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quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23129: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (2): Carta à Luizinha

Empada - José Teixeira escrevendo

Em mensagem do dia 30 de Março de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta Carta à Luizinha para a série Cartas de amor e paz em tempo de guerra:


Cartas de amor e paz em tempo de guerra (2)


3 - Carta à Luizinha

Chamarra, 6 de fevereiro de 1969

Minha querida Luisinha

A noite de ontem foi vivida no seio da mata. Chegou-nos uma informação de que íamos ser atacados, pelo que decidi partir a meio da tarde com parte dos meus homens, e internar-me na floresta, perto do local de onde costumamos ser atingidos. De vez em quando aparecem ao cair da noite, e raras vezes, de manhã cedinho. Prevenir é sempre o melhor remédio… lá fomos nós dormir ao relento, o que por estas bandas até se torna agradável se não houver mosquitos a apoquentar-nos.

Deitado na terra húmida deixei-me envolver pela noite estrelada e um sentimento de autoconfiança veio substituir a confusão e o medo que antes sentia ao caminhar por entre lianas entrelaçadas pendentes de altas árvores com copas gigantescas talvez centenárias. O negro da noite estendeu-se sobre a terra como um abismo insondável, envolvendo-me. Quanto mais profundas são as trevas mais sombria se torna a minha vida e a minha alma. Porém, a escuridão da noite estrelada, sem a luz da lua por perto, assemelhava-se a um tecido negro e transparente onde miríades de pequeninas luzinhas bailavam no cosmos. O negro da noite ganhou vida e me convidou a retornar ao presente. Por vezes, o céu cobria-se de nuvens e o mundo ficava envolvido num negro tão negro que os nossos olhos como que cegavam. Nessas ocasiões vemos com os olhos da alma que nos convida a sermos persistentes e a mantermo-nos ainda mais atentos ao que nos rodeia.

Na alta madrugada, tempo em que o perigo tinha passado, deixei-me passar por um leve sono.

O dia preparava-se para sair do ventre da noite quando acordei. No cosmos, os astros já tinham perdido o seu inebriante brilho. As estrelas perdiam os seus raios de luz e ganhavam uma cor prateada que o sol nascente, a pouco e pouco fez desaparecer. Apenas uma a mais brilhante atraiu a minha atenção. Um fino raio da sua luz penetrou através dos olhos do meu coração. Deixei-me embalar por esta estrela que me ousara fitar de tão longe, rompendo a densa ramagem da floresta. A lesta imaginação, de uma mente perdida de saudade, leva-me, num ápice, até à minha terra, até junto de ti. Talvez tu, meu amor, te tivesses levantado cedo, como é teu costume, para te dedicares aos livros, e ao veres a estrela da manhã te lembrasses de mim e me encomendasses nas tuas orações a Nossa Senhora.

O sol renascido vertia mil raios de luz e calor, sobre a verdura da copa das árvores que nos protegiam, enquanto a límpida e fresca água do rio murmurava suavemente, espreguiçando-se nas margens do tarrafe em tempo de maré vazante, onde milhares de coloridos caranguejos se passeiam lentamente em busca do pequeno-almoço, tornando as margens num tapete natural de inimaginável beleza. Uma brisa leve e suave bateu-me na face amenizando o extremo calor matinal que o sol teima em projetar. Assim, mal dormidos e mal acordados levantamos a emboscada e seguimos alegres e confiantes o caminho de regresso a casa.

A receber-me, com um monte de roupa lavada e passada a ferro com todo o esmero, estava a minha lavadeira, a Binta. Os seus olhos escuros e penetrantes refletem tranquilidade. A paz em tempo de guerra. Os seus lábios parecem talhados em pedra púrpura, tão precisos são os seus contornos, assim como a fina linha dos seus grandes olhos, debaixo de umas sobrancelhas naturais e bem delineadas, pregadas numa face de tal forma bem desenhada pelo artificie divino que a tornam na mais bela mulher africana que conheci até hoje. As maçãs do seu rosto, de um preto rosado vivo e macio, dão-lhe um toque especial, que aliado ao seu aberto e transparente sorriso a tornam divinal.

Não tenhas ciúmes, minha querida Luisinha. A Binta vai casar brevemente com o Braima, filho do chefe de uma tabanca, não muito longe daqui, que está sob a minha proteção, com quem gosto de jogar às cartas enquanto conversamos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo aqui, é muito pequeno, está fechado dentro de duas fiadas de arame farpado. Não fora a guerra que nos atormenta e estaríamos no paraíso, onde toda a gente se conhece e se dá bem, partilha alegrias e tristezas e o pão vai chegando para matar a fome.

Fico-me por aqui, contigo no coração. Sinto tanta necessidade dos teus abraços, do teu sorriso, de te poder dizer olhos nos olhos – amo-te.

E para que não fiques preocupada, os “nossos amigos” devem ter mudado de ideias ou passaram ao largo sem nos incomodar.

Um terno beijinho do teu
Zeca.
Algures no Sul da Guiné

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Nota do editor

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terça-feira, 4 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17544: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (1): Navio Niassa, 5 de Maio e Bissau/navio Niassa, 7 de Maio de 1968


Empada - José Teixeira escrevendo

1. Em mensagem do dia 29 de Junho de 2017, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos as duas primeiras "Cartas de amor e paz em tempo de guerra", série que esperamos seja continuada.

Meus caros amigos editores:

Junto mais um texto com um tema novo e pouco trabalhado – Cartas de amor.
Espero que gostem.

Abraço do
Zé Teixeira


Guiné > Bissau > 29 de dezembro de 1971 > Chegada do
T/T Niassa. Foto do ex-al mil, António Sá Fernandes,
CART 3521 (Piche) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão)
(1971/73).
Cartas de amor e paz em tempo de guerra (1)


 1 - Barco Niassa, 5 de maio de 1968

Minha querida

Pára! Senta-te no sofá e procura concentrar-te em mim, pois neste momento, eu, o teu amor,  estou junto a ti, de alma e coração, na amurada do Niassa.

A minha maior preocupação é saber como estás. Calculo que tiveste de fazer um enorme esforço para voltares a ti, já que a minha partida para a Guiné te desorientou. Conheço-te o suficiente para avaliar o teu sofrimento. Creio que tu sofreste mais, com a minha partida, que propriamente eu.

Agora confia na tua força de vontade para voltares a ser, tal como és:  alegre, comunicativa, sempre bem-disposta, com Fé em Deus, que te diz que o teu amor voltará, disposto a amar-te ainda mais. Voltarei para construirmos o nosso futuro em felicidade.

Parto para esta guerra confiado no amor que me dedicas e essa confiança será o meu alento para as lutas na Guiné. Neste momento sinto mais medo da luta que terei de travar comigo mesmo que propriamente da guerra que terei de fazer, ou seja,  a luta contra os bandoleiros que infestam a Província. Conto com a tua ajuda moral e sobretudo espiritual para vencer todas as batalhas que terei de travar para bem do nosso futuro. Deste modo, com a tua ajuda, daqui a vinte meses, estarei junto a ti, com Missão Cumprida,  para não mais me afastar.

Sabes! Estou contente comigo mesmo. Não contava com tanta resistência de minha parte, na despedida. Parti confiante. Os únicos momentos em que vacilei, foi quando me despedi da minha mãe. As lágrimas teimavam em descer pela face, mas consegui segurar-me. Também me custou separar-me de ti. Ainda estou a ver-te sentada no cais de Campanhã a dizer-me adeus, com o teu sorriso de dor e coração apertado.

Não sei como classificar esta viagem em que vamos metidos num porão enorme, como animais para o matadouro. São centenas e centenas de jovens de olhar perdido e estômago revoltado. O cheiro a vómito é abafador, tal como calor que nos persegue dia e noite.

Quinta feira ao fim da tarde sentia uma grande dor de cabeça. Havia algo dentro de mim que não estava bem. Faltava-me a tua presença, sempre querida. Isolei-me na proa do barco, no meio de centenas de camaradas. Então tu apareceste através do telegrama que recebi com a tua mensagem de amor. Não calculas quanto me soube a tua presença ali a meu lado. Como adivinhaste que eu precisava de ti? Sabes, o telegrama veio na hora certa.

As viagens marítimas são formidáveis, mesmo num barco carregado com cerca de mil e oitocentos homens. O ambiente por vezes até parece um arraial minhoto. Muitos encostam-se à amurada e espraiam o olhar no vazio dos céus e mar que nos rodeia. De algum modo estou gostando e espero repeti-lo dentro de vinte meses no sentido inverso. Aí, sim, cantaremos de alegria.

Dizem que estamos a chegar, mas sei que não vou desembarcar hoje, Domingo, em Bissau. Dizem que vamos partir noutro barco e desembarcar algures nas margens do Rio Cacheu. Conto desembarcar com o pé direito, sem foguetes ou balas a assobiar por cima da cabeça.

Confiado no grande amor que me dedicas, fico-me por aqui, com desejos que te encontres bem, na companhia da tua família.

Recebe um grande abraço e muitas saudades do que te quer de alma e coração.
Teu Jorge.

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2 - Bissau, Niassa, 7 de maio 1968

É meia noite. Como ainda não desembarquei, vou escrever mais um pouco, enquanto o Vítor não desembarca. Pedi-lhe para levar esta carta com ele para pôr no correio.

Está um calor sufocante e uma barafunda enorme. Malas, sacos, embrulhos, homens aos magotes desnorteados. Ordens e contra ordens. Tudo anda aos trambolhões na proa do barco. A minha Companhia deve desembarcar amanhã de manhã para uma lancha e subir o Cacheu.

Minha querida:

Só agora, longe de ti, em terras que não conheço, sinto bem quanto te amo. Não calculas quanto tenho sofrido nestes dois últimos dias. Como vou eu aguentar cerca de dois anos sem te ver, sem a tua presença?

Éramos tão felizes, mas a felicidade não pode durar sempre.

Desculpa este desabafo. Apetece-me chorar. Mas não. Um homem nunca chora.

Um grande abraço e um grande beijo deste que te ama com todo o coração.
Teu Jorge.
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