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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23487: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (10): o massacre do alf mil Artur José de Sousa Branco e do seu pequeno grupo, nas imediações de Gadamael, em 4/6/1973 (J. Casimiro Carvalho / Manuel Reis / Carmo Vicente / Manuel Peredo / Jorge Araújo)

Calendário português: junho de 1973. Cortesia de: www.calendario-365.pt. O dia 4 foi uma segunda feira. Infografia: Blogue  Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


1. Uma das dezenas de vitimas, em Gadamael, na altura da "batalha dos três G", foi o  alf mil art Artur José de Sousa Branco, da CCAV 8350 (1972/74): morreu, em combate, nas imediações do quartel e  tabanca de Gadamael Porto, em 4/6/73.  Era uma segunda feira.

Era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Recorde-se que na tarde de 4 de junho de 1973, em Gadamael, o alf mil Branco sai com um reduzido grupo de combate (12 homens. pouco mais do que uma secção) para fazer um reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na antiga pista, a cerca de 1 km do arame farpado. 

O pequeno grupo cai de imediato numa emboscada das tropas do PAIGC espalhadas pelas redondezas, e só não foi totalmente aniquilado graças à pronta intervenção das tropas paraquedistas (CCP 122/BCP 12), acabadas de chegar a Gadamael, na manhã de 3 de junho, domingo,  sob o comando do cap paraquedista Terras Marques.

Um pelotão, sob o comando do alf paraquedista Francisco Santos, da CCP 122, vai em socorro do grupo do alf mil Branco, da CCAV 8350,  e ainda consegue resgatar os corpos e socorrer os sobreviventes. 

"Os cadáveres tinham sido selvaticamente baleados, ainda estavam quentes e os fatos empapados de sangue" (José Moura Calheiros - A última missão, 1.ª ed. Caminhos Romanos: Lisboa, 2010, pp. 527/528).

Além do alf mil Artur José de Sousa Branco, natural de Lisboa, morreram nesta ação os seguintes camaradas, todos eles sold cav da CCAV 8350, "Piratas de Guileje" (entre parênteses, o concelho da sua naturalidade): 
  • António Mendonça Carvalho Serafim (Cartaxo); 
  • Fernando Alberto Reis Anselmo (Macedo de Cavaleiros); 
  • Joaquim Travessa Martins Faustino (Santarém); 
  • José Inácio Neves (Alcobaça).
O infortunado Artur José de Susa Branco, jogador de futebol antes da tropa (tendo  chegado a jogar nos escalões juvenis do S.L. Benfica), foi amigo e colega de liceu do nosso coeditor Jorge Araújo (andaram juntos no Liceu Camões, em Lisboa) (*****).


2. Sobre este sangrento episódio, há várias versões publicadas no nosso blogue, que merecem ser aqui recuperadas, na véspera dos 50 anos da efeméride (*), a primeira das quais a do J. Casimiro Carvalho, que integrou a pequena força comandada pelo infortunado alf mil Branco, e foi um dos sobreviventes.

2.1. Gadamael, 4 de junho de 1973: "A Patrulha Fantasma” (**)

por J. Casimiro Carvalho (ex-fur mil, op esp, CCAV 8350, 
"Piratas de Guileje",  Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, 
Cumbijã e Colibuia, 1972/74; vive na Maia]

(...) Em Gadamael, a mortandade era tanta, a cadeia de comando rompeu-se e houve fugas para o mato e para o Rio Cacine.

De salientar a bravura do capitão Ferreira da Silva (Comando/Ranger), que avocou a si o comando desse pequeno contingente [, que restava em Gadamael,] e debaixo de fogo coordenou os cerca de 30 ou quarenta, verdadeiros heróis, que até à chegada dos abnegados Paraquedistas [do BCP 12], aguentaram aquele apocalipse!

Não havia condutores, o pessoal andava atarantado... aterrorizado e sem chefias que chegassem. Era assim em Gadamael em 1973.

A enfermaria estava pejada de cadáveres, um cheiro nauseabundo, os mesmos eram constantemente regados com creolina, não haviam urnas, os bombardeamentos eram constantes, as granadas caíam com precisão dentro do quartel, se fugíamos para o rio, elas caíam no rio, se fugíamos para o parque auto, caíam aí, havia coordenação de tiro por parte do IN.

Cheguei a conduzir uma Berliet, dos paióis para as bocas de fogo, de tal forma que, quando havia saídas de fogo, nós já não as ouvíamos. Comigo andava um açoriano [, o 1.º cabo Raposo], dois autênticos loucos varridos, saltávamos em andamento e, quando acabava o fogachal, voltávamos ao camião e seguíamos com o serviço.

Nessa altura, mais valia estar no mato, estávamos sitiados, e por isso, quando formaram uma patrulha "ad hoc" onde me incluíram, até fiquei contente. Nessa patrulha ia o alferes Artur [José de Sousa] Branco, que antes tinha dito que o mandaram para ali, e que ia morrer; iam dois putos que tinham vindo voluntários para a tropa (, dois meninos!), aos quais ordenei que ficassem no quartel, ao mesmo tempo que disse: "Sois muito novos para morrer" (ainda se lembram disso e sempre o repetem aos filhos, dizendo que me devem a vida); ia um negro (o "pica"), o cabo José Neves e os soldados F. Anselmo [Fernando Alberto Reis Anselmo, natural de Macedo de Cavaleiros]; e o A. Serafim [António Mendonça Carvalho Serafim, natural do Cartaxo] (um destes soldados nunca saíra para o mato), e outros que desconheço. Era uma “patrulha fantasma”.

Saímos para a zona da pista abandonada de Gadamael, as ordens era para emboscar nessa zona, para prevenir aproximações do IN. Fomos em fila indiana ao longo do rio Cacine junto ao tarrafo. Passámos por um sítio, onde se vislumbrava uma pequena clareira, de capim médio, e o pica disse: "Alfero, melhor ficar por aqui, boa zona para montar emboscada"... O alferes Branco retorquiu que as ordens eram ir para a pista velha, pelo que continuámos. Uns 200 metros à frente, o negro disse que a pista estava minada e armadilhada pela tropa anterior. Posto isto, o alferes reuniu comigo e chegámos a um consenso: que o melhor era recuarmos.

Recuámos em silêncio e ordeiramente, até chegarmos à tal zona da clareira, e começámos a entrar na mesma, agachados para passarmos por baixo do tarrafo. Normalmente eu ia em 2.º ou 3.º lugar nas patrulhas, e, ao entrarmos nessa clareira, um dos militares deu-me passagem, e eu disse que não: "Ide entrando que 'eles' podem estar aí", num tom bonacheirão e em sussurro, e assim foi.

Uns seis já tinham passado, quando ouvi uns estalidos e, com gestos e murmúrios, dei a entender que estava ali algo. Todos pararam,  espaçados e em silêncio. Como mais nada se ouviu, eu disse: “Deve ser passarada, avancemos” .... Logo a seguir, outra vez o estalar de ramos e mexer de vegetação. Imediatamente gritei: “Emboscada!”.  Coloquei a arma em modo de rajada, e atirei-me para o chão, não sem antes ver a cara do alferes desfeita por uma rajada, com sangue e ossos (?), a saltar.

Já no chão e com um fogachal tremendo, próprio de armas russas, com a cara de lado bem rente ao mato, passou-me a vida pelo cérebro, e a mente a pensar na “minha mãe”. Estou neste estertor, pensando se abria fogo ou não, pois iria denunciar a minha posição, imaginando um turra a disparar nas minhas costas, deitado.

Nestas fracções de segundos, ouço uma G-3 a disparar ao meu lado, o som era mesmo nosso, então comecei a dar rajadas de 3 ou 4 tiros, enquanto outro militar dava tiro a tiro, compassadamente. Freneticamente, tirei o carregador vazio e coloquei outro, disparando pequenas rajadas por cima da cabeça, que continuava “colada ao solo”. 

Ao pegar no 3.º carregador, o tiroteio IN parou abruptamente, quando vislumbro um turra no meio da vegetação que se levantou, e assim mesmo levou uma rajada minha que o “tombou” logo ali, depois uma gritaria infernal, por parte deles, e eu, sozinho com um militar ao meu lado, berrei para o mesmo: "Vamos, ou morremos aqui".

Ele gatinhou à minha frente, passámos pelo cadáver do cabo Neves [José Inácio Neves, natural de Alcobaça] e seguimos para o rio, em direcção ao quartel, sempre a olhar para trás a ver se algum IN nos mirava para nos abater. Larguei o cinturão, com a ração de combate e os restantes carregadores, para melhor correr, fugindo da morte certa, levando apenas a G-3 sem carregador nem munições.

Chegado ao quartel, sozinho, o meu corpo colapsou, e todos pensaram que eu morrera ali mesmo. Fui recolhido por camaradas daquele inferno, tão aterrorizados como eu, e descansei um pouco, bebi água sofregamente, sem saber ao certo quantos morreram.

De seguida, saíram paraquedistas [da CCP 122, um Gr Comb, comandado pelo alf paraquedista Francisco Santos] e foram ao local (a 1200 metros) da emboscada, onde encontraram aquela cena traumatizante, derivado ao que os turras fizeram aos meus camaradas, que me dispenso de pormenorizar aqui, tal o horror.

Quando regressaram, eu quis ver os meus camaradas, que estavam numa Berliet, e não me deixaram. Peguei numa G-3, meti bala na câmara e berrei: “Ou vejo, ou varro esta merda toda”!... Claro que vi, e essa imagem persegue-me ainda hoje, como fantasmas do passado!

Passados uns dias, noutro bombardeamento, fui ferido, e evacuado pelos fuzos até à [LFG] Orion, para Cacine. No entanto, quando fiquei bom, ofereci-me para ir outra vez para o holocausto, onde os meus camaradas morriam.

(...) Décadas se passaram, e numa simples conversa, descobri quem era o herói que ao meu lado disparou até ao último segundo (o tal da decisão de viver... ou morrer): era o soldado Borges, da CCAV 8350, "Piratas de Guileje", o qual abracei chorando e soluçando, revivendo aquele tormento. (...)


 2.2. Apeteceu-me gritar ao alferes Branco: "Não vás!" (**)

por  Manuel Augusto Reis [ex-Alf Mil da CCAV 8350, "Piratas de Guileje", 
Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74; 
vive em Aveiro]

(...) Fui testemunha "in loco" de tudo o que relata o José Casimiro. Foi de uma violência tremenda essa emboscada e foram bravos esses homens que foram obrigados a efectuar esse patrulhamento. Eram 11 homens, mal equipados e mal armados, que partiram do aquartelamento sob os berros e ameaças do comandante de companhia.

Não calei a minha revolta e indignação pelo sucedido, o que me valeu uma despromoção de 2.º comandante, o que para mim constituiu um prémio. Acabei por ser massacrado com tentativas de aliciamento para depor num determinado sentido, caso fosse aberto um inquérito.

Permanece viva a imagem do alf Branco, chegado há dois dias à companhia e, na hora da partida, olhou para mim, incrédulo, como que a perguntar o que devia fazer. Nada disse, mas apeteceu-me gritar: "Não vás!"

Coube-me a mim partilhar este sofrimento e dor imensa com a pobre mãe. Não gosto de recordar esta situação, mas o José Carvalho merece uma palavra amiga pela sua abnegação e doação ao próximo. Sem a sua bravura ninguém regressaria do mato. Bem hajas.


2.3. Quatro mortos do exército, três soldados e um alferes, terrivelmente desfigurados

por Carmo Vicente (ex-1º sargento, cmdt do 4º Pelotão, CCP 122 / BCP, 1972/74; DFA, escritor, natural de Arganil, vive em Almada)

(...) No dia  seguinte[, 4 de junho de 1960], sentado na vala, como de costume, preparava-me para comer mais uma vez as habituais sardinhas em lata, quando ouvi, vindo da mata, o forte crepitar de varias espingardas metralhadoras e o rebentar de granadas. Achei estranho, porque não tinha conhecimento de haver qualquer força a patrulhar a zona. Estava a comentar o facto com um dos meus camaradas que se encontrava perto de mim, quando chegou o comandante de companhia  [, Terras Marques,] que me disse para preparar rapidamente o meu grupo e ir socorrer um pelotão do exército que tinha sido atacado e sofridos vários mortos.

[...] Saímos rapidamente das valas e correndo dirigimo-nos para o local (guiados por um dos fugitivos), que ficava a pouco mais de um quilómetro do quartel.

O espectáculo que se nos deparou era deveras terrificante. No solo três soldados e um alferes jaziam mortos e irreconhecíveis com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Havia ossos e tecidos sangrentos espalhados pelo chão. Um dos soldados enrolara-se nos seus próprios intestinos estando os restantes parcialmente queimados pelo fogo que, acidentalmente, por acção das balas incendiárias, ou deliberadamente fora ateado ao capim.

Eu conhecia o alferes. Chegara a Gadamael três ou quatro dias antes, ido directamente da Metrópole e eu encontrara-o por acaso e estivera a falar com ele. Com os olhos dilatados pelo medo,  havia-me dito que abominava a guerra, que estava aterrorizado e iria fugir para longe da guerra o mais depressa possível, fosse para onde fosse, pois não podia aguentar por mais tempo aquele inferno. Agora, ao vê-lo morto, pensei: "Afinal conseguiste o que querias, alferes.... Vais sair daqui... da única maneira que o recusarias fazer, se te tivesse sido dado escolher, enquanto vivo".

Carregámos com os mortos às costas e regressámos ao quartel. Ao chegarmos,  começou novo bombardeamento e toda a gente se atirou para o chão tentando encontrar abrigo. O soldado C [...] que carregava o cadáver do alferes, seguindo o exemplo dos outros ou obedecendo ao seu instinto de conservação, também se atirou para o chão ficando com o morto em cima, que, por ter caído a capa impermeável onde o tínhamos embrulhado, o cobriu de sangue. Levantou-se como se tivesse sido picado por uma cobra e ficou a olhar-me de olhos esgazeados. O seu aspecto era terrível. O sangue do morto cobria-o da cabeça aos pés: tinha sangue na boca e nos olhos. Pastas de sangue coagulado caiam do camuflado. Olhou as mãos e vendo-as ensanguentadas entrou em pânico. [...]

Havia que evacuar os mortos e um ferido muito grave com um estilhaço num pulmão, que apanhara dentro do quartel. E o meu pelotão foi encarregado desse trabalho. Atirámos com os mortos para cima de uma Berliet, única viatura que ainda funcionava em toda a unidade e arrumámos o ferido o melhor que pudemos junto dos mortos. A altura era má para nos prendermos com ninharias e não podíamos transportá-lo de outra maneira. Imaginem o que terá sentido aquele homem ferido gravemente, mas consciente, ao ver-se no meio de quatro mortos horrivelmente desfigurados. (...)


2.4. Eu próprio carreguei os mortos para a Berliet...

por Manuel Peredo (ex-fur mil pára, 4º Pelotão, CCP 122 / BCP, 1972/74;  emigrante,  em Fança)

(...) Alguns dizem que desembarcámos em botes, mas eu quase afirmava que foi de LDM e era capaz de jurar que só a minha companhia, a 122, é que desembarcou nesse dia e não me lembro de estarem lá duas companhias de páras ao mesmo tempo. Penso que a 123 nos foi render para a 122 poder descansar uns dias em Cacine.

Mal chegámos a Gadamael, dois pelotões foram logo para a mata, onde passaram a noite. Em Gadamael apenas se encontravam lá uns quinze ou vinte homens, o resto tinha fugido. Recordo-me que veio logo uma Berliet conduzida por um açoriano muito destemido para evacuar os mortos e feridos. 

Soube pelo blogue que o José Casimiro Carvalho também fazia parte dos que não fugiram. O meu pelotão, o quarto, fazia parte do bigrupo que passou a primeira noite no mato e, quando estávamos a regressar ao quartel, este foi fortemente bombardeado, originando a morte de alguns soldados do exército que tentaram fazer fogo com o obus 14, salvo erro. Estivemos à espera que os rebentamentos acabassem para poder entrar no quartel.

Um dia ou dois mais tarde  [, em 4 de junho de 1970,]  morreram mais três soldados e um alferes miliciano, vítimas duma emboscada, muito próximo do quartel. Alguém devia ter um grande peso na consciência por ter mandado para o mato um grupo de apenas duas dezenas de militares, se tanto. Este ataque já foi contado pelo José Casimiro e pelo Carmo Vicente.

Aqui o Vicente deve estar enganado. Quem foi primeiro recuperar os corpos foi outro pelotão  [, o do allferes Fernandes, também da CCP 122 / BCP 12], o nosso pelotão foi enviado em reforço porque tínhamos acabado de chegar do mato. Encontrámo-nos a meio caminho e demos uma ajuda a transportar os corpos que estavam muito mal tratados : tinham o corpo queimado e ferimentos causados pelas balas. O alferes [rranco]  tinha um grande buraco na cara derivado a uma rajada e um soldado nem calças trazia vendo-se bem o efeito das chamas.

Quando chegámos ao quartel, os colegas dos militares mortos estavam no cais à espera e houve um pormenor que me deixou surpreendido e até chocado. Nenhum deles teve a coragem de nos ajudar a carregar os mortos para a Berliet. Os corpos eram postos no chão e o pessoal ia para as valas. Eu próprio os carreguei com a ajuda de colegas. Quando estávamos com este trabalho, o IN lançou novo ataque e eu só tive tempo de saltar do paredão do cais para me proteger. Foi a minha salvação pois uma granada caiu no local que tinha deixado. Escapei a uma morte certa por décimos de segundo.

Outro pormenor que me surpreendeu: quando íamos resgatar os corpos, um dos soldados que tinha fugido da emboscada,  dirigiu-se a mim, suplicando-me por tudo quanto me era sagrado, que tentasse recuperar uma medalha ou um fio que a mãe lhe tinha dado. Essa medalha ou fio devia estar no casaco que ele largou durante a fuga. 

Os ataques iam-se sucedendo e talvez mais espaçados e a tropa que tinha fugido ia regressando ao quartel talvez por se sentirem mais seguros com a nossa presença. (...)
___________


(**) Vd. poste de 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18030: (De)Caras (100): J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil op esp, CCAV 8530 (Guileje, 1972/73) e a "patrulha fantasma", massacrada em Gadamael, em 4/6/1973

(***) Vd. poste de 5 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

(****) Vd. poste de 12 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

(*****) Vd. Blogue CART 3494 & Camaradas da Guiné > 21 de março de 2016 > P256 - Os problemas no Comando Territoria. Independente da Guiné (CTIG): Em 1963. "Memórias de cá e de lá" Por: Jorge Araújo

(...) Voltando ao ano de 1963, recordo que a principal actividade era a de estudante no Liceu Camões onde existiam na minha turma alguns colegas que, em função de interesses comuns, convivíamos grande parte do tempo escolar partilhando ideias e actividades (comportamento normal no processo de socialização). 

Um dos interesses em presença estava relacionado com a prática lúdica, vulgo futebol, à hora do almoço, com jogos no relvado central do Parque Eduardo VII ou na zona cimentada perto da Estufa-Fria, umas vezes competindo entre nós (estudantes), outras envolvendo elementos estranhos ao grupo, funcionários administrativos de empresas instaladas na zona.

De entre os vários elementos do nosso grupo, e pelas razões que seguidamente justificarei, quero recordar o nome do saudoso colega e amigo Artur José de Sousa Branco, meu companheiro de alguns anos, e que face ao seu entusiasmo pelas letras e pelo desporto, conseguiu conciliar ambas as actividades, ingressando nos escalões de formação do S.L. Benfica.  Ao atingir o escalão de sénior e antes da sua incorporação obrigatória no serviço militar, representou (creio) o Club Atlético de Valdevez, na época de 1970/71 (...)

Quis o destino que cada um de nós, depois de nos separarmos por algum tempo, fazendo percursos distintos, acabaríamos por convergir para o mesmo itinerário ultramarino, rumando à Guiné, eu para CART 3494 (Xime/Mar’72) e ele, poucos meses mais tarde, para a CCAV 8350 (Gadamael). Em 4 de Junho de 1973, dez anos depois do início da Guerra e a um do seu epílogo, acabaria por tombar no “jogo dos operacionais” ou seja, no “jogo da superação permanente e da sobrevivência”.

Recebi a notícia da sua morte ainda durante a “comissão”, através da comunicação social da metrópole, que me era enviada pelo meu pai duas vezes por semana, na qual se faziam referências regularmente às principais ocorrências nos diferentes TO, em particular no que concerne às baixas das NT, desconhecendo, no entanto, os detalhes do sucedido com o meu/nosso camarada Sousa Branco, ex-Alf  Art como era conhecido entre nós.

Porém, face à existência do nosso Blogue, descobri este episódio no P14325-LG, narrado na primeira pessoa pelo nosso camarada José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp, em sua memória, a quem envio um forte abraço de agradecimento (...)

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23431: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (9): relatório, de 15 pp., da Op Dinossauro Preto (BCP 12, Gadamael, de 2jun a 17jul73) - Parte I


Guiné > Bissau > Bissalanca> BA 12 > BCP 12 (1972/74) > O ex-fur mil paraquedista Manuel Peredo é o primeiro do lado direito, armado de RPG-2, seguido do 2º sargento Carmo Vicente e do furriel mil Fernandes, cabo-verdiano, todos do 4º Gr Comb da CCP 122 / BCP 12 (Bissalanca, 1972/74). Estes dois elementos também estão equipados com armamento capturado ao PAIGC. Em junho de 1973 (e até 25 desse mês, com BCP 12 destacado em Gadamael), o Carmo Vicente era também o cmdt do 4º Gr Comb / CCP 122 (comandado pelo cap pqdt Terras Marques).

O Peredo viveu (ou ainda vive) em França; tem 8 referências no blogue que integra desde 27 de julho de 2008. Disse-nos na altura que foi pela mão do Carmo Vicente que chegou ao nosso blogue. O Carmo Vicente, DFA - Deficiente das Forças Armadasa, é autor de vários livros (incluindo poesia, memórias e contos), com destaque para "Gadamael" (1ª ed., 1982; 2ª ed., revista e aumentada, 1986, edições Caso) (Vd. postes P2915, de 4 de junho de 2008, e P2917, de 5 de junho de 2008).(*)

Foto (e legenda): © Manuel Peredo (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto do álbum do Rodrigues Delgadinho (**), na altura fur mil parquedista, da CCP 123 / BCP 12, força de elite que conseguiu travar a ofensiva do PAIGC contra aquele aquartelamento de fronteira. Gadamael faz parte dos três famosos G - Guidaje, Guileje, Gadamael... "Tremeu mas não caiu"...

Foto (e legenda): © Delgadinho Rodrigues / Manuel Peredo (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Manuel Peredo [ ex-fur mil paraquedista, CCP 122 / BCP 12, Bissalanca, 1971/73, vive em França, ou vivia até há uns anos; tem 8 referências no nosso blogue: integra o nosso blogue desde 2008](***)

Data - 7 jul 2022, 19h00
Assunto - Gadamael

Olá, camarada Luís Graça.

O blogue tem relançado o tema dos três G (*) e não me parece que esteja a despertar grande interesse, o que é pena. A mim foi o que mais me marcou dos dois anos de Guiné.

Aqui há anos, quando o tema foi muito comentado e discutido e alguns já estavam saturados de tanto falar sobre Gadamael, também dei o meu contributo. Um dia o João Seabra enviou-me por email o relatório da atividade do meu batalhão, o BCP12, onde tudo está descrito ao pormenor.

Para mim tem muito valor este documento,mas não sei se terá algum interesse para o blogue e se alguma coisa poderá ser publicada. Envio o ficheiro PDF,mas talvez fosse melhor perguntar ao João Seabra se não há nenhum inconveniente em ser publicado.

Boa leitura e um abraço para o Luís Graça.

Manuel Peredo,
ex furriel pára da CCP 122.


2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Manuel Peredo, por nos teres facultado cópia do relatório da Op Dinossauro Preto (onde em 15 páginas se conta a odisseia do BCP 12, na defesa de Gadamael, entre 2 de junho e 17 de julho de 1973).

Sei agora, ao ler o documento, que foste ferido (mas também louvado) em Gadamael nesta altura (veremos isso na Parte III). Se mais razões não houvesse, esta bastava para reproduzir o documento que nos mandas, no todo ou em parte, no nosso blogue.

Não há problema em fazê-lo, o documento foi, em devido tempo, desclassificado, de acordo com os carimbos nele visíveis, na cópia que o João Seabra obteve diretamente do Arquivo Histórico-Militar. 

O João Seabra, hoje advogado, foi alf mil, da martirizada CCAV 8350, "Piratas de Guileje" (Guileje, 1972/73), é também merecedor da nossa gratidão por ter-te feito chegar, em tempos, esta cópia que tu agora partilhas com a Tabanca Grande. (O João tem 14 referências no nosso blogue, é pena que não nos dê notícias há muito, tal como outros "Piratas de Guilje").

Devido à sua extensão (15 páginas), vamos publicar o documento em 3 ou 4  partes. Um parte já foi transcrita no Poste P23415, a partir dos excertos da CECA (2015) (**). 

Nas primeiras cinco páginas do rekatório, verifica-se que falta, no entanto, a página 4 (relativa ao período entre 14 e 18 de junho de 1973, em que se realizaram a Op Bisturi Negro e a Op Diamante Preto), informação essa que se reconstitui aqui, a partir dos excertos da CECA (2015) (**):

- Operação Bisturi Negro - 14 e 15jun

A CCP 121 saiu em patrulhamento apeado, rumo Leste, flectindo para NWe depois para Norte. Em Cacoca 6E4.94 foi flagelada durante 45 minutos com armas autom, LGFog RPG-2 e RPG-7, canh s/r, por um grupo lN estimado em 80 elementos que se deslocavam na direcção Leste/Oeste.

As NT sofreram 1 morto (guia) e 2 feridos ligeiros. Da batida efectuada verificou-se que o lN sofreu 4 mortos confirmados e elevadas baixas prováveis dada a forma como procurou reter as NT com uma segunda linha de fogo com nítida intenção de retirar mortos e feridos, o que foi confirmado por sinais de arrastamento de corpos e abundantes rastos de sangue.

Foram referenciados elementos de tez clara e o lN utilizou esp autom G-3, metr lig HK-21 e dilagramas.

A CCP 121 regressou a Gadamael Porto para evacuar os feridos. Dois GComb voltaram a sair, rumo Leste flectindo depois para Norte. Montaram uma emboscada nocturna. Não houve contacto com o lN.

- Operação Diamante Preto - 17 e 18jun

A CCP 122 a 3 GComb saiu em patrulhamento. Em Cacoca 6F8.65 foi detectado um grupo lN estimado em 20 elementos ao qual foi montada uma emboscada imediata. O lN sofreu 1 morto confirmado e feridos prováveis; foi recolhida uma pá articulada, uma pica e uma granada de LGFog RPG-2 com carga.

Reiniciada a progressão o agrupamento foi flagelado do lado da fronteira com 3 granadas de canh sr/, sem consequências.

Foi montada uma emboscada nocturna. Não houve contacto com o lN
.


3. Relatório de Operações nº 16/73 | Operação Dinossauro Preto | Período: 2jun73 - 17jul73 | Região: Cacine / Gadamael | Referências: Carta [Cacoca] 1/50.000 | Exemplar nº 4 | BCP 12 | Bissalanca| 31jul73| 15 pág. Assinado: Sílvio José Rendeiro de Araújo e Sá, ten cor paraquedista.

Documento desclassificado. Cópia proveniente do Arquivo Histório-Militar. Cortesia de Manuel Peredo / João Sebra.

De assinalar a observação, na pag 1, ponto 3e: "Alteração à organização regulamentar: 2. Armamento: Utilizados LGF RPG 2, RPG 7, Met Lig Dectyarev, Esp Aut Kalashnikov e Mort 60"... Os páras reconheciam que o armamento do PAIGC era melhor que o nosso... Ou era "fetichismo" ? Afinal, os tipos do PAIGG também não desdenhavam da G3, dilagrama, HK 21 (capturado às NT)... 

Como diz o povo, "a galinha do vizinho é sempre melhor que a minha"... A "kalashnikovmania" é um velho tema aqui debatido no blogue...





Falta a página 4 (vd. comentário do editor LG, ponto 2, acima)



(Continua) 
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de junho de  2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

domingo, 19 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20574: Recortes de imprensa (111): Homenagem ao psiquiatra Afonso Albuquerque, "pai do stress de guerra e da APOIAR" (Mário Vitorino Gaspar, "O Notícias de Almeirim", 23/8/2019)


Lisboa > No dia 15 de Dezembro de 2000,  a APOIAR organizou um Colóquio, com o tema “A Rede Nacional de Apoio aos Ex Combatentes Vítimas do Stress de Guerra",  no Secretariado Nacional de Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência (SNRIPD).  Na foto, da esquerda para a direita, o Presidente da ADFA, Patuleia Mendes, a dra. Trindade Colarejo (SNRIPD), o doutor Afonso de Albuquerque e o Mário Vitorino Gaspar, Presidente da APOIAR.  (Foto: cortesia do Mário Gaspar, 2019)




Doutor Afonso de Albuquerque, 
Pai do Stress de Guerra e da APOIAR

O Notícias de Almeirim, 23-08-2019


[ex-fur mil art, minas e armadilhas,  CART 1659,
  Gadamael e Ganturé, 1967/68; 
tem mais de 110 referências no blogue]



1. Neste artigo, reproduzido por "O Notícias de Almeirim",  com a devida autorixação do autor,  o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar [, foto à esquerda], presta-se uma homenagem ao "Doutor Afonso de Albuquerque:

Presidente e fundador da Associação Portuguesa de Terapia do Comportamento e da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, Ex- Director do Serviço de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos, Presidente, Fundador, Presidente, em vários mandatos,  da Mesa da Assembleia Geral da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra, Sócio Honorário.

Afonso de Albuquerque fez 83 anos em 2018 e completou 50 anos de carreira. Em entrevista à Sábado, 28/10/2018, falo do seu passado, pessoal e profissional. Ficamos a saber que, depous de regressar a Portugal com o título de especialista em Psiquiatria, atribuído pela Royal College of Psychiatrists, fez o seu serviço militar obrigtório, em Moçambique, de 1961 a 1964, antes do início da guerra colonial. Teve problemas com a PIDE e a justiça militar. Voltaria a ser preso pelo PIDE, antes do 25 de Abril. Foi simpatizante do MRPP., mas nunca militante.


2. Mas regressemos ao artigo do Mário Vitorino Gaspar:

[...] Entre outros cargos, [Afonso Albuquerque] é membro do “Royal College of Psychiatrists”  (England), autor de variadas publicações e artigos na área do PTSD [, Post-Traumatic Stress Disorder,]  e da Sexologia, pesquisador do trauma dos Ex-Combatentes, nesse sentido o Serviço que presidia, colaborou com a ADFA – Associação dos Deficientes das Forças Armadas, no Palácio da Independência, no apoio aos Ex-Combatentes da Guerra Colonial, em Janeiro de 1987. Em Setembro de 1989, os Serviços saem da ADFA.

Como sócio, fundador e dirigente da AOPIAR, doente e conhecedor de um pouco do trabalho desenvolvido pelo doutor Afonso Albuquerque, habilito-me a prestar-lhe a minha homenagem. Após o registo da APOIAR, fiz de parte de diversas listas, o dutor presidiu sempre à Mesa da Assembleia Geral, desde Dezembro de 1994 até Dezembro de 2004.


A APOIAR iniciou o percurso, sempre acompanhada pelo Doutor, investigador da doença, que apresentara o resultado de uma pesquisa científica, em conjunto com a Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes. Neste pode-se ler:

“… o conceito actual de Perturbação Pós Traumática do Stress (PTSD) – posttraumatic stress disorder, no DSM – III em 1980, também já incluído no ICD – 10, da Organização Mundial de Saúde, em 1992”. 

Diz ainda:

 “Não havendo estudos epidemiológicos sobre a distribuição da desordem de stress pós-traumático entre a população portuguesa, apontaram para a «existência em Portugal de 140.000 ex-combatentes vítimas de PTSD, por extrapolação das estatísticas americanas». (…) 

Este trabalho foi feito tendo por base números propostos por estudos epidemiológicos realizados junto da população americana. Tais estudos teriam sido promovidos pelos “ Centres for Disease Control” [CDC].


A APOIAR dava os primeiros passos na Sede, num vão de escadas, gentilmente por ele cedido nos Serviços de Psicoterapia Comportamental, existido uma mesa, duas ou três cadeiras, um armário e uma máquina de escrever. O Dr. Afonso de Albuquerque permitia que a APOIAR se servisse do seu gabinete, no 1.º andar, para receber principalmente a comunicação social, ou qualquer individualidade.


Em Outubro de 1995, o Doutor foi o principal impulsionador do “1.º Encontro sobre o Stress Traumático” na Fundação Calouste Gulbenkian.

Em parceria com a Biblioteca Museu República e Resistência, a APOIAR colaborou neste evento também com uma Exposição com o título «Guerra Colonial», e um Ciclo de Conferências: “Guerra Colonial. Um Diferente Olhar”, de 8 a 18 de Abril de 1996. Num painel intitulado “Mesa Redonda com Ex-Combatentes”, o Dr. Afonso de Albuquerque dirigiu um longo debate.

No dia 4 de Abril de 96, a APOIAR foi convidada a participar num Colóquio, organizado pela ADFA, com o tema «A Realidade do DPTS – Suas Causas e Consequências». Presidiu ao debate o General Ramalho Eanes, e entre outros, o Dr. Afonso de Albuquerque referiu: “A guerra, principalmente a de guerrilha, é a situação mais traumática”.


APOIAR denunciou, e inclusive no seu Jornal: 

(…)  Nas situações de juntas para a reforma, ou de revisão de baixas começou-se a ouvir: “É a doença nova”; “É a doença do Dr. Afonso de Albuquerque” ou: “Desconhecemos essa nova doença”.

A APOIAR participou no Colóquio da ADFA no Porto, no dia 29 de Novembro de 96, com o tema “A Realidade do PTSD – Suas causas e Consequências”. O Dr. Afonso de Albuquerque afirmou: “O PTSD é a única doença de Psiquiatria que pode surgir muito à posteriori”. 

Continuando:  “…uma das causas que provocam o PTSD é a exposição ao combate, e existe muito de comum entre a Guerra Colonial e a do Vietname, o serem ambas guerras de guerrilha, e as diferenças, favoráveis às das tropas americanas: melhor armamento, melhores serviços e campanhas inferiores a 12 meses, 3 deles fora das zonas de combate. Gozavam licença,  enquanto o soldado português não. Os americanos não possuem a tradição de confraternizar, ser a sua idade média inferior à do português, alguns casados, noivos ou com namoradas”.

No dia 28 de Fevereiro de 1998 a APOIAR organizou em Cuba [, Alentejo,] com a colaboração da Comissão de Ex-Combatentes e Residentes de Cuba,  um Colóquio, com uma Exposição Fotográfica com o tema «Guerra Colonial – Memória Silenciada».

O Doutor Afonso de Albuquerque afirmou: 

 (i) “… o trabalho de acompanhamento aos ex-combatentes é um trabalho pesado, o mais pesado da minha vida como médico”;

(ii) “A juventude que era de alegria foi marcada pela tristeza”;

(iii) " (...) 30% de combatentes, incluindo oficiais e sargentos – principalmente os milicianos – devido à responsabilidade de comando, sofrem de PTSD. Metade, portanto 15%, estão em estado crónico”;

(iv) (...) Quer dizer, dos 140.000 – número calculado por extrapolação dos dados americanos – 50.000 podem estar incapacitados totalmente para o trabalho”;

(v) “… a doença é perversa, retardada e rebenta mais tarde”;

(vi) “Existem doenças associadas ao PTSD: o alcoolismo surge com frequência, sendo o suicídio maior nos ex-combatentes e menor a longevidade – morre-se mais cedo”.

Interessa antes de tudo que o ex-combatente seja acompanhado por psicólogos e psiquiatras, e que o mesmo acompanhamento seja extensivo à família. Sucede existir pouca sensibilidade de certos médicos, que dizem ignorar a PTSD, embora esta seja aceite pela Organização Mundial de Saúde. 

É bom que a APOIAR e a ADFA colaborem ambas de molde a permitir que a doença seja reconhecida, a doença existe, foi causada pela guerra. Nos Estados Unidos motivado pela Guerra do Vietname, a partir de 1980 surgiram diversos movimentos: Médicos no Congresso e o Movimento dos Combatentes entre outros, conseguindo que fosse publicada legislação.

Em 14 de Julho de 1998,  foi apresentado pelo Deputado Carlos Encarnação,  do PSD,  um Projecto para o reconhecimento em Portugal do Stress de Guerra, e Criada uma Rede Nacional de Apoio às Vítimas de PTSD.

No dia 19 de Setembro de 1998,  a APOIAR reuniu com o Dr. Álvaro de Carvalho, Director dos Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental, que solicitou à APOIAR um parecer técnico para ser enviado por ele mesmo, como responsável máximo da Psiquiatria e Saúde Mental, a todos os Hospitais, Centros de Saúde Mental e Escolas de Enfermagem para que os técnicos conheçam mais pormenores sobre a doença. A APOIAR considerou ser o Doutor Afonso de Albuquerque a pessoa mais indicada para fazer o “parecer técnico”, parecer esse que deu origem à legislação, e o reconhecimento do trabalho da APOIAR. Esse parecer,  elaborado pelo Doutor Afonso de Albuquerque,  foi-lhe entregue posteriormente.

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um ciclo com o tema “Amor em Tempo de Guerra”, conjuntamente com uma Exposição denominada “O Erotismo na Arte”. 

O Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu a Comissão em Moçambique [, enter 1961 e 1964], como médico, disse: 

“A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. (...) Chegados os soldados à zona de guerra as prostitutas surgiram logo, existindo uma mulher europeia, por cada dez europeus. O perigo das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência, sucedendo existirem experiências sexuais com animais".

A APOIAR convocou uma Conferência de Imprensa no dia 19 de Maio de 1999. Na Mesa: Doutor Afonso de Albuquerque; Mário Vitorino Gaspar, Presidente e Carmo Vicente, Vice-presidente da Direcção Nacional. Foi entregue à Comunicação Social um documento, que foi lido. Muitas questões levantadas pelos bastantes jornalistas. 

A SIC fez uma entrevista em directo para o Telejornal das 13H00, entre outras questões, e prometendo-nos que nos acompanhava ao Parlamento:  “Qual a posição que a APOIAR tomará caso seja chumbado o Projecto de Lei?" Após consulta rápida decidiu a DN. Foi dito pelo Presidente Mário Vitorino Gaspar:  “… caso o projecto de lei chumbe,  não votaremos nas próximas eleições, que se aproximam, e iremos recomendar a mesma medida aos ex-combatentes e ao país”.

 O Dr. Afonso de Albuquerque afirmou:  “… É extremamente importante a publicação e regulamentação da Lei e a formação de técnicos, temendo que a mesma seja feita de modo a não apoiar devidamente os ex combatentes e família”.

O Stress de Guerra já tem lei, aprovado o Projecto de Lei, por unanimidade na Assembleia da República e fez nascer a Lei de Apoio às Vítimas de Stress Pós Traumático de Guerra e passou a existir uma Rede Nacional de Apoio. A Lei foi promulgada em 27 de Maio. {Lei nºn46/99, de 16 de Junho].

No dia 15 de Dezembro de 2000, a APOIAR organizou um Colóquio, com o tema “A Rede Nacional de Apoio aos Ex Combatentes Vítimas do Stress de Guerra",  no Secretariado Nacional de Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. Além do Secretariado, presente o Presidente da ADFA, Patuleia Mendes, Mário Vitorino Gaspar, Presidente da APOIAR e Doutor Afonso de Albuquerque. [Vd. foto acima].


[...] Este, após resumidamente focar a história da doença referiu:   “A terapia de grupo é o melhor dos tratamentos para a doença”, continuando:  “Quanto à criação de Centros da Rede Nacional de Apoio, têm de ser diferentes de um posto dos serviços de saúde, embora necessitando sempre uma ligação com o SNS”. Mário Vitorino Gaspar afirmou: “O apoio só deve ser prestado depois de um ambiente de confiança mútua”.

No dia 4 de Fevereiro de 2002 a APOIAR na pessoa do seu Presidente da Direcção Nacional, Mário Vitorino Gaspar, assinou o Protocolo, no Salão Nobre do Ministério da Defesa Nacional .

A APOIAR, a convite de Sua Excelência o Ministro da Saúde, participou em Lisboa num Workshop, com o tema “Perturbações de Pós Stress Traumático em Ex. Combatentes” no dia 4 de Novembro de 2002. Está agendado outro Workshop no dia 5 de Novembro de 2002 em Coimbra, em 12 de Novembro, no Porto. A APOIAR e a ADFA foram convidados para a Mesa nos três Workshops.

Na sessão de abertura não estiveram presentes os Ministros da Saúde, Estado e da Defesa Nacional, Segurança Social e do Trabalho e Suas Excelências o Secretário de Estado da Saúde, e o do Estado da Defesa Nacional e dos Antigos Combatentes, tal como estava agendado.

Referiu o Doutor Afonso de Albuquerque: 

“… o conceito PTSD é recente, mas as reacções do ser humano são de sempre. Todos aprendemos a lidar com o perigo e já Shakespeare descreve na sua obra as reacções horrores agudas, mas foi principalmente a guerra,  que permitiu que estas reacções fossem estudadas. Na Guerra Civil Americana {surgou] a expressão «Irritable Heart Syndrome». Foram estudados casos, após a II Guerra Mundial, sucedendo a Guerra da Coreia, só existindo 6% de evacuações de origem psiquiátrica. 

"Os portugueses quando regressaram da guerra encontraram um clima anti-guerra, tinham partido como heróis e regressado como assassinos. PTSD de Guerra está considerada como «uma doença ansiosa".

Findou:  “… em 1992 entre 15 a 50% dos militares desenvolvem PTSD com origem na Guerra Colonial. No estudo da população em geral e em Portugal foram encontrados 7,8%”.

No dia 27 de Novembro de 2002,  a APOIAR, esteve representada pelo Presidente e Vice-presidente, respectivamente Mário Vitorino Gaspar e António Pinheiro e Técnicos, a convite dos Laboratórios Pfizer, Lda.,  surge:

Doutor Afonso de Albuquerque e da Professora Doutora Catarina Soares, esteve presente na “Apresentação dos Resultados do 1º. Estudo de Prevalência de Perturbação do Stress Pós Traumático, em Portugal”, estando presentes igualmente outras Associações e Técnicos de Saúde.

O Doutor Afonso de Albuquerque fez uma breve resenha histórica, e referindo o impacto na Psiquiatria das Guerras Mundiais e das Guerras da Coreia e do Vietname, e por tal a publicação em 1980 do DSM-II, em Portugal, o impacto da Guerra Colonial Portuguesa e posterior luta em defesa dos ex combatentes que deu origem à publicação da Lei nº. 46/99”. 

Frisou ainda: 

“Neste trabalho, quanto aos acontecimentos traumáticos que causaram PTSD, [surge] 

(i) o combate com 10,9%;  

(ii) abuso sexual antes dos 18 anos com 21,7%; 

(iii) violação com 23,1%; 

(iv) catástrofe natural com 1,4%; 

(v) morte violenta de familiar ou amigo com 12,3%; 

(vi) testemunha de acidente grave ou morte com 3,8%; 

(vii) acidente grave de viação com 5,6%;

(vii)  incêndio com 0,5%; 

(viii) ameaça com arma com 5,5%; 

(ix) ataque físico com 9,3%;

(x)  roubado ou assaltado com 2,4%”. 

"… PTSD na população exposta ao combate foi de 0,8% da amostra total é de 10,9%, relativamente aos indivíduos expostos."

Considerando a totalidade de acontecimentos traumáticos que foram causa de PTSD, verifica-se que a situação que mais contribuiu para o total de casos foi «morte violenta de familiar ou amigo».

No conjunto, os resultados deste estudo assemelham-se aos encontrados em estudos epidemiológicos realizados noutros países”. (...) Limitações do estudo: (...) em 1º. lugar a existência de potencial «enviesamento» da amostra; entrevistas realizadas por pessoas sem formação clínica e necessidade de confirmação destes resultados com mais estudos (população geral e/ou populações específicas).

Em 14 de Dezembro de 2002, na 16ª Assembleia Geral da APOIAR, no Salão Nobre do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, por proposta da Direcção Nacional foi atribuída a qualidade de Socio Honorário ao Doutor Afonso Abrantes Cardoso de Albuquerque.

Atrevo-me a afirmar: Doutor Afonso de Albuquerque, Pai do Stress de Guerra e da APOIAR. (...)

O Notícias de Almeirim, Edição online semanal, 23/8/2019

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
____________

Nota do editor:

Último poste da série >17 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20464: Recortes de imprensa (110): Pinto Leite, Leonardo Coimbra, José Vicente de Abreu e Pinto Bull, os parlamentares que pereceram no acidente aéreo de 25/7/1970 ("Diário de Lisboa", 27 de julho de 1970)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15456: (In)citações (80): Quem se lembra deste fado, cantado pelos páras do BCP 12, em Cacine, em junho de 1973, na altura da batalha de Gadamael, com música dos "Amores de Estudante" ?... "Quero, quero ir para Lisboa, / Ai, ai, eu quero, / Nem que seja de canoa, /Eu quero ir / P'ra terra santa querida, / Dizer adeus a esta merda / P'ro resto da minha vida." (recolha de Abílio Magro)

1. Escreveu há tempos o Abílio Magro (ex-fur mil amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), na sua série  "Um Amanuense em Terras de Kako Baldé" (*):


(,,,) Decorria o mês de junho de 1973. Eu ainda era muito "pira", não tinha completado ainda 3 meses de Guiné. Vinha do "ar condicionado" e encontrava-me em Cacine, no meio de grande confusão, tropas pára-quedistas, fuzileiros, Marcelino da Mata, etc.

Felizmente em Cacine não faltava nada. Não faltava cerveja morna, não faltava uma pedra de gelo, por cabeça, às refeições, não faltava o arroz de "rolhas" (arroz com muito colorau e meia dúzia de rodelas de salsicha), etc., eyc..

A CCAÇ 3520 era um companhia farta. Farta de ali estar, farta de comer arroz de "rolhas", farta de esperar pela rendição. Julgo que não cheguei a completar 4 semanas de "férias" naquela "estância balnear", mas foi o suficiente para imaginar uma estadia de 23 meses!

Tenho ideia de só ter comido arroz de "rolhas" durante aquele período. Posso estar enganado.
Comecei a dar mais valor ao "pessoal do mato". Antes 527 serviços de Sargento da Guarda!

O major Leal de Almeida lá continuava a fazer incursões por Gadamael e levava habitualmente consigo o outro Furriel. O major, além de me ter pedido, no início, para lhe dar um jeito no "estaminé", pouco mais me pediu para fazer. Apenas um ou outro "mail" para Bissau.

E eu..., andava por ali a ver as "bajudas"!... (...) Entretanto, eu ia jogando a "lerpa", bebendo umas "bejecas" mornas e convivendo com os sargentos paraquedistas (ah gente do "catano"!).

Recordo-me bem de um convívio noturno na "messe" de sargentos. Houve de tudo! Aguardente, fados, poesia, etc., tudo a roçar o "hard-core", claro! Gente espetacular, camaradagem excelente e com uma disciplina extraordinária, nomeadamente com o armamento.

Guardei na memória alguns versos de um fado cantado pelos "páras" com música do hino académico "Amores de Estudante" e que, salvo erro, rezavam assim:

Quero, quero ir para Lisboa,
Ai, ai, eu quero,
Nem que seja de canoa,
Eu quero ir
P'ra terra santa querida,
Dizer adeus a esta merda
P'ro resto da minha vida.

Pára-quedistas, homens nobres,

Tanto ricos como pobres,
Avançando pela mata (...)

(e de mais não me recordo)

  

[Guiné, algures, s/d.,foto do nosso  camarada Manuel Peredoex-fur  mil paraquedista, que é o primeiro do lado direito, armado de RPG-2, seguido do sagento Carmo Vicente e do Fernandes, caboverdiano, fur mil, todos do 4º Gr Comb da CCP 122 / BCP 12, Brá, Bissalanca, 1972/74; do Carmo Vicente, hoje srgt mor paraquedista ref , DFA, escritor, ler e ouvir aqui o seu testemunho, na primeira pessoa, à RTP1, eobre a sua participação no 25 de novembro de 1975, ]


Ficou-me também na retina a imagem do 1º Sargento pára-quedista [António Carmo] Vicente, evacuado para Cacine, vindo de Gadamael, com um tiro numa perna, a aguardar evacuação para Bissau e com quem tinha convivido alegremente naquela noite.

A minha "guerra" lá foi continuando com a "lerpa", "as bejecas" mornas, o convívio com os "páras" e a excelente qualidade das instalações, nomeadamente o "balneário" de arrojado design e equipamento de conceituadas marcas. (...)


2. Comentário do editor (**):

Alguém se lembra de ter ouvido (ou de ter lido) a letra (e a música) deste fado (parodiado), ao que parece criação de alguém do BCP 12, e mais provavelmente da CCP 122 que estava em Cacine, na altura em que o furriel amanuense Abílio Magro também lá esteve, em junho de 1967, apoiando o major Leal de Almeida,em plena guerra de Gadamael ?

Talvez o Manuel Peredo (que vive em França e é nosso grã-tabanqueiro) se lembre do resto da letra...  Ou o próprio Carmo Vicente ou o Delgadinho Rodrigues (hoje capitão pára reformado  e furriel em junho de 73). Ou outros camaradas paraquedistas do BCP 12 que honram, com a sua presença,  a nossa Tabanca Grande, depois de terem honrado a pátria, enquanto bravos combatentes, como é o caso o  Vitor Tavares (CCP 121),  o Manuel Rebocho (CCP 123) ou o António Dâmaso (CCP 122 e 123).

E outros há que, não sendo formalmente (ainda) nossos grã-tabanqueiros são por nós referidos e acarinhados: por exemplo, o Manuel Carneiro, da Tabanca de Candoz, e que pertenceu à CCP 121 (1972/74), ou o Avelar de Sousa (que foi cmdt da CCP 123, em 1970/71, não sendo portanto contemporâneo dos camaradas acima referidos, e que é hoje maj gen pára ref, frequentador da Tabanca da Linha).

Recorde-se aqui a letra e a múscia da canção coimbrã "Amores de Estudante", cujo refrão diz o seguinte:

(...) Quero, ficar sempre estudante,
P'ra eternizar
A ilusão de um instante.
E sendo assim,
O meu sonho de Amor
Será sempre rezado,
Baixinho dentro de mim. (...) 


A letra parodiada pelos páras faz parte integrante do nosso Cancioneiro, o Cancioneiro da Guiné, dizendo muito sobre o "estado de espírito" e o "moral" das NT no terrível período dos três G (Guileje, Gadamael, Guidaje), em maio/junho de 1973. Todos estavam fartos daquela  "merda" (sic), não se vendo qualquer luzinha no fim do túnel... O poder político, na altura,   usou e abusou da extraordinária capacidade de sofrimento, abnegação, coragem e patriotismo do soldado português. E não  esteve decididamente à altura da história!...
______________

Notas do editor:

(*) Vd poste de 20 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11125: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (5): Curtas férias em Cacine, CCAÇ 3520 (2)

(**) Último poste da série > 30 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15424: (In)citações (79): Comer crocodilo que comeu homem, é canibalismo? Felupes de São Domingos dizem que 'crocobife' é bom... (Patrício Ribeiro, Bissau)

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11079: Álbum fotográfico do Delgadinho Rodrigues (cap pára ref, CCP123/BCP 12, Bissalanca, 1972/74): Gadamael, junho de 1973 (Manuel Peredo, ex-fur mil, CCP 122, 1972/74, hoje a viver em França)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 1



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 1-A


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 1-B


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 2


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 2-A


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 3


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto nº 3-A

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Fotos do álbum do  Rodrigues Delgadinho, na altura fur mil pára, da CCP 123/BCP 12, força de elite que conseguiu travar a ofensiva do PAIGC contra aquele aquartelamento de fronteira. Gadamael faz parte dos três famosos G - Guidaje, Guileje, Gadamael...

Fotos: ©  Delgadinho Rodrigues / Manuel Peredo (2013). Todos os direitos reservados [Editadas por L.G.]


1. Mensagem, com data de 4 do corrente, enviada pelo nosso camarada Manuel Peredo (ex-Fur Mil Paraquedista (CCP 122 / BCP 12, Brá, Bissalanca, 1972/74) [, foto à esquerda: é o primeiro lado direito, armado de RPG-2, seguido do sagento Carmo Vicente e do Fernandes, caboverdiano, fur mil, todos do 4º Gr Comb da CCP 122]

Caro Luis Graça, aqui vão três fotos de Gadamael que me foram oferecidas pelo Delgadinho Rodrigues, capitão pára na reforma e furriel em Junho de 73. Sei que há elementos do blogue que já não suportam ouvir falar em Gadamael, mas esses certamente não estavam lá naqueles dias difíceis. (*)

Um abraço, Manuel Peredo [, foto atual à direita]

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Manel, sê bem aparecido. Julgo que ainda estás por França, não ? E,  se sim, tencionas voltar ? Espero bem que sim, afinal esta é a Pátria pela qual já verteste sangue, suor e lágrimas.

Obrigado, antes de mais pelas fotos, de Gadamael.  A preto e branco, e em dia de céu carregado, e com vestígios,  bem evidentes, dos ataques do PAIGC(que começaram em finais de maio de 1973), elas conseguem transmitir-nos  o dramatismo desses dias que lá vivestes, com os teus valorosos camaradas da CCP 122 e da CCP 123, até ao dia 10 de junho, em que foste ferido.

Agradece, por todos nós, ao Joaquim Manuel Delgadinho Rodrigues, o ter-te facultado estas fotos e, através de ti, tê-las feito chegar ao nosso blogue (que está aberto a todos os camaradas da Guiné, como sabes). Diz-lhe (, no caso de ele não ler esta mensagem, ) que a sua presença, na nossa Tabanca Grande, nos honraria muito, a todos, e seria também uma forma de homenagear os mortos e os feridos da batalha de Gadamael. Ele só precisa de nos mandar as duas fotos da praxe, e escrever meia dúzia de linhas sobre as férias que ele passou nesse paraíso tropical chamado Guiné... Podes (e queres) ser o padrinho dele ?

 Quanto a Gadamael, nunca será demais falar... E continuaremos a falar, de Gadamael,  "ad nauseam"... Temos já cerca de 200 referências a esse lugar, que ficará na história desta guerra e deste país pelo patriotismo, coragem, abnegação e camaradagem de homens como tu, o Carmo Vicente (CCP 122),  o Manuel Rebocho (CCP 123), o Victor Tavares (CCP 121), o J. Casimiro Carvalho (CCAV 8350) e tantos outros. Desejo-te boa saúde e longa vida. Vai aparecendo.

Parafraseando o Virgínio Briote, no seu poste sobre o livro do Carmo Vicente ("Gadamael"), "foi a Guerra que vivemos (é sempre assim em todas, em poucos minutos, horas ou dias, somos capazes do melhor e do pior")... Em 26 de junho de 1975, o nosso grã-tabanqueiro J. Casimiro  Carvalho podia escrever â mãe, com os dizeres , em caixa alta, "Now we have peace" [, Finalmente temos paz].




Foto: © José Casimiro Carvalho (2007) / BlogueLuís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

Excerto de uma das cartas enviadas de Gadamael. Na resenha biográfica do J. Casimiro Carvalho, não há grande precisão nas datas,   no que diz respeito ao período em que esteve em Gadamael. O BCP nº 12, a duas companhias (CCP 122 e CCP 123) é enviado para Gadamael a 2 de Junho, seguindo-se a 13 a CCP 121, do Victor Tavares. Regressa a Bissau a 7 de Julho (as CCP 122 e 123) e a 17 de Julho (a CCP 121). Os páras conseguirão travar a ofensiva do PAIGC a partir do momento em que se instalam em Gadamael. 

______________


(...) Já agora vou descrever um pouco por alto aquilo que ainda está gravado na minha memória. Quando nos disseram em Bissau que íamos para Gadamael, informaram-nos que a situação era muito grave e que não valia a pena irmos carregados, só o necessário para três ou quatro dias. Quando nos aproximávamos de Gadamael, recordo-me muito bem de ver muita tropa à beira do rio, com uma expressão de terror na cara.

Alguns dizem que desembarcámos em botes, mas eu quase afirmava que foi de LDM e era capaz de jurar que só a minha companhia, a [CCP] 122, é que desembarcou nesse dia e não me lembro de estarem lá duas companhias de páras ao mesmo tempo. Penso que a 123 nos foi render para a 122 poder descansar uns dias em Cacine.

Mal chegámos a Gadamael, dois pelotões foram logo para a mata, onde passaram a noite. Em Gadamael apenas se encontravam lá uns quinze ou vinte homens, o resto tinha fugido. Recordo-me que veio logo uma Berliet conduzida por um açoriano muito destemido para evacuar os mortos e feridos. Soube pelo blogue que o José Casimiro Carvalho também fazia parte dos que não fugiram. 

O meu pelotão, o quarto, fazia parte do bigrupo que passou a primeira noite no mato e, quando estávamos a regressar ao quartel, este foi fortemente bombardeado, originando a morte de alguns soldados do exército que tentaram fazer fogo com o obus 140, salvo erro. Estivemos à espera que os rebentamentos acabassem para poder entrar no quartel.

Um dia ou dois mais tarde morreram mais três soldados e um alferes miliciano, vítimas duma emboscada, muito próximo do quartel. Alguém devia ter um grande peso na consciência por ter mandado para o mato um grupo de apenas duas dezenas de militares, se tanto. Este ataque já foi contado pelo José Casimiro e pelo [Carmo] Vicente.

Aqui o Vicente deve estar enganado. Quem foi primeiro recuperar os corpos foi outro pelotão, o nosso pelotão foi enviado em reforço porque tínhamos acabado de chegar do mato. Encontrámo-nos a meio caminho e demos uma ajuda a transportar os corpos que estavam muito mal tratados : tinham o corpo queimado e ferimentos causados pelas balas. O alferes tinha um grande buraco na cara derivado a uma rajada e um soldado nem calças trazia vendo-se bem o efeito das chamas.

Quando chegámos ao quartel, os colegas dos militares mortos estavam no cais à espera e houve um pormenor que me deixou surpreendido e até chocado. Nenhum deles teve a coragem de nos ajudar a carregar os mortos para a Berliet. Os corpos eram postos no chão e o pessoal ia para as valas. Eu próprio os carreguei com a ajuda de colegas. 

Quando estávamos com este trabalho, o IN lançou novo ataque e eu só tive tempo de saltar do paredão do cais para me proteger. Foi a minha salvação pois uma granada caiu no local que tinha deixado. Escapei à uma morte certa por décimos de segundo.

Outro pormenor que me surpreendeu : quando íamos resgatar os corpos, um dos soldados que tinha fugido da emboscada dirigiu-se a mim, suplicando-me por,  tudo quanto me era sagrado, que tentasse recuperar uma medalha ou um fio que a mãe lhe tinha dado. Essa medalha ou fio devia estar no casaco que ele largou durante a fuga. Os ataques iam-se sucedendo e talvez mais espaçados e a tropa que tinha fugido ia regressando ao quartel talvez por se sentirem mais seguros com a nossa presença.

No dia dez de Junho (ninguém no mundo me convencerá que não foi neste dia ) sofremos então uma emboscada que deixou a 122 muito debilitada. Pela manhã fomos montar uma emboscada um pouco distante do quartel. Nada se passou de anormal a não ser uma tentativa do IN em abater um Fiat que voava bem lá no alto:  distinguia-se perfeitamente o fumo do míssil que tinha rebentado.

A meio da tarde, iniciámos o regresso ao quartel. Estava previsto o meu pelotão e mais um pernoitarem na mata, já muito próximo do quartel e estávamos já nesses preparativos, quando se deu a emboscada. Os dois pelotões que lá deviam pernoitar encontravam-se já na mata e os outros dois seguiam pelo caminho que dava acesso ao quartel. Os dois bigrupos encontravam-se em posição paralela,  o que podia ter custado muito caro. 

Claro que foi um erro de quem dirigiu a manobra. Os dois pelotões que iam para o quartel é que deviam ir na frente. Eu por acaso apercebi-me do erro e disse aos meus homens para não dar fogo. Aquilo nunca mais acabava. Quando os caças Fiat vieram em nosso auxílio ainda o combate não tinha acabado. Não havia árvores de grande porte para nos protegermos. O meu colega do lado esquerdo tentava proteger-se atrás dum arbusto que foi ceifado por uma granada logo por cima da cabeça. O que estava do meu lado direito foi levantado pelo sopro duma granada.  possivelmemte dum RPG 7. 

Acreditem que foi verdade,  pois vi com os meus próprios olhos. Há minutos na vida que duram uma eternidade. Resultado da brincadeira :17 feridos, todos causados por estilhaços,  fazendo eu parte desse grupo com um ferimento na cabeça.

Por absurdo que pareça eu fiquei bem disposto e até brinquei com os meus colegas. Quando estes me viram a sangrar da cabeça disseram-me : "Ó meu furriel já pode estar descansado, já acabou a comissão". Mal eles imaginavam que passados oito ou dez dias estava de novo junto deles. Claro que o ferimento não era grave e, derivado ao medo que os médicos tinham do comandante, eu próprio pedi para voltar à minha companhia. 

Quando voltei, já a 122 estava a descansar em Cacine e mal cheguei lá fui presenteado com um ataque de paludismo. Veio logo o capitão Terras Marques dizer-me que tinha que recuperar depressa pois precisava de mim para irmos fazer uma operação à fronteira da República da Guiné.

Voltando um pouco atrás. Fomos então evacuados para Cacine em dois botes que iam superlotados e de Cacine seguimos de helicóptero para Bissau. Quando eu estava no hospital a aguardar transporte para Bissalanca, chegou o homem do monóculo [, o gen Spínola,]  para ver como estavam os feridos. O médico que o acompanhava apontou para mim e disse-lhe que eu era um dos feridos. Dirigiu-se a mim e perguntou-me como se tinha passado. Quando lhe disse que foi no regresso, logo me perguntou se vínhamos pelo mesmo caminho. Pensei logo que estava ali uma armadilha e lá lhe enfiei o barrete. (...)

domingo, 6 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9859: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (15): Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael...



1. Em 1973, em Maio/Junho, Gadamael era um dos três G de que toda a gente falava: Guidage, Guileje, Gadamael... Sobre Gadamael temos mais de 170 referências no nosso blogue, já tendo nós publicado diversos depoimentos em primeira mão, relativos à chamada batalha de Gadamael (em finais de maio e princípios de junho de 1973), desde o J. Casimiro Carvalho ao Pedro Lauret, do Carmo Vicente ao Victor Tavares, do Luis Paiva ao Manuel Rebocho, do Jorge Canhão ao João Seabra, sem esquecer o Manuel Reis, o Constantino Costa e outros "piratas de Guileje" ...

Qualquer destes três G têm suscitado e continuarão a suscitar as mais diversas versões, não necessariamente contraditórias, seguramente parcelares e complementares, umas mais polémicas, apaixonadas e acaloradas do que outras.


Alguns de nós, como é o acaso do nosso camarigo António Graça de Abreu (AGA), assistiram aos acontecimentos de Gadamael a uma distância relativamente confortável (desde Mansoa ou de Cufar). Para quem não estava lá, em meados de 1973, no TO da Guiné, não deixa de ser interessante ler as referências a Gadamael no diário do AGA, e ficar a conhecer as reações que a evocação do topónimo provocava nas NT... Lembro-me do mesmo temor e respeito que nos inspirava, em meados de 1969, a evocação de outros topónimos como Gandembel ou Madina do Boé, quando desembarcámos em Bissau e começamos a deambular pelas 5ªs Rep, ávidos de notícias, boatos e histórias da guerra. 

Pois aqui ficam alguns excertos do Diário da Guiné onde encontrei referências ao topónimo Gadamel. Recorde-se que há uma edição comercial do livro, e que este pode ser comprado nas livrarias ou na feira do livro que está a decorrer em Lisboa. Referência completa:  António Graça de Abreu - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp. (*) (LG)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14....
                                                                                 
Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados



Mansoa, 22 de Maio de 1973

O PAIGC parece que vai declarar a independência, mas isso não modificará o rumo da guerra. O que tem abalado os portugueses nestes últimos meses é a quase ausência da nossa aviação, o armamento cada vez melhor, em maior quantidade e melhor utilizado pelos guerrilheiros e, acima de tudo, o estado anímico e psíquico da tropa portuguesa. No entanto, continuo a acreditar que esta guerra está longe de se resolver no campo militar e terá, só Deus sabe quando, uma solução negociada, política.
Creio que continuamos em vantagem sobre os guerrilheiros, dominamos os centros urbanos e as maiores povoações da Guiné, existem aquartelamentos espalhados por todo o território e temos muitos mais militares do que eles. Se em vez de quatro ou cinco Fiats tivéssemos vinte ou trinta aviões mais modernos, se contássemos com blindados capazes para este tipo de guerra, se a tropa portuguesa estivesse moralizada e decidida, as NT voltariam a manejar quase todos os cordéis com que se tece a guerra. Mas onde ir buscar dinheiro para tanto material militar – parece que as guerras em África consomem quase metade do orçamento de Estado, – e fundamental, como mudar estes nossos homens, descrentes, cansados, confusos?
Os senhores que nos governam ou estão cegos para a realidade ou fingem estar, querem que os pobres soldados portugueses continuem a “defender a Pátria” até ao impossível. (...)
O meu coronel [, Cor pára Rafael Durão, comandante do CAOP1] anda lá pelo sul, (...)  Guileje, Gadamael aquartelamentos junto à  fronteira que têm sido atacados quase sem interrupção. Ele já tem cá o seu “periquito”, o substituto, outro coronel pára-quedista que parece ficará em Catió, no sul, onde se diz que será criado um CAOP 3. (...)

Mansoa, 28 de Maio de 1973

O outro “Gui”, Guileje. O que se passou no aquartelamento do sul? Dizem-me que Guileje tem os melhores abrigos de toda a Guiné, em cimento armado, mas foi sendo sucessivamente flagelada, dias a fio, com o mais variado tipo de armas e, tanto quanto sei pela primeira vez na história recente desta guerra, as NT abandonaram um aquartelamento e retiraram-se para Gadamael, outro destacamento também junto à fronteira mas mais próximo de Cacine e do mar. Isto sem o conhecimento do Comandante-Chefe, general Spínola e dos estrategas de Bissau. Pelo menos é o que consta, estou a vender a notícia como a comprei, mas parece produto afiançado. (...)

Mansoa, 19 de Junho de 1973

Chegou anteontem a Mansoa uma companhia nova de pessoal destinado a Angola. Só dentro do avião souberam que vinham para a Guiné. Aconteceu o mesmo a três outras companhias de 180 homens cada, com outros destinos, que também foram desviadas para a Guiné. Estes vêm substituir uma companhia do Batalhão 4612, aqui estacionado em Mansoa e que, com oito meses de comissão, parte amanhã para reforçar Gadamael, ao lado de Guileje já evacuado há um mês pelas nossas tropas. Ontem os rapazes desta companhia estavam desesperados face ao futuro incerto que os espera, mais incerto do que o meu. Eu vou para pior, não propriamente para um matadouro. Esta companhia, ai, que Deus os proteja!...

A grande maioria dos mortos em combate na primeira quinzena de Junho, vinte e quatro no total, registou-se no sul, na região de Gadamael-Cameconde onde os guerrilheiros tentam conseguir o mesmo que em Guileje, obrigar os portugueses a abandonar mais um aquartelamento. Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael. (...)

Hoje, às oito da noite estávamos os oficiais a jantar quando, diante da messe, surgiu quase toda a companhia velha em marcha fúnebre, com arcos e velas acesas sobre umas tábuas que pareciam caixões. Formaram e queriam oferecer uma garrafa de whisky ao capitão, o comandante da companhia, um homem do QP, competente, respeitado e determinado. Saiu da messe, perfilou-se, fez continência aos seus homens e mandou-os dispersar. Obedeceram logo. Depois houve grandes bebedeiras. Estive no bar de oficiais até cerca da meia-noite. Alguns alferes da companhia que segue para Gadamael, cheios de álcool, partiram garrafas e cadeiras. Não se tratou de insubordinação, apenas o extravasar de recalcamentos e medos. (...)

Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. (...). O que se passa lá mais para sul, em Guileje, há um mês abandonado pelas NT, em Gadamael, que esteve quase a ser evacuada, em Cameconde ou Cacine, só indirectamente tem a ver com a zona onde me encontro. Embora perto de Cufar, uns trinta quilómetros em linha recta, são regiões geográfica e militarmente diferenciadas da nossa. Lá os guerrilheiros estão a exercer uma enorme pressão mas, pelo que conheço deles, não me parece que tenham hipóteses de repetir a ocupação de qualquer aquartelamento NT. No extremo sul da Guiné eles atacam muitas vezes a partir do outro lado da fronteira. Dispõem de uma base grande em Kandiafara, uns quinze quilómetros já dentro da Guiné-Conacry, para onde regressam após emboscadas e flagelações. (...)

  Cufar, 27 de Junho de 1973

De Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas. Fala-se em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael, abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN. Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa. Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacry, no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade, começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado. (...)

Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael. (...)

Cufar, 21 de Setembro de 1973

Tenho o cabelo um pouco mais crescido, mas os meus superiores não me chateiam com críticas ou ordens para o cortar. Também deixo crescer o bigode embora não me pareça que fique mais bonito. O bigode dá-me um certo ar rufia, um aspecto de mafioso italiano ou grego, de facalhão à cinta. Cortá-lo-ei em breve. Para um oficial usar bigode é necessário fazer um requerimento ao ministro do Exército. Não fiz nada disso, estou no sul da Guiné, quanto maior é o “buraco” em que estamos metidos, mais se ultrapassam os regulamentos. Os tipos do Chugué, Jemberém, Gadamael usam bigodes, barbas, cabelos de meses, estão-se cagando para os regulamentos. Os tipos do ministério do Exército que venham cá até ao sul da Guiné, até este esplendoroso torrão de solo pátrio, mandar vir com os soldados barbudos e cabeludos!... Eles são capazes de lhes meter uma bala nos tomates. (...)

Cufar, 8 de Novembro de 1973

Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.
De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?
As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo. (...)

Cufar, 11 de Novembro de 1973

Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.
Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água. (...)


Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

            Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.

            Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair.

            Só desejo que este embeber doloroso na guerra, este permanente estado de insegurança, este saber que a meu lado todos os dias morrem africanos e portugueses, não entre demasiado por dentro de mim e me marque a ferrete, com ressacas complicadas para o futuro. Não sou um tipo medroso, nem fraco. Procuro manter a cabeça fria e fazer estes jogos de guerra mantendo-me vivo e seguro. Mas custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados. Os soldados parecem crianças com todos os defeitos dos homens. Bebedeiras conscientemente procuradas, reacções sem nexo, o medo escondido a crescer.
            Em mim, acho que quero, posso e mando. Às vezes, embora eu diga que não, a guerra afecta-me, e muito. Tento criar calo, uma armadura onde as sensações mais fortes batam e façam ricochete. Há o futuro, o desta gente, negros e brancos, e o meu. Faltam-me apenas quatro meses para terminar a comissão. É aguentar, e peito firme!  (...)


            Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos. (...)


           Cufar, 21 de Janeiro de 1974


Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (...)


           Cufar, 31 de Março de 1974



Prometi que só regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado abalado com a vinda para o mato, -  disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9790: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (14): O cap mil grad António Andrade, açoriano, terceirense, da 35ª CCmds... (ou a confirmação de que o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande)