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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25174: (De) Caras (203): Nota solta (José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé, Canquelifá, 1973/74), com data de 13 de Fevereiro de 2024:

Nota solta

Caro Luís
Antes de mais as tuas melhoras.

Tenho tido pouca interação com o blogue mas não dispenso a sua leitura semanal. Gosto muito de seguir as publicações dos camaradas que habitualmente o fazem e que muito interesse me despertam.

Nesta altura do campeonato, em que só nos resta fazer a mala, vemos as coisas de forma diferente e, no meu caso, às vezes, assaltam-me momentos de lucidez que me espantam.

Sem preocupação de escalonar por importância é frequente concordar ou discordar de alguns “posts” ou comentários de outros camaradas sobre a temática da guerra na Guiné. Inibo-me de comentar por entender não ter grandes bases para tal até porque, e aí começa o problema, a guerra começou em 1963 e, naturalmente, as condições eram diferentes de 1973. Por outro lado, às comissões de 21/24 meses correspondiam da outra parte largos anos de guerrilha e o profundo conhecimento do terreno e a adaptabilidade ao mesmo.

Ainda na Metrópole senti que as coisas não eram levadas a sério. A vida continuava alegremente, excepto para os Pais que tinham filhos no Ultramar. Os irmãos já sabiam que mais tarde ou mais cedo iam lá parar, só não sabiam em que província e, portanto, havia que gozar a vida.

Em Leiria de passagem e depois a recruta em Santarém, onde encontrei gente de nível militar exigente mas sempre correcto, passei por Tavira onde encontrei um ambiente com ambições guerreiras mas perfeitamente anedótico onde cada um fazia o que o poder lhe permitia sem qualquer coerência.

Formação do batalhão no RI 15 em Tomar com destino à Guiné com muitos analfabetos e alguns “esperados” que, até um cego via, não tinham condições físicas para integrar uma companhia operacional.

Quando cheguei à Guiné, a Bolama, já que o “Niassa” ficou ao largo de Bissau e fomos transferidos diretamente para uma LDG (às cinco da tarde e chegámos a Bolama ao meio dia seguinte), e olhei para aquilo a primeira impressão que tive: “foi isto que estes gajos fizeram em 500 anos?”

Relativamente à guerra nunca pensei em ganhá-la porque, até outro cego via, que tal não era possível.
Descontando a diferença de armamento e da experiência em combate, com manifesta superioridade do adversário (digamos assim), o facto das unidades militares estarem em quadrícula (julgo que é assim que se diz) tornavam-nas num fácil alvo que permitia flagelações a partir das fronteiras dos países vizinhos, com intervalo para as refeições ou para satisfazer necessidades. Por vezes, apenas as valiosas intervenções das forças especiais no terreno permitiam algum descanso.

Por outro lado, as condições de vida nos aquartelamentos em que vivi eram desumanas e a fome era firme e constante, tal como a divisa do meu batalhão. Nunca percebi como é que uns se tratavam tão bem e outros passavam tão mal tendo em atenção que a dotação orçamental era semelhante.

Com o 25 de Abril a guerra na Guiné praticamente terminou tendo começado as negociações. A sobreposição do pessoal do exército colonial pelo PAIGC, pelo menos em Bissau, fez-se calmamente até Setembro, com a exceção da patifaria feita aos camaradas dos comandos africanos que ainda hoje me arrepia. Não estou em posição (nem quero) de julgar quem quer que seja mas aquela canalhice tornou a atormentar-me quando recentemente vi os Estados Unidos (e outros) abandonarem de um dia para o outro os seus colaboradores no Afeganistão.

Acabada a guerra, regresso à Metrópole, procura de emprego, constituição de família e luta constante para a sustentar o melhor possível, ambição natural de todos nós.

Após uma vida de trabalho, a almejada reforma (não venha por aí alguma patifaria) e o acompanhamento frequente dos netos, tarefa que se desempenha com alegria mas que denuncia algum cansaço próprio do avançar da idade (a pedalada começa a falhar).

Em consequência da reforma passei a receber uma prestação anual como ex-combatente que em 2023 foi de 171,90 € (em termos líquidos transformou-se em 107,90 €). Incomoda-me recebê-la por dois motivos: porque, afinal, grande parte é devolvida a quem a paga, isto é, dá com uma mão e tira com a outra, e porque não me faz falta, seria muito mais útil para reforçar o rendimento dos muitos que mais pecisados estão.

Também tive direito ao cartão de combatente que me permitiu ter um passe gratuito para os transportes urbanos (moro em Lisboa) que pode ser utilizado em toda a àrea metropolitana. Nas outras zonas do País não sei se é útil. Quanto ao PIN e à bandeira, dispenso. Contudo, não deixo de destacar a luta dos camaradas que o conseguiram.

Provavelmente, este arrazoado não tem interesse, mas é o que de momento se pode arranjar.

Um abraço
José João Domingos

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Nota do editor

Último post da série de 9 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25052: (De) Caras (201): O cap art 'comando' Nuno Rubim (1938-2023): fotos do meu álbum (Virgínio Briote, ex-alf mil 'cmd', cmdt Gr Diabólicos, Brá, 1965/67)

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Guné 61/74 - P24870: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (12): agosto de 74, momentos de convívio e descontração


Foto nº 57  > Da esquerda para a direita,  ex-furriel Carola (do quadro), ex-cap mil João Luís Brás Dias, ex-fur mil mil Lavos (de transmissões), eu e e o ex-alf mil Gatões (de costas)


Foto nº  58 >  O pessoal na palheta.


Foto nº 59 > O Cap Brás Dias com o Lavos


Foto nº 60  >  O cap Brás Dias na brincadeira com o Lavos, a colocar o chapéu e as divisas do fur Carola


Foto nº 61 > O Brás Dias e o Lavos


Foto nº 62 >   Da esquerda para a direita: Carola (de costas), Brás Dias, Raposo, Lavos,  eu e o Gatões (de costas)


Foto nº 63 > O Lavos já muito bem aviado. Eu, à direita.

Guiné > Região de Quínara > Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) >   Agosto de 1974, momentos de convívio e descontração. 

Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



António Alves da Cruz: lisboeta,
vive em Almada, trabalhou na Lisnave;
partiu para o CTIG em 16/3/73
e regressou a casa 6/9/74.

1. Mais fotos, enviadas a 11 do corrente, às 19:12, do álbum do António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74), que tem já cerca de duas dezenas de referências no nosso blogue.  

Amigo Luís,  são os últimos "slides"... Estamos em agosto de 74, a poucos dias de nos virmos  embora,  a descontração já era outra.

 Deste grupo de camaradas, que eu saiba os que já não estão entre nós são o Raposo e o Gatões (Foto nº 62).

Quando quiseres publica os "slides" que enviei a 2/9/23 (n=32),  salvo o erro,  e referentes à  entrega de Buba ao PAIGC. Se for necessário enviar novamente,  diz.

Um forte abraço, Cruz


Guiné > Região de Tombali > Colibuía, 10 de junho de 1973 (ou 74?)  >  BCAÇ 4513/72 (Aldeia Formosa, 1973/74) > Em baixo, a partir da esquerda: 

(i) cap mil João Luís Brás Dias, cmdt  da 1.ª CCAÇ, Buba; 

(ii) cap mil Joaquim M. Guerreiro Dias, cmdt  da 3.ª CCAÇ, Aldeia Formosa (faleceu em agosto de 2013); 

(iii) cap mil Luís Marcelino, cmdt da CART 6250/72, Mampatá, integrada no nosso Batalhão;  e
(iv) alf mil António Murta, cmdt  do 4.º Pel /2.ª CCAÇ,  Nhala (atrás, um tenente do QP, de quem não recordo o nome, que ainda conheci com o posto de sargento-ajudante, excelente pessoa e muito bonacheirão).

Foto (e legenda): © António Murta (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de outubro de  2023> Guiné 61/74 - P24764: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (11): paisagens e rostos de camaradas que não esquecemos

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24625: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (4): Mampatá, maio-julho de 1973


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/lulho de 1973 > Mina anticarro levantada na estrada Cumbijã/Nhacobá. Com todo o cuidado, a mina estava armadilhada. Foi neutralizada pelo ex-furriel mil Reis e ex-alferes mil Torres, do 4º pelotão da 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513/72.



Fotos nº 2 e 2A > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Levantamento de mina A/C na estrada Cumbijã / Nhacobá. À esquerda, de faca de mato na mão, o ex-fur mil Reis; ao centro com a HK 21, um camarada de quem  não recordo o nome; e à direita, o ex-alf mil Torres. (Infelizmente o Reis e o Torres já não estão entre nós.)


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Eu, na tabanca de Mampatá, com dois grandes amigos: à direita o ex-furriel Reis, e à esquerda o ex-furriel Victor.


Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Eu, com a tabanca ao fundo.


Foto nº 5 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Eu, com uma menina ao colo.


Foto nº 6 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Crianças da tabanca



Fotos nº 7 e 7A > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho / julho de 1973 > Eu, num posto de vigia junto à enfermaria virado para a estrada do Cumbijã. Vamos ver quem identifica esta metralhadora, de carregador curvo.... (É uma Madsen, dinamarquesa, de 1902!)


Foto nº 8 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Heliporto, à direita a estrada para o Cumbijã, Colibuia e Nhacobá.


Foto nº 9 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Durante um patrulhamento o descanso do 3º pelotão para comer uma latita da ração de combate, este pontão estava numa estrada abandonada há muito que ia de Mampatá para Sinchã Cherno e Empada.


Foto nº 10 > Guiné > Região de Tombali > Mampatá > 1ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Buba, 1973/74) > Junho/julho de 1973 > Eu, mais uma vez...

Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação de uma seleção de fotos do álbum do António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 45113/72, Buba, 1973/74).

Estamos a seguir a ordem cronológica da comissão de serviço na Guiné. Partida do BCaç 4513/72: Embarque em 16mar73; desembarque em 22mar73.

A 1ª Comp, após o treino operacional no subsector de Buba com a CCaç 3398, sob orientação do BCaç 3852, passou a reforçar a actividade daquela subunidade no esforço realizado de contrapenetração no referido subsector e depois integrada no seu batalhão, na função de intervenção que lhe foi atribuída, tendo-se instalado, a partir de 17,ai73, em Mampatá.

Mensagem do António Alves da Cruz, ex-fur mil, 1ª C/BCAÇ 45113/72 (Buba, 1973/74)

Data - sexta, 1/09/2023, 14:55
Assunto - Fotos

Boa tarde, Luís
De maio a julho de 1973, a 1ª Companhia do BCAÇ 4513/72 esteve sediada em Mampatá para reforçar as operações na zona de Nhacobá.

Durante 3 meses andámos como companhia de intervenção. Junto fotos.

Forte abraço amigo Luis
Cruz

PS - Para os senhores censores do blogue, esclareço que a farda que usava, na ocasião, era Pestana & Brito e o boné Dolce & Gabbana.

Fotos > Legenda:

Foto 1 - Mina anticarro levantada na estrada Cumbijã/Nhacobá. Com todo o cuidado, a mina estava armadilhada. Foi neutralizada pelo ex-furriel mil Reis e ex-alferes mil Torres, do 4º pelotão da 1ª C/BCAÇ 4513/72.
Foto 2 - Levantamentode mina A/C na estrada Cumbijã / Nhacobá. À esquerda, de faca de mato na mão, o ex-fur mil Reis; ao centro com a HK 21, um camarada de quem  não recordo o nome; e à direita, o ex-alf mil Torres. (Infelizmente o Reis e o Torres já não estão entre nós.)
Foto 3 - Eu, na tabanca de Mampatá, com dois grandes amigos: à direita o ex-furriel Reis, e à esquerda o ex-furriel Victor.
Foto 4 - Eu, com a tabanca de Mampatá ao fundo.
Fotos 5 e 6 - Crianças de Mampatá
Foto 7 - Mampatá, unho de 73
Foto 8 - Posto de vigia junto à enfermaria virado para a estrada do Cumbijã.
Foto 9 - Mampatá, geliporto, à direita a estrada para o Cumbijã , Colibuia e Nhacobá.
Foto 10 - Durante um patrulhamento o descanso do 3º pelotão para comer uma latita da ração de combate, este pontão estava numa estrada abandonada há muito que ia de Mampatá para Sinchã Cherno e Empada.
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Nota do editor:

Útimo poste da série > 3 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24614: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (3): Bolama, lugar de passagem

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21947: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (11): "O Mendes" e "A independência"


1. E assim damos por finda a publicação desta série de memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74) enviadas ao nosso Blogue no dia 29 de Janeiro de 2021:


30 - O MENDES

Era o furriel miliciano enfermeiro da nossa Companhia. Mais do que um camarada, mais do que um camarigo (camarada e amigo) era um camarigueiro (camarada, amigo e companheiro).

A sua ambição civil era estudar medicina mas, circunstâncias da vida, obrigaram-no a adiar o sonho que, todavia, manteve sempre.

Tirada a especialidade foi colocado em Tomar e veio connosco para a Guiné.

A sua competência, calma e humanismo no tratamento dos doentes, civis ou militares, era excecional e, ser tratado pelo Mendes, era cura rápida e certa.

Homem afável, falava baixo e sempre com muita seriedade, sem nunca perder a calma, em particular com os seus subordinados a quem tratava como iguais e que muito o respeitavam.

Já na vida civil, encontrámo-nos casualmente duas ou três vezes e falava-me sempre na possibilidade de se organizar um convívio para rever a rapaziada de que ele tinha saudades. Levou esse convívio 30 longos anos a acontecer e, entretanto, o Mendes tinha-nos deixado.

Lá, onde estiver, saberá com certeza a estima e gratidão que todos nós lhe temos.


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31 - A INDEPENDÊNCIA

Após o 25 de abril, foram estabelecidos acordos com o PAIGC para a transferência dos poderes territoriais.

Em Bissau, antes da independência, só pontualmente se via pessoal do PAIGC, nomeadamente à noite no edifício dos CTT.

As coisas foram sendo feitas gradualmente e com grande descrição até à independência da Guiné-Bissau que, creio, se processou a 10 de setembro de 1974.

Regressei à Metrópole, evacuado, no dia 5 de setembro de 1974 e a minha companhia no dia seguinte.

Nos meses que passei em Bissau, depois do 25 de abril e antes do regresso, assisti a várias manifestações da população, a propósito de tudo e de mais alguma coisa, que normalmente decorriam sob um manto de preocupação ou tristeza o que colidia com o que devia ser a alegria de um povo acabado de ser libertado.

As pessoas acomodavam-se de pé, em camionetas de caixa aberta, deslocando-se em marcha lenta, e recitavam uma ladainha qualquer que não entendia, estando ausente aquela alegria espontânea própria do povo africano, mais parecendo um velório.

Na minha opinião, este comportamento indiciava a consciência de que o caminho da liberdade tinha muitos perigos e incertezas, em particular para aqueles que viviam nas cidades e que de alguma forma beneficiavam com a estadia dos militares portugueses na Guiné, assegurando com alguma facilidade a sua subsistência e a da família, objetivo prioritário em qualquer sociedade.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.




2 - DESPEJADO NA GUINÉ

Aos dezoito meses de tropa fui convocado para me apresentar no Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, onde me havia de juntar à Companhia de Artilharia n.º 6250 e seguir por avião para o território da Província da Guiné, no dia 27 de junho de 1972. 

Era o pior local aquele que me coube, poderia ser Moçambique, melhor ainda Angola, e muito melhor qualquer um dos outros territórios do Portugal Ultramarino onde a guerrilha não se tinha imposto. Mas era aquele e não outro. Pensei ainda, num ou noutro momento, dar o salto para França, manobra muito mais arriscada agora do que se o tivesse feito antes dois ou três anos. Pode ser que tudo corra bem, cogitava eu, lembrando-me do meu irmão mais velho, o Neca, que já por lá tinha passado quase incólume. É certo que ele me tinha feito alguns “desenhos” sobre a realidade guineense e que não eram muito agradáveis, mas pode, caros leitores, uma reportagem sobre uma realidade ser compreendida inteiramente, sem a presença do corpo e da alma?

Falava-me de patrulhamentos sob temperaturas escaldantes, de milhões de mosquitos e outros insetos incomodativos, de noites inteiras debaixo de chuvas torrenciais, de sede, de péssima alimentação e também de gritos de feridos e outras cenas tétricas. E era ele, segundo me disse mais tarde, e eu próprio vim a perceber, muito contido nas descrições.

Passadas quatro horas, desde a partida do aeroporto de Lisboa, lá estávamos nós a divisar, por entre as nuvens, as coberturas de zinco da maioria das casas da cidade Bissau, o que nos dava por antecipação uma ideia de pobreza da cidade capital. As portas abertas do avião, logo que se imobilizou na pista, deixavam entrar uma aragem muito quente e húmida que nos fazia ensopar o corpo e a farda de abundante suor. Estávamos já em plena época das chuvas que se inicia em maio e acaba em novembro, com temperaturas muito altas de dia e de noite. 

Depois de uma apressada formatura ainda na pista para a apresentação da praxe às autoridades militares, seguiu-se uma deslocação, em camiões, daqueles cento e cinquenta soldados para o Quartel dos Adidos, onde esperaríamos por nova etapa. O Quartel dos Adidos destinava-se precisamente a acomodar tropas em trânsito quer inseridas em unidades inteiras, como era o caso, quer no acolhimento individual de soldados. A estadia era normalmente muito curta e em péssimas condições. No nosso caso ficámos ali deitados no chão de cimento, sobre malas ou roupas, até que, pelo meio da madrugada, fomos acordados aos gritos, porque estavam já no exterior alguns camiões que nos conduziriam ao cais de Bissau, onde embarcaríamos com destino à Ilha de Bolama.

O Zé Manel da Régua não foi só um dos soldados da minha companhia, ouvia-lhe opiniões e leituras das realidades exóticas daquela terra e das suas gentes e gostava da sua autenticidade e honestidade, sobretudo da sua humanidade e do seu espírito generoso e disso tudo resultou uma amizade para toda a vida. 

Hoje julgo que as vivências em situações extremamente difíceis como é a guerra constituem o cadinho ideal para a consolidação da amizade. Tinha ele aquele ar de despreocupado (que ainda mantém) muito marcante, algumas vezes desligado da realidade, quiçá a congeminar um dos seus poemas. Estivesse ele, naquela madrugada de 28 de junho a dormir profundamente, ou às voltas com o conteúdo e a forma de mais uma poesia, a verdade é que ele ficou ali no chão da caserna sem dar conta da nossa partida e só quando estávamos já no meio da boca gigante do rio Geba, a caminho da ilha de Bolama é que ele acordou. Apareceu no dia seguinte, com umas botas emprestadas, por ter perdido as suas, numa boleia de uma avioneta que algum amigo lhe arranjou, com o ar mais despreocupado que se pode imaginar.

Permanecemos nesta ilha durante cerca de trinta dias, em exercícios de aperfeiçoamento operacional. Bolama era de certo modo o espaço ideal para o efeito, porque tinha características de vegetação idênticas às que iríamos encontrar e era território insular e, por isso, sem guerra. Como é sabido, numa ilha é quase impossível a sobrevivência de guerrilha por ausência de apoios externos e caminhos de fuga. 

Mas havia de ser nessa ilha, durante um exercício com arma de lançamento de granadas, que havia de assistir, a poucos metros de distância, à morte de dois soldados, no fatídico dia 10 de julho de 1972 quando contávamos apenas treze dias de presença na Guiné: o Soldado José Mata e o Alferes José Carlos Figueiredo, o primeiro jaz sepultado no cemitério de Valbom – Pinhel, o segundo tem o seu corpo depositado no cemitério de S. Pedro do Sul.

Bolama tinha sido capital da Guiné, entre 1879 e 1941, por isso deslumbrava-me com alguns exemplares do seu património arquitetónico, apesar do seu estado de abandono e ruína, como o antigo Palácio do Governador, o edifício dos Paços do Concelho e as desativadas instalações do Banco Nacional Ultramarino. Nada que me mitigasse a saudade dos que tinha deixado por cá, como da minha namorada com quem, se não fosse o execrável estorvo da guerra, teria já casado, dos meus pais, dos irmãos, da minha tia materna, dos avós, dos amigos, das coisas boas da vida normal sem sobressaltos nem medos. 

E naquela noite, mais triste que qualquer outra que tivesse já vivido, em pleno cemitério de Bolama, à luz de velas, amortalhava os corpos dilacerados daqueles dois soldados, cujas vidas se tinham esvaído nesse dia, num mar de sangue, vertendo irreprimíveis lágrimas por entre soluços de revolta. Como era bem pior a guerra do que dela me contara o meu irmão Neca! E imaginava eu, enquanto, ajudado por outros, depunha nas urnas, com o maior respeito, quase veneração, aqueles camaradas martirizados por uma causa inútil: como seria o sofrimento dos pais destes jovens com promissores projetos de vida, quando lhes baterem à porta os arautos da indizível desgraça dos seus filhos!?

No dia seguinte uma avioneta fez o transporte dos dois combatentes, para Bissau e, passados alguns dias ou poucas semanas, estariam os sinos das suas terras a chamar os amigos e vizinhos para o enterro destes jovens que tinham perdido a vida pela Pátria. Nós sairíamos daquela ilha, integrada no chamado arquipélago dos Bijagós, no dia 28 desse mesmo mês de julho, com destino ao sector onde devíamos substituir outra companhia e aí permanecer durante cerca de vinte e quatro meses.

A viagem teve duas etapas, porquanto saímos de Bolama numa embarcação idêntica à que nos trouxera de Bissau, uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) que nos levou por um braço de mar até à povoação de Buba e só ao segundo dia partimos de Buba para Mampatá, o nosso destino, no dia seguinte. Uma LDG servia para transportar tudo: camiões, materiais de qualquer tipo e tropas, e tinha a particularidade de pode acostar em qualquer ponto da costa ou da margem dos rios, mesmo que desprovidos de cais. 

Pois seguimos então do canal de Bolama para a embocadura do rio Grande Buba, na verdade um dos muitos braços de mar muito comuns no território guineense, avistando ambas as margens de floresta cerrada para onde, de vez em quando, os tripulantes da embarcação disparavam alguns tiros aleatoriamente, com o intuito de dissuadirem eventual tentativa de ataque por parte dos guerrilheiros do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). 

Passado um dia e uma noite lá nos aparecia, ao longe, a povoação e aquartelamento de Buba e à medida que nos aproximávamos, mais nítidos se tornavam os contornos dos edifícios e depois as silhuetas dos soldados da companhia aí instalada. Logo depois a vozearia festiva da nossa chegada quando a LDG abriu a sua bocarra para deixar sair camiões, tropas e materiais como chapas de zinco, madeiras serradas, cimento, cerveja, arroz e outros géneros alimentícios. Ainda nem todos tínhamos abandonado a barcaça mas a festa da receção aos periquitos prosseguia com a passagem, na nossa frente, de camiões transportando supostos soldados feridos, numa encenação em que a companhia instalada em Buba pretendia assustar-nos. Não teria transcorrido mais que uma hora, quando nos preparávamos já para o início da segunda etapa, por estrada, num percurso de cerca de vinte e cinco quilómetros, rebentou uma emboscada no itinerário por onde deveríamos passar, e logo depois começaram a chegar soldados dessa companhia de Buba, feridos reais, numa reedição autêntica daquilo que tínhamos visto, anteriormente, a brincar.

Logo ali, ainda antes de chegarmos ao nosso sector, fui solicitado para colaborar na assistência ao soldado Bento que estava entre a vida e a morte. A enfermaria estava instalada dentro de um abrigo subterrâneo e eu auxiliava o furriel enfermeiro da companhia de Buba na tarefa penosa de mantermos vivo aquele jovem que tinha um estilhaço alojado no tórax. Por entre gemidos do ferido e os estrondos das saídas das granadas das nossa peças de artilharia instalava-se, entre nós os recém chegados, a sensação de que tínhamos vindo parar a um dos piores sítios da Guiné. O contacto com os guerrilheiros tinha ocorrido quase no fim da tarde e, em pouco tempo, a escuridão sobreveio e por isso não mais foi possível a evacuação aérea do ferido para o Hospital Militar de Bissau. 

No outro dia, pela manhã, lá apareceu a avioneta que transportou o Bento para o hospital. Debalde porém. O Bento fenecia gradativamente e nem os melhores cirurgiões de Bissau o puderam salvar. Está sepultado em Ferreira das Aves - Concelho de Satão.

No dia seguinte iniciaríamos a nossa jornada de vinte e cinco quilómetros até Mampatá, alquebrados de corpo e de espírito pelos acontecimentos do dia anterior. Nos camiões que nos transportavam seguiam também materiais de construção, munições e víveres. Ao meu lado, sentado sobre um saco de arroz, olhos perscrutantes sobre a mata cerrada, um soldado do recrutamento local, o More. Magro e baixo não parecia nada o guerreiro destemido que vim a conhecer na convivência quotidiana, em Mampatá. Dizia-me o More :
- Não preocupa, aqui perigo não há, se PAIGC atacou ontem, hoje não vem mais. 

Trinta e sete anos mais tarde havia de procurar este soldado da milícia do exército de Portugal, em Mampatá, quando aí voltei para rever o sítio onde penei e as pessoas que me suavizaram o sofrimento. Alguns ainda ali viviam e com eles recordei, com indizível emoção, os vinte e quatro meses mais longos da minha vida. 

Mas o More, aquele soldado condecorado com a Cruz de Guerra, cujas cavaqueiras me adoçavam os dias compridos, já não fazia parte do mundo dos vivos. Pouco tempo depois do fim da guerra, aquela Cruz de Guerra que recebera do governo de Portugal, enaltecedora dos seus feitos, tornou-se, por traição da história e vingança dos fracos, a prova da sua culpa. Pouco depois da independência acordada entre Portugal e o PAIGC, os novos governantes ajustaram contas com todos os que serviram o exército de Portugal, escapando apenas os que fugiram. Tribunais improvisados presididos por desumanos guerrilheiros sedentos de vingança, prendiam e matavam a esmo. O More foi, assim, barbaramente assassinado.

Os meus olhos focavam-se na mata densa procurando entrever qualquer sinal de perigo no espaço marginal à picada, preocupado com a iminência de uma emboscada e pouco interessado na beleza da floresta de onde se ouviam apenas os guinchos dos macacos. Estariam eles a avisar-nos de algum perigo ou, pelo contrário, tendo celebrado um acordo com o inimigo, anunciavam antecipadamente o nosso massacre. Estes e outros pensamentos fluíam da minha imaginação como se houvesse alguma relação lógica entre aquela guincharia e a nossa sorte. 

E passadas algumas horas, talvez quatro, por entre buracos cheios de água, viaturas atascadas na lama e paragens por desconfiança de alguma emboscada ou porque os soldados apeados tivessem assinalado alguma mina, lá chegámos a Mampatá, onde uma ruidosa companhia constituída maioritariamente por açorianos nos recebeu em ébrio delírio. Não era motivo para menos, porque, com a nossa chegada, iniciar-se-ia a sua partida de regresso à paz de suas casas. 

 Mampatá era uma tabanca habitada por cerca de trezentas pessoas e nós ficaríamos ali instalados por entre moranças cobertas de capim, numa perfeita amálgama entre civis e militares, sem qualquer barreira entre as instalações militares e as casa dos civis. De certo modo esta familiaridade amenizava o ambiente e permitia-nos uma convivência quase sempre fraterna. Na verdade será errado chamar civis aos moradores daquela povoação, porquanto, excetuando as crianças e as mulheres, quase todos estavam mobilizados para a guerra: uns incorporados numa unidade militar local – o Pelotão de Caçadores Nativos n.º 68, outros integrados no Pelotão de Milícias e, finalmente, todos os homens tinham uma espingarda do género das que até ainda há pouco tempo equipavam a GNR de Portugal. 

Já havia uma escola básica naquela aldeia, construída por uma companhia anterior mas, como se tornasse insuficiente, fomos incumbidos de erigir uma segunda escola. Os professores eram dois militares que faziam o melhor por aquelas crianças e até pelos adultos que queriam aprender a ler e escrever. Ademais, naquele tempo, muitos soldados do recrutamento metropolitano não tinham a quarta classe e era obrigatório que voltassem à vida civil com esse diploma. 

De certo modo, aquelas duas escolas e os sorrisos das crianças que as frequentavam, pintavam aquele cenário distópico, de cores esperançosas, apesar da fogueira da guerra sempre presente e reavivada de tempos a tempos. Um dia, à noite, quando estava a substituir um camarada professor, corri para o exterior, seguido pelos alunos, procurando abrigo deitados junto ao muro do recreio. Tinha sido o tiroteio provocado por uma emboscada a um pelotão nosso, a um quilómetro ou dois do arame farpado que nos tinha feito sair apressados. A atividade operacional, para além da defesa daquela povoação, era constituída por patrulhamentos, montagem de emboscadas e segurança do itinerário entre Mampatá e Buba. 

Esta era a rotina dos dias mas, ainda em 1972, com o início dos trabalhos da abertura e pavimentação de uma estrada, tudo se alterou. A Engenharia Militar precisava de constante proteção enquanto as máquinas de terraplanagem revolviam o solo. Esse trabalho de proteção era absolutamente desgastante porque obrigava a uma presença constante durante o dia e da noite para se impedir os ataques aos trabalhadores e a montagem de minas.

Se alguém fazia anos havia sempre cerveja e algum vinho a regar uma refeição melhorada, com a presença dos amigos mais chegados. Normalmente os furriéis comemoravam em conjunto com os alferes e vice-versa. Os cabos e soldados festejavam normalmente por secção. Nalguns casos, os militares de especialidades com poucos componentes, como os mecânicos, os enfermeiros e os transmissões juntavam-se nos festejos de aniversário em função da respetiva especialidade. 

No dia 17 de fevereiro de 1973 coube-me comemorar o meu próprio vigésimo terceiro aniversário, na companhia do capitão, dos alferes e dos furriéis, e não faltou um cabrito assado no forno com batatas, nem faltou cerveja e vinho naquela noite, cuja despesa era assumida na totalidade pelo aniversariante, porque era assim que estava estabelecido. Os mais poupados, aqueles a quem nós apelidávamos de forretas, naquele dia bebiam muito mais do que o habitual. 

Nessa noite demorei muito tempo até chegar ao meu quarto. Peguei no sabonete e reguei-me durante algum tempo debaixo do chuveiro, e lembro-me de o ter segurado nos dentes enquanto me refrescava. Cheguei ao quarto e deixei-me cair sobre a cama. Só me lembro de acordar aflito, já dia, com o barulho de um mango a cair sobre a cobertura de chapa.

Passados três dias coube-me sair para o mato com um pelotão. Não era frequente sair, o meu trabalho estava diariamente ligado à enfermaria que dava assistência a militares e à população civil. Talvez estivesse algum cabo enfermeiro de férias e cumulativamente um outro doente. Certo é que, pelas seis da manhã, como era comum nas operações de segurança aos trabalhos da construção da estrada, lá estou eu com um grupo de combate a caminho da frente da estrada, logo a seguir à tabanca de Colibuia. 

A missão era percorrer cerca de um quilómetro até nos internarmos na orla da mata onde nos deveríamos manter em alerta até às catorze horas, quando os trabalhos eram interrompidos para prosseguimento no dia seguinte. Quando já estávamos a chegar à orla da floresta rebentou um grande “fogachal” proveniente da nossa frente, de onde não divisávamos o inimigo. 

Quem já esteve debaixo de fogo há de perceber o que sentíamos, naquele ambiente de berros, de pó que se levanta, de ramos traçados por projeteis a cair sobre nós, da sensação de que aquilo nunca mais acaba, de que é impossível não haver mortos ou feridos graves, de que a todo o momento alguma bala ou estilhaço nos vai furar. Do desespero evoluímos para a certeza de que, se não fizermos fogo, se não reagirmos, podemos até ser apanhados à mão, como se diz em linguagem de guerra. Havia mais tropa ali por perto, pelo que chegariam reforços certamente. À minha esquerda, o António Carola do Nascimento, apontador do morteiro, grita-me por ajuda porque estava ferido. Olhei-o e perguntei-lhe onde era o buraco. Que era nos tomates, respondeu-me. Disse-lhe eu, num rasgo que hoje me causa admiração: 

- Nascimento, se falas é porque não estás muito mal, faz fogo com o morteiro senão morremos aqui todos

Respondeu-me ele como se esquecesse milagrosamente do seu ferimento:

 - Mande-me para cá granadas que eu mando-as para aqueles gajos

Assim é que era falar, pensei eu. Rolava sobre mim mesmo, bem colado ao chão, e trazia mais duas granadas dos camaradas do meu lado direito que o Nascimento se encarregava de remeter por via aérea. Já o fogo do inimigo parecia estar a diminuir, quando um dos soldados do grupo que acorreu em nosso auxílio se acerca de mim e, numa atitude que nunca esquecerei, carrega-me com as mãos sobre os ombros e preocupado intima-me:

 - Deita-te tu estás ferido

Dava ele importância ao sangue que me escorria do dedo mínimo da mão esquerda e me tingia todo o antebraço, mas que ele julgava provir do tórax. E de seguida, de pé, atrás de mim, com um destemor singular, aquele soldado do Pelotão de Nativos n.º 68, Ussumane Buaró, islâmico, disparou alguns dilagramas com a sua arma, contribuindo de forma que julgo decisiva para a fuga do inimigo.

Em 2009, quando fui à Guiné, numa caravana solidária, transportando alguns bens preciosos para o povo de Mampatá, procurei o Ussumane Buaró, dele só já pude ver a campa onde seus restos mortais foram sepultados no redor da tabanca. Ao seu filho mais velho deixei uma recordação num modesto gesto de homenagem e gratidão a alguém que se preocupou com a minha sobrevivência. No dia 16 de março de 1973, saiu, pelas seis horas da manhã, um grupo de combate da minha companhia, com destino à frente de trabalhos das obras de abertura e pavimentação da estrada entre Mampatá e Nhacobá. A cerca de um quilómetro o soldado Albuquerque pisou uma mina antipessoal e com o estampido uma nuvem de pó visível de longe, fazia crer o pior – a perda de uma perna, na melhor hipótese. Transportado de helicóptero para o Hospital de Bissau e operado, morreu passados cinco dias. Está sepultado no cemitério de Barcelos.

Um poema de homenagem ao Albuquerque – Autor: Josema, pseudónimo do meu amigo e camarada da companhia José Manuel Lopes:

Puseste o pé em sítio errado
um som violento o pó levantado
escondeu por algum tempo
o teu corpo violentado

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro
o sangue fugia do teu corpo
e o “hélio” não chegava

tua cara ainda de criança
ficava cada vez mais pálida
tudo num silêncio angustiado

apesar dos teus vinte anos
a vida fugiu-te em golfadas
porquê tanto sangue derramado?


Concluída a primeira estrada foi preciso construir uma outra, ligando o nosso destacamento ao importante quartel de Buba, ficando quase toda a atividade operacional condicionada pelo lema spinolista: "Por Uma Guiné Melhor". O General Spínola tomou posse como Governador e Comandante Chefe da Província da Guiné em 1968, e na tentativa de subtrair a população do controlo dos guerrilheiros organizou os chamados congressos do povo que eram assembleias consultivas constituídas por régulos, chefes religiosos e pessoas com ascendência social relevante que funcionavam como câmaras de eco das aspirações da população. Ao mesmo tempo desenvolveu um grande esforço no domínio da construção de estradas e de escolas. 

No plano estritamente militar ele implantou um programa de africanização da guerra, recrutando cada vez mais tropas naturais do território. Este plano pareceu inicialmente dar alguns bons resultados, mas o PAIGC tinha cada vez mais apoio internacional e o seu apetrechamento, em 1973, com lançadores de misseis térmicos, capazes de derrubar os nossos aviões mais modernos, tornou a guerra insolúvel. E a declaração unilateral de independência por parte do PAIGC, em 24 de setembro de 1973, foi o corolário dessa mudança de curso da guerra, quando os nossos aviões começaram a ser derrubados.

Naquele primeiro semestre de 1973 a situação militar piorava cada vez mais, e o abandono do quartel de Guileje bem como o massacre a que foram sujeitas as nossas tropas em Gadamael, no Sul e em Guidage, no Norte, resultavam sobretudo da grande dificuldade que os pilotos da Força Aérea Portuguesa sentiam agora, face ao uso dos novos misseis, pelo PAIG. Esse constrangimento repercutia-se não só num desempenho menos eficiente, por parte da Força Aérea, na proteção das nossa tropas, como também, na evacuação de feridos e no transporte aéreo de víveres, tabaco e correio. Este era absolutamente fundamental para o estado psicológico da maioria dos soldados e a falta de correspondência escrita, durante muitos dias, provocava desânimo. 

A carta ou o chamado aerograma, que dispensava selo, eram os únicos meios de comunicação disponíveis, naquelas circunstâncias. Havia ainda o telegrama para o envio ou receção de mensagens curtas, como a que recebi em meados do mês de outubro informando-me do falecimento do meu avô, mas que eu considerei ser a minha avó porque, erradamente, alguém trocou o acento circunflexo por um acento agudo e, por isso, andei cerca de um mês a pensar que tinha perdido a avó e não o avô. Em novembro Spínola, descrente quanto à possibilidade de se ganhar a guerra e impedido pelo governo de Lisboa de negociar um plano de autonomia para a província, abandonou o seu posto, sendo substituído pelo General Bettencourt Rodrigues. Com o início da estação das chuvas a situação estabilizou um pouco, mas a atividade militar iria recrudescer em 1974, fazendo aumentar o número de feridos e mortos e acrescer inúteis sacrifícios a todos, o que me angustiava cada vez mais.

Houve dois grandes momentos de eufórica alegria, durante a comissão: a notícia da revolução do 25 de Abril e o dia do regresso a Portugal em 24 de agosto de 1974. Naquela manhã, aparentemente igual a tantas outras, depois de ter já cumprido a minha rotina na assistência aos doentes da população civil, passando pelo bar para tomar alguma bebida fresca, vi junto ao posto de transmissões alguns camaradas que dialogavam entre si, com gestos e expressões de espanto e notável felicidade. 

Que caso seria aquele? Não era nada de trivial. Ao aproximar-me logo me envolvi naquela atmosfera de esperança, de quase certeza quanto ao fim daquele calvário. Não haveria retrocesso, Spínola estava por trás daquilo, agora era mesmo a sério, não era um arremedo, como tinha sido o golpe do dia 16 do mês anterior, desta vez era mesmo o derrube do regime, uma mudança radical de política, negociações imediatas com o PAIGC, e fim imediato da guerra com regresso antecipado a Lisboa. 

Não foi bem assim, porque as hostilidades ainda prosseguiram por mais algumas semanas embora em decréscimo e a nossa partida não foi antecipada. Mas a convicção de que tudo estava a acabar era geral e, por isso, quando a noite chegou, nesse mesmo dia, com a confirmação de notícias mais consistentes sobre o sucesso definitivo da revolução, em Mampatá, perante o espanto e algum entusiasmo da população, os soldados extrovertiam toda a sua alegria com algum álcool à mistura. E assim estaria a acontecer por todos os aquartelamentos da Guiné. 

Estariam os guerrilheiros do PAIGC tão felizes quanto nós? Não sei. Os eventos inimagináveis, um mês antes, surpreendiam-nos a cada semana: 14 de maio teve lugar uma reunião entre representantes do MFA e oficiais e sargentos das unidades do sector da qual resultou a certeza inequívoca de que a guerra era para terminar; nos primeiros dias de junho recebemos em Mampatá um Comissário Político do PAIGC que reuniu com a população e com os militares guineenses integrados no Exército Português; no dia 26 de junho cerca de uma centena de guerrilheiros do PAIGC, inimigos de ontem amigos agora, entraram na povoação e trocaram connosco crachás e outros adereços. Estava assim garantido o estabelecimento definitivo da paz. 

Depois foi só a paciência de esperarmos mais dois meses, já sem a pressão da guerra, mas com o peso dos dias vagarosos que pareciam não mais acabar. No dia 24 de agosto, com aqueles 150 camaradas dentro do Boeing 707, parecia que nunca mais levantávamos voo ao encontro de quem tínhamos por cá deixado, mas quando, finalmente, a força dos reatores nos despregaram do chão, a alegria sem peias brotou exaltada do coração de todos nós. Perdiam-se gradativamente do alcance dos nossos olhos as ruas de Bissau e a floresta frondosa envolvente, eram já os grandes rios parecidos com regatos e depois só nuvens que tudo encobriam menos os dias amargos que deixávamos e até, porque não dizê-lo, também uma imperecível marca de convivência com culturas diferentes que nos proporcionaram o conhecimento de outras religiões, outras culturas e uma visão plural da humanidade.

Tinha assistido ao fim de um conflito evitável e sem qualquer proveito para ambas as partes, no qual perderam a vida, nos três territórios de Angola, Guiné e Moçambique 8831 jovens portugueses, num total de 800.000 militares mobilizados durante 13 anos. E aos que propagam a teoria de que a guerra de África não era uma causa perdida e que até já estava quase ganha responde o silêncio de 98 jovens mortos, só na Guiné, no período decorrente entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974. 

E são estes números apenas os das nossas hostes, mas não são, nem nunca a minha sensibilidade o aceitaria, desprezíveis os milhares de mortos, do lado dos que combateram pela independência, entre militares e civis. Caberá aqui evocar uma reflexão de Pirro, rei de Epiro, depois de sair vitorioso de vários confrontos com exércitos da península itálica, no decurso de século terceiro a.C. nos quais perdeu, ainda assim, algumas dezenas de milhar de soldados: Se formos mais uma vez vitoriosos, numa batalha contra os romanos, perdendo idêntico número de soldados, ficaremos arruinados. Julgo que terá sido esse pensamento do rei de Epiro, reportado pelo historiador grego Plutarco, que norteou a decisão histórica do General Spínola, quando fez saber ao governo de Lisboa da sua indisponibilidade para prosseguir numa guerra de vitórias pírricas.

As guerras deverão ser sempre o último recurso das nações civilizadas, nunca uma opção estratégica. Dirão outros que aquele era um território português e como tal tinha que ser defendido. A esses asseverarei que os estados têm como dever prioritário não propriamente a defesa do território, mas a defesa de todas as pessoas que nele habitam, assegurando que todos tenham direito à satisfação das suas necessidade básicas, à liberdade, à democracia e à justiça.
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21858: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (4): "O Machado"; "O Tiago e a pena" e "Viagem para Bissau"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


10 - O MACHADO

Numa deslocação de reconhecimento e emboscada numa zona que supostamente o inimigo frequentava e que durou dois dias e uma noite, atravessámos várias bolanhas para chegar ao local referenciado onde encontrámos vestígios antigos de presença humana.

Retiramos do objetivo e procuramos no regresso um local para passar a noite que se aproximava. Instalamo-nos, perto das 18H00, para comer a ração de combate e dormir, quando, logo a seguir, desabou uma carga de água que estimo, porque não tinha relógio, terá durado algumas horas. O pessoal foi-se encostando às árvores, em pequenos grupos, cobrindo-se com os panos de tenda que alguns levavam mas que não impediram uma molha geral.

Algum tempo depois de passada a tempestade, noite cerrada, alguém aflito chama pelo graduado do seu pelotão que logo o manda calar. Mas, a cegarrega continuou em tom mais baixo, com grande aflição, pelo que o graduado se deslocou ao local onde pediam a sua presença e perguntou ao militar, sem o ver, a causa de tão grande aflição. O Machado disse que não tinha uma perna, afirmação que causou algum alvoroço, com alguém a comentar que teria sido algum bicho, o que angustiou ainda mais o soldado. Era uma situação complicada de resolver, a meio da noite, sem se ver nada. Tendo-se acalmado, o Machado verificou que afinal tinha a perna mas não a sentia, situação bem mais favorável.

O que aconteceu, está bem de ver, é que o Machado completamente ensopado deitou-se em posição fetal, adormeceu e com ele adormeceu a perna sobre a qual se deitou.

Ao alvorecer, sem chuva, com o chilrear dos pássaros qual despertador amigo, iniciámos o regresso ao quartel com o Machado a andar perfeitamente e, por dentro, a chilrear também. Claro que não se livrou de alguns remoques dos companheiros.


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11 - O TIAGO E A PENA

Estávamos alguns militares junto ao cavalo de frisa, porta de armas do quartel, à espera da viatura proveniente de Cumbijã para irmos ao médico a Aldeia Formosa.

Também ali estavam dois jovens guineenses que se puseram na brincadeira, enquanto a viatura não chegava, medindo forças, rindo, até que um derrubou o outro e o manietou.

Sentado numa pedra, junto deles, estava o Tiago, com uma pena na mão, riscando o chão, perfeitamente concentrado na sua tarefa. Entretanto, o jovem que estava dominado contorcia-se, rindo, para se libertar do domínio do outro e quanto mais se contorcia mais o que estava por cima aumentava o seu esforço para o manter quieto.

A dada altura pareceu-me haver qualquer anomalia na brincadeira e olhei para os dois engalfinhados no chão e para o Tiago, que estava junto deles. Então, percebi que o jovem que estava dominado contorcia-se mais porque o Tiago viu ali um pé à mão de semear e, paulatinamente, começou a fazer-lhe cócegas com a pena levando o jovem a esforçar-se cada vez para se libertar sem que o outro aliviasse a pressão exercida, por não perceber o que se passava nas suas costas.

Confesso que não tenho a certeza, mas creio que o jovem não conseguiu conter as águas.


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12 - VIAGEM PARA BISSAU

Em outubro de 1973, saímos de Colibuia para os Adidos, em Brá – Bissau, tendo a viagem sido feita de Lancha de Desembarque Média (LDM) a partir de Buba. Na viagem, já de noite, estalou uma tempestade assustadora que deixou o pessoal e a bagagem completamente encharcados.

Na bagagem havia malas de todo o tipo e feitio. Umas, em plástico ou pele, de cores diversas, com vistosos e seguros fechos, que pareciam aguentar bem aquela chuvada e mais umas quantas. Outras, de cartão revestido com tecido, com ar de que aos primeiros pingos de chuva se desfariam.

Eu tinha uma mala mais pequena de pele que, se bem informado, seria suficiente para toda a comissão, e tinha outra maior de cartão revestido a tecido.

Fosse pela colocação mais ou menos privilegiada de cada uma das malas no espaço a elas destinado, fosse pela qualidade das mesmas, a verdade é que a mala de cartão chegou em excelentes condições e a mala de pele ficou encharcada na base tendo-se estragado alguma da bagagem e os sinais da intempérie duraram o resto da sua vida.

Lá se chegou a Bissau e, na nossa deslocação para os Adidos, atravessámos a cidade de Berliet sendo praxados pelos militares que circulavam nas ruas, parte substancial da população que se movimentava em Bissau, com o tradicional piu-piu. Chateados, respondíamos com o “vai para o mato, malandro” adequado.

Adidos: a estender roupa e, depois, ficar à espera que seque e proceder à sua recolha para não mudar de dono
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21849: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (3): "Colibuia"; "O banho e o atavio" e "Os esperados"

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21849: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (3): "Colibuia"; "O banho e o atavio" e "Os esperados"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


7 - COLIBUIA

A minha Companhia foi colocada em Colibuia, aquartelamento situado na estrada entre Aldeia Formosa e Cumbijã, alcatroada, com sinais de um forte rebentamento perto da zona de abastecimento de água.

Curiosamente, a minha memória, que até nem é má, recorda pouco do dispositivo interior deste aquartelamento, onde permaneci dois meses.

O seu perímetro seria o de um retângulo semelhante a um campo de futebol pelado e tinha 4 ou 5 casernas sendo a mais pequena para os oficiais e sargentos, tinha 4 postos de observação e vigilância, latrinas, zona de banho (sem chuveiro), cozinha, pequena messe que incluía um bar de janela que servia para o exterior e, talvez, refeitório.

O perímetro era vedado com duas fiadas de arame farpado, onde se dependuravam garrafas vazias de cerveja que constituíam um acréscimo de segurança importante no caso de intrusão, e entre elas alguns fornilhos. A entrada, que dava para a estrada, tinha um cavalo de frisa.

O armamento fixo constava de um morteiro de 81mm.

No canto direito do lado da mata situava-se a caserna do pelotão da milícia e um posto de vigilância por ele controlado. Era o local ideal para se desenfiarem e durante as rondas verificava-se que o posto de vigilância estava sempre deserto. Enfim, por ali não havia perigo.


Aspecto do aquartelamento de Colibuia, provavelmente em 1973. Foto: © António Murta

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Distintivo da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4516


8 - O BANHO E O ATAVIO

Colibuia era um aquartelamento ao nível do pior que vi na Guiné. Ficava cada vez mais invejoso à medida que ia sabendo da existência de alguns que até tinham piscina.

As tarefas cometidas à Companhia, para além da defesa do aquartelamento, tinham a ver com o patrulhamento diário da zona envolvente, o abastecimento de água e géneros alimentícios e, periodicamente, emboscadas e participação em operações que exigiam a passagem da noite no mato.

No regresso do cumprimento das tarefas era normal o pessoal querer tomar banho. Essa função desenvolvia-se sob uma estrutura construída com troncos de árvore que suportava um latão que, cheio, levava cerca de 200 litros de água. A meio da estrutura, ao nível da cintura dos utentes, existiam umas tábuas com cerca de meio metro de altura que preservavam a intimidade dos banhistas, com excepção da entrada que estava voltada para o arame. O depósito não tinha chuveiro mas apenas um furo que se tapava e destapava com uma pequena cunha de madeira, permitindo apenas a saída de um fiozinho de água gastando o utente largos minutos para molhar o corpo e ainda mais tempo para tirar o sabão (Lifebuoy). Como, normalmente, havia mais que um banhista o seguinte molhava-se enquanto o outro, calmamente, se ensaboava e assim sucessivamente.

Após o banho, o pessoal vestia-se à civil: calção, tronco nu e chinelos. O calção era a grande moda na altura e tinha a sua origem no corte das pernas das calças levadas da Metrópole que não serviam para nada. Pessoalmente, transportei para a Guiné uma mala cheia de roupa que apenas serviu para tornar mais penosas as várias mudanças de instalações com que fui contemplado.

Conclui-se, assim, que a consciência que eu tinha da guerra e das circunstâncias em que ela se desenrolava,  era tipo turística mas que rapidamente se modificou.


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9 - OS ESPERADOS

Existia no Exército uma figura de mancebo que se denominava o esperado (ou coisa parecida), que, não sendo incorporado logo após a inspeção,  poderia sê-lo mais tarde, durante um período de 4 ou 5 anos, conforme as necessidades de pessoal.

Do meu pelotão, inicialmente com 25 homens, faziam parte 4 esperados, com idades próximas de 25 anos, sendo que um até já tinha 27 anos, oriundo do Brasil em passo de corrida para cumprir o serviço militar em Portugal, trazendo consigo duas hérnias e um jeito singular para assar frangos e fazer pão. De todos eles apenas um, o Silva, integrou sempre o pelotão nas suas saídas e o seu raquitismo não o impedia de ser um dos mais firmes e constantes. Um dia, perante um calmeirão que no mato se lastimava amargamente do peso da HK21 e respetivas munições, logo ali o Silva se ofereceu para proceder ao seu transporte e manuseamento.

Se, por um lado, me entristecia a situação daqueles rapazes com nítidas debilidades físicas, incorporados como atiradores de infantaria e depois desviados para outras tarefas, por outro lado apeteceu-me dar um grande abraço ao Silva e dizer-lhe o orgulho que sentia em o ter na minha secção.

Mas, era assim que se ganhavam guerras?

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21839: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (2): "Pira desenfiado"; "A praxe" e "Os Ray-Ban"

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21120: Notas de leitura (1291): “BC 513 - História do Batalhão”, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Quem contesta a importância primacial da leitura da história dos batalhões como documentação-base para a historiografia da guerra colonial, leia a história do BCAÇ 513 e converse depois connosco.
Desembarcam em Julho de 1963, é-lhes destinado um vasto Sul, em turbamulta, a guerrilha devasta, intimida, executa os contestatários. As incumbências que lhe estão cometidas têm um peso enorme: instalar um destacamento em Guileje, outro em Colibuia, irradiar a partir de Aldeia Formosa, interditar o trânsito do inimigo da área do Forreá para o Incassol, patrulhar e emboscar no eixo Buba-Nhala e na estrada Buba-Aldeia Formosa.
Temos aqui relatos que infundem respeito, que deixam bem claro o caos em que se encontra toda região Sul em 1963 e como numa fase de arranque do PAIGC foi possível confrontá-lo com escassos recursos. Quando ali chegaram, Guileje estava totalmente ao abandono e as forças do PAIGC controlavam totalmente Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde e Campeane, bem como o Cantanhez.
Um relato épico, inesquecível.

Um abraço do
Mário


BCAÇ 513, a divisa era “Ceder Nunca” (1)

Beja Santos

Dentro da minha rede de apoios, a Biblioteca da Liga dos Combatentes tem lugar cimeiro. O responsável pela biblioteca, sempre prestável, quando o informo das minhas devoluções também me informa que encontrou mais umas coisinhas, é tudo uma questão de ir ver. Uma das novidades foi a história deste Batalhão, documento que desconhecia inteiramente: BC 513, História do Batalhão, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000. A surpresa começa logo na dedicatória de oferta:  
“De todos nós, combatentes do BCAÇ n.º 513, que prestou serviço na Guiné entre Julho de 1963 e Agosto de 1965, daqueles que por lá perderam a vida e daqueles que voltaram deixando lá parte dela, aqui fica um muito pouco de nós e um grande reconhecimento que os combatentes sabem ter por quem nunca os esquece. Mas a nossa história, essa, ficará sempre por contar. Ela seria o enorme somatório de todas as histórias, de todos nós, amalgamadas com todos os nossos sentimentos, todas as nossas indignações, angústias, inquietações, desesperos, raivas, medos, coragens, esperanças, desilusões, amizades, amores, tudo isso unido pela fortíssima argamassa que é a irmandade que nasce e perdura para sempre entre aqueles que foram combatentes. Vosso, muito grato, José Filipe da Cunha Fialho Barata, ex-alferes miliciano sapador”.

O BCAÇ 513, diz-se logo no pórtico, não foi uma unidade organizada na metrópole e preparada em conjunto numa única unidade mobilizadora. Apenas havia sido determinada a constituição de um Comando de Batalhão e respetiva CCS, com destino a Moçambique. Na antevéspera do embarque teve-se conhecimento da mudança de destino, a Guiné. Embarcam no Niassa em 17 de Julho de 1963, com as Companhias de Artilharia 494, 495 e 496, e o BCAV n.º 490 com as suas companhias 487, 488 e 489. Chegados a Bissau, logo se descobriu a falta de instalações com o mínimo de condições para alojar o pessoal, viveram um pouco aos baldões até que em 26 de Agosto seguiram para Buba. Houvera entretanto alterações no dispositivo militar, resultante da divisão de zona Sul, então na totalidade incluída na zona de ação do BCAÇ n.º 237. Dera-se a designação de Setor E, e a partir de Janeiro de 1965 passou a ser designado por Setor S2, com sede em Buba e abrangendo os subsetores de Buba, Cacine, Aldeia Formosa e mais tarde ainda os novos subsetores de Gadamael, Sangonhá e Guileje. O BCAÇ n.º 513 foi constituído na Guiné com a incorporação das três referidas Companhias de Artilharia, estava em Buba a CCAÇ n.º 411, houve também reforços com um Pelotão de Reconhecimento de Cavalaria, um Pelotão FOX. Recorde-se que o comandante da CART n.º 494 era o então Capitão Alexandre Coutinho e Lima, protagonista cimeiro da retirada de Guileje, em Maio de 1973. O Comando ficou em Buba, uma companhia partiu para Cacine, outra para a Aldeia Formosa, outra para Ganjola, no setor de Catió, onde se instalou provisoriamente.
E escreve-se na história do batalhão:  
“O facto mais grave foi o enfrentar logo no início de comissão a falta de instalações, muitas delas completamente destruídas, outras não possuindo mais que palhotas. As tropas viveram sempre nas piores condições imagináveis. Tiveram de construir paliçadas, abrigos para as armas e para o pessoal, que progressivamente foi necessário transformar em abrigos à prova de morteiro, pistas para a aviões a fim de não se ficar sujeito à única ligação mensal pelo barco dos reabastecimentos”.
E somos informados do inimigo existente, dispunha-se em três importantes zonas de concentração: a região de Incassol, nas margens do rio Corubal (Gã Gregório), a região de Forreá nas margens do rio Cumbijã e a região de Cacine na orla marítima (Campeane). Era tida como zona isenta de atividade inimiga a região da Aldeia Formosa – Contabane.

Era fundamental trabalhar na recuperação do “Chão Fula”. E escreve-se:  
“O regresso das populações às tabancas abandonadas só foi possível colocando um destacamento militar avançado na direção mais perigosa (Colibuia). O mesmo será necessário fazer quando se progredir na direção de Guileje, instalando nesta localidade um novo destacamento. Este sistema de dispersão de efetivos só seria possível desde que houvesse uma força móvel capaz de acorrer prontamente a qualquer ponto atacado. Por essa razão se manteve em Aldeia Formosa o pelotão FOX”. Era igualmente reconhecimento como imperativo paralisar o trânsito na fronteira Sul da Guiné. A tentativa de perfuração da CART n.º 496 em direção a Campeane não funcionou. Toda a região está bastante comprometida pelos terroristas e a progressão das tropas necessita sempre de apoio aéreo e de apoio terrestre dado por autometralhadoras”.

E o relatório elenca o que foi a recuperação do Chão Fula. O autor enquadra a situação:
“Junto à fronteira Sul e tendo como fulcro a tabanca da Aldeia Formosa (Quebo) uma vasta região encontrava-se habitada quase exclusivamente por povos de raça Fula tendo um importante chefe religioso, Cherno Rachide. Abrangendo os regulados de Contabane, Forriá e Guileje, corresponde a uma extensão de fronteira de mais de 40 quilómetros. Iniciada em princípios de 1963 a ação de grupos armados do PAIGC, sem que esses povos de raça Fula se tivessem deixado subverter na fase anterior de aliciamento, foram imediatamente atacados e expulsos das tabancas situadas nas linhas de infiltração escolhidas para passagens de pessoal e material, em especial no corredor de Guileje – Mejo – Nhacobá – Buba – Fulacunda. Atacada, incendiada e saqueada a tabanca de Salancaur Fula, onde se encontrava o régulo de Guileje, espalhou-se o pânico entre todos os povos desse regulado, fugindo uns para a República da Guiné, outros para Bedanda e ainda outros para Contabane e Aldeia Formosa. A tabanca do Mejo e outras próximas viriam também mais tarde a ser incendiadas e destruídas. Todas as casas de construção europeia pertencentes a comerciantes de Salancaur Cul e Bantel Silá foram destruídas. Em Maio de 1963 era chacinado em Samenau um sobrinho de Cherno Rachide e Cumbijã era atacada, ficando completamente incendiada e destruída. Assim avançou o IN na destruição das tabancas que lhe opunham dificuldades a caminho de Buba”.

O autor releva a ação de um pelotão da CCAÇ 41 e um pelotão de Reconhecimento de Cavalaria, Pelotão FOX, que foi incutindo respeito ao IN e dando confiança às populações. Nesse tempo os guerrilheiros ainda não dispunham de minas anticarro embora fizessem largo uso de fornilhos, que tinham pouco sucesso, porque eram comandados à distância. A viragem da situação ocorre com a instalação da CART n.º 495 em Aldeia Formosa, seguindo-se a instalação de um destacamento em Colibuia, em Outubro de 1963. Em Dezembro desse ano iniciou-se a preparação para a recuperação de Cumbijã. Em 4 de Fevereiro de 1964, uma enorme coluna auto, encabeçada pelo Pelotão FOX 888 e um grupo de combate da CART 495 procedeu à reocupação de Guileje. Tropas e população começaram do zero a ocupação de um dos mais importantes locais da fronteira Sul, sobre o ponto de vista militar. No mês seguinte começou a construção de um aquartelamento em Mejo e com a sua ocupação estavam criadas as condições necessárias para atingir Salancaur Fula e efetuar a ligação com Cumbijã através de Nhacobá e Samenau, completando-se a reinstalação dos povos Fulas das tabancas que tinham sido forçados a abandonar.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21099: Notas de leitura (1290): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (5) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15271: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (25): De 6 a 26 de Janeiro de 1974

1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 25.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

25 - De 6 a 26 de Janeiro de 1974


Janeiro de 1974

Inicia-se um novo ano. O tipo de actividade operacional não sofreu grandes alterações, mas intensifica-se bastante com o avançar da época seca, que facilita a incursão em regiões até há pouco inacessíveis. Mas essas facilidades no terreno também estão em linha com o incremento da actividade da guerrilha, que já começou a dar sinais com a montagem de uma emboscada, implante de minas e um ataque a Cumbijã.

Os esforços do Batalhão continuaram a ser dirigidos para a protecção às duas frentes de trabalho da Engenharia na estrada A. Formosa-Buba, nos patrulhamentos e contra-penetrações para as regiões da fronteira, Rio Corubal, Rio Buba, Nhacobá e nos corredores de passagem da guerrilha de todo o Sector e, ainda, para acções extraordinárias desencadeadas pelas informações que iam chegando sobre as movimentações da guerrilha.

Novidade são as detecções em radar (presumo que localizado em A. Formosa) de “alvos aéreos não identificados”. Pelo que teve de inédito, transcreverei seguidamente da História da minha Unidade os registos dessas detecções, (como valor documental, e não para reabrir o polémico “dossier” ou, menos ainda, para entrar em polémica). Transcrevo também outros registos relevantes.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

JAN74/06
- (...) – Comandante, Califa, Cherno Secuna, os Chefes de Tabanca e muitos elementos da população inauguraram o troço de estrada alcatroada A. FORMOSA-MAMPATÁ.

JAN74/08
- Realizou-se uma coluna inopinada a BUBA para transporte de víveres e material para o reordenamento de COLIBUIA. (...).


Das minhas memórias: 

 8 de Janeiro de 1974 – (terça-feira): Dia do meu aniversário

A coluna inopinada referida atrás, tinha mesmo de se realizar... Estava com o meu grupo em Buba e o Cap. Braga da Cruz mandou-me uma mensagem de Nhala para que regressasse nessa coluna, a fim de comemorar o meu aniversário. 

Foi uma grande gentileza da sua parte e eu devo ter ficado muito sensibilizado e reconhecido. Sei-o por um aerograma com data de 13-01-74 enviado para a Metrópole dando conta do meu contentamento e agradecendo o telegrama de felicitações que recebera no dia 8. Esse telegrama foi a surpresa que me havia reservado o capitão à minha chegada a Nhala nesse dia. Fazia 23 anos.

Talvez porque o meu grupo estivesse com o regresso para breve, eu já não saí de Nhala. Nos primeiros dias parece que foi bom, mas logo me comecei a aborrecer e a fechar-me no mutismo. Faltava-me a excitação da actividade operacional e a adrenalina que tantas vezes isso trazia. Coisa que não havia em frasquinhos. Comecei a deixar de dormir embora tomasse comprimidos, mas o efeito começou a ser de placebo: efeito zero. 

Hoje levanto o sobrolho interrogando-me: como é que um tipo com vinte e três anos acabados de fazer, se vai assim a baixo sem reagir às contrariedades? Como é que noutras ocasiões me queixava dos excessos da actividade? E como seria quando tudo acabasse? Como regressaria a casa? Claro que obtive algumas respostas na altura certa e talvez volte ao tema. 

Em carta de 15-01-74 queixo-me: “ (...). Ando aborrecido e não me apetece ver nem falar com ninguém. Talvez por não ter nada para fazer nestes dias. Todas as tardes saio sozinho para caçar e me distrair um pouco, apesar de estar um calor imenso. À noite tomo comprimidos para dormir, mas isso já não me faz nada”.

No dia seguinte a esta carta sairia de Nhala para gozo de férias o Cap. Braga da Cruz e, em termos de ambiente, tudo se tornaria mais fastidioso. Então porque não terei regressado a Buba, onde se encontrava o meu grupo para fazer protecção às obras da estrada? 

Talvez porque se avizinhasse o regresso do grupo, pois em carta de 21-01-74, já é referida actividade normal. “ (...). À noite continua a fazer bastante frio. E de manhã cedo sou obrigado a sair de luvas para o mato, como tem acontecido ultimamente. Mas é horrível a sensação de vestir a roupa fria e começar a caminhar debaixo de grande humidade, sempre contraído. Pelo que vejo nas caras dos outros, é a mesma coisa”.

Julgo ser daquele período de ócio forçado que tive em mãos um Auto de Averiguações relativo a um soldado guineense que tinha sido “desterrado” para Nhala, para aguardar as conclusões de um processo que já vinha de Bissau. Era indiciado de ter provocado desacatos e perturbação da ordem pública em Bissau. Para mim, podia ter sido uma boa ocupação, não fora o carácter ad aeternum da empreitada... É que o referido soldado não levava a sério as averiguações em curso nem estava preocupado com as consequências. Tanto que, numa ida autorizada a Bissau para tratar de assuntos, voltou a prevaricar na modalidade da sua preferência: desacatos e perturbação da ordem. 

Antes do seu regresso a Nhala, já eu tinha recebido mais uma nota de quesitos para lhe serem colocados logo que chegasse. No final, que sanção disciplinar poderia eu propor para um indivíduo que era tão maluco mas, ao mesmo tempo, um “gajo porreiro”? Não recordo se cheguei a concluir o Auto de Averiguações mas ele, aos costumes disse nada...


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: Alvos aéreos não identificados:

(...)

JAN74/10
- Como já vem sucedendo há três dias, são detectados pelo radar, entre as 18,30 horas e 22,00 horas, alvos não identificados. Tem-se tentado entrar em contacto com os meios aéreos sem resposta. Hoje o DAKOTA, neste período sobrevoou A. FORMOSA, verificando-se que os meios aéreos, até agora detectados começaram a operar mais longe e com menos frequência. (...).

JAN74/11
- Continuam-se a detectar alvos não identificados no radar e durante o mesmo período do dia anterior. Estiveram em A. FORMOSA o Exmo. TEN-COR PIL AV VASQUEZ e o Sr. CAP ROLA PATA, Cmdt da BAA/7040, a fim de se reunirem com este Comando, para tratar do assunto relacionado com o aparecimento dos alvos não identificados. (...).

JAN74/13
- Pelas 18,40 foram avistados sobre A. FORMOSA alvos aéreos suspeitos, pelo foi executado fogo contra-aeronaves, sem resultado. (...).

JAN74/15
- Esteve em A. FORMOSA um DO com técnico de radar da Aeronáutica, a fim de verificar o aparecimento dos alvos que ultimamente o radar tem acusado. Depois de várias verificações, ainda não se chegou a nenhuma conclusão. (...).

JAN74/16
- Ao fim da tarde A. FORMOSA foi sobrevoada por dois FIAT’s, com a finalidade de pesquisar os alvos indicados pelo radar. Apesar dos aviões terem sido dirigidos sobre os mesmos, nada encontraram. [No dia 27 estiveram de novo em A. Formosa os senhores Ten-Cor PILAV Vasquez e Cap de Artª Rola Pata, para tratarem destes assuntos].

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[O PAIGC recomeçou a actividade no Sector. Por reflexo, a nossa actividade operacional recrudesce]

JAN74/20
- Pelas 18,00 horas GR IN não estimado flagelou Destacamento do CUMBIJÃ com 30 granadas de Canhão S/R, durante 20 minutos, com bases de fogos na direcção de BRICAMA, sem consequências. As NT reagiram com fogo de Artª.
- Pelas 19,30 foram avistados do Destacamento de CUMBIJÃ na direcção de CHIN-CHIN DARI vários VERY-LIGHTS.

JAN74/21
- Realizou-se coluna de reabastecimentos a BUBA. Esta coluna transportou 2 GR COMB das CCAV 8350 e 8351, que substituiriam na protecção dos trabalhos de Engenharia os GR COMB da 1ª CCAÇ/4513, que iriam ser empenhados na acção "OBSTRUÇÃO" a Sul do R. BUBA. (...).

JAN74/26
- Pelas 06h40, quando forças da 1.ª CCAÇ/4513 se deslocavam [em coluna auto, acrescento eu] para a protecção dos trabalhos de Engenharia, foram emboscados por GR IN estimado em 50 elementos com RPG, PPSH, KALASHNIKOV durante cinco minutos, na região de XITOLE 2 F 4-39 [no troço da estrada nova entre Buba e Nhala, acrescento eu], causando 1 morto, 1 ferido grave, 4 feridos ligeiros às NT, e 3 feridos ao pessoal de Brigada de Estradas. O IN sofreu 3 mortos confirmados e vários feridos prováveis. Executou-se fogo de artilharia para o itinerário de retirada do IN em direcção ao INJASSANE. Em reconhecimento posterior encontraram-se vestígios de terem sido causados ao IN mais feridos e mortos prováveis. Foram capturados 6 granadas de RPG, 2 carregadores de KALASHNIKOV e 2 Pás-picaretas.


Das minhas memórias:

26 de Janeiro de 1974 – (sábado) – Emboscada na estrada nova: um fiasco da guerrilha

Recordo muito bem esta emboscada. Em Nhala ouviu-se o ataque e rapidamente se aprontaram viaturas para irmos em socorro dos camaradas de Buba. Quando chegámos ao local já tudo tinha terminado porque fora um ataque relâmpago, mas reinava ainda alguma confusão entre a nossa tropa, natural nestas situações. Depois de observar a situação na estrada enquanto o pessoal se recompunha, e de me inteirar do modo como fora desencadeado o ataque e como decorrera, fui à vala de onde ele partira, – melhor diria, fui à “trincheira”. Fiquei incrédulo. Se não tivessem havido mortos de parte a parte, tudo ali parecia indicar que se tratara de uma brincadeira ou de que estariam a gozar com as nossas tropas. Abriram uma vala enorme e deram-se ao luxo de talhar nas paredes, em vários pontos, bases para assentar metralhadoras (não referidas na HU) e, defronte, o assento do atirador. Aquilo não se fazia num dia nem em dois.

As notas que tenho sobre esta emboscada não coincidem totalmente com os dados que agora leio na História da Unidade. É referido que tivemos 1 morto e um ferido grave mas, é possível que esse ferido tivesse morrido pouco depois porque eu tenho anotado 2 mortos. Eram os picadores que vinham apeados à frente da coluna (?), alvejados por um único atirador que saiu da vala e ficou de pé a disparar. Tenho anotado 11 feridos ligeiros, a maioria ocupantes de uma Berliet que, por precipitação do condutor que saltou da viatura sem premir o botão que a faria parar, fez com que ela batesse com violência contra uma árvore fora da estrada. Quando lá cheguei ainda assim estava. Houve um outro ferido que foi vítima da “explosão” da própria G-3: tinha disparado todos os seus carregadores e depois sacou os carregadores de um soldado que tinha ficado “bloqueado” e em pânico ao seu lado. Como a G-3 não era preparada para tantos disparos, começou por ficar quase ao rubro e depois, simplesmente, torceu a extremidade do cano e bloqueou a saída das munições.

O que mais me espantou no cenário que encontrei, foi que, numa vala que calculámos na altura seria para mais de 100 homens, (a História da Unidade refere apenas 50), e estando a cerca de 150 metros da estrada, não terem feito mais vítimas numa coluna em marcha lenta (?) e com apenas algumas árvores a interporem-se. 

Comentei na altura e posso reafirmar: o meu grupo naquela vala, devidamente organizado para a função de cada um, e poucos sobreviventes deixaria na coluna. Eles, ao contrário, deixaram muitos rastos de sangue entre a vala e a mata, a 50 metros, por onde retiraram. Passados 5 dias, em 31-01-74, foram lá colocar na estrada e no mesmo sítio, duas minas anticarro (que o nosso pessoal levantou), tentando compensar o autêntico malogro que fora aquela emboscada. (A História da Unidade refere o dia 30 como sendo a data da detecção e levantamento das duas minas TMD-44). Alguns dias depois, de passagem, fotografei o local da emboscada.


Foto 1: Janeiro de 1974, estrada Buba-Nhala. Fotografia tirada da berma da estrada no sítio onde ocorreu a emboscada. À esquerda e à direita da imagem, não visíveis, existiam árvores espaçadas mas de grande porte, numa das quais embateu com violência, uma das Berliet carregada de pessoal. Assinalei a tracejado a localização aproximada da vala de onde partiu o ataque. No chão podem ver-se em primeiro plano algumas das embalagens das nossas munições.



As frentes de trabalho da estrada nova

No final de Janeiro de 1974, as frentes de trabalho da Engenharia avançavam a um ritmo impressionante, com a frente de Buba quase às portas de Nhala (8 km de desmatação e 7 km de alcatroamento) e com a frente de A. Formosa (9 km de desmatação e 7,7 km de alcatroamento), já com o troço A. Formosa-Mampatá inaugurado. Nesta fase, a minha Companhia estava empenhada na protecção às obras na frente de trabalhos de Buba por razões lógicas. São desse período as fotografias que mostrarei a seguir.


Foto 2: O meu grupo de combate numa manhã magnífica a caminho da frente de trabalhos da estrada A. Formosa-Buba, na frente de Buba.



Foto 3: Chegada dos capinadores. Acabados de apear das viaturas, irão começar uma jornada dura sob o sol escaldante que não tardaria.



Foto 4: Quase em simultâneo chegam as máquinas da Engenharia. À direita reconheço o Manuel Esteves do meu grupo com a G-3 ao ombro e à frente da viatura o Custódio, maqueiro (ou ajudante de enfermeiro).



Foto 5: Ainda não nos instalámos, mas a confusão já começou. A atravessar vê-se um GC que deve ser da 1ª CCAÇ de Buba. O meu grupo está a aguardar à direita.



Foto 6: Uma viatura da Engenharia corre levantando pó no troço já pronto. Pronto, mas não concluído, porque durante um longo período faltou o alcatrão.



Foto 7: Descarga de terra para a sub-base da estrada.


Foto 8: O meu grupo na “pedreira” e, ao fundo, a estrada nova. É na mata ao cimo da “pedreira” que iremos passar todo o dia emboscados.



Foto 9: À frente dos soldados o “PIFAS”. Era um cão criado por mim e que depois passou para a propriedade do grupo, acompanhando-nos sempre com muita disciplina. Até ao dia em passou a ser inconveniente pondo-nos em risco. Doente, esquelético e provocador dos macacos-cães, foi sujeito à “solução final”.



Foto 10: Furriel Domingos Oliveira, envolto num enxame daquela mosquinha chata que nos entrava no nariz e nos ouvidos. Na imagem, a maioria ficou fora de foco.



Foto 11: Furriel José Maria Pastor.


Foto 12: Um abrigo de circunstância junto ao morteiro 60. De costas, o 1.º Cabo Maqueiro lê, para passar o tempo.



Foto 13: O morteiro de 60mm e o respectivo arsenal, num local que era suposto ser seguro.


Foto 14: Elementos assalariados da desmatação.


Das minhas memórias: Um incidente quase perfeito

O grupo civil de capinadores e da desmatação, largas dezenas e, muitos deles, quase crianças, chegavam todos os dias à frente de trabalho sorumbáticos mas muito disciplinados. Nunca soube nada a respeito deles: quantos eram, de onde vinham, de que etnias eram, quanto ganhavam, enfim. Sempre me pareceu que nos ignoravam ostensivamente ou, até, com hostilidade. Esses que mostro na fotografia 14, deixaram-se fotografar sem nunca se virarem ou darem um sinal de que me pressentiram. 

Pouco depois, com outros que ficaram fora do enquadramento, protagonizaram um incidente, em que eu tive também responsabilidades, e que podia ter originado consequências graves. Estava todo o grupo em grande sossego quando fomos surpreendidos por um fogo que caminhava rápido para o local onde tínhamos empilhadas as granadas do morteiro e, próximo, também as da bazuca. Saio a correr e percebo logo que aquilo tinha sido incendiado muito próximo de nós. Só podia ser intencional. 

Depois de fazer retirar todo o equipamento do alcance das labaredas, gritei para o grupo que trabalhava com a moto-serra, relativamente próximo, e que fingia não se aperceber de nada, assim como fingiram não me ouvir. Furioso e num impulso, disparei uma rajada longa por cima das suas cabeças para que reagissem, virando-se para mim. Fizeram de conta que não ouviram nada. Decidi ir lá ao pé deles enfrentá-los mas, antes, tive que ajudar a mudar o grupo para um sítio seguro com todo o material. 

Entretanto começo a ouvir uma viatura da Engenharia lá em baixo na estrada, que se aproximava a buzinar continuamente. Ao aproximar-me da borda da “pedreira”, vejo o condutor saltar para o chão e correr para mim aos berros, de braços abertos, a dizer “Parem, parem!...” Sem entender, vou ao seu encontro e diz-me ele, então, que íamos provocando uma catástrofe, pois o grupo de combate de Buba, que estava ali na mata a menos de um quilómetro, ouviu as rajadas e já estava a preparar o morteiro quando ele, que passava com viatura, se apercebeu da intenção e do equívoco, já que também tinha ouvido a rajada mas reconhecendo-a como sendo de G-3. Parou a viatura e alertou-os para o disparate que se preparavam para cometer. Eles acederam mas pareceu-lhe que estavam muito excitados. Pouco depois liguei por rádio para o alferes desse grupo para lhe pedir desculpa, mas ele estava furioso e não me recebeu bem. Desligámos a comunicação com maus modos de parte a parte. Até disto a guerra era feita...

(continua)

Texto, fotos e legendas: © António Murta
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Nota do editor

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