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sábado, 24 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23911: Conto de Natal (25): Quando o pobre do Garrinchas teve o privilégio de fazer de São José e consoou com a Nossa Senhora e o Menino Jesus (Uma pequena obra-prima de Miguel Torga, do livro "Novos Contos da Montanha, 1ª ed., 1944)


Miguel Torga (São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 - Coimbra, 1997)
Fotos: cortesia de RTP Arquivos e Imprensa Nacional


1. Temos, por tradição, publicar nesta altura um "conto de Natal"... Já lá vão  duas dúzias de contos (*). Mas,  este ano, não sei por que carga de água (não é por falta dela...),  ninguém se lembrou mandar nada, nem uma miniconto de Natal. Que falta cá nos faz, o "alfero Cabral"!... Ele teria tapado o buraco, remetendo-nos um contozinho, passado cá ou lá, no território da Guiné do nosso tempo... 

Tive, portanto, de ir meter a foice em seara alheia para manter a  tradição ou pelo menos tentar salvar a honra do convenento ou, pelo menos, as aparências... Não interessam agora as razões, a verdade é que eu podia ter espicaçado a criatividade e a sobretudo a vontade dos nossos escritores natalícios.

 Mas a semana foi má, com o editor-mor, também de molho, na cama, a largar suores frios com uma virose ou gripe daquelas das antigas que matam os velhos e vergam os novos...

E confesso, aqui, um paradoxo: nunca até hoje ninguém se lembrara de nos mandar o conto "Natal", de Miguel Torga, que hoje vamos publicar. Até como "prenda de Natal", ou com o simples pedido de divulgação do melhor que se faz "para lá do Marão", que a malta às vezes até é briosa na defesa das coisas do seu "chão", não +e Francisco, não é Zé Manel ?!...

Estou-me  a referir, obviamente, aos muitos transmontanos e durienses que se sentam aqui connosco à sombra do poilão da Tabanca Grande, alguns dos quais com créditos firmados nas letras (poesia, ficção, memórias, reportagem): estou-me a lembrar, assim de repente (e seguramente correndo o risco de esquecer de outros), dos nomes dos nossos queridos Alberto Branquinho, Fernando Gouveia,  Franscisco Baptista, Paulo Salgado, Zé Manuel da Régua, etc. Mas ainda podíamos alargar o leque aos vizinhos minhotos e aos de Entre Douro e Minho, como o Manuel Luís Lomba, o José Teixeira, o António Carvalho, o Joaquim Costa, o Mário Leitão, o Luís Jales de Oliveira, a Rosa Serra, o Abílio Machado, o Zé Ferreira da Silva, e por aí fora... Tudo gente, portanto, nortenha dos quatro costados, portugueses de grei e de lei...

A explicação pode ser simples: afinal o conto ("Natal",  de Miguel Torga) é "muito conhecido" (será  assim tanto ? foi no passado, ainda o é hoje ?)... E depois há o problema dos "direitos de autor"... O autor morreu em 1995, e a sua obra só cai no domínio público lá para o ano de 2065, quando todos nós já estivermos na quinta das tabuletas.... 

Mas vamos ao que interessa, para encurtar explicações: tenho andado, nestes últimos tempos, a ler e a reler alguns dos nossos melhores contistas da língua portuguesa, do Miguel Torga ao José Correia de Araújo, passando pelo cabo-verdiano Germano Almeida. Não me levem a mal que destaque, aqui e hoje, o conto "Natal", de Miguel Torga.

Não entro, propositadamemte, em demasiados promenores de análise literária ao texto que acabariam logo por afastar leitores ou por inibir o prazer da descoberta ou da releitura do conto. Dieri só que +e uma curta história (c. 125 linhas, 5 páginas) de um pobre diabo, na véspera de Natal, que tenta no limite das suas forças e dos 75 anos, chegar, à hora da consoada, à sua terra, Lourosa, algures na  mítica "Montanha" ou "Reino Maravilhoso"... 

O "Garrinchas", nome da personagem do conto, de resto a única de carne e osso, é mais uma figura esculpida na pedra, um sem-abrigo, um "pobre-de-pedir", como se dizia no meu tempo, como dizia a minha mãe ou a senhora professora primária, apontando para o "Livro de Leitura da Terceira Classe: havia os pobres (que éramos todos nós) e os mais pobres dos pobres, os pobres-de-pedir, que andavam a mendigar, "pedir esmola", de porta em porta, "a mão estendida à caridade". 

Vinham em bandos, em geral, à sexta.feira, e às vezes de longe, de fora do concelho... Tal o como o  "Garrinchas" que sabia, por experiência própria, que os santos da casa não faz4m milagres , entenda-se, não abrem facilmente os cordões à bolsa, são mais forretas.

Portanto, o leitor é confrontado com um problema social muito grave que se arrastava, há mais de dois séculos, desde as invasões napoleónicas, e se prolonga para lá do fim da Monarquia,  a I República e o Estado Novo, até aos anos 60/70, o da indigência social (no campo e na cidade).  

Sempre houve em Portugal (e na Europa) bandos e bandos de gente a mendigar, "a estender a mão à caridade",,,. Mas este "Garrinchas" é um solitário, perdido nos confins da Terra Fria ou da Terra Quente, não se sabe ao certo,  de Trás-Os-Montes, imaginamos nós.

A magia deste conto (uma pequena obra-prima como quase todos os outros que o autor publicou, e que eu adoro ler e reler) está na importância que o "sagrado" assume, de repente, no final do conto... o "sagrado" está sempre subrepticiamente presente na escrita  de Torga,  ele que não era crente, era profundamente espiritual (uma "animista", diríamos nós na Guiné),  em comunhão com a terra, os outros e os demais seres vivos. 

Que ele, lá no Olimpo dos escritores e artistas, onde finalmente descansa das agruras da vida terrena (e não foram poucas!),  nos perdoe este atropelo ao direito de autor, mas ele saberia compreender e aceitar, se fosse vivo e nos lesse, que é tudo por uma boa causa. 

Por favor, caro leitor, saboreia esta prosa, devagar, de preferência, lê-a à lareira (ou luz da vela), logo à noite, entre o vinho fino (também pode ser uma aguardente DOC da Lourinhã ou um bagaço de Candoz ou um medronho do montado da serra algarvia) e a aletria (ou o arrroz doce)... 

Lê-o, por favor, em voz alta, para os mais novos (e os menos novos que ainda que não tenham  desistido  de aprender e de sonhar...). E depois, escreve-nos,  a dizer se valeu a pena a experiência. Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023. LG

Natal 

por Miguel Torga  (1905-1995)

Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa (#), pior. Ninguém dá nada. 

– Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!

Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam… Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim… Segue-se que só dando ao canelo (#) por muito largo conseguia viver.

E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa… E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo  (#), permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. 

O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. 

Aflito, batia-lhe na taipa (#)  do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer?

Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo… Areias, queriam dizer. Importava-se lá. E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido!

O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa… Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura. Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida…

Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha. Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não. 

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel. Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. 

 Boas festas! – desejou-lhe então, a sorrir também. 

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho (#). Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo. 

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava? 

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. 

 É servida? 

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira. 

– Consoamos aqui os três – disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga


In: Miguel Torga - Novos Contos da Montanha, 15ª ed. Coimbra, edição de autor, Gráfica de Coimbra Lda, 1991, pp. 121-126 (1ª ed., 1944).

[Seleção, revisão e fixação de texto / Bold a preto / Notas de rodapé, para efeitos apenas de publicação deste poste: LG]
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(#)Notas do editor LG: 

 Lourosa e os demais topónimos /Carvais, Feitais, Loivos..) são fíctícios. Mas ficam na "Montanha", no "Reino Maravilhoso"... 

Como explica o próprio criador: (...) "– Para cá do Marão, mandam os que cá estão!…
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
– Entre!

A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.

Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição." (...)

(#) Canelo: canela da perna.

(#) Forno do povo: padaria coletiva nas aldeias de Trás-os-Montes, gerida pelas comunidade, onde toda a gente cozia o seu pão. Havia um sistema de trabalho rotativo. Funcionava também como albergaria para estrangeiros e pedintes de passagem pela aldeia. Estava permanentemente aquecido. Era uma instituições do "comunitarismo primitivo" de que Rio de Onor e Vilarinho das Furnas foram até aos anos 50 os exemplos mais perfeitos.

Imagem à acima, à esquerda: antigo formo do povo de Tourém, Gerés. Cortesia de GR 50 Peneda-Gerês > Forno do Povo, Tourém, Montaleger

(#) Taipa: parede de tabique

(#) Em Trás-os Montes, arcanho quer dizer traste, móvel, utensílio ou objecto considerado velho ou de pouco valor.
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... E depois, caro leitor,  de teres lido o conto, aponta, na tua agenda, uma visita, na próxima primavera de 2023, à Casa-Museu Miguel Torga e ao Espaço Miguel Torga (desenhado por Eduardo Souto Moura), em São Martinho de Anta, Sabrosa, recentemente inaugurados há menos de um ano... E não te esqueças que a terra não é só do Torga, é também de uma  nossas heroínas, a enfermeira paraquedista Giselda Pessoa (Antunes, apelido de solteira)... E depois vê o vídeo Casa Museu Miguel Torga, 27' 25'').

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18285: Um conto de Natal (24): Zé, o soldado de barro (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem do nosso camarada e grã-tabanqueiro Mário Gaspar, com data de 31 de janeiro último:

[foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem tem c. 100 referências no nosso blogue]

Caros Camaradas:

Depois de me reiniciar na escrita, escrevi muitos textos, todos publicados. Encontrei este “Soldado de Barro” que provocou críticas em alguns combatentes.

Inicialmente pensei escrever um texto para crianças, mas em cima da hora surgiu a dificuldade de publicar no jornal APOIAR no fim de ano, um texto de Natal, estando com o “Soldado de Barro” entre os dedos dei uma volta de 360% e saiu este conto de Natal.

Tenho andado às voltas no computador e vou encontrando imensos textos, alguns nem foram publicados.

Tive conhecimento que o Grande Soldado da minha Companhia (CART 1659),  António Pais Cabral n.º 06653066 e Apontador de Metralhadora.  faleceu. Estivemos muitas vezes em Operações, nunca quis ajuda de ninguém, era um jovem com menos de 40 quilos, transportava não só a MG como fitas para a mesma e pelo menos duas granadas de morteiro. No Almoço de Confraternização compareceu, tinha 110/120 quilos e o ano passado faltou, estava num Lar.

Em 2010 este “Soldado de Barro” saiu no jornal da ADFA: – “ELO”. Assinado: Mário Vitorino Gaspar, associado nº 15159.

Podem publicar no Blogue. A minha saúde é péssima.

Um abraço para o Blogue

Mário Vitorino Gaspar



2. Um conto de Natal (23) > Zé, o Soldado de Barro 

por Mário Vitorino Gaspar, associado nº 15159


Era uma vez um velhinho, muito velhinho, de nome Pinheiro. Morava naquela olaria, também ela muito velha, herdada de seu pai, feita de pedra já carcomida pelos anos. Situava­‑se numa zona muito isolada, onde só se ouvia o chilrear dos passarinhos e o sussurro do vento, murmurando nas paredes da casa, também ela velha, longe da povoação mais próxima.

O velhinho Pinheiro vivia muito só. Perdera a mulher há uns anos. Para ele, uma eternidade. Não tinha ninguém. A sua fortuna era as mãos queimadas pelo barro quente. Fazia com elas uns pífaros, muitos bonecos e outras peças que serviam para ornamentar os presépios – jumentos, o Menino Jesus nas palhinhas, José e Maria. Vendia pouco, porque só há um Natal no ano. Assim ele vivia também de alguma coisa que retirava da terra. Pois o amigo de toda a gente boa da terra principiou a sua obra, talvez a mais grandiosa: um soldado em barro.

Os traços do rosto eram belos e os olhos grandes, saltavam daquela imponente imagem de barro. Terminada a obra, depois de noites consecutivas sem se deitar, o velhinho oleiro sentou­‑se junto daquele monumento em barro. Teria por volta de um metro e oitenta. Era um grande homem, mas estava nu.
– Ti Pinheiro, que faz? – perguntou o seu vizinho e amigo Manel, que o visitava com frequência. O sonhador Pinheiro, porque a vida também é um sonho, com ar altivo, retorquiu:
– Mane! Este é o meu soldado!
– Mas ele não está fardado, Ó Ti Pinheiro! – respondeu prontamente, com uma certa angústia no olhar.

Mirava de alto a baixo a grandiosa está­tua, que mais parecia sorrir­‑lhes com um ar inocente. O velhinho Pinheiro algo comovido, respondeu, depois de passar a sua mão direita, acostumada a moldar o barro, pela cabeça do recém­‑nascido Zezinho:
– O Chico, o filho do João da Burra, regressou há bem pouco dessa guerra em África. Quero pedir­‑lhe que me dê uma daquelas fardas manchadas de verde que eles vestem.
– Não percebo para que servem as guerras!

Apontando para o telhado com o indicador direito, baixou o braço repentinamente:
– As guerras só servem para matar os nossos rapazitos, porque aquela terra não é nossa. Olha que quem te fala sabe bem o que diz. Sou muito velho, já passei as passas do Algarve. Foram também a 1.ª e 2.ª Guerra Mundial. Nem sei às vezes quantos anos tenho. A nossa terra é aqui, esta é que é a nossa terra. O filho do João da Burra parece que vem inteiro. Agora os outros!?  Vê bem quantos desta terriola vieram na madeira dos caixões? Olha que o filho do Ti Jaquim da Ponte desapareceu lá em Angola. Coitada da mãe. Parece que morreu com o filho. E o nosso João da Burra?  Como ele andava!
– Mas se pensa desse modo, porque fez isto que diz que é um sol­dado?
– O pacato do boneco até parece ter vida – respondeu o Ti Manel algo confuso.

Sentindo­‑se questionado, sabendo ser extremamente difícil com­preender as razões que ele próprio não percebia, o oleiro levantou­‑se com certa dificuldade do banco de madeira e abraçou o imenso monte de barro moldado pelas suas mãos, também enormes:
– Sei que ninguém nesta terra me compreende. Vão saber desta minha criação, mas eu nunca tive um filho. 

Após um momento de reflexão, continuou:
– Pois este é o meu filho, é o José...

Via­‑se no olhar daquele velho oleiro uma alegria mágica, algo de inexplicável, parecendo ter retornado aos seus vinte, trinta anos. Era um homem novo e com sonhos.  A verdade era que aquele grandalhão boneco, como por artes mági­cas, começou a andar e sorriu. O sorriso ainda gaiato. Ti Manel, assustado, dirigiu­‑se para a porta daquela casa de pedra já muito velha.

Olhando para trás já sem medo, disse:
– O seu filho, o Zezinho, já anda e tem movimentos como gente.

O velho Pinheiro agarrou­‑se ao seu filho chorando. Era a sua criação, com a ajuda divina, transformado num ser humano.  Ninguém por momentos falou. Instalou­‑se um silêncio, interrompido por uma voz desconhecida, uma voz forte de quem sabe o que quer da vida:
– Ó pai! – deslocando­‑se junto do espelho velho, continuou: – mas eu estou nu, sou um soldado sem farda! 

Envergonhado, tapou o sexo com as suas mãos enormes cruzadas. A vida renascia daquele barro esculpido. Era o Zé, o Zezinho que falava. 

Aquele barro falava. Com uma incontida emoção o pai Pinheiro, não deixando de abraçar o filho que continuava com as duas mãos sobre o sexo, diz:
– Dá­‑nos essa manta que está sobre a arca!

Depois de receber aquela manta de retalhos das mãos do Manel, cobriu as costas do filho, aquela sua criação feita verdade.  O tempo foi passando e o Zé já era soldado, nascera soldado. É que ninguém deveria negá­‑lo, era um soldado de corpo e alma, e ainda por cima. Toda a gente da povoação sabia serem os moços da terra e vizinhança, na grande maioria, analfabetos.

Naquele momento era um português, igualzinho a qualquer outro só com uma pequena diferença: – fora moldado pelas mãos de artista do Ti Pinheiro e transformado em ser humano, mas soldado. Não o soldadinho de chumbo ou o Pinóquio das histórias de encantar, mas o soldado de barro do oleiro. Era de tal modo igual a um soldado, que conhecia tudo sobre os mili­tares. Marchava, tinha uma ótima preparação física, não se notando sequer o cansaço quando fazia quilómetros, e bastantes, em volta do povoado.  Falava de armas, deixando as pessoas à sua volta admiradas. É que nascera soldado. Até tinha um camuflado. 

 Gostava muito do pai e falava da mãe que não tinha. A mãe Gertrudes, esposa já falecida do oleiro Pinheiro. O velhinho Pinheiro sentia­‑se alegre e mais novo, mas por vezes punha­‑se a pensar com os seus botões:
– O meu Zé é militar, vai deixar de ser meu. Vou ter de o registar, dar­‑lhe um nome.  Tem que ir “às sortes” porque nasceu soldado. E ainda para tristeza minha, os moços daqui ficam todos apurados para o serviço militar. Quando lhe toco é realmente um ser humano. Mas há qualquer coisa que não com­preendo. Ao mesmo tempo ele é de barro. Não é como nós e, ainda por cima, nasceu soldado.

Um dia, há sempre um dia, o Zé partiu para a tropa. Fez a recruta, a espe­cialidade. Era o melhor soldado entre os soldados. Mas sempre soldado.  Só que, semelhante a outro qualquer ser vivo, não se cansava, não chorava e era disciplinado. O velhinho Pinheiro quando o via em casa, nas dispensas de fins-de-semana, questionava­‑se:
– Terei sido castigado por desejar ter um filho? Queria um filho, que a minha Gertrudes, Deus tenha a sua alma em descanso, nunca me deu. Tenho um filho que nasceu militar. Tenho um filho que é soldado.

O velhote, por um instante ficou como que paralisado.  O Zé é mobilizado para a Guiné. O velhinho Pinheiro chorou. As lágrimas caiam pelo rosto gretado, para cima do barro que amassava. Não tinha interesse pelo trabalho. O momento era péssimo, porque se aproximava o Natal e tinha muitas encomendas.

Estando em casa de licença, o Zé acompanhava o pai e tentava convencê­‑lo que tudo correria bem. Mas o velho oleiro não se conformava. Aquele rapaz não era como os outros. Era de barro, o seu amado filho. Corria o risco de se quebrar.

Foram uns dias amargos, bem amargos. O pai ficou mais ligado ao filho do que nunca. Era o seu filho, não carne da sua carne, mas também da sua carne.  Chegou o dia do embarque e o velho oleiro lá partiu para o cais de Alcântara, em Lisboa.  Esteve uns breves momentos com o seu Zé, soldado de barro. O seu filho afastou­‑se lentamente, olhando­‑o profundamente. Não chorava. Come­çaram a formar­‑se os Batalhões e as Companhias. Alinhados. Lá estava o seu Zé na formatura. Era o mais belo dos soldados, pensou o velho oleiro.

Apetecia­‑lhe gritar:
– Este é o meu filho!

Depois de algum tempo todos começam a embarcar. O barulho, um imenso barulho, instala­‑se no cais, pequeno para tanta gente:
– Meu filho!? – diz alguém repleto de angústia.

Foi o toque mágico. Os gritos não chegavam para sarar as feridas. Era um quadro difícil de explicar. Os lenços seguros nas mãos e içados nos braços, pareciam exigir misericórdia. Uma nuvem trágica de cores pintava aquele cais de medo. O velho oleiro parava no tempo olhando o barco que começava a progredir nas águas sujas, tentando ver ainda o seu Zé.

Aquela amálgama de barulho ensurdecedor partia­‑se. Ouvia­‑se dis­tintamente o grito do cais e do barco que desaparecia quase na linha do mar, bem ao fundo. O tempo passou. A ligação era o aerograma. Mas o Zé não escrevia, não sabia ler nem escrever. Era um outro soldado, também José de seu nome, quem escrevia as letras para o velhinho muito velhinho:
– Estou bem, meu pai!

Aproximava­‑se o Natal e nem uma carta. Nem sequer um aerograma. Véspera de Natal, Natal, e o José não dava notícias.

Um dia o velho oleiro, enquanto trabalhava, vê pela janela aproximar­‑se o carteiro da terra. Vinha de bicicleta na mão:
– É um telegrama! – diz o homem do correio daquela terriola:
– Dá cá! – responde o velho Pinheiro, limpando as mãos às calças sujas e segurando de imediato aquele papel branco com ambas as mãos:
– O meu Zé morreu! – diz chorando.

O muito velho oleiro morreu passados dias. Não tivera Natal. O Zé morrera na noite de Natal.

O Zé era de barro, como os outros Zés soldados, e partiu­‑se, nem os cacos se aproveitaram. O soldado de barro é sempre de barro. E o barro parte­‑se.  Por tal motivo é que existem por esse mundo fora ruas com os nomes de soldados de barro, feitos heróis esquecidos.  É de barro o soldado. Os soldados de barro dessa guerra, que ainda sobrevivem. Andam por aí feitos em cacos. Fisicamente e psiquicamente.
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Nota do editor:

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16219: Nota de leitura (849): “A Estrela de Ganturé”, conto de Natal inserido na Revista Liber 25 de Dezembro de 1981 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,

Há surpresas impagáveis e uma delas é um sujeito ficar especado na Feira da Ladra a olhar a capa de uma revista que lhe diz qualquer coisa, não sabe bem o quê, a memória dá as suas mordidelas e, confuso, o sujeito remexe na publicação e encontra uma historieta da sua autoria escrita um pouco às três pancadas em 1981, a lembrança estava totalmente esvaída. O curioso disse tudo a que havia para ali torções e distorções em datas e lugares. Mas aquela criança, que foi possível rever cerca de 20 anos depois, fora mesmo uma estrela, iluminara a vida de um jovem alferes que vivia nos meandros do Cuor disfarçado de sentinela no Geba.

Coisas que aconteceram e assim se demonstra mais uma vez que a realidade supera em toda a linha a ficção.

Um abraço do
Mário


A estrela de Canturé 

Beja Santos

Desta feita, a surpresa deixou-me boquiaberto, folheava aquela publicação que me dizia algo, mas o inesperado de encontrar ali uma historieta minha era demasiado forte para memória tão curta. Comprei a revista e fui revendo todos aqueles acontecimentos que engendraram a minha colaboração. “A estrela de Canturé” terá sido redigida algures em Outubro de 1981.

Carlos Cruz Oliveira telefonara-me para me informar de um projeto sobre cadernos da guerra colonial, fora criada uma editora para tal efeito, Andrómeda. Que eu escolhesse os temas, se quisesse eu podia dar primazia ao consumo, falar das coisas da minha profissão, mas bom seria que escrevesse de vez em quando sobre as minhas memórias da participação da guerra da Guiné. A tudo foi dizendo sim, ao quem dera, logo que tivesse disponibilidade fazia o gosto ao dedo.

Passaram as semanas e os meses, e um dia o Carlos Cruz Oliveira lançou-me um ultimato suave, havia um número praticamente pronto para o fim do ano, insistiam num texto meu. Imprevidentemente, prometi entregar nas próximas 48 horas e dei comigo a pensar: numa revista militar para civis, simultaneamente revista civil para militares, era esta a consigna da “Liber 25”, porque não puxar pelos escaninhos da memória, trouxe-mouxe, e parturejar umas recordações não remíveis, daquelas que latejam intermitentemente para demonstrar que há memórias que não se apagam?

Sentei-me à mesa, e sem papéis de consulta, de um jato nasceu “A estrela de Canturé”:

De Missirá a Gã Gémeos, a água dos arrozais desfez a estrada, estávamos em meados de Novembro. Um daqueles riachos que vai para o Geba empapou o desgastado trilho de Finete a Bambadinca. Ficámos incomunicáveis, os enfermos da doença do sono sem médico, o municiamento ainda mais difícil, estávamos sem farinha, entregues a todas as contingências da chuva, eram colunas pedestres, já que o Unimog não podia vencer o lamaçal. Colunas diárias supliciantes, fardos às costas, cunhetes de granadas em padiolas, os doentes bamboleando-se em cadeirinhas de braço humano. E não nos aliviava saber que muitos outros, noutros sítios, viviam a mesma azáfama dentro da lama.

Foram colunas que se repetiram até àquela véspera de Natal. Para falar verdade, tive a premonição logo ao chegar a Finete, também nosso cordão umbilical até Bambadinca. A Finete que eu recordo estava nas faldas de um outeiro rochoso, outeiro escalvado numa argila dura onde, como dedos gretados de sangue, se erguiam os palanques dos sentinelas, vigiando o mato denso, ouvindo o piar lúgubre dos pássaros negros que remavam em direção ao Corubal.

Condoía-me a resignação de Finete, a sua milícia sustentando aquela posição vital, porque sem aquela retaguarda nem Missirá seria um ponto difuso no mapa, sem Finete não seríamos o tal alfinete vermelho espetado no mapa da sala de operações. Finete era um ponto de passagem antes de nos metermos ao caminho, no trilho enlameado até Bambadinca e regresso, e ajoujados de comida, munições e doentes na caixa do Unimog 404, rumávamos para Missirá.

Vamos então falar daquele menino que me aquecia o ânimo, que me encorajava a prosseguir, Abudu. Abudu era um menino deformado, um rosto lindo, no seu corpo explodira uma granada incendiária. Um dia, Malã Cassamá despiu as vestes de Abudu: dos braços esquálidos prendiam-se enoveladas cordas de pele, impedindo o crescimento natural do corpinho; nas costas, outras camadas de pele, uma teia de costuras descendo até às coxas, pele que se colava à cintura pélvica, dando o recorte ao abdómen disforme, a inchar a pletora, onde caíam regos de costura e carne arrepanhada. Mas é este Abudu o meu companheiro de trilhos alagados, é ele quem me sustenta a náusea da solidão e me incita a vida dentro da circunferência de horrores de que se faz a minha guerra, onde tenho os meus inimigos absurdos e onde há corpos desfeitos que enterramos à enxada. É Abudu quem me persigna dos irãs vingativos, é Abudu o meu último fio de música que me embala, numa véspera de Natal, por quatro quilómetros de lama com vermes, vamos apressados para organizar o dia de Natal.

É a estrela de Finete, o menino dilacerado por uma granada incendiária, que me acompanha no regatear de alimentos, nas idas às transmissões, ao depósito da engenharia, às viaturas, às munições. Abudu é este incêndio nas mãos e aquelas duas pupilas que atravessam o sol quente, saltitando ao meu lado enquanto eu desdobro morosas listas de víveres, munições, ligaduras, cimento, alicates, lençóis e fronha.

Abudu quer ir passar o Natal a Missirá, a mãe consente. E lá vamos no Unimog em direção àquela paliçada em frente a capitosas matas onde, não muito longe, se acoitam os guerrilheiros. Sento-me ao lado do condutor, Abudu por ali perto, o anjo emudecido, o meu rei de presépio, para esta noite. Sacode-me a segunda premonição, é aquele silêncio opressivo na mata, e a segunda premonição vai ser consumada: Manuel Guerreiro Jorge, natural do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, uma criança de olhos mansos, talvez um futuro seareiro, enconcha as suas mãos azeitonadas para acender o seu último cigarro. Porque logo a seguir se desfecha o enredo inextrincável, a picada abre uma garganta de dragão, fazendo estoirar naquele lusco-fusco, na curva de Canturé, um Unimog em fagulhas, corpos em estilhaços, braços dilacerantes, era um embriagado corno da morte, e eu a pensar em Abudu, meu presuntivo rei de um presépio. Quantos minutos ou segundos para eu ficar com Manuel Guerreiro Jorge transformado em tocha ardente.

Quantos minutos, segundos, que castigo para ver e sentir que uns se ferem e outros ferem, que aquele caminho aprazível para antílopes em viagem, ali se frecham irmãos e arroxeiam os corpos? Aos tombos, lá retomámos o caminho para Missirá, deixámos para trás o Unimog agonizante, somos agora uma coluna fantasmagórica, acobertados pela noite tropical num céu estrelado, a razão de ser de uma viagem ficou naquela curva de Canturé. Transportamos um moribundo e sete feridos graves, o arado desta guerra. Tarde e a más horas suplica-se um helicóptero, procura-se amenizar as dores dos feridos. Não há ânimo para a passagem de Natal, cada um recolhe-se à sua alfurja, uma casamata fria. É então que se dá o sonho ou o delírio. Inventa-se uma meia-noite de palha emplumada. A tremelicar, vai avançando para mim uma piroga festiva, Abudu acena-me, é uma estrela candente, e nesse preciso instante fecham-se para todo o sempre os olhos de Manuel Guerreiro Jorge. O que morre nasce, o que me faz estremecer alteia e eu pergunto-me, cheio de mágoa: qual o teu desígnio, Abudu, ao que vens neste teu repasto de consolação?


2. As coisas não se passaram assim, conforme as escrevi nesta historieta. Houve mina anticarro naquela curva de Canturé, mas tudo se passou no fim de tarde de 16 de Outubro. Abudu Cassamá existe, visitou-me em 1991, quando fui cooperante na Guiné. Sempre que via amigos ou conhecidos de Missirá e Finete pedia insistentemente para me trazerem notícias de Abudu. Eu vivia nas instalações da Cicer, e foi aí que ele me bateu à porta, às punhadas. Abri de repelão e dei-me com um desconhecido de cabelo hirsuto, parecia uma juba. Perguntei ao que vinha: “Sou o Abudu de Finete, quero saco de arroz, um rádio e um relógio, a vida está muito difícil na Guiné, tu tens que ser o meu paizinho”.



Pedi-lhe para passearmos, fomos a pé até Bissau, queria saber dos seus estudos, como lidava com o seu sofrimento, o que fazia, onde vivia. Ele ia respondendo aos solavancos, com respostas evasivas, insistia que eu era o seu paizinho, tinha obrigação de o trazer para Portugal, fora uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, em 1966, que lhe trouxera aquela maldição.

Contei-lhe que ele fora o personagem do meu primeiro auto de averiguações, que enviei deprecadas para Portugal continental e ilhas, instei um capitão, dois alferes, não sei quantos furriéis e primeiros-cabos a responder aos meus quesitos, nada se apurou, aquela criança tinha direito a uma compensação. E no grande incêndio de Missirá todo aquele volumoso processo ficou reduzido a cinzas. Recomeçou-se com menos ânimo, transferi o dossiê para o meu sucessor. Abudu Cassamá foi seguramente mais uma das grandes vítimas da guerra. Mas naquela noite, pressionado pelo Carlos Cruz Oliveira, deu-me para transformar Abudu em estrela, fi-lo rei de um presépio, dei-lhe o pleno poder de ser a minha paz navegante. E consegui-o.

Já me tinha esquecido desta estrela de Canturé, nos termos em que a alumiei para a revista Liber 25. Abudu Cassamá está seguro no meu coração, é uma das imagens do horror da guerra, da falta de sentido que premeia um ato negligente de deixar uma granada incendiária dentro de um reboque, numa povoação cheia de crianças.

Regresso da Feira da Ladra a olhar a capa da Liber, há qualquer coisa de familiar naquele desenho, intrigado vou ver a ficha para saber quem é o seu autor: nem mais nem menos de que Rolando Sá Nogueira, de quem fui muito amigo e nos deixou em 2002. Há estrelas que nos aproximam, depois disfarçam-se de cometas que esvoaçam no tempo e depois, inopinadamente, prantam-se diante dos olhos, iluminando passado, presente e futuro. Mal sabia eu em 1981 que 25 anos depois iria pôr em ordem toda aquela escrita e publicar o poema que dediquei a Abudu, a minha estrela de Canturé.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16212: Nota de leitura (848): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15536: Conto de Natal (23): O antigo Natal (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 23 de Dezembro de 2015:

O Antigo Natal

Pelo entardecer, o lavrador recolheu a casa. Era dia de consoada. Na cozinha, a mulher e a filha trabalhavam com afã na preparação da ceia.

A ceia de Natal, da festa grande, merecia canseiras especiais. Era necessário fazer os mexidos, a aletria, as rabanadas, enfim, preparar tudo para que a festa da família fosse mesmo uma festa. E o lavrador, esse, chamou o filho, pegou numa grande infusa de barro vermelho, e os dois foram para a adega, que era um espaço escuro, no rés-do-chão da casa, onde os pipos do vinho se alinhavam, cobertos de pó e de algumas teias de aranha.

Aquele era um espaço onde apenas a luz ténue da candeia de petróleo permitia descobrir as pedras negras do lagar, e a grande trave de carvalho, que o atravessava, com um fuso em madeira na extremidade, que servia para espremer os restos das uvas, por altura das vindimas. Os cascos do vinho repousavam ali, desde a colheita que tivera lugar ainda havia escassos três meses. Voltando-se para o filho, o lavrador murmurou, apontando para um pipo, não muito grande, feito de madeira de castanho, já muito escuro:
- Vamos experimentar este. Daqui costuma sair uma boa pinga.

Menos conhecedor daqueles segredos, que só os muitos anos ajudam a desvendar, o filho respondeu-lhe:
- Está bem, pai. Pode ser mesmo desse. De certeza que deve estar uma categoria.

O velho homem poisou a candeia ali ao lado, sobre um pequeno banco, passou a infusa para as mãos do filho e, servindo-se de uma verruma, começou a retirar de um pequeno orifício que existia na cabeça do pipo, a bucha de estopa que impedia que o vinho saísse para o exterior do casco.
Depois de retirada a estopa, começou a jorrar pelo pequeno buraco, para dentro da infusa, um vinho tinto maravilhoso, que se desfazia em espuma avermelhada, de impressionante beleza.

Ao fim de alguns segundos, o lavrador colocou de novo a bucha no orifício e, voltando-se para o rapaz, disse-lhe:
- Vamos prová-lo. Se não estiver em condições, experimentamos outro.

Num gesto quase religioso, tomou nas suas mãos calejadas a infusa, olhou para aquele líquido sagrado feito com as uvas vindas da generosidade das videiras e do trabalho das suas mãos e bebeu alguns tragos do elixir maravilhoso. Depois, voltando-se para o filho, desabafou:
- Vinho melhor do que este não pode haver. É uma verdadeira preciosidade.
Passando-lhe a vasilha para as mãos, ordenou:
- Anda! Prova também tu esta delícia.

Repetindo o gesto do pai, o moço levou aos lábios o bico da infusa, e saboreou uns golos daquele líquido sagrado, dizendo depois para o velho:
- Sim! Este vinho é uma verdadeira delícia. Não pode haver melhor para uma ceia de Natal.

Em seguida, o lavrador encheu a caneca com aquele vinho tão especial e voltando-se para o filho recomendou-lhe:
- Este, vai levá-lo ao senhor Rodrigues.

O moço lá foi, apressado, entregar aquele presente.
O senhor Rodrigues era um pobre homem que morava ali perto, jornaleiro de profissão, que vivia miseravelmente, com a mulher, também um pobre diabo, para quem a vida tinha sido mais madrasta do que mãe. Mas na noite de Natal aquela gente tinha direito a ter à mesa pelo menos um vinho de excelente qualidade, acabado de jorrar de um pipo acabado de violar.

Enquanto o filho foi à casa do vizinho, o lavrador, deleitou-se a fumar um cigarro, na penumbra da adega, aguardando que ele regressasse. Depois, quando o filho chegou com a infusa, ele encheu-a de novo e ordenou-lhe:
- Este, vai levá-lo a casa de fulana.

O rapaz lá foi de novo levar aquela oferta, que se repetiu várias vezes, generosamente, pois não podia faltar vinho na mesa dos pobres durante a ceia de Natal.
Quando o filho regressou, depois de entregar a última oferta, o homem encheu de novo a infusa e, acompanhado pelo rapaz, subiu para a cozinha que ficava no primeiro andar da casa. Na lareira, o lume ardia a bom arder. Os potes muito negros, feitos de ferro fundido, dispostos à volta do lume, ferviam havia muito tempo e deixavam soltar-se um vapor quente e perfumado, sinal de que a ceia estava quase pronta. Era uma mistura de odores agradáveis que se desprendiam das couves galegas já quase cozidas, do bacalhau e das batatas, que na noite de Natal têm sempre um cheiro e um sabor inconfundíveis.

Quando tudo estava pronto, a mulher do lavrador retirou os potes do lume, escoou a água fervente e colocou toda aquela comida sobre as travessas de porcelana, previamente colocadas sobre a mesa. Depois sentaram-se todos à mesa, na cozinha iluminada apenas pelo brilho da lareira e pela mortiça luz da candeia de petróleo e comeram daquelas iguarias quase sagradas e beberam daquele vinho maravilhoso feito ali, naquela casa, pelas mãos experientes e sábias do homem do campo.

Terminada a refeição, o lavrador e o filho voltaram para a lareira, enquanto a mãe e filha arrumavam os pratos e outra loiça. Foi então que o filho reparou que a mãe não tinha retirado da mesa a toalha de linho muito branco, apenas ligeiramente manchada por algumas gotas do vinho tinto. E voltando-se para ela perguntou-lhe:
- Ó mãe! Por que não retiras a toalha da mesa?

E a mãe, ocupada ainda com o arrumo das loiças, respondeu-lhe:
- Na noite de Natal, a mesa fica posta até ao dia seguinte.
- Então, porquê?
- É que, durante a noite, quando a escuridão baixar sobre a cozinha, as alminhas dos nossos antepassados vêm sentar-se a esta mesa e saciar-se com o nosso pão e com o nosso vinho. É por isso que na noite de Natal a mesa deve ficar posta. Vai ficar tudo conforme estava quando nós terminámos de cear. Depois de saciadas, de terem comido do nosso pão e bebido do nosso vinho, as alminhas vão para a igreja e ficam junto do presépio a adorar o Menino Jesus.

Naquela santa noite, e na casa daquele lavrador, havia como que um ressuscitar de todos os antepassados mortos. Só Deus sabe quantas gerações vinham ali conviver na solidão daquela mesa, na santa noite de Natal! Era a família toda, - as gerações desaparecidas só Deus sabe há quanto tempo, e as pessoas ainda vivas, que ali moravam a celebrar religiosamente a Santa Noite.

Depois de arrumar a cozinha, a mãe e a filha também se sentaram à lareira, junto daquele calor sagrado e toda a família ficou ali durante longo tempo, à espera que chegasse a meia noite, para celebrar o nascimento do Senhor.
Quando a hora sagrada chegou, o lavrador abriu uma garrafa de vinho do Porto, enquanto a mulher trazia o prato com as rabanadas e todos celebraram o Feliz Nascimento. Em seguida, acossados pelo sono, foram descansar.

Antes de sair da lareira, o filho reparou que a mãe retirou do fogo uma grande canhota de carvalho, que apagou com muito cuidado, colocando-a fora do lume.
Curioso, perguntou-lhe:
- Ó mãe! Para que serve essa canhota?

Com muito respeito, a mãe voltou-se para o rapaz, dizendo-lhe:
- Esta canhota é para ser muito bem guardada e serve para se colocar no lume a arder quando houver trovoadas ou tempestades. Por onde o fumo que esta canhota libertar, quando estiver a arder, for passando, a trovoada e a tempestade desfazem-se. É um fumo milagroso o que se liberta desta canhota retirada da fogueira de Natal. Nunca te esqueças disto. Quando fores grande, guarda sempre uma canhota de carvalho, retirada do lume do Natal, para proteger a tua casa. E, se puderes, quando trovejar muito, põe também no lume um bocadinho do ramo de oliveira benzido no Domingo de Ramos.

O filho guardou a mensagem. Nunca mais esqueceu aquelas palavras da mãe. E aquela família, cumprido que foi todo aquele ritual, uma mistura de fé em Deus e na força telúrica bebida ali à sombra do céu da aldeia, e na tradição antiga, que tantos antepassados foram passando de boca em boca, foi descansar. É que, pela manhã, muito cedo, todos tinham de ir à missa, beijar o Menino Jesus e admirar a simplicidade do presépio.

Quantas saudades restarão, hoje, no seio de tantas famílias, - meu Deus -, desse Natal distante?
Já não existem, por certo, pais a contar estas histórias, e também não aquelas lareiras aconchegadas.
Já não há crianças a distribuir infusas de vinho pelos pobres, nem alminhas que vêm pela noite comer na mesa dos mortais!
E já ninguém retira da lareira a canhota de carvalho, o lenho sagrado, capaz de afastar as trovoadas e as tempestades!...

O próprio Menino Jesus no seu presépio, já não é o que era!...
A ele, hoje, dá-se menos importância do que ao Pai Natal, - esse barbudo esquisito, que nesta época aparece por todo o lado, e até entra pelas janelas -, que o suplantou na distribuição das prendas à criançada!
Quem se lembra dele, a descer durante a escura solidão da noite, para deixar no sapatinho, junto à lareira, as tão desejadas prendas?!...

O Natal de outrora, já tão distante, é a saudade.
E não regressa mais!...
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P14077: Conto de Natal (22): Uma bênção dos Céus (Domingos Gonçalves)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14077: Conto de Natal (22): Uma bênção dos Céus (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Dezembro de 2014:

Prezado Luís Graça
Para si, seus familiares e amigos, e para todos os que, colaboram, ou visitam, a TABANCA GRANDE, os mais sinceros votos de FELIZ NATAL, e de um ano de 2015 repleto de muitas coisas boas, em especial saúde.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


CONTO DE NATAL

O senhor Joaquim era um homem pobre. Possuía, é certo, um pequeno casebre meio arruinado, que o abrigava da intempérie, e ao lado umas leiras estreitas, onde colhia, alguns produtos agrícolas, regados com suor, e lágrimas, que ajudavam a matar a fome à mulher, e aos filhos. Todavia, os cereais, - milho e centeio -, com que a mulher, em casa, fabricava o pão, tinha de os comprar aos lavradores da aldeia. Com o azeite, e com o vinho, passava-se a mesma coisa: tinha de os comprar.

Quando os proprietários da aldeia lhe davam a ganhar alguns dias, como jornaleiro, na época das colheitas, ou das sementeiras, vivia melhor. Quando isso não acontecia, a miséria em casa era uma realidade.

Possuía, também, algumas ovelhas, que ora pastoreava nas pequenas leiras, que eram terra sua, ora pelos montes da aldeia, nos terrenos dos lavradores mais tolerantes, pois havia alguns que não consentiam que a ovelha, ou a cabra, do pobre, comessem as ervas, ou o mato, que vicejavam nos seus terrenos.

Um dia reparou que uma das ovelhas andava prenhe, e ficou contente. Era uma bênção de Deus.
Em casa comentou com a mulher, e com os filhos:
- Que sorte a nossa! A cria vai nascer antes do Natal. Já temos garantido o dinheiro para comprar o bacalhau, e outras coisas boas. Mesmo que venda o anho mais tarde, lá para Janeiro, ou Fevereiro, o bendeiro fia de nós, pois sabe que temos um anho para vender.

Desabafava:
- Este ano até podemos dar uma esmolinha ao Menino Jesus.

O filho mais novo, que frequentava a catequese, para fazer a primeira comunhão, satisfeito, dizia para os pais, e para os irmãos:
- Quem leva a esmola para dar ao Menino, sou eu.

A ovelha que andava prenhe foi uma bênção caída do céu, um raio de esperança, prenúncio de uma ceia de Natal melhorada, para toda a pobre família.

Um certo domingo, no fim da missa da manhã, um rico lavrador da aldeia abordou o pobre homem, para lhe oferecer trabalho.
Disse-lhe:
- Queres-me roçar uns carros de mato, durante a semana que vem?
- Quero! – Respondeu-lhe, com ar feliz -. Posso-lhe roçar todo o que precisar.

Sempre que alguém lhe oferecia trabalho, não desperdiçava a oportunidade de ganhar algum dinheiro.

De seguida, foram os dois, - o lavrador e o jornaleiro -, ao monte ver o local onde crescia o mato que devia ser roçado.
Acertado o preço do trabalho a realizar, e a quantidade de mato que devia ser roçado, o jornaleiro pediu ao lavrador:
- Quando vier roçar o mato posso trazer as minhas ovelhas, e deixá-las a pastar aqui, nos seus terrenos, enquanto trabalho?
- Claro que podes. Deixa-as pastar, por aí, pois não me incomodo com isso.

Nos dias seguintes o homem levantou-se cedo, foi par o monte roçar o mato, e levou com ele as ovelhas. No fim da jornada de trabalho, conduzia-as para casa.
Porém, num certo fim de tarde, quando juntou os animais, para regressar a casa, reparou que lhe faltava a que andava prenhe.
Tinha desaparecido.

Desconsolado, chamou e voltou a chamar pelo animal, procurou à volta, mas da ovelha prenhe não havia rasto.

Quando chegou a casa, a chorar, disse para a mulher, e para os filhos:
- A ovelha prenhe desapareceu! Lá se foi a nossa ceia de Natal.

Uma onda de tristeza espalhou-se pelo rosto da mulher, e dos filhos. A esperança deu lugar ao desencanto. Todo o ambiente da família se alterou. Sem dinheiro, não podia haver ceia de consoada.
- Terá sido o lobo a comê-la? – Perguntou a mulher.
- O lobo, não, - disse-lhe -. Este ano ainda não apareceu por estes montes.

No meio de todo aquele desespero, apenas o filho mais pequeno, que ainda não tinha feito a primeira comunhão, repetia, confiante:
- Ela vai aparecer. O Menino Jesus vai trazê-la. Eu vou lhe pedir, e ele vai fazer o milagre.

No dia seguinte, pai e filhos foram, logo que alvoreceu, para o monte procurar a ovelha, cada vez para mais longe.
Mas, da ovelha prenhe não encontravam nenhum vestígio.
O pai, perdia a esperança. Só o pequerrucho insistia:
- Ela vai aparecer. O Menino Jesus vai fazer o milagre.

No dia seguinte, ajudado por alguns vizinhos, o pobre homem foi de novo procurar a ovelha, mas em vão.
Desanimado, por entre lágrimas, repetia:
- Lá se foi a minha ovelha, e o anho que trazia na barriga!

Onde antes reinava a esperança, agora imperava o desespero, e a tristeza.

Quando, ao fim da tarde, depois de muito procurar, já sem esperança regressavam a casa, o rapazito diz para o pai:
- Olha acolá uma ovelha! É a nossa, de certeza!

O pai olhou para o sítio que o filho lhe indicara, e exclamou satisfeito:
- Tens razão, filho! É a nossa ovelha!

E correu para ela cheio de esperança.

O dócil animal encontrava-se numa pequena leira, bastante perto da casa do pobre homem, onde nunca a tinham procurado.
Quando chegou ao local o homem verificou que a ovelha tinha dado à luz não um, mas dois lindos anhos, que estavam junto da mãe, que se entretinha a pastar algumas ervas.

Delirante, o pobre homem ergueu as mãos ao céu, e gritou agradecido:
- Graças a Deus! Graças a Deus!

Cheio de alegria, o filho mais pequeno gritou, também:
- Foi o Menino Jesus quem a trouxe! Foi ele que fez o milagre! Quem lhe vai dar a esmola, quando estiver no presépio, tenho de ser eu. Eu pedi-lhe, e ele trouxe-nos a ovelha.
- Está bem, filho! – Disse o pai -. Vais ser tu a agradecer-lhe.

E na casa do pobre homem, na noite de Natal, houve muita alegria, e ceia melhorada.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14056: Conto de Natal (21): Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha (Mário Beja Santos)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14056: Conto de Natal (21): Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2014 com o seu Conto de Natal:

Queridos amigos,
Envio-vos esta lembrança com os melhores votos de mil alegrias natalícias e um 2015 muitíssimo melhor do que este, em sonhos, projetos, pleno de carinhos familiares, um abraço do
Mário


Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha

Beja Santos

Sei que as coisas aconteceram aí pela segunda semana de Dezembro, mas não sei precisar a data. Viera a Bambadinca depois de uma noite a montar segurança em Mato de Cão, os batelões, com uma LDM à frente, entraram no Geba Estreito ao romper da alva, nem refleti duas vezes, pedi boleia para toda a minha malta, e na viagem fui distribuindo tarefas: tu e tu vão tratar do material de transmissões; aquele e aqueloutro pegam nas requisições da comida e lembram ao vagomestre que voltaremos dentro de três dias, dali não sairemos sem uma caixa de bacalhau, traremos o “burrinho” até à margem do Geba; e vêm comigo sicrano e beltrano e vamos até à engenharia por causa dos sacos de cimento e dos prometidos rolos de arame-farpado. Cada um faz o mata-bicho por sua conta, arrancamos para Finete antes do almoço.

Chegámos, pois, cedo, quando a CCS entrava em ebulição, e deu para avistar o comandante a caminho do seu gabinete, saudei-o à distância, tinha mais que fazer. Discutia com o Furriel Dário alguns outros materiais de construção quando avançou em pose Bala, o 19, a intendência do Comandante, fez a continência, mostrou dois dentes em ouro e anunciou: “Nosso comandante precisa de conversar com alfero, logo que esteja despachado vá ao gabinete, é coisa para tratar antes de partir para Missirá, sem falta”. Tudo levava a crer que, dentro do ritmo normal das coisas, se abria a perspetiva para: convocatória para uma operação; advertência para que não houvesse atrasos no pagamento do pré aos caçadores nativos; mais uma sangria de uma seção das milícias para as novas tabancas em autodefesa, cenário de protestos meus e até pedidos para ser retirado daquela guerra de fantasia, a querer melhorar os quartéis, a abastecer imperativamente centena e meia de civis em duas tabancas e com gradual redução de efetivos. Chegara há pouco tempo e já estava farto de tanta omeleta sem ovos, uma guerra de guerrilhas em tom pobrete e sem alegrete.

Mas não, o Comandante recebeu-me não esfusiante mas estranhamente compreensivo, até parecia estar interessado com o andamento das escolas, a melhoria dos abrigos, transmitia-me que o régulo lhe viera agradecer pessoalmente os benefícios que estavam a ser introduzidos no seu território. E após este discurso amenizado, comunicou-me que houvera ali um desacato com um soldado básico, um abrutado que só tinha altura e peso, que comia arrobas de batata, arroz e massa e que, dois dias antes, numa estúpida discussão, enfiara uns sopapos valentes num cabo da manutenção das viaturas que tivera de dar baixa à enfermaria com os maxilares deslocados, ainda não era líquido que o homem não estivesse fraturado. “Faça-me o favor, leve-me aquela besta consigo, não lhe pode dar uma arma para as mãos, dê-lhe trabalhos de trolha, de carpintaria, coisas assim, não o ponha em reforços, é tão brutamontes que não percebe que não pode dormitar no posto, aqui não pode ficar mais tempo, aguente-o, converse com ele, fale-lhe maneirinho, é impossível trazê-lo à razão, o tipo deve ter serradura na cabeça. Daqui a um mês falamos, deixe passar o Natal, pode ser que o anormal se dê melhor lá no fim do mato do que aqui”.

Chamava-se Anastácio, era natural de um lugarejo perto de Pedrógão Grande, suspirava pelos campos de milho, as plantações de batata e o pastoreio das cabras. Frequentara sem nenhum sucesso a escola da freguesia de Vila Facaia, a professora sentiu-se derrotada, o Anastácio não queria nada com a tabuada, a leitura, a redação, nenhum trabalho escolar o impressionava, trabalho só os do campo. O corpo era uma desmesura, quase um metro e noventa, um volume de carnes a fazer pregas, umas manápulas que pareciam enxadas, um vozeirão cavo e quando soprava qualquer sílaba dilatavam-se-lhe as ventas, as sobrancelhas pilosas avançavam pela testa estreita, parecia mato à solta.

O Anastácio acomodou-se, circulava pacífico, adorava ir buscar água à fonte de Cancumba, desmatou furiosamente, criou horta, fez bancos, conversava com os miúdos animadamente. Vieram reclamações do abrigo do Raposo, contrabandista no Marvão, o soldado básico emprestado a Missirá roncava como uma locomotiva, sacudiam-no, era o mesmo que nada. E o cozinheiro andava de boca à banda, com aquela enfardadeira que não se contentava com palha.

Passavam-se os dias, e começou-se a discutir a festa de Natal, a consoada e o almoço do dia 25, primeiro para os homens grandes, depois para as mulheres e crianças, e depois para nós. O Anastácio ouvia tudo sem comentários. E um dia, a seguir ao almoço, acompanhou-me até à morança, e abordou-me:
- Meu alferes, quero que escreva à minha mãe, há coisas que não posso dizer pelas mãos dos outros.
- Olha, agora dava-me jeito, tenho que partir às quatro horas para Finete, antes ainda tenho uns papéis para assinar que seguirão para Bambadinca, entra, senta-te ali, tenho aerogramas que cheguem.

O Anastácio não cabia na cadeira, mandei-o sentar-se na minha cama, o folhelho gemia com aquele peso descomunal. Ele mexia-se a todo o instante, o folhelho parecia agonizar.

- Então diz lá o que deve seguir para a tua mãe.

"Mãe, saúde e felicidades para vocês todos, quero que a minha irmã Ermelinda vá ao Troviscal dizer à avó Zulmira que compre roupa com aqueles duzentos mil réis que foram na carta que mandei em Novembro. E que não me faça mais camisas de lã porque aqui não fazem jeito. Passo a vida a pensar nos meus animais, na égua que o meu pai me deixou, na burra e nas cabrinhas, fico contente em saber que nada lhes aconteceu. O dinheiro que vossemecê recebe é para a vaca, mas também para a promessa que fizemos à Senhora da Confiança se nada me acontecer aqui nesta guerra. Estou agora num sítio onde não me chateiam, mas a comida é um castigo, a carne das cabras não serve para fazer chanfana, o chouriço não tem gosto e há poucos legumes, felizmente que podemos comer bacalhau de vez em quando. Como à gente de cá, farto-me de comer arroz se não passo fome. 
Mãe, tenho um pedido para lhe fazer neste Natal. É o presépio que eu comprei na agência funerária da Sertã, tinha pouco dinheiro e só comprei o Jesus, a Senhora, S. José e aquela placa que lembra a casa dos animais. A vaca não me sai da cabeça, peço ao meu irmão Eduardo para pegar na mota e ir a Pedrógão à loja do Gil para comprar as figuras da vaca e do burro, nunca lhe perdoarei se ele não me fizer a vontade. E já que tem lembranças minhas, faça-me a vontade e tire essas roupas de preto, ainda não estou no cemitério, vista-se como se vestia antigamente, tristezas não pagam dívidas. E tenho mais outro pedido, é fazer-me o presépio e pôr musgo, gostava que ele ficasse ao pé do forno de lenha para eu me lembrar das noites frias e de estar quentinho ali ao pé, já lhe disse noutras cartas que este calor não interessa a ninguém, estou sempre a transpirar, vejo-me obrigado a tomar banho todos os dias e mesmo assim não fico satisfeito porque logo a seguir vêm os mosquitos a picar nas minhas banhas a escorrer. 
Mãe, não sei o que é que hei de dizer mais, é um oficial quem está a escrever a carta dentro de uma cubata, aqui a gente é mais pobre do que nós, felizmente ninguém me diz coisas desagradáveis, posso adormecer a ouvir música que ninguém me diz palavrões. 
Mãe, não se esqueça da promessa da vaca e do burro. Diga aos meus irmãos para me escrever. Vá estando atenta às vacas da feira de Pedrógão, eu quero um bicho gordo para recomeçar a minha vida quando para o ano para aí voltar. Não se esqueça que é ao pé do forno de lenha, ouviu?"

- Desculpa lá, pá, já vamos em três aerogramas, estás-te a repetir com esta história da vaca e do burro e do forno de lenha, ainda tenho coisas para fazer, ficamos por aqui, está bem?
- Obrigado pela sua paciência. Falou ali à mesa que queria ir a Bafatá comprar peças do presépio. Se não houver lugar para mim, não se esqueça de comprar uma vaca e um burro que eu depois faço contas consigo, é um assunto meu.

O Anastácio montou o presépio. Na hora da consoada pôs o Menino Jesus em cima de umas palhinhas e avisou: “Agora vou buscar um fogareiro, é o que há de mais parecido com o fogão de lenha da casa onde eu nasci e para onde estou ansioso por regressar”.

Imagem extraída do blogue Olhar Viana do Castelo, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14051: Conto de Natal (20): O "amor" de um bode ou a solidariedade entre animais (Manuel Luís R. Sousa)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14051: Conto de Natal (20): O "amor" de um bode ou a solidariedade entre animais (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com um belo Conto de Natal em que o protagonista não é o burrinho nem a vaquinha mas um bode.


O “AMOR” DE UM BODE

Sim, isso mesmo, o “amor” de um bode! 

Como pretexto para vos cumprimentar, de ir ao vosso encontro, tenho-vos enviado alguns dos meus “postais”, como, por exemplo, “O Douro sob o meu olhar”, "Vila Flor em dia de noivado”, “Vila do Conde é um poema”, etc. Hoje, com o mesmo objectivo, por muito estranho que vos pareça, imbuído de espírito de Natal, tenho o gosto de levar até vós mais um dos meus “postais” alusivo ao “amor”, solidariedade, companheirismo, em que o protagonista é este ruminante. Esses sentimentos que, pelo que presenciei, não são exclusivos dos humanos.

Como reformado, e como transmontano que se preza, cultivo um pequeno quintal num terreno contíguo à minha residência. Entre as diversas culturas que ali granjeio, como não podia deixar de ser, fiel aos costumes de Trás-os-Montes, plantei uma centena de pés de couves de penca, cuja finalidade, para alguns deles, era acompanharem o bacalhau na noite de consoada.


Ali próximo existe um campo a pousio, cujo proprietário, para evitar que o mato ali crescesse, autorizou um vizinho, depois deste vedar todo o perímetro do terreno com uma rede de arame, a colocar ali cerca de duas dezenas de ovelhas e meia dúzia de cabras, entre as quais o dito bode, a figura principal do enredo desta história.


As ovelhinhas, mais pachorrentas, limitaram-se sempre à área circunscrita pela cerca, enquanto que as cabras, lideradas pelo imponente e chifrudo bode, amarfanhavam a dita cerca com as patas e, “upa”, saltavam para fora e todos os terrenos limítrofes eram deles, incluindo, para minha “desgraça”, o meu bem tratado quintal.

Na minha ausência, para meu desgosto, os assaltos à minha horta sucederam-se, não obstante eu ter avisado o proprietário dos bichos, a ponto de todos os pés de pencas terem sido dizimados e, portanto, “nicles”, não há, este ano, daquela horta, couves para a consoada. Com uma selectividade cirúrgica, porfiaram fazer desaparecer apenas as couves de penca até à última folha, até ao tutano, ignorando as nabiças e as couves galegas ali existentes, provavelmente por terem um trago mais amargo.

Perante este quadro, tão cioso da minha horta, escusado será dizer o “pó” que eu apanhei aos caprinos que já não os podia “enxergar” e entre as pragas que lhes roguei, a mais benévola, era que uma alcateia de lobos por ali passasse e os devorasse. Descarregava a minha ira, algumas vezes, quando os via aproximar do quintal, correndo-os à pedrada. Tal era a frequência das investidas, que até já tinha pesadelos de noite ao sonhar que as cabras me estavam a invadir a horta.


Recentemente, encontrando-me eu no mesmo quintal a proceder à sementeira de inverno, das favas e das ervilhas, constatei que uma das cabras, ao tentar transpor a rede da cerca, lutava para se desenvencilhar das malhas de arame que se lhe enlearam no pescoço e nos chifres. Quanto mais estrebuchava mais o garrote a apertava.

- Bem feito..., bem feito…, é para que te sirva de emenda para não vires cá para fora a abocanhar as couves dos outros - rejubilava eu em pensamento, enquanto a azougada cabra lutava cada vez com mais dificuldade, perante os berros desesperados do bode branco que a acompanhava e se movimentava inquieto de um lado para o outro, à sua volta, como a pedir ajuda para libertarem a companheira.

Como ninguém se aproximava, incluindo eu que estava ali próximo, o bode, continuando a berrar desatinadamente, correu pelo campo fora, para o extremo oposto, em direcção à residência do dono do terreno, deixando eu de o ver a partir do meio do percurso, por interposição de um bloco habitacional implantado junto ao terreno, facto que me intrigou e me fez ficar ainda mais atento àquela cena.

Ficou ali então a cabra sozinha a lutar com as malhas da rede, quase a sufocar, o que, não obstante a minha “raiva”, a minha indignação, pelo que já referi, com problemas de consciência, larguei a enxada e preparava-me para ir libertar o animal já prestes a abafar. Entretanto, volvidos alguns instantes, para minha surpresa, surgiu por detrás do referido prédio habitacional a esposa do proprietário do terreno em socorro da cabra, seguida do bode ainda a bramir como um desmamado.

Depois desta, muito a custo, a ter soltado das malhas da rede, ambos, a cabra e o bode, correram pelo campo fora como a festejarem a libertação.

Perante o que acabara de testemunhar, de tal modo o gesto do bode me tocou, embora revoltado por me terem rapinado as pencas do Natal, que não pude deixar de exclamar com esta “terna” expressão, aqui para nós que ninguém nos ouve, “…filho da puta do bode…” 


Não quis, portanto, deixar de partilhar convosco esta linda história de “amor”, à parte a “ternura” da expressão com que terminei, e de, aproveitando o contexto, levar até vós, como ilustração da mesma história, a bonita melodia Love Story, nostálgica para os menos jovens. Precisamente, uma história de amor.

Se bem reparastes ao longo do texto, falei-vos de amor, solidariedade, companheirismo, couves, bacalhau e animais. Como sabeis, tudo isto integra a festa de Natal que se aproxima. Aceitai, portanto, esta história como um postal de Natal. Um postal diferente, especial, que, só por isso, e porque a mesma história foi o motivo de ir mais uma vez ao vosso encontro, a perda das minhas couves de penca não foi em vão. Bem pelo contrário, foi até compensadora.

E, já agora, para terminar, sabeis como vou resolver o problema das couves para não deixar o bacalhau da ceia na solidão? Se não houver uma boa alma de um de vós, os mais próximos, que se tenha enternecido com a pungente história das minhas couves e me dispense uma “tronchuda” para a ceia de Natal, O mercado espera-me.

Feliz Natal de 2014 para todos os meus companheiros ex-combatentes e familiares.
Manuel Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14048: Conto de Natal (19): Uma viagem a outros Natais (Francisco Baptista)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14048: Conto de Natal (19): Uma viagem a outros Natais (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 17 de Dezembro de 2014:

Este texto não será ainda a estória dessas viagens de lazer, de prazer, relaxamento, pelos vales, planícies, montanhas, florestas, muitas vezes refletidos em grandes lagos ou grandes rios onde espelham o seu encanto e a beleza.

Terá sido nessas viagens e passeios pela natureza onde as paisagens que nos encantam se duplicam nas águas límpidas e transparentes, onde Narciso se apaixonou pela sua própria imagem.
Não será também a estória das viagens pelas maravilhas construídas pelas mãos hábeis de tantos artífices e artistas que povoam as cidades da terra.
Pela mente todos os dias viajamos, de corpo e alma de vez em quando.

Hoje a minha viagem de menino leva-me à igreja de Brunhoso.
Próximo do local onde assistia com a família masculina (as mulheres ficavam separadas, atrás dos homens, talvez para não haver lugar a troca de olhares sensuais e pecaminosos) a todas as cerimónias religiosas, havia um altar, com um Menino Jesus, quase todo nu, somente com um pano a tapar-lhe o sexo.

Dentre todos os santos que povoavam os altares da igreja sempre achei muita graça a esse menino, pois parecia-me mais humano do que todos os outros santos adultos que, por vezes muito bem vestidos e enfatuados duma forma antiga, pareciam olhar mais para o alto do que para as pessoas.

Esse menino parecia um outro como eu quando ainda o era, e que estaria disposto a brincar comigo e com os da minha idade. Na Missa do Galo, no Natal, esse menino descia do seu pedestal e o padre dava a beijar os pés dele a toda a gente. Hoje raramente vou à missa mas confesso camaradas que ainda sinto muita ternura por esse menino de barro.

Brunhoso, nesse tempo, tinha poucas árvores de fruta e as laranjeiras não cresciam lá, queimadas pelas geadas, em minha casa como na maioria apreciávamos muito a fruta, que não sendo de colheita própria, raramente se comprava. O meu pai que eu julgava muito sovina, depois da Missa do Galo, todos os anos invariavelmente, comprava o grande cesto de fruta que era leiloado pelos rapazes no adro da igreja, que continha sobretudo laranjas.

Para mim e os meus irmãos era quase um milagre do Menino Jesus, saber que esse grande cabaz de laranjas ia para nossa casa.
Muito obrigado pai por tantos milagres.

Portugal > Bragança > Mogadouro > Brunhoso > Terra com história, património e gente de carácter. Foto de Aníbal Gonçalves, grande divulgador da sua região, em particular o nordeste transmontano. Professor, alia a fotografia ao geocaching.  É natural de Bragança, vive em Vila Flor. Tem página no Facebook. Cortesia da sua  página dedicada a Brunhoso.

Os meus Natais na Guiné foram dias como os outros, no quartel ou no mato, tanto em Buba em 1970 como em Mansabá em 1971. Que me recorde, não houve bacalhau nem rabanadas nem outro petisco da quadra natalícia.

Porque eu sempre associei o Natal ao frio e por vezes à neve, deixei passar o Natal sem nostalgia, porque estava enfeitiçado pelo calor e pelo cheiro quente da terra africana e nesse tempo nunca imaginei um Menino Jesus negro.
Na Guiné vivi em terras de muçulmanos e por outro lado andava desinteressado de manifestações religiosas de qualquer crença.

" Decididamente é difícil pensar que não é Natal", como diz o nosso poeta e comandante Luís Graça.

Este texto que evoca o Natal, dedico-o a ele pela dedicação e trabalho que diariamente desenvolve pela manutenção e vitalidade do blogue, ao meu camarada de Mansabá e quase vizinho actual, Carlos Vinhal igualmente um grande obreiro e sacrificado do blogue.

Os outros camaradas que me desculpem mas vou dedicá-lo também a outros dois camaradas:
Ao camarada Jorge Picado, mais velho e sereno do que eu, que também esteve em Mansabá, e que aprendi a apreciar por conhecimento pessoal e pela bonomia que transmite nas palavras que escreve.
Ao amigo José Luís Fernandes, pela autenticidade, humanidade e profundidade de tudo o que já escreveu no blogue e pela ausência já tão longa, com que nos penaliza e que espero não se prolongue muito mais.

A todos os camaradas desejo um Bom Natal e um Bom Ano.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12504: Conto de Natal (18): "Uma Luz de Natal no alto do Monte", por Adriano Miranda Lima - Cor Inf Ref

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12504: Conto de Natal (18): "Uma Luz de Natal no alto do Monte", por Adriano Miranda Lima - Cor Inf Ref

1. Mensagem do nosso tertuliano e camarada Adriano Miranda Lima (Cor Inf Ref, que cumpriu as suas comissões de serviço em Angola e Moçambique), com data de 24 de Dezembro de 2013:

Amigo, agradeço e retribuo os votos natalícios e desejo a si e sua família, assim como a todos os tabanqueiros, um Santo Natal e um Feliz Ano Novo.

Escrevi nesta quadra um conto de natal inspirando-me no imaginário cabo-verdiano (nasci em Cabo Verde) e situando a mensagem natalícia nas pessoas humildes que, embora a sua condição, sentem-na com a mesma intensidade que o comum das pessoas. E em alguns casos a autenticidade se reforça na simplicidade dos sentimentos.
Cabo Verde tem também raízes guineenses na génese da sua população, embora da miscigenação étnico-cultural e da religião predominantemente católica tenha resultado uma fisionomia identitária muito própria. E é por isso que entendo que o conto interessará aos amigos tabanqueiros.

Grande Abraço
Adriano Lima


Cabo Verde Safari - São Vicente – Foto de São Vicente, Cabo Verde
Foto de São Vicente - Cabo Verde. Com a devida vénia a TripAdvisor


UMA LUZ DE NATAL NO ALTO DO MONTE (1)

Conto de Natal, em homenagem à mulher anónima cabo-verdiana que ao longo dos tempos lutou arduamente para criar os seus filhos, e às vezes até netos, com honradez e dignidade

Nha Sabina, mulher de rija têmpera, tinha da vida uma experiência agridoce, na sua maneira peculiar de sofrer as agruras do quotidiano sem hipotecar todas as reservas do seu ânimo. Os seus cinquenta e cinco anos de idade ensinaram-lhe desde cedo que o poder da imaginação logra por vezes autênticos milagres no encontro de novos estímulos para a vida. Por vezes, bastava-lhe a simples contemplação das luzes que bruxuleiam à noite nos mastros das embarcações estrangeiras fundeadas na baía para logo sentir o palpitar do mundo que se abre para lá da imensidão líquida do oceano. E é quando lhe vêm à lembrança os filhos da terra que saíram para longe a bordo de vapores estrangeiros. Por onde andariam, que destino deram às suas vidas? Este e outros devaneios do género transformam-na, com frequência, em avatar da vida fervilhante das grandes cidades que uma ou outra vez viu estampadas em coloridos postais. Mas ela logo se devolve, satisfeita consigo própria e com o pouco que tem, à pobreza honrada do lugar em que exerce a soberania do seu viver. A sua pequena casa, modesta, fica naquela zona do Monte junto à Muralha (2), permitindo-lhe um convívio permanente com a visão do mar. Não se poderá dizer que a sua habitação seja um tugúrio porque ela sabe mantê-la caiada e asseada, digna na elementaridade do seu recheio, e até mesmo o seu quintalinho atrás, palco da sua labuta diária, é um primor na arrumação do fogão de carvão de pedra, do pilão e do tambor de água de Madeiral.

Este dia é véspera de Natal e seria mais um igual aos outros, não fosse o sonho que ela vinha acalentando e que graças ao seu Deus queria ver realizado logo à noite. Como sempre, levantara-se aos primeiros alvores da madrugada para pilar o milho destinado aos bindes de cuscuz que garantem o seu sustento, mais o do seu netinho Daniel de seis anos. Afora isso, concorrem também para o seu magro orçamento familiar os pastéis de milho e peixe com malagueta que fornece à mercearia de nho Ventura. Este, que aprecia o seu cuscuz, costuma exclamar mal ela franqueia a porta da mercearia segurando o recipiente com a ainda fumegante iguaria: "Sabina, o aroma do teu cuscuz lembra-me sempre um campo de milho em flor". Esse piropo deixa-a feliz e satisfeita com o que faz.

Foi precisamente numa prateleira daquela mercearia que o sonho de Sabina começou a ganhar forma. Há muito que desejava ver-se livre daquela lamparina que mal lhe alumiava a casa à noite. Pensava ela: “isto é coisa com fraco jeito, fumega exalando um cheiro que já não suporto, e ainda por cima não me dá aquela luz que entra pela alma dentro".

E por isso aquele candeeiro de vidro brilhante como cristal, exposto no estabelecimento de nho Ventura, desafiou-a durante os últimos dois meses. Mulher de imaginação viva, seduzia-se com as figurinhas gravadas a estilete de aço no vidro do candeeiro, que no seu entender só podiam ser obra de mão carinhosa.

E foi assim que começara desde há algum tempo a amealhar um escudo hoje, outro amanhã, e por vezes valores mais avultados quando o dia lhe corria de melhor feição. Arranjara uma antiga lata de conserva com uma ranhura e dela fez o cofre que haveria de realizar o milagre do seu sonho natalício da noite. Mas não seria só isso. A Sabina queria dar um “bedje” (3) de Natal ao seu Danielim, o neto cuja mãe a morte levou a seguir ao parto. Mãe solteira que foi da sua saudosa filha, passou a sê-lo também do seu netinho, com um desvelo extremo, prometendo criar e fazer dele um homem de bem, com a ajuda de Deus e do seu trabalho honesto.

O Danielim, de seis anos de idade, vinha, pois, olhando embevecido, desde há tempos, para os carrinhos de arame que saíam das mãos habilidosas de nho Sarafe Funileiro. Com formato de automóvel ou de camioneta, aqueles carrinhos eram um deslumbre para a meninada e até os mais velhos se quedavam a admirar a perfeição da sua construção. Reduzidos a arame vulgar, de espessura variável com a natureza de cada um dos seus componentes, pareciam quase transparentes na sua vaga substância material, e a funcionalidade das suas rodas de uma circunferência precisa, com o respectivo mecanismo articulado de direcção, emprestava ao brinquedo a aparência de um estranho e enorme insecto animado. Pois, o Danielim ia ter logo à noite um “bedje” de Natal que ia regalá-lo...

Quando o Sol se pôs, a Sabina já estava em casa a esfregar as mãos de contente por ter realizado um dia de venda lucrosa. Compôs a sua mesa com especial esmero e nela dispôs os ingredientes da ceia natalícia, não coisa de gente rica, mas algo sempre melhor e mais composto do que no comum dos dias. Depois, quando já escurecia, foi buscar o candeeiro dias antes comprado a nho Ventura, seu “bedje” de Natal. Atestou-o de petróleo, aguardou que a torcida se embebesse do combustível, nivelou-a o suficiente, riscou um fósforo e chegou-lhe a chama. O compartimento foi subitamente inundado de uma luminosidade nunca antes vista na sua casa de único compartimento. Ela elevou a torcida ainda um pouco mais, na ânsia de atingir o máximo da incandescência, e de repente todo o interior da habitação pareceu ganhar tons caleidoscópicos, realçando-se os pormenores antes ocultados pela luz baça da antiga lamparina. Convidou a sua amiga e vizinha Josefa, viúva e a viver só, para a ceia. E a Josefa teve logo este espontâneo desabafo, mal entrou: “Sabina, isto hoje está outra coisa, mulher. É como se a luz deste candeeiro lavasse e renovasse tudo, incluindo os nossos corações”. A Sabina não coube em si de contente com o reparo da sua amiga.

Cearam e conversaram longamente sobre o seu passado de raparigas novas, relembrando a dureza da vida de “mulher fêmea” em Cabo Verde, com as suas artimanhas e traições, mas também com as ilusões que se douram e renovam com a luz do sol nascente de cada dia. A cumplicidade entre a duas mulheres prosseguiu noite dentro até que o Danielim começou a dar sinais de sono. Foi quando a Sabina lhe fez a surpresa com o seu “bedje” de Natal, que o petiz não esperava dado o sigilo bem guardado. O menino deu um pulo de satisfação e fez-se logo chofer exímio da sua viatura, pois já se tinha habilitado com carta de condução mediante a simples observação do que vira fazer a um outro menino dono de idêntico produto saído das mãos de nho Sarafo. Começou a rodar o volante em curvas e mais curvas no chão da habitação, buzinando vez por outra: aguuuga, aguuuga. Radiante com a felicidade do seu neto, a Sabina a esmo foi observando as curvas que o brinquedo ia delineando nas suas mãos, umas mais largas e outras mais apertadas. E então comentou para a Josefa: “Vê tu, amiga, que a vida das pessoas é feita de curvas e mais curvas, como as que faz este carrinho de arame; tanto vale ser pobre ou rico, que a vida é, assim mesmo, feita de curvas, mas convenhamos que as do pobre são as que riscam mais fundo e deixam marcas inapagáveis”. A Josefa concordou, conhecedora das divagações do espírito da sua amiga, que muitas vezes não conseguia decifrar.

Horas depois, o Danielim já dormia o sono da inocência e a sua amiga se tinha despedido. Lá fora silenciaram-se finalmente os ruídos da noite festiva, sempre mais pródiga de eflúvios do que o normal, mas para os lados da Praça Estrela ainda se ouvia estalejar um ou outro foguete natalício. Sabina ficou acordada mais algum tempo, sozinha com os seus pensamentos, inalando sofregamente a luz do seu novo candeeiro, sentindo um renovo de alma, como que banhada por outra luz, a luz divina.

Tomar, Dezembro de 2013
Adriano Miranda Lima

(1) - A palavra Monte reveste aqui um duplo significado, simultâneamente real e metafórico. É que, para quem não saiba, Monte era, ao tempo recuado em que se quer situar este conto, um bairro periférico e pobre do Mindelo, e a designação se deve ao facto de ser uma zona de cota alta relativamente ao núcleo original da cidade.
(2) - Muralha foi o nome por que ficou conhecida a parte do lugar do Monte separada das antigas instalações da Companhia Miller’s por uma encosta alta e abrupta cuja consolidação foi solucionada com a construção de uma enorme parede.
(3) - “Bedje” é o termo em crioulo de S. Vicente com o significado de prenda.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12500: Conto de Natal (17): O Natal em Brunhoso, Mogadouro