

Venho convidá-lo a participar neste evento e pedir-lhe ajuda na divulgação. (*)

Agradecendo desde já a sua atenção

Com os melhores cumprimentos


Luís Carvalho


2. Homenagem a Sofia Pomba Guerra (1906-1997): destacada opositora a Salazar na Guiné Bissau

No próximo dia 20 de Outubro, às 15h30, a Casa do Alentejo em Lisboa promove uma homenagem a Sofia Pomba Guerra, com intervenções dos investigadores Diana Andringa, Carlos Lopes Pereira e Luís Carvalho.

A actriz Daniela Rosado lerá poesia da escritora moçambicana Noémia de Sousa [1926-2002]

O programa inclui música africana e alentejana, confraternização e beberete.

Sofia Pomba Guerra (Elvas, 1906 – Cascais, 1976): farmacêutica e professora, foi uma destacada feminista e resistente anti-fascista em Moçambique e na Guiné.

O seu apoio à luta contra o colonialismo foi enaltecido por Amílcar Cabral e pelos primeiros presidentes de Cabo Verde e Guiné Bissau, Aristides Pereira e Luís Cabral. (**)

Foi presa política em Moçambique e em Portugal (1949/50).
_______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19051: Agenda cultural (650): Homenagem na Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, dia 29, aos bonecos e aos bonecreiros de Estremoz, uma arte recentemente classificada como "património cultural imaterial da humanidade"

(**) Vd. poste de 28 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17520: (De) Caras (87): Maria Sofia Pomba Guerra (1907- c.1970), mais uma "desterrada política", tal como Fausto Teixeira, elogiada pelos históricos dirigentes do PAIGC


sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18842: In Memoriam (318): José Augusto Rocha (1938-2018), ex-alf mil, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65... Um camarada cuja tribuna só podia ser "político-ideológica"...


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. Alguém chamou a esta subunidade, que também participou na Op Tridente (jan/mar 1964), "a esquálida e esgroviada Companhia de Caçadores 557". Por detrás desta foto estão cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa nem tomar banho, e com água racionada para beber

Legenda: a começar da esquerda para a direita o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Radiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. mAs barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia.

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mandou-me o José Colaço um email, ontem, às 13h32,  a dizer telegraficamemte o seguinte:

"Morreu o Dr. José Augusto Rocha, ex- alferes miliciano e 2º comandante da companhia de CCAÇ 557, 1963/65."

Os jornais de hoje trouxeram de imediato a triste notícia (Público, Expresso, Diário de Notícias...).

O título do Expresso, digital, na secção Sociedade, dizia, às 13h28:

"Morreu José Augusto Rocha, um dos advogados que defenderam presos políticos". [De entre os inúmeros presos públicos que defendeu, conta-se o nome da Diana Andringa, membro da nossa Tabanca Grande.]

E acrescenta-se:

"Defendeu presos políticos no tempo em que ir a Tribunal Plenário era um risco que exigia coragem e vontade de ser solidário. Licenciou-se na Faculdade de Direito de Coimbra onde viveu a Crise Académica de 1962. O Senado da Universidade expulsou-o por ter organizado um encontro de estudantes contra as ordens do ministro da Educação. Partiu esta madrugada, aos 79 anos."

Em dezembro passado, o presidente da República tinha-o condecorado com a Ordem da Liberdade no Grau de Grande Oficial. Nasceu em Viseu, em 1938. Morreu antes de completar os 80m anos. Vai ser  cremado hoje, sexta-feira, dia 13, no Cemitério dos Olivais, às 17h.

Mais algumas notas biográficas sobre este nosso camarada:

(i) foi director da Associação Académica de Coimbra, em 1962;

(ii) foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62;

(iii) esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses;

(iv) cumpriu o serviço militar e foi mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano (CCAÇ 557, 1963/65);

(v) termina a licenciatura em direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965:

(vi) inscreve-se  na Ordem dos Advogados, em 13 de agosto de 1968;


 2. Blogue "Caminhos da Memória" > Segunda feira, 19 de outubro de 2009 >   Memória breve da história da Guiné > Um texto de José Augusto Rocha

 [Excertos, com a devida vénia...] (*)

A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda» (...), adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. (...)

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo. Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo Monteiro, filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva.

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa. Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [CCAÇ 557], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial (...).

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesa, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque. Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafe, lamaçais que, na maré baixa,  chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafe, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome [Rogério] Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens,  totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió. Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.

 (...) Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões [F 86] [no original, Fiats lapso do autor], que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido. Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.(...)


3. O José Augusto Rocha e o nosso blogue:
O alf mil Rocha, em Bissau, 1964...
A única foto que o Zé Coleço
tem deke...


(i) Comentário do nosso editor Luís Graça:

(...) Conheci, pessoalmente, o  José Augusto Rocha em 15 de outubro de 2009 (**).  Foi-me apresentado pela Diana Andringa, na estreia, no Doclisboa 2009, do seu filme Dundo, Memória Colonial.

Tivémos um conversa cordial, mas  dise-me logo que não era homem de blogues nem pretendia "alimentar" o nosso banco de memórias...  De resto não gostava de falar da Guiné e da guerra, a não ser no contexto das suas memórias políticas que estava a (ou tencionava) elaborar.. Falou-me do texto que estava a escrever (e de que reproduzimos uma parte substancial), para o blogue "Caminhos da Memória", uma promessa que tinha feito, "a título excepcional"... Um dos autores que alimentava esse blogue era justamente a Diana Andringa.

Falou-me por alto da Op Tridente, e de vários nomes do seu tempo:  Cavaleiro Ferreira, Barão da Cunha, Saraiva...  Fiquei a saber, por outro lado, que, na altura, em 1962, aquando da crise académica, e quando foi ele expulso de todas escolas do país, tinha a frequência do 5º ano do curso de licenciatura em direito... Só depois de regressar da Guiné, em finais de 1965, é que pôde completar o curso.

(ii) O José Colaço, nosso grã-tabanqueiro, ex-sold  trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) acrescentou o seguinte a respeito do nosso camarada José Augusto Rocha:

(...) O ex-alferes miliciano Rocha era o meu comandante de pelotão, o 4º,  ou seja,  o pelotão de armas pesadas. Ele era também o 2º comandante da companhia.

Guardo dele, durante a nossa estada na guerra da Guiné, bem como de todos os oficiais e sargentos e restantes camaradas, as melhores recordações. Mas, para este ambiente funcionar como uma máquina bem oleada, houve, e ainda há, um homem que, além de militar com a sua patente de capitão, via no seu subordinado, no homem que estava à sua frente, outro ser humano como ele... Este homem dá pelo nome de João da Costa Martins Ares, hoje coronel reformado.

O Rocha possivelmente não te contou esta passagem: no início da nossa comissão é recebida uma mensagem dos serviços da PIDE com o seguinte teor, mais ou menos: que  o capitão deunciasse o dia a dia do alferes Rocha pois ele era elemento a ser vigiado na sua conduta diária. As palavras não eram exactamente estas mas o sentido era vigiar o Rocha e informar os serviços da PIDE.

O capitão toma a seguinte resolução: chama o alferes Rocha, tem uma conversa séria de homem para homem, mostra-lhe a mensagem; o Rocha, por sua vez, conta-lhe todo o seu passado politico de oposicionista ao governo de Salazar, mas dá um voto de confiança ao capitão, o qual poderá contar com ele e, mais, que nunca seria atraiçoado.

Deste modo, o capitão conseguiu mais um amigo para levar a bom porto aquela nau durante vinte e três meses. (...) (**)

(iii)  Mensagem de email do José Augusto Rocha para o nosso editor Luís Graça, com data de 22/10/2009 :

(...) Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.

E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da avi(ação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió! ...) (***)

 (iv) Três dias antes, a 19 de outubro de 2009, o José Augusto Rocha tinha esclarecido, sem qualquer margem para dúvidas, qual era a sua posição face ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande,  razão por que não faria sentido eu vir agora decidir,  a título póstumo, sentá-lo à sombra do nosso poilão... Seria trair a sua confiança, desrespeitar a sua vonatde e fazer batota, violando as nossas próprias regras do jogo... O José Augusto Rocha nunca faria nem fará parte do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 

(...) Quanto ao seu blogue, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e, muitas vezes, nessas manifestações de convívio não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir! 

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória (...) (***)

(v) O último email que troquei com ele, nestes últimos 3 anos, em 8 de maio de 2015, e em que já nos tratávamos por tu, tirou-me as derradeiras ilusões sobre a possibilidade de ele vir um dia aceitar o nosso convite para se juntar ao nosso blogue, enquanto coletivo de ex-combatentes da guerra da Guiné. A sua posição sobre a guerra colonial era firme, coerente e definitiva, aos 76 anos, e só tive que respeitá-la... Tenho hoje pena de, não obstante a nossa  troca de emails, nunca termos podido, em tempo útil, ou seja, em vida, sentarmo-nos, à mesa para  uma conversa mais franca, "tête-à-tête", olhos nos olhos, sobre a nossa experiência enquanto combatentes e as nossas posições político-ideológicas face à guerra colonial:

(...) Quanto ao mais, tudo é mais difícil e diria mesmo impossível. A minha posição em relação à guerra colonial, a única que  entendo  possível, urgente e inadiável, é a sua denúncia activa, nela tendo um grau de responsabilidade incontornável, todos quantos assistiram e até participaram nos massacres( e depois até foram condecorados por esses feitos em nome da Pátria) de todo um povo cujo único crime foi existir. Ainda hoje vivo memórias horrorizadas de tudo que vi e presenciei e me foi narrado. Daí que pense que blogues como os "Camaradas da Guiné”, usando uma expressão de Roland Barthes,  “ tendem em instituir-se como exteriores à História” e “é lá onde a História é recusada que ela mais claramente age”. Daí que a minha tribuna só possa ser política e ideológica, o que, como é evidente, não cabe no âmbito neutro e apolítico do teu blogue. Mas será que, bem vistas as coisas, existem blogues apolíticos a falar de acontecimentos de uma guerra, mesmo a propósito de camaradagem entre os seus autores e actores? Conversa longa que não cabe neste escrito. Não estaremos perante uma operação mitológica?

Espero que compreendas e não leves a mal esta minha posição, mas as minhas memórias da Guiné são políticas e como tal estão a ser escritas e delas darei justo testemunho cívico e republicano. (...)

Não, não lhe levei a mal... Sei ver, ouvir, ler, parar, escutar... Ou penso que sei... Mas confesso que nunca lhe respondi, por falta de oportunidade ou talvez por laxismo, lassidão, cansaço... E hoje, que ele morreu, eu tenho pena de não ter feito um esforço adicional, não para o convencer, mas pelo menos, para clarificar  a missão (talvez impossível) do nosso blogue e sua íntrínseca ambiguidade.  É possível fazer pontes, tentando concilitar o que é inconciliável ? Às vezes também tenho dúvidas... Mas há 14 anos que o tentamos, recusando as posições radicais...

Aqui fica, entretanto, a posição, intelectualmente honesta, do nosso camarada José Augusto Rocha  (1938.2018) cuja memória eu faço questão de honrar. Porque a função do blogue não é julgar, muito menos a discriminar os camaradas que combateram na Guiné... E o José Augusto Rocha foi um combatente e um camarada...

Para a sua família e amigos mais  íntimos, incluindo os seus camaradas de companhia. e nossos grã-tabanqueiros José Colaço e Francisco Santos, endereçamos os nossos votos de pesar e de solidariedade na dor. (ªªª)
 _______________


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18335: Vídeos da guerra (14): visionamento e resumo analítico do vídeo da ORTF / INA, "Guerre en Guinée" (1969, 13´ 50''): tradução e adaptação de Luís Graça e Virgínio Briote


Vídeo: "Guerre en Guinée" (1969) (13' 50'')... Cortesia de INA - Institut National de l' Audividuel

[Em 2007, o vídeo não estava disponível para ser visto, diretamente, no nosso blogue, apesar do Virgínio Briote ter comprado uma cópia para seu uso pessoal;  a política do INA mudou entretanto; este vídeo foi obtido diretamente do seu portal,  utilizando livremente um código de exportação... Vive la France!... 

Mas este trabalho da ORTF foi "pago" pelos contribuintes portugueses: o Spínola ofereceu aos jornalistas franceses "cama, mesa e roupa lavada"... É o preço da propaganda de Estado... Só que a "ostra" saiu-nos mesmo "amarga", a todos nós... 

A vergonha, para nós,  portugueses, ou pelo menos para mim, português, ex-combatnte, é que os fotocines do exército e os repórteres da RTP nunca conseguiram oferecer-nos nada de jeito, que não fossem meros documentários de propaganda...] (LG)

Guerre en Guinée | Point contrepoint  | Video 11 Nov. 1969  | 88892 Vues  | 13 min 50 sec


Ficha técnica: Émission: Point contrepoint |  Production: Producteur ou co-producteur > Office national de radiodiffusion télévision française | Générique: Réalisateur > Jean Baronnet

Journaliste > Jean François Chauvel | Opérateur de prise de son > Roger Mathurin
| Opérateur de prise de vue > Jean Louis Normand | Participant > Antonio Spinola

Le point sur la situation en Guinée Bissau, découverte en 1446 par Nuno TRISTAO. Elle est peuplée de 600 000 habitants lorsqu'éclate en 1959 une grève des dockers sous la direction d'Amilcar CABRAL et de son parti marxiste, le "parti africain de l'indépendance de la Guinée et du Cap Vert". En 1963, il déclenche la lutte armée selon les préceptes révolutionnaires de CHE GUEVARA. Aujourd'hui 25000 soldats portugais luttent contre les guérilleros du PAIGC sur tout le territoire, mais ne contrôlent qu'un 1/3 du territoire et 2/3 de la population. Une troupe de soldats part en mission dans la brousse et est prise en embuscade. Un soldat blessé est secouru par ses camarades, un autre est tué, pendant que les renforts sont appelés. Les soldats africains de la troupe portugaise se tiennent à l'écart. Les hélicoptères arrivent et emportent les blessés. Le général Antonio DE SPINOLA, gouverneur de Guinée, affirme que la population de Guinée souhaite dans sa majorité le maintien de la présence portugaise. Il réfute les accusations de violences à l'encontre des populations locales et place le conflit dans le contexte de la Guerre froide.

  

Guiné > Região do Cacheu > Bula > CCAV 2487 / BCAV 2862 (Bula, 1969/70) > 18 de Outubro de 1969 > Dois mortos e um ferido no decurso da Op Ostra Amarga (também ironicamente conhecida como Op Paris Match)...

As NT (2 Gr Comb da CCAV 2487, comandadas pelo cap cav José Sentieiro, hoje cor cav ref e cruz de guerra de 1ª classe (, a viver em Torres Novas,) caem num emboscada do PAIGC, às 7h15 da manhã... O combate é registado por uma equipa da televisão francesa, a ORTF...

Foto: INA - Institut National de l' Audiovisuel (2006) / Cópia pessoal de Virgínio Briote (**)


1. O filme-documentário da portuguesa Diana Andringa e do guineense Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra (2017) , utilizou cenas de uma reportagem feita em 18 de outubro de 1969 por uma equipa da televisão francesa, a ORTF, acompanhada de um ou dois repórteres do então muito em voga semanário Paris-Macth.

Segundo a investigação posterior feita pelo nosso coeditor  (hoje jubilado...) Virgínio Briote, junto de Diana Andringa e de outras fontes (antigos camaradas, coronel cav ref José Sentieiro, cor cav ref e escritor Carlos Matos Gomes, Arquivo Histórico Militar, etc.), descobrimos na altura que estas cenas referim-se à Op Ostra Amarga, na região de Bula, em que as NT caíram debaixo de uma emboscada do PAIGC, sofrendo dois mortos e um ferido…


Estas cenas de combate são mostradas no vídeo, que está disponível no sítio do INA – Institut National de l’Audiovisuel [Instituto Nacional Francês do Audiovisual] .

No filme-documentário, As Duas Faces da Guerra, que se estreou, entre nós, no dia 19 de outubro de 2007, no decurso do 5º Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa, DocLisboa2007, (*), dois antigos combatentes portugueses que participaram nessa operação (um deles o que fora ferido), comentam, emocionados,  esse episódio de guerra, que ficou também conhecido, ironicamente, por Operação Paris Match, já que nela iam integrados vários jornalistas franceses, incluindo uma mulher, Geneviève Chauvel,  a expresso convite do  gen Spínola.



É de referir que o general Spínola aparece, em carne e osso, no local, depois da emboscada, acompanhado do então capitão (ou já major?) Almeida Bruno a trocar impressões com o ten cor Alves Morgado,  comandante do BCAV 2862 (Bula, 1969/70) envolvido na Op Ostra Amarga.

Será depois entrevistado no final da reportagem, no palácio do Governador,  fazendo-se perante os jornalistas estrangeiros o arauto da política do Governo Português, no que diz respeito à defesa das “províncias ultramarinas”. Fala em francês, mas com erros e pouca desenvoltura. Uma parte das suas declarações são lidas.

Em suma, tudo indica que os jornalistas estrangeiros, oriundos de um país amigo, da NATO, a França, iriam fazer um mero passeio pelo mato e testemunhar, com os seus próprios olhos, que a situação militar, no interior da Guiné, estava sob o nosso inteiro controlo, contrariamente à propaganda externa do PAIGC (que também irá usar, sobretudo nos anos 70, a arma da sedução e da propaganda, convidando jornalistas estrangeiros e diplomatas, de países amigos, a visitar as regiões libertadas).

No que respeita à Op Ostra Amarga (que raio de nome, que premonição!), as coisas, de facto, não correram, como se previa, e os próprios jornalistas caíram debaixo de fogo, juntamente com os dois Grupos de Combate onde iam integrados… O pior é que tivemos dois mortos e um ferido, sendo a agonia de um dos nossos camaradas, o António da Silva Capela, registada em filme… Cenas atrozes, senão mesmo voyeuristas...

2. O Virgínio Briote tinha, tempos antes, comprado, ao INA francês (, o Instituto Nacional do Audiovisual), os direitos de “téléchargement” (download), para uso estritamente pessoal, de nove vídeos sobre a Guiné, embora não tendo na altura conseguido autorização para os passar directamente no nosso blogue, como era sua e nossa intenção (**).

Decidimos então, na época (****); fazer um resumo alargado do filme (que é falado em francês), de modo a possibilitar o seu visionamento e a sua melhor compreensão pelos nossos camaradas (muitos dos quais não dominavam a língua gaulesa)… Não o podendo inserir directamente no blogue (por causa do copyright) , fizemos uma ligação (ou link) para o sítio do INA (***).

Passados estes anos, o vídeo está disponível para ser descarregado livremente. E ainda bem, a França e a língua francesa bem precisam de marcar pontos no mercado global. Decidimos voltar a rever e a publicar a sinopse do filme, em francês, seguida de um resumo analítico, mais alargado, feito por nós. As imagens que aqui reproduzimos são fotogramas do filme, retiradas pelo Virgínio Briote da sua cópia pessoal.


3. Vídeo Guerre en Guinée

(Resumo analítico e descrição das cenas em português. trabalho dos editores Luís Graça e Virgínio Briote)

Point contrepoint
ORTF - 11/11/1969
Vídeo: 13' 50''

Guinée Portugaise / VA de la région / VA d'un bateau à quai / VA de la berge / grues / transportement des caisses / marin armé / deux noirs sur une petite embarcation / la rue / travelling latéral le long d'un grand immeuble à loggias / zoom arrière sur un bac / soldats armés / camions militaires / hélicoptère survolant une région à la frontière du Sénégal / soldats armés qui en descendent / ils partent dans un canot pneumatique et s'éloignent /


VA à bord de l'hélicoptère sur les berges de la rivière / BA de la forêt / soldats patrouillant dans la forêt / PA de soldats blancs et noirs qui patrouillent / colonne dans forêt lors de l'embuscade / soldats pris sous le feu / tir au lance grenades / images très assemblées / soldat touché / blessé à terre / cadavre sur le sol / GP sur le soldat blessé / GP de cadavres sur le sol / GP de soldats l'air écoeuré / après l'attaque / soldat aux visages tuméfiés / blessé allongé à qui on fait une transfusion / on essaie de la transporter / il a une jambe coupée / départ du blessé / râle du blessé / GP mort.

Quelques soldats autour du blessé / un soldat assis / GP d'un jeune soldat / un autre fume / GP d'un soldat qui traspire / soldat qui est mort / soldat autour d'un mort / hélicoptère dans le ciel / 2 soldats soutiennent un blessé / hélicoptère qui atterit en contre plongée / attérissage / on retire la civière / une infirmière descend / un monte un blessé sur une civière à l'intérieur de l'hélicoptère / un homme blessé à bras d'homme est hissé à bord / départ de l'hélicoptère / deux têtes de palmiers se détachent dans le ciel / soldat qui boit à la gourde / mise au point de l'officier, de ses hommes /.


Général A. Spinola commandant en chef de l'armée (portant monocle) / "défendre les institutions contre l'avenir du Sénégal et en Guinée" (retire ses monocles) / préoccupation constante des forces militaires / de ménager les populations... le pays profite surtout de l'appui des pays du Pacte de Varsovie.


4. Resumo analítico >  Tradução e adaptação de Luís Graça e Virgínio Briote:

Guerra na Guiné


Programa: Ponto Contraponto
Estação de TV: Organismo da Radiotelevisão Francesa [ORTF]
Data: 11 de Novembro de 1969
Duração do filme: 13m 57s



0' 00'' > Guiné Portuguesa em 1969 [apresentação: geografia, história, demografia… Território do tamanho da Bélgica… Meio milhão de habitantes, apenas 3 mil de origem portuguesa…].
Vista aérea da região /
Vista aérea dum barco no cais de Bissau /
Vista aérea da margem /
Gruas /
Estivadores [Referência à greve dos marinheiros e estivadores do cais do Pindjiguiti em 1959, cuja repressão vai desencadear o início da luta contra o domínio português, segundo os testemunhos posteriores dos fundadores e dirigentes do PAIGC… 
Referência ao papel histórico de Amílcar Cabral, um homem de origem mestiça (sic), fundador do PAIGC, um partido marxista (sic)] /
Marinheiro armado /
Dois negros numa piroga /
A rua /

1' 00'' > Travelling lateral ao longo de zona comercial de Bissau, de casas de arquitectura colonial
[Vinte cinco mil soldados portugueses controlam um terço do território e dois terços da população; o PAIGC controla outro terço do território; o resto está sob duplo controlo]

Zoom de uma barcaça [Bissau é um ilha… A 30 km, é o preciso tomar uma barcaça para penetrar no interior… Referência à travessia do Rio Mansoa, em João Landim, segundo se depreende] /
Soldados armados /

2' 00'' > Camiões da tropa da caminho da barcaça / 
jangada em João Landim


Helicóptero que sobrevoa uma região de fronteira com o Senegal
[Fuzileiros vão a uma base do PAIGC onde não encontram ninguém… Referência ao constante patrulhamento de rios e braços de mar… Um zebra dos fuzileiros… Uma Lancha de fiscalização da Marinha de Guerra, P361…].
Uma equipa de fuzileiros parte num barco pneumático e afasta-se /
Vista aérea do helicóptero sobre as margens do rio /
Vista aérea da floresta.


3' 35'' > Soldados armados que descem do heli...
(Aqui começa a Op Ostra Amarga, envolvendo soldados de uma companhia de cavalaria, a CCAV 2487 - e não de comandos, como nos pareceu inicialmente… 

A força é comandada pelo então cap cav  José Sentieiro… A operação decorre na região de Bula. setor da responsabilidade do BCAV 2862, comandado pelo ten cor Morgado).


4' 30'' > Soldados deslocam-se na floresta /
Soldados, brancos e alguns negros /
(Ouvem-se os ruídos típicos da floresta… Já de dia, às 7 horas e um quarto, a testa da coluna na mata sofre um emboscada. É atingida por rockets…) /
Soldados debaixo de fogo/ 
Ouve-se o matraquear de armas automáticas.



Contra-resposta  dos dois Gr Comb emboscados/
Tiro de lança-granadas das tropas portugueses [que estão equipadas com LGFog 3.7, que eram originalmente só usadas pelas tropas especiais, paraquedistas, comandos e fuzileiros...] /
5' 00' > Tiro de morteiro 60 /
Correria até à frente da coluna.


Soldado atingido /
Ferido no chão /
Corpos no chão /
(Há um morto imediato, 
o Henrique Costa, de Ferrel, Peniche, retalhado pela roquetada, enquanto o António Capela, de Ponta de Lima, sobreviverá apenas 45 minutos, morrendo na altura em que chega o heli para a evacuação) /
Grande Plano do soldado ferido /
Grande plano de cadáver no solo /
Grande plano de um soldado com ar abatido.


5' 30'' > Depois do ataque… Soldados de rosto entumecido /
Ferido estendido no chão recebendo soro do maqueiro, de pé (segundo a Diana Andringa, deve ser o Pedro Gomes, o 1º cabo auxiliar de enfermagem, natural de Peniche, e  falecido em 2007) /
Tentam transportá-lo /
Tem uma perna partida /
Partida do ferido /
Estertor do ferido /
Grande plano do morto.
Alguns soldados à volta do ferido /
Um soldado sentado /
Grande plano de um jovem soldado /
Um outro que fuma /
Grande plano de um soldado que transpira /
Soldado que morreu /

8' 47'' > Imagens breves das lavadeiras do rio Lima estendendo a roupa ao sol (, Ponte de Lima era a terra do Capela)
Soldado à volta do morto /
Um crucifixo caído no capim, perto do morto.
Helicóptero que surge no céu /
Dois soldados apoiam um ferido a caminho 
do helicóptero /
Helicóptero que aterra, em contre plongée /
Aterragem /
Retiram a maca /

9' 50'' > Uma enfermeira-paraquedista, de blusa branca e calças de camuflado, que sai. [Era a "nossa" Rosa Serra. membro da Tabanca Grande]


Transporte dum ferido em maca para o interior do helicóptero /
Um homem ferido é levado para bordo, em braços/
Partida do helicóptero /
As copas de duas palmeiras destacam-se no céu /
Soldado que bebe água do cantil /
Enfoque da câmara no oficial (capitão de cavalaria José Sentieiro), rodeado dos seus homens (os 2 Gr Comb da CCAV 2487).

11' 30'' > Chega o Spínola (, com o seu ajudante de campo, o então capitão Almeida Bruno, hoje general, que empunha a G-3, com luvas brancas)... 
Está também acompanhado de um oficial superior, tenente coronel Morgado, comandante do Batalhão de Cavalaria 2868, com sede em Bula


11' 53'' > Por fim, o general Spínola (comandante-chefe das forças portugesas, usa monóculo, diz o guião) dá uma entrevista à equipa da ORTF e possivelmente aos restantes jornalistas (que nunca aparecem no filme), defendendo a política ultramarina do Governo Português... e a sua actuação na Guiné... 

Dá impressão que também está a ler um papel. Às tantas tira o monóculo (o "caco") e segura-o na mão. Aparenta estar em boa forma física. Está com 59 anos feitos em 11 de abril.

No essencial, diz o Com-Chefe português: A preocupação constante das forças militares é de proteger e apoiar as populações, contrariamente ao que diz a propaganda do PAIGC, o qual beneficia sobretudo do apoio dos países do Pacto de Varsóvia e da China… (Discurso de circunstância ou de contrapropaganda…). (****)
__________

Notas do editor:

(*) Vd. post de 20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

(**) Vd. post de 16 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1958: Vídeos da guerra (1): PAIGC: Viva Portugal, abaixo o colonialismo (Luís Graça / Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 8 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2249: Vídeos da guerra (2): Uma das raras cenas de combate, filmadas ao vivo (ORTF, 1969, c. 14 m) (Luís Graça / Virgínio Briote)

 (****) Último poste da série > 8 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16577: Vídeos da guerra (13): Documentário "Cartas da Guerra - Making of" (, produção O Som e a Fúria, 2016) passou na RTP2, dia 14 de setembro de 2016, e pode ser visto "on line"

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16055: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I: de Cascais até à Portugália / Dundo...

1. Desafiámos o José Manuel Matos Dinis (ex-fur mil at inf,  CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales (que está de pedra e cal ), a falar da sua experiência de vida em Angola, mais exatamente na Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, na Lunda, onde viveu e trabalhou durante dois anos e meio e onde nasceu o seu primeiro filho... Depois do regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo a Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972.  E foi feliz no Dundo. 

Carlos, Luís


A ver se é isto que se pretende. Seguir-se-ão episódios mais descritivos daquela sociedade. Como de costume,  fiz isto de embute e pode carecer de revisão.


Luís e Carlos, bom dia!

Respondo a um repto do Comandante-Mor para dar conta de algumas das minhas memórias angolanas, que ele acha que podem ter interesse para publicação, enquanto testemunho sobre a colónia que era o motor da economia portuguesa. 

O interesse é muito relativo e meramente histórico. Para quem se interessar pelas ligações portuguesas no mundo, pela forma como o "jardim" [, à beira-mar plantado,] dependia e controlava os imensos territórios e as gentes, e ainda tiver gosto em fazer avaliações sobre a relatividade da Nação no contexto das nações, pode ser que consiga espevitar a curiosidade, no sentido de, ainda mais do que eu, aprofundar esse conhecimento, pois não só há literatura, como muita informação na Net. 

Advirto, porém, de que são algumas das minhas memórias de há 40 anos, e a Angola de hoje nada tem a ver com a daquele tempo. Agora, regista-se um concentracionismo em más condições da população em redor da capital, das actividades sociais e económicas, enquanto o resto do país, de maneira muito abrangente, definha com as antigas e prósperas cidades abandonadas em estado de ruína, conforme legado da guerra que devastou aquela terra.

As minhas memórias, no entanto, são apenas de uma região situada nos confins do nordeste, fronteira com o Katanga, onde a Companhia de Diamantes de Angola [, Diamang,] (*) tinha as suas principais actividades, e era conhecida como um estado dentro do Estado, enquanto de Luanda apenas retenho escassas memórias de duas vezes em que lá passei e permaneci por 8 dias de cada vez.

Abraços fraternos
JD


2. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I

Em Janeiro de 1972 tinha saído da tropa, dava passeios e namorava pelo litoral de Cascais, onde outros casais nos faziam concorrência. Os meus amigos estavam na vida militar, acabavam os cursos, ou já tinham iniciado actividades profissionais. Já não era como antes, quando a malta se reunia como seita para a paródia, ou para entusiásticas futeboladas. Namorava com envolvimentos familiares, e tinha a obrigação de procurar definição de vida. Não queria trabalhar debaixo de um tecto, e por isso, ficava excluída uma preparação profissional que tinha iniciado antes da tropa. 

Afigurava-se-me interessante o garantido ingresso como comissário de bordo na TAP (nem tentaria piloto, pois tinha extraído dois dentes no regresso da Guiné e era impeditivo para a categoria), porque o salário era suficiente e os voos alternavam com dias de descanso em Portugal como nos diferentes destinos. Seria uma abertura para novos horizontes.

Porém, mordia-me um bichinho africano, e a minha namorada dava-me carta branca para decidir o futuro. Para não andar totalmente às escuras, informei-me sobre os trabalhos das minas de diamantes, e logo me entusiasmou essa ideia. 

Na minha candidatura em Lisboa aconteceu uma peripécia, porque o chefe de pessoal não me atendeu na manhã e na tarde de um dia, e preparava-se para não me atender no seguinte, sempre "ocupado" com tarefas superiores. Dei uma informação ao contínuo que me olhava com pena, e logo fui muito bem recebido pelos chefe e director do departamento de recursos humanos. Às informações que iam prestar-me durante uma conversa agora agradável, contrapus não ser necessário porque já tinha o conhecimento suficiente sobre a actividade que queria abraçar: mineiro. Assinei o contrato, dois dias antes de a TAP me chamar para as formalidades do curso.

Em Luanda procurei um amigo que trabalhava na Casa Pia. Com ele, ou com a família, passei os
dias em petisqueiras, e por isso, quase não conheci a cidade que, no entanto, afigurou-se-me cheia de contrastes entre o bom e o mau. 

De petiscos é que fiquei bastante satisfeito. Durante esse período nem me dirigi à delegação da Companhia, onde, por vezes, emprestavam um carro ao pessoal em trânsito ou davam informações e facilidades. No dia 21 de maio de 1972 apresentei-me no aeroporto. Ali travei conhecimento com um empregado que fora a Luanda tratar de alguma coisa. Estivemos à conversa informalmente, e em intercaladas apreciações sobre uma jovem, de barrete na cabeça, que se deslocava para o Lobito, onde, infelizmente, amarou o "Frienship" daquela linha (*). 

A seguir partimos para a Portugália (**) com escala em Malange. Ao sobrevoar as Pedras Negras tive a sorte de ver uma manada de palancas em corrida, assustadas pelos motores do avião. O Fortes deu-me algumas indicações pelo caminho e na chegada. Mais tarde, quando me deslocava ao Dundo, costumava procurá-lo para cumprimentos, e acabou por ser o meu padrinho de casamento, contra propostas de pessoas mais importantes, resultado da minha aversão às cunhas e situações de favorecimento.

Essa noite, depois de jantar, dormi na Casa do Pessoal, o que também aconteceu na noite seguinte. Dei uma volta pela localidade do Dundo, a sede administrativa da Companhia, com um urbanismo muito organizado que me sensibilizou favoravelmente. As casas,  de bonitos recortes e amplas varandas, sem muros ou vedações, mantinham boas distâncias até aos limites das ruas, que abrigavam espaços relvados, muito bem cuidados, e com fartura de árvores, arbustos e canteiros de flores, que transmitiam uma grande riqueza pictórica, frescura, e deleite para os olhos. Tudo alinhado e muito limpo. Parecia (e era) um paraíso na terra.

Entretanto fora informado de que ia trabalhar com o mais conceituado dos chefes de grupos mineiros, o engenheiro Marvanejo, um tipo simpático, mas duro, que reflectia os bons resultados pela exigência no desempenho das tarefas. Era coisa que não me assustava, só queria ter oportunidade para fazer a minha aprendizagem em boas condições de diversidade das circunstâncias. 

No Dundo ainda me propuseram trocar o mato pela permanência naquela localidade, a melhor, e a vida de mineiro pela de meteorologista. Delicadamente recusei, eu tinha mesmo uma grande atracção pelo mato. Ofereceram-me como prenda um chapéu colonial, mas era tão incómodo, e eu estava tão familiarizado com o sol africano, que também recusei. Assim, ao terceiro dia de manhã cedo, fiz as despedidas, e embarquei numa viatura Volkswagen de caixa-aberta com as "imbambas" que me tinham calhado em sorte, e incluíam panos para cortinados, lençóis, cobertores, e outras utilidades. 

trajecto para Cassanguidi era de cerca de hora e meia, em estrada alcatroada com passagem pela savana verde de vastos horizontes, por várias aldeias, e uma pequena localidade mineira, Fucaúma, que pertencia ao grupo para onde me deslocava. Cheguei durante a hora de almoço, e fui directo à Casa do Pessoal. "Bom dia meus senhores, chamo-me José Dinis, e sou um empregado novo". Levantaram-se os olhares e cumprimentaram-me de cada mesa com os talheres na mão. 

Depois de almoço, os visitantes que se ocupavam da construção de estradas e de uma ponte, abalaram às suas vidas, e eu apresentei-me no grupo. O Chefe já estava de saída, mas mandou-me ali voltar pelas 17h00, para conhecer o colega com quem faria estágio, e o sub-chefe Pereira da Silva, porque o "Benfica dele" era noutros azimutes onde pontificavam "cortes ricos", os que garantiam mais negócio.

Novas apresentações, a do subchefe e a do colega que passaria a acompanhar até me considerarem apto e autónomo. No dia seguinte, pelas 6h00 já estava pronto à porta da Casa do Pessoal, a minha nova morada, enquanto não tivesse residência própria. A bordo de Volkswagen percorremos as picadas, ornadas de belas árvores - com destaque para os jacarandás vermelhos ou roxos, alternando com nichos de plantas locais e capim, onde esvoaçavam aves de diferentes portes e coloridos. 

Acompanhámos um rio largo, de bom caudal e margens baixas à esquerda, sob um fundo verde, até flectirmos à direita com direcção à mina. Depois de passarmos uma galeria de grandes árvores, deparei-me com o refeitório à direita, bem pintado de branco, e com alinhamentos alternados de bananeiras-macaco e "mamões" (família da papaia), num espaço bem arranjado. No fim da rua despontava uma casa branca com um jardim de ananases plantados em semicírculo. Contornando o escritório, deparava-se a lavaria a uns vinte ou trinta metros. Um telhado alto para protecção das chuvas - ali chovia 9 a 10 meses por ano, onde se despejavam para as tremonhas as vagonetas que transportavam o cascalho. A linha entrava e saía pelo mesmo lado, em via dupla até à exploração depois de atravessar uma ponte sobre um canal a meio da colina, onde os ramais drenantes eram dispostos conforme os "cortes" em exploração, ou em limpeza da rocha base. 

A lavaria situava-se à direita de quem saía do escritório, e era alimentada por uma correia transportadora que, da tremonha,  levava o cascalho para as "pans" de centrifugação, de onde os materiais densos desciam para os depósitos de "concentrado" ou "gigas", enquanto o material rejeitado seguia por outra correia para uma acumulação de inertes. Do local desta acumulação, como da saída das linhas, tinha-se uma vista larga sobre a exploração rodeada por uma envolvência em anfiteatro de árvores imponentes, que acompanhavam a colina até ao nível do rio, onde desaguava o canal para onde se dirigiam os diferentes drenos de protecção. 

Os cortes, consistiam em espaços definidos pelo programa de exploração, de onde se removiam as terras para os cortes já explorados, cujas espessuras variavam conforme o nível da superfície natural, até se atingirem as camadas de cascalho, e seriam cobertos com a terra removida de novos cortes anexos. Definiam-se as linhas de drenagem, as mesas de assentamento de carris para o acesso das vagonetas, a localização das rodas de canto para as conduzir em diferentes direcções conforme a evolução dos trabalhos e o percurso até à lavaria. Havia uma ou duas bombas hidráulicas para secagem das partes inundadas aquando das mais intensas chuvadas que a drenagem não satisfizesse. 

No fim do dia de trabalho chegava a viatura do concentrado, que transportava as bilhas para uma estação de escolha, onde eram seleccionados e classificados os diamantes, depois de passarem por novos processos de centrifugação e escolha. O horário de trabalho de um único turno começava um pouco antes das 7h00 e terminava às 16h00, com uma hora para almoço, mas havia padejadores que saíam mais cedo conforme acabassem as tarefas. As folgas eram em regime de "semana inglesa".

Ao terceiro dia o Carlos partiu uma perna a jogar à bola, e fiquei sem instrutor. Tinha tido dois dias apenas de estágio, e faltava-me toda a experiência para a condução dos trabalhos em boa ordem. O engenheiro subchefe visitava-me por vezes, mas, apesar de ser um tipo porreiro, era espalha-brasas e não tinha cuidado no linguajar com os trabalhadores. Mal virava costas, eles desprezavam-no. De modo que fiz o estágio com os capatazes, com quem trocava impressões sobre o que era bem ou mal feito. Foi a escola possível, e o Muriandambo foi o capataz-geral que mais me ensinou. Essa aprendizagem, na teoria,  era complementada com conversas que mantinha com os colegas mais experientes. Entretanto, tinha agendado o casamento para o final do ano. Eu andava feliz, apesar das preocupações.

O ambiente, o pessoal e as famílias, era acolhedor. Passei a ocupar o tempo livre com convívios. A Casa do Pessoal era gerida pelo Tomás e a mulher, sendo ela uma boa cozinheira, e ele um apreciador da sua produção com bastante mais de cem quilos. Eu e o Maia éramos os únicos residentes, ambos solteiros. Quando estacionava o carro que herdara pelas 16h30, já havia malta a chamar-me para o petisco, pelo que me habituei a tomar banho pouco antes do jantar durante a digestão. Outras vezes, acabávamos de jantar e ficávamos à conversa, aparecia o Tomás com uma travessa de qualquer coisa para entretermos os discursos. Se não fosse a entrega à actividade física durante o horário laboral, teria ficado inchadíssimo, mas consegui permanecer nos 75 kg. 

Um dia desses falei em irmos ao Luchilo tomar café, que lá a Casa do Pessoal funcionava até mais tarde. Não podíamos. Na Companhia exigia-se autorização para tudo, principalmente as deslocações. No fim-de-semana propuseram-me deslocar-me ao Dundo, e não me dera conta desse constrangimento. No dia seguinte, à tarde, fui bater à porta do Chefe, que me recebeu com alegria descontraída. Disse-lhe ao que ia, e pedi licença definitiva para me ausentar para outro grupo, dado que não queria causar-lhe incómodos. Boa ideia, respondeu, e acrescentou que a partir daquele dia acabava as autorizações para deslocação, pelo que ficavam todos autorizados a fazer qualquer deslocação. Logo a notícia correu outros espaços, e a breve trecho essa diligência acabava. 

(continua)
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Notas do editor:

(*) A produção de diamantes em Angola data  de 1917, ano em que se constitui a Diamang - Companhia de Diamantes de Angola  , uma empresa de capitais mistos de vários grupos financeiros (Portugal, Bélgica, Estados Unidos, Inglaterra e África do Sul). Em 1981, o Estado angolano passa a ter o controlo total da produção diamantífera  no país, criando a Endiama -  Empresa Nacional de Diamantes.

Há um portal, na Net, fabuloso, dedicado à Diamang e à Lunda, com centenas de fotografias da época, permitindo "reconstituir" a vida, nomeadamente dos brancos, que trabalhavam na Diamong. São sobretudo memórias dos antigos trabalhadores da Diamang. Também há uma página (aberta) no Facebook, com mais de 750 membros, dedicada à Diamang Angola. Também a Universidade de Coimbra gere o sítio Diamang Digital, "um projeto de digitalização e disponibilização em linha de materiais documentais, fotográficos e fonográficos da ex-Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, em arquivo na Universidade de Coimbra",

(**) Referência ao trágico acidente de aviação com um Fokker F-27 Friendship 200, no Lobito, em 21 de maio de 1972, e que fez 22 vítimas mortais. Era da DTA (criada em 1938), antecessoora dos TAAG - Transportes Aéreos de Angola (, partir de 1973).

(***) Hoje Dundo, capital da Lunda Norte. Diana Andringa, nossa amiga, grã-tabanqueira, nasceu no Dundo, em 1947, e fez um belíssimo documentário, em 2009, de 60', justamente sobre o "Dundo, memória colonial".

(...) Em 1947, ano em que nasci, trabalhavam na Diamang, na Lunda, cerca de quinze mil trabalhadores angolanos e umas duas centenas de imigrantes, entre europeus – portugueses, belgas, ingleses, suíços, luxemburgueses e russos – e africanos – cabo- verdianos, são tomenses, sul-africanos. O meu pai era um desses imigrantes. Nascido em Lisboa, filho de holandês e espanhola, fora para a Lunda como engenheiro de minas. Viúvo, casara em segundas núpcias com a minha mãe, nascida em Angola de imigrantes portugueses – e, logo, portuguesa de segunda.

O Dundo, na margem esquerda do Rio Luachimo, a 18 quilómetros da fronteira com o então Congo Belga, era o principal centro administrativo da Diamang na Lunda, onde detinha o exclusivo da exploração e pesquisa de diamantes numa área de cerca de 1.025.000 Km2.

Para se ter a ideia do que era o poder da Diamang bastará dizer que, no contrato de concessão celebrado em 1920 – três anos depois da sua criação – ficara acordado que oferecia a Angola 5% do seu capital social, já realizado ou que viesse a ser realizado; comprometia-se a pagar anualmente a Angola 40% dos lucros líquidos; emprestava a Angola 400.000 libras; podia efectuar a exploração dos jazigos descobertos, mediante simples comunicação à autoridade local; mantinha por um período de 30 anos – a prorrogar – a exclusividade da pesquisa de diamantes, em cerca de 90% do território de Angola.

Era bom ser criança no Dundo, quando se era branca e filha de engenheiro. Havia espaço para brincar, ruas para andar de bicicleta, animais, liberdade. E criados para nos acompanhar e satisfazer os nossos caprichos. Era bom ser criança e não notar como era artificial e injusto o mundo que nos cercava. Mas à medida que cresci, fui-me apercebendo de que não era igual para todos… (...)