Mostrar mensagens com a etiqueta BCAÇ 2892. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta BCAÇ 2892. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24771: Ataques ou flagelações com foguetões 122 mm: testemunhos (5): Quem mente, o Paulo Santiago ou a "Maria Turra" ? Ainda a flagelação a Aldeia Formosa, no fim de semana de carnaval de 1971


Página 1 de um documento de 2 pp, do PAIGC, "Acções do PAIGC: Artilharia"

Fonte: Portal Casa Coum |  Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 07198.168.083 | Título: Acções militares do PAIGC - Fevereiro de 1971 | Assunto: Acções militares do PAIGC - Fevereiro de 1971. Artilharia. Emboscadas, minas, assaltos. | Data: Fevereiro de 1971 ! Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Militar / Comunicados de Guerra 1971. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral  

Citação:
(1971), "Acções militares do PAIGC - Fevereiro de 1971", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40307 (2023-10-19) 

Edição e reprodução neste blogue. com a devida vénia...


1. Nem sempre a "Maria Turra" (Amélia Araújo,  angolana, que hoje, ainda a ser viva, será "uma simpática velhinha", a viver em Cabo Verde,  com os seus quase 90 anos) dizia "mentiras" ou "só mentiuras"... 

Seguramente que este comunicado do PAIGC (vd. documento acima) passou pelos microfones da Rádio Libertação (um potente emissor oferecido pelos suecos), que emitia a partir de Conacri... E deve ter sido lido e relido por ela...

Em todas as guerras as "Marias Turras", de um lado e do outro,  contam contos e acrescentam-lhe uns pontos...  A propaganda faz parte da guerra, de um lado e do outro. Senore fez e é com mais mais importante... 

Neste caso, o PAIGC diz que atacou ou flagelou com o sistema "Grad" (foguetões 122 mm), em fevereiro de 1971, seis localidades e/ou aquartelamentos, incluindo Quebo (ou Aldeia Formosa), no dia 20...

Há uma pequena discrepância na data, na versão do Paulo de Santiago (*), quando confrontada com a da "Maria Turra": 20 ou 22 de fevereiro de 1971? A terça feira de carnaval desse ano foi a 23 de feveriro, portanto a segunda foi a 22, domingo 21, sábado 20... 

Na versão da "Maria Turra", Quebo / Aldeia Formosa foi atacada com o "Grad" a 20 (sábado) e a 22 (segunda feira) com "artilharia" (canhão s/r, morteiro...).

Dia  6, Gadamael: "Grandes destruições; ao fugir do quartel, o inimigo caiu numa emboscada e teve muitas baixas" (sic);

Dia 7, Encheia;

Dia 12, Catió;

Dia 20, Quebo: "todos os obuses atingiram o objectivo" (sic);

Dia 21, Susana; "o inimigo ao fugir do quartel, caiu numa emboscada, sogrendo muitas baixas" (sic);

Dia 25, Cabuca. 

Na altura ainda estava em Aldeia Formosa, sede do Sector S2, BCAÇ 2892, rendido em 26 de agosto de 1971, pelo BCAÇ 3852

A CECA (2015) (**) não faz especial referência a esta flagelação a Aldeia Formosa, com o "Grad" (a 20) e com  "artilharia" (a 22/2/1971)... (Refere, sim, 4 flagelações com foguetões 122 mm em agosto de 1971, certamente de boas vindas aos "periquitos" do BCAÇ 3852 e de despedida ao "velhinhos" do BCAÇ 2892)...

De qualquer modo, o Paulo Santiago estava lá, a 12 km de distância, nesse fim de semana de carnaval de 1971, e viu os "Katyusha" a passar sob o céu do rio Corubal, e a "Maria Turra", essa, estava em Conacri, a mais de 400 km... 
____________


(**) Vd. Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6º volume: aspectos da actividade operacionaç Tomo II: Guiné, Livro III, Lisboa: 2015.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22566: Os nossos regressos (39): Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 22 de Setembro de 2021, falando-nos do seu regresso da Guiné:


O REGRESSO (1)

Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora já que quando passados dois meses tentei estudar para fazer o exame de aptidão à Universidade, me pareceu que não conseguia fixar as matérias em estudo.

Desiludido com a minha perda de capacidades e consciente de que, tendo saído da tropa, não poderia continuar a deixar arrastar os dias ao sabor das quatro estações depois de viver em África sob as estações secas e das chuvas e na sucessão dos dias calmos, intercalados por alguns dias agitados, com tiros, com granadas, com bombas, que me despertavam desse torpor da melhor ou da pior maneira. Sim porque muitos de nós gostávamos da guerra sem mortos nem feridos para quebrar a monotonia em que vivíamos.

Como oficial miliciano tinha um vencimento com que nunca tinha sonhado e porque somente podia enviar dois terços para a Metrópole sobrava-me muito dinheiro para alimentar diversões e vícios que criei para entreter os dias. Tinha parado no tempo e porque não morri na guerra, como outros que tiveram esse infeliz destino, dei-me conta que ainda poderia ter um longo futuro para gerir à minha frente. Teria que arranjar trabalho. Por percalços relacionados com a minha independência e rebeldia falhei a minha entrada em dois bancos que o meu pai, um negociante honesto com boas relações com bancos e com um industrial de cortiça de Lourosa, me garantiam, sendo um a Caixa Geral de Depósitos que nesse tempo até pagava bem.

Para não me tornar num indigente a viver às sopas dos meus pais, em fins de 1972, decidi concorrer à Caixa de Previdência e dos Serviços Médico Sociais do Porto que tinha aberto um concurso de entradas, com formação e provas e dava prioridade a ex-combatentes do ultramar. Éramos quatro ex-militares e duas jovens que tinham acabado de tirar um curso superior. Fizemos boas provas de ingresso e todos fomos admitidos. Dentre esses camaradas criei uma relação mais próxima com o Barcelos Monteiro por afinidades várias, éramos ambos transmontanos, com formação liceal na área de letras, tínhamos alguma curiosidade política e literária, ele bastante extrovertido, eu um pouco introvertido.

No ano de 1973 houve mais uma farsa de eleições para a Assembleia Nacional, a que a Oposição concorreu muito limitada na campanha eleitoral sem poder falar da censura da pide, dos presos políticos,   da guerra colonial, de outros assuntos que eram tabu para o regime.

Com pouca formação política e sem estarmos inscritos em qualquer partido, mas porque sentíamos o ambiente político opressivo em que se vivia, participamos em algumas manifestações e comícios da oposição, como apoiantes, e por vezes tivemos que fugir à polícia como os outros.

O ano foi passando, entre calmo e agitado, alegando, com razão, falta de liberdade para fazer campanha, a Oposição Democrática desistiu das eleições, como no geral acontecia e a União Nacional ocupou todos os lugares da Assembleia da República, com a benção da Igreja e de Salazar, esse santo hipócrita, que já estava no céu dos pardais.

Ganhava-se pouco, o trabalho, com tarefas repartidas, tipo trabalho à peça, era pouco interessante. Na secção para onde entrei, com cerca de 30 pessoas a maior parte mulheres, era chefiada por um homem, inteligente, competente, mal alinhado com o regime, por vezes bem humorado mas com uma pancada própria que o levavam a ter atitudes pouco racionais. Tinha um adjunto com quem não se entendia bem e para o castigar, tinha-lhe distribuído um trabalho, que consistia em carimbar documentos todos os dias, à Mariana que trabalhava junto dele a dactilografar-lhe os ofícios e a fazer outros trabalhos, raro era o dia em que não a fazia chorar a recriminá-la com ou sem razões. Em toda a instituição trabalhavam sobretudo mulheres sendo porém os chefes praticamente todos homens.

As mulheres casadas algumas eram pequenas burguesas quando os maridos tinham rendimentos bastante superiores aos delas, outras equilibravam os vencimentos com o dos maridos para pagarem as prestações da casa, do carro e para alimentarem a família. As raparigas solteiras suspiravam, algumas bem alto, pelos namorados que estavam no ultramar a lutar pela Pátria uns e outros pela vida. Havia a Rosa, era casada e tinha duas filhas, a mulher mais generosa e solidária que já conheci, frequentemente a ser chamada ao guichet para tratar de assuntos de muitos amigos e amigas, pobres ou ricos que tinha por toda a cidade e arredores. Ajudava igualmente os colegas em tudo o que podia e no trabalho sempre activa e faladora, distribuia boa disposição por todos. Pouco convencional era capaz de se sentar nas minhas pernas ou de outro colega, para escândalo de algumas mais conservadoras, outras vezes fazia-lhes perguntas que as embaraçava, do género nunca fizeste amor dentro do carro e terminava dizendo que era muito bom. Um dia já depois de almoço acercou-se de nós, a Amélia, uma colega da minha idade, casada, com um filho, vinha nervosa e disse-nos com tristeza, pedindo segredo, que de manhã tinha ido fazer um aborto. Dramas que aconteciam nesse tempo, ainda hoje talvez com mulheres de todas as classes e condições sociais.

No final desse ano as senhoras organizaram uma festa de Natal numa pequena sala contígua à secção, com enfeites, com música, boa comida e alguma bebida, memorável.

Em Abril de 1974 dá-se a Revolução dos Cravos, com que eu tanto tinha sonhado que já não me parecia que fosse possível. Há todo um povo que adere se levanta, e procura os novos caminhos e o sabor da liberdade que desconhece.

A propaganda politica surge por toda a parte, nas praças, nas avenidas, nos locais de trabalho, nas cidades nas aldeias, com slogans da Revolução Francesa, das revoluções comunistas, Russa e Chinesa, é sobretudo a esquerda que no antigo regime estava amordaçada que agora fala e grita bem alto.

As chefias dos serviços públicos, que eram afectas ao regime caído, por convicção, por obrigação ou necessidade, ficaram apáticas e temerosas. Nem todas, pois um conhecido Chefe de Serviços da Instituição, que segundo testemunhas de crédito, recebia pides regularmente no seu gabinete, filiou-se num partido de esquerda e em Julho, soube depois, pois eu estava de férias, encabeçou uma manifestação em direcção ao Quartel-General do Porto, para exigir o saneamento dos fascistas.

O meu amigo Barcelos Monteiro adere logo, de alma e coração, a um partido vermelho e não se cansa de procurar convencer os outros das verdades em que acredita. Está sempre presente em comícios e manifestações, onde procura conquistar também o coração e o calor de algumas camaradas, a revolução sexual, de vento em popa nos outros países da Europa, estava-se a expandir finalmente em Portugal.
Vende o jornal do partido à porta do trabalho e nas ruas e praça mais próxima.

Durante muito tempo insiste comigo para o acompanhar, eu vou resistindo, os anos de tropa e de Guiné tinham esmorecido o meu fervor revolucionário, estava diferente, mais maduro e tinha reflectido muito sobre acontecimentos mundiais que desvirtuavam os amanhãs que cantam. No entanto pela insistência dele ou por curiosidade acabo para aderir. Nunca me senti bem dentro desse partido pois cedo me apercebi que as ideias e opiniões dos militantes de base não eram escutadas. A direcção partidária pensava por todos, os outros não tinham esse direito. Nós simplesmente tínhamos que obedecer às ordens emanadas superiormente, encher os comícios, bater palmas a tudo o que os dirigentes dissessem e fizer todo o trabalho físico que nos fosse determinado. Saí pelo meu pé, um ano depois, entregando uma carta de demissão que nunca teve resposta.

Com o passar dos anos, pela comunicação social e por conversas com militantes doutros partidos. apercebi-me que em relação à democracia interna, todos eles duma forma mais ligeira ou acentuada, eram semelhantes.
No antigo regime ouvíamos falar da democracia, o melhor dos regimes políticos, como uma miragem.

A democracia criada em Atenas dava direitos iguais a todos os cidadãos mas atente-se que, os metecos (estrangeiros) e os escravos, em número muito superior aos cidadãos livre , não tinham quaisquer direitos.

A nossa democracia, nascida com a Revolução dos Cravos, dá voz aos partidos que interpretam a seu bel-prazer a vontade dos seu seguidores, por isso ela definha, vejam-se as votações.
Contudo eu prefiro a democracia a qualquer outro regim , devia ser mais participada pelos cidadãos e respeitada pelos políticos.

Este texto já vai longo, longo demais, para quem o quiser ler. Terá continuação se se achar que poderá interessar a alguém.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21213: Os nossos regressos (38): Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): uma longa viagem de nove dias, no velhinho T/T Carvalho Araújo, de 16 a 26 de junho de 1970, com um dia no Funchal (Fotos: Otacílio Luz Henriques)

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22428: Tabanca Grande (524): Juvenal José Cordeiro Danado, ex-Fur Mil Sapador de Inf da CCS/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/71), que se senta à sombra do nosso poilão no lugar 847

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 31 de Julho de 2021:


Caros amigos Editores,

Tenho o grato prazer de vos enviar o "pedido de adesão" ao Blogue por parte do nosso camarada da Guiné, Juvenal José Cordeiro Danado. Pediu-me para "apadrinhar" o pedido (quando chegar a Páscoa não sei se terei capacidade para fazer o que o Vinhal disse ser a minha obrigação de padrinho...) e para tal enviou-me o texto de apresentação, com as duas fotos da praxe, onde de forma breve dá conta do seu percurso militar.

Acrescenta também um texto, em jeito de "jóia", que penso que pode muito bem ser publicado, no seguimento da apresentação, ou em "post" próprio, como melhor entenderem, já que se trata de uma homenagem póstuma a um camarada falecido em consequência de ferimento em combate.

O Juvenal, para além da actividade que desenvolveu, inicialmente na indústria e posteriormente no ensino, do qual se reformou recentemente, tem desenvolvido interessante e valiosa actividade de colaboração no jornal "O Setubalense", com artigos variados, desde o recordar episódios da sua passagem pela Guiné até assuntos do quotidiano, sempre com elevado sentido humanista e de preocupação social.

Mais recentemente, porque passou a ter mais tempo, também intervém num grupo do Facebook dedicado a "Coisas de Setúbal", onde fez publicar o texto de homenagem que se anexa.

Saudações
Hélder Sousa


********************
Juvenal Danado, Fur Mil Sapador de Infantaria,
CCS/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1970/1971)

Sou Juvenal José Cordeiro Danado, natural de Aires (uma aldeia do concelho de Palmela), onde nasci a 19 de maio de 1948, e em cuja escola fiz o ensino primário.
Frequentei depois a Escola Industrial e Comercial de Setúbal, onde tirei o curso de Formação de Serralheiro. Foi como serralheiro que trabalhei até à tropa.

Fui Furriel Miliciano Sapador de Infantaria na Guiné, de janeiro de 1970 a setembro de 1971.

Fiz a minha recruta no Destacamento da Escola Prática de Cavalaria (Santarém, 2º turno de 1969). A especialidade decorreu no CISMI de Tavira. A seguir fui colocado no RI 16 (Évora), como Cabo Miliciano, e aí fui mobilizado para a Guiné, para a CCS do BCaç 2892, sede em Aldeia Formosa - Quebo.

Juvenal José Cordeiro Danado, "hoje"

Quando regressei, vim viver para Setúbal, onde resido, no gozo (e nas mágoas) da aposentadoria, após uma carreira profissional e contributiva repartida pela indústria e pelo ensino.

Sou seguidor do blogue e decidi solicitar a adesão. Para tanto, envio uma foto dos tempos da Guiné e a mais atual que possuo.

Segue também um texto que fiz publicar recentemente no grupo «Coisas de Setúbal» (facebook), em que procuro homenagear um amigo e colega da EICSetúbal e, por seu intermédio, os restantes alunos da EICS e todos os nossos camaradas que perderam a vida na Guerra Colonial. Se lhe acharem algum interesse para publicação no blogue, façam o favor.


********************

2. Comentário do editor:

Caro Juvenal

Deixa-me dar-te os parabéns pelo padrinho que escolheste, o Hélder Valério de Sousa, é uma pessoa muito estimada entre nós, não desmerecendo os restantes camaradas que compõem a nossa tertúlia, porque é alguém que procura o equilíbrio entre posições e discussões, às vezes acaloradas, na defesa de pontos de vista nem sempre concensuais. Não é por acaso que se disponibilizou para a função de colaborador permanente, que o faz manter atento ao que por aqui se passa, principalmente aos ataques de alguns "penetras" que tentam a todo o custo deixar o seu "veneno" a coberto do anonimato mais ou menos camuflado.

Mas hoje é o teu dia. Aqui não temos praxes nem cerimónias de iniciação, só a alegria de ver juntar-se a nós mais um camarada de armas, daqueles que como os que já cá estão, palmilhou aquele pequeno território de África, tão estranho, em todos os sentidos, a quem tinha deixado a sua família, o seu emprego e os seus estudos.

É já um lugar-comum a afirmação de que fomos fazer uma guerra que não queríamos e para a qual nada tínhamos contribuído até então. Muitas vidas em vão se perderam e muitas das mazelas que trouxemos só a terra as vai curando.

Fica o convite/pedido para o teu contributo no espólio do nosso Blogue, até porque terás, agora, mais um pouco de tempo disponível. Aceitamos fotos, acompanhadas das respectivas legendas, e textos das memórias dos tempos passados na Guiné.

Amanhã sairá a tua primeira colaboração, a homenagem que fizeste ao teu (nosso) camarada Fernando Pacheco dos Santos.

Deixo-te-te um abraço de boas-vindas em nome dos editores e da tertúlia, que somos nós todos afinal. Vais sentar-te no lugar 847, como todos, à boa sombra do nosso "poilão sagrado".

Ao teu dispor, o camarada e novo amigo
Carlos Vinhal

____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22426: Tabanca Grande (523): O cap art Otelo Saraiva de Caravalho, com quem trabalhei na Rep ACAP, QG/CCFAF, em 1971, ao tempo do major inf Ramalho Eanes e do ten cor inf Mário Lemos Pires (Ernestino Caniço)... Em sua memória,.é reservado o lugar nº 846, à sombra do nosso poilão

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21450: (In)citações (170): Comover-me-ei até ao último dos meus dias, cada vez que penso nos farrapos da farda do fur mil MA Ferreira, da CCAÇ 2616, dependurados nas árvores, no local da explosão da mina A/C armadilhada, na estrada Aldeia Formosa-Buba (Juvenal Danado, ex-fur mil sapador, CCS/BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, Nhala, Buba, 1969/71; vive em Setúbal)


Foto nº 1 > Rio Grande de Buba. o cais e a maré a encher (*)


Foto nº 2 > Rio Grande de Buba, Buba, 1974, a partida da LDG 105 Bombarda (que também navegava no Rio Geba)




Foto nº 3 > Rio Grande Buba, Buba, 1974 > A ingrata missão do meu Grupo: carregar do chão os víveres a granel para as viaturas. (**)


Algumas das melhores fotos do Rio Grande de Buba... Álbum do António Murta, ex-alf mil inf, Minas e Armadilhas, 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74).

Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Buba > Rio Grande de Buba > 1974



1. Comentário do nosso camarada Juvenal Danado, professor (que julgamos aposentado), a viver em Setúbal, onde colabora com alguma regularidade no jornal da região, "O Setubalense".

Tem escritos comentários no nosso blogue. O último foi a propósito de minas e armadilhas, no poste P21435 (***)



(... ) Fui furriel miliciano sapador de infantaria ( Pelotão de Sapadores / CCS/ BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, Nhala, Buba, 1969/71), especialidade tirada no CISMI de Tavira.

A abordagem do furriel à desmontagem da mina (***) também não parece nada correta, pelos motivos apontados: as mangas em baixo, o empecilho do cinturão com as cartucheiras, a posição do corpo, a pá (?!!!).

Desmontar uma mina (ainda por cima as anti-carro, frequentemente armadilhadas) nestes descuidos, era meio caminho andado para se ficar reduzido a picadinho.

Como ficou o desditoso furriel Ferreira, da companhia 2616 do meu batalhão (sediada em Buba), que ignorou os avisos, lá de longe, do alferes do pelotão: «Tem cuidado, Ferreira, que essa merda pode estar armadilhada!», quando, em dia de coluna, procurava desimpedir a estrada Aldeia-Buba de um destes engenhos.

Ao que contavam os assistentes à tragédia, o Ferreira (atirador com curso de minas e armadilhas tirado em Bragança) escavou à volta da mina com a faca de mato, como se deve fazer, enfiou a mão por baixo para ver se detetava algum fio, e hesitou. A coluna vinha a caminho e ele sentia-se pressionado, tinha de limpar o caminho.

Agarrou na mina uma primeira vez e fez menção de a levantar; fê-lo uma segunda vez e continuou a hesitar. O alferes voltou a avisá-lo. À terceira, contavam, terá gritado: «Foda-se, ou ela ou eu!». E puxou a mina para si.

A mina estava armadilhada. Diziam alguns que tiveram a sensação de vê-lo subir no ar e depois desfazer-se. O bocado maior que encontraram dele (um mocetão que pesaria à volta de 80kg) foi um pedaço da coluna vertebral, transportada para Buba dentro de uma caixa de ração de combate, e o que os pais receberiam dentro da urna que lhes enviaram.

Aquela mina e as outras anti-pessoal que o Ferreira desmontou naquele fatídico dia, eram para mim (era a minha vez), que estava em Bissau de regresso da licença na Metrópole, quando recebi a notícia.

Daí a uns dias, fui mandado a Buba, como comandante da coluna de reabastecimento. A certa altura dos 30 km que mediavam de Aldeia a Buba, a coluna parou. Preparei-me para a batalha, uma vez que não estávamos muito longe do carreiro de Uane, onde um ou dois bigrupos do PAIGC passavam constantemente. Não era isso. Era o pessoal a homenagear o Ferreira. Nas árvores por cima do local onde se dera a explosão, farrapos da farda do Ferreira, pendurados nos ramos, pareciam acenar-nos.

Comover-me-ei até ao último dos meus dias, cada vez que penso/falo nisto. Descansa em paz, Ferreira.

Juvenal José Cordeiro Danado (****)

2. Comentário do Juvenal Danado ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande (***)

Eu acho que faço parte da Tabanca Grande, desde que a descobri, caro Luís. Peço desculpa pelo atrevimento, mas não sabia que era necessário ser convidado.

Não sei se já o disse no pouco que por aqui comentei, mas este blogue presta um serviço inestimável a todos quantos passaram alguns dos melhores anos da sua mocidade na Guiné-Bissau, numa guerra que poderia ter sido evitada, evitando tanto sofrimento.

A Tabanca Grande é um cantinho onde nos podemos encontrar como num recanto confortável de um café, entre amigos, e partilhar as nossas experiências e mágoas. Grande trabalho, Luís. As minhas felicitações e os meus agradecimentos.

Um grande abraço, alargado a todos os companheiros, os que aqui escrevem e todos quantos passaram pela Guiné.

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, em nome da Tabanca Grande, pelos teus dois comentários que nos enriquecem (***)... O teu testemunho sobre a morte do furriel mil Ferreira, da CCAÇ 2616, e  a tua ida, a a seguir,  a Buba, numa coluna logística, é muito forte, Também ainda guardo imagens dessas, ao fim destes anos todos... Eu próprio caiu numa A/C com uma GMC carregada de pessoal...

De facto, tu de há muito que deverias estar sentado, à sombra do nosso poilão... Afinal, faltam apenas aquelas pequenas formalidades: um pedido explicito para integrar a Tabanca Grande, um endereço de email válido, duas fotos (uma atual e outra do antigamente) e uma curta apresentação do teu curriculo militar...

Pedi ao Hélder Sousa, teu vizinho, para te contactar e "apadrinhar" a tua entrada na Tabanca Grande, Tens o nº 820, à tua espera, se te despachares ainda hoje... 

Um alfabravo (ou um abracelo, abraço com cotovelo,  neste raio de tempo de calamidade).

Luís Graça

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de de 22 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14916: Memória dos lugares (309): O meu rio próximo, e de estimação, era o Rio Grande de Buba (2) (António Murta)

(**) Vd. poste de 20 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14903: Memória dos lugares (307): O meu rio próximo, e de estimação, era o Rio Grande de Buba (1) (António Murta)

(***)Vd. poste de 9 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21435: Fotos à procura de... uma legenda (126): O sapador só se engana três vezes: a primeira, a única e a última (António J. Pereira da Costa)

(****) Último poste da série > 21 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21380: (In)citações (169): Onde esteve a Cruz Vermelha Portuguesa durante a guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África ?

domingo, 29 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20788: Blogpoesia (669): Coluna de Aldeia Formosa para Buba (Fradique Morujão da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892)

1. Mensagem do nosso camarada Fradique Morujão (CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, 1969/71), com data de 26 de Março de 2019:

Caro Carlos vinhal 
Saudações amigas. 
Em anexo, envio um pequeno texto. Numa noite de insónia resolvi escrever uns gatafunhos, que espero tenham alguma aceitação. Sempre fui um pouco despassarado o que se compreende pelos cerca de sete anos de interregno.[1]

Atenciosamente 
fmorujão
____________


Caros camaradas

C - cuidado
O - organismo
V - viral
I - isolamento
D - definitivo

A minha intervenção tem a ver com o momento delicado e perigoso que o nosso País e o mundo atravessam. Com a ameaça de um inimigo invisível que investe porta a porta em que a logística consome enormes recursos sem êxitos aparentes.
Este exército, apesar de ser microscópico está apetrechado com biliões de soldados que tudo destroem. Entra de forma inopinada e ninguém dá por nada.
Todos os ex-combatentes com a experiência acumulada sabem que a luta é duplamente nefasta, porque sofremos baixas na nossa juventude e agora confrontamo-nos com as estatísticas que nos dão como alvo preferido.

Para expressar o meu modo de ver este imbróglio, vou usar a quadra:

Tive a tinhosa tinha
E a febre asiática,
A culpa não foi minha
Foi da sala de didática.

Agora estou assustado
Pode ser a minha vez,
Como lá diz o ditado
Não há duas sem três.

Vai andar tudo aos tiros
Com mortes colaterais,
“Raios partam” este vírus
Vai tudo prós hospitais.

Está ficar tudo em brasa
Desta guerra não me livro
Se tenho de ficar em casa,
Afinal, para que é que sirvo?

Apetece-me dizer em latim macarrónico.
ARRIUM PORRIUM, CATANORIUM

Quando das incursões que fizemos pelas matas africanas, éramos instruídos para mantermos as distâncias de segurança e não tocar em nada. É precisamente o que se pede, além de outros cuidados.
Este vírus politicamente incorreto, derrotou em poucos dias, embora de forma transitória mas eficaz, os afetos que o nosso preclaro PR promoveu durante quatro anos.
Dá que pensar!

Contra o vírus dos desafetos:
Quarentena de movimentos
Liberdade de pensamentos
Vamos nessa, o vírus está com pressa.

********************

Passemos agora à recordação da minha passagem pela Guiné:

Vou mais uma vez usar a quadra, porquê:

A quadra
É a única namorada
Que partilho com prazer,
Porque diz coisas simples
Na sua forma de dizer.
Quando ela me enlaça
Nos seus berços abraça
Todo o meu modo de ser.
O resto da vida passa
Vá-se lá saber!...


Coluna de Aldeia Formosa para Buba

A todos vós que estais
Em amena cavaqueira,
Aos ilustres comensais,
Uma pequena brincadeira.

Sou um pobre reformado
Que navega à deriva,
Quer morra, quer viva
Já me sinto conformado.

Nasci prós lados da serra,
Lugar de muita ilusão.
Fui mandado prá guerra
Para defender a nação.

Embarquei para a Guiné
Com destino a Bissau,
Viajei com muita fé,
Afinal era tudo mau.

Combati na juventude,
Sempre metido no perigo,
Não vi qualquer virtude
Em provocar o inimigo.

Metralhadoras e granadas
Eram os nossos brinquedos.
Havia aldeias queimadas,
Para afugentar nossos medos.

Presenciei vários perigos,
Sendo alguns fatais.
Para nós era um castigo
As minas antipessoais.

Muitas vezes acontecia
Um ficar c'a perna às postas,
O que a gente mais queria
Era levar os pés às costas.

Vi um tórax todo roto
O soldado não sofria
Embora estivesse morto
O coração ainda batia.

Uns diziam palavrões,
Pela má sorte dos seus,
Outros viam razões
Para rezar ao seu Deus.

Tive uma má experiência
Com mortos em combate,
Infligidos pela resistência
Onde é difícil o resgate.

Gente pobre com nobreza
Com escassez de cultura
Que fazem da esperteza
A sua principal armadura.

Fiz colunas para Buba
Por trilhos e bolanha.
Enfrentei muita chuva
Numa terra tão estranha.


Bolanha perto de NHALA


Para quê tanta guerra,
Para perder a colónia
E voltar à minha terra,
Com angústia e insónia.

Vivam agora o presente
Com muita suavidade
E que cada instante,
Seja bela eternidade.

Que a saúde vos acompanhe e a mim nunca me falte.
Abraço
fmorujão
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 13 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7776: Tabanca Grande (267): Fradique Augusto Morujão, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71)

Último poste da série de 29 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20787: Blogpoesia (668): "Mar encapelado e furioso", "Génios" e "Fragilidade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19256: Blogoterapia (290): Um combate algures na Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné >Cacheu > CCAÇ 3 > Cacheu > Barro (1968) > Os "jagudis" montando uma emboscada 
Foto: © A. Marques Lopes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1690


1. Em mensagem do dia 3 de Dezembro de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos este relato de um combate algures na Guiné, ocorrido sob o seu comando, ou não. Verdade para nós antigos combatentes, ficção para os mais novos que tiveram a sorte de crescer sem a ameaça de terem de participar na guerra.


UM COMBATE ALGURES NA GUINÉ

Francisco Baptista

O pelotão seguia pela estrada de terra batida, como já acontecera tantas vezes, para ir fazer segurança a uma coluna de reabastecimento. Nos últimos dias era frequente verem pegadas estranhas, possivelmente de guerrilheiros que atravessavam a estrada. Enfim teriam reactivado um carreiro na zona da companhia, que podia trazer complicações. Faziam sentir a sua existência em ataques frequentes de armas pesadas ao quartel mas nunca tinha havido um confronto directo, com armas ligeiras no mato, entre uns e outros.

O alferes seguia à frente dos militares brancos e à frente dele seguiam quatro soldados milícias africanos. De repente dá-se conta que o soldado milícia da frente recua e lança um olhar aterrorizado para trás. De imediato dispara uma rajada de G3 para a mata em frente e os soldados seguem-lhe o exemplo. Da mata respondem as costureirinhas e outras armas e durante alguns minutos o silêncio da floresta é substituído pela barulheira infernal da batalha. Atrás do alferes está um cabo armado com o lança-granadas aflito porque não consegue fazer fogo com a arma. Está aflito e medroso porque não consegue reagir para se defender e defender o grupo e manifesta isso repetidamente ao comandante que só lhe diz que se resguarde e que tenha calma. Com receio de que as munições se esgotassem, pela rapidez com que os homens disparavam manda moderar a intensidade do fogo e nesse entretanto olha para o lado e vê o soldado milícia mais próximo com o rosto pousado sobre a terra. Sem ter tempo para se condoer, a hora era de acção, somente pensou, este já "lerpou", sem pensar sequer se aquela bala lhe poderia ser destinada. O soldado africano da frente, o que tinha dado o alarme, de cara assustada, morreu também. Sente uma adrenalina furiosa que o empurra para a vingança, para um ajuste de contas com o inimigo pela perda desses dois homens.

Os mortos do nosso grupo, seja qual for a sua origem, cor ou religião deixam-nos a alma marcada com cicatrizes negras que jamais desaparecem.

O tiroteio terminou, a calma voltou à mata e à bolanha próxima, os macacos-cães calam-se e as árvores da floresta choram silenciosamente a perda das vidas de dois filhos da Guiné. Entre os combatentes do outro lado não soubemos se houve perdas Acabou por não se saber se os guerrilheiros se preparavam para aguardar a coluna e atacá-la, pôr minas na estrada, emboscar o pelotão ou simplesmente iam passar, hipótese mais plausível.

Porque a nossa missão ainda não terminara, fazer segurança à coluna auto, que vinha a caminho e porque a perseguição ao inimigo podia acarretar outros perigos e mortes, o alferes procura refrear o seu instinto guerreiro que não conhecia e o surpreende.

Foi neste troço de estrada retratado na foto, um pouco mais à frente ou um pouco mais atrás, que aconteceu este combate entre o meu pelotão e os guerrilheiros do PAIGC. Ficava situado na estrada entre Buba e Nhala, a poucos quilómetros de Buba, antes da Bolanha dos Passarinhos.

Foto: © Francisco Baptista

Contra os desmentidos do Estado Novo e posteriormente dalguma opinião pública, que a quis negar, porque não quis compreender o abandono desses territórios, a guerra existiu, com muitos feridos e mortos, na Guiné com muito barulho de armas ligeiras, pesadas com bombas potentes da artilharia dum lado e do outro e bombas de avião.

Nos dias seguintes o capitão diz ao alferes para nomear alguns militares do pelotão para serem louvados. Todos os homens reagiram com coragem e disciplina a essa situação de combate imprevista. O alferes que o antecedeu e que morreu num acidente ao pisar uma mina anti-pessoal , alguns meses depois de estarem na Guiné, sendo um jovem de acção e motivado para o combate, tanto em Portugal como na Guiné, tinha-lhes dado uma formação agressiva e guerreira.
Todos mereceriam um louvor mas como só alguns o podiam obter resolve nomear seis que ao longo dos meses, sob o seu comando lhe pareceram os melhores. Não indica o cabo cujo lança granadas se encravou que se irá queixar disso quando ele já nada pode fazer. Um louvor dar-lhe-ia muito jeito, já que pensava ir para a GNR ou para a PSP depois da tropa. Mais uma mágoa menor que não esquece, a juntar às outras.

É uma estória de guerra real ou fictícia porque os ex-combatentes só falam destas memórias em dias de convívio com outros camaradas ou em dias cinzentos com algum desconhecido ou um barman e podem descrevê-las com realismo ou fantasiar porque a sociedade civil nunca lhes deu muito crédito, como se fossem caçadores ou pescadores mentirosos.

Terá acontecido na área do batalhão ou da outra companhia independente onde estive ou algum camarada ma contou.

São factos que aconteciam por toda essa terra de água e florestas, martirizada pela guerra, de que ninguém se orgulhava e dos quais os protagonistas têm dificuldade em falar.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19145: Blogoterapia (289): Aquele toque a finados é uma coisa que me arrepia... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15763: Blogoterapia (275): Paisagens que dão tanta beleza à vida, abulia e esquecimento (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Fevereiro de 2016:


PAISAGENS QUE DÃO TANTA BELEZA À VIDA, ABULIA E ESQUECIMENTO

Para combater o excesso de peso, e a ferrugem dos músculos e articulações, males provocados pela idade e  pelos excessos alimentares, muitas vezes na companhia de amigos e camaradas, faço muitos passeios sozinho, em marcha forçada, no Parque da Cidade que fica perto da minha casa. Habituado desde muito jovem na minha aldeia, às longas caminhadas que me levavam a todos os sítios da sua área agrícola e florestal, ultimamente  comecei a sentir saudades desses espaços mais  amplos e diversificados, com outra lonjura dos caminhos do Parque, que consigo percorrer numa hora.

Pelo prazer das caminhadas, dos espaços amplos e das paisagens que entram pelo olhar e dão tanta beleza à nossa vida, recordo-me também dos anos da Guiné e das caminhadas que fiz por lá, com melhores pernas do que actualmente.

Porto - Vista do Parque da Cidade

Nos primeiros meses em Buba, fiz grandes caminhadas com o pelotão, que já mostrava alguns sinais de cansaço para acompanhar o periquito, que eu era, pois eles já tinham sete meses de mato.
Sem nunca sair para fora da área que estava atribuída à companhia eu achava que devia ter conhecimento do terreno, para maior segurança psicológica, pela utilidade que poderia ter nalguma emergência, por outro lado era também levado pela curiosidade em explorar as paisagens de floresta e bolanha que me rodeavam. Nesses  longos "passeios" tivemos a sorte de nunca nos cruzarmos com o inimigo, e confesso que como amante da vida ao ar livre e da natureza, foi das melhores experiências que tive na Guiné.

Problemas e azares, de que já falei, houve depois, nos últimos meses da comissão, para lá dos ataques mensais ao aquartelamento, que o Nino Vieira parecia fazer para cumprir calendário, que nos assustavam mas  nunca magoavam ninguém. A norte da bolanha dos Passarinhos, que tínhamos que cruzar na estrada de terra batida, que nos ligava a Nhala, para fazer protecção às frequentes colunas de reabastecimento, havia  uma enorme bolanha, que já não recordo se seria a sua continuação ou outra. Nesta grande área de bolanha só estive uma vez, com toda a companhia e terá sido das poucas vezes que o capitão saiu. Gostei muito de conhecer esse enorme descampado pouco arborizado e rodeado de floresta, talvez por alguma nostalgia da parte planáltica da minha aldeia, onde se cultivava o trigo e o centeio.
A nossa imaginação transporta para toda a parte as cópias das gentes e das paisagens onde nascemos e fomos criados e gostamos de as encontrar projectadas noutros ambientes. Fui algumas vezes na direcção de Fulacunda, que sendo bastante distante de Buba, parecia-me que havia entre as duas tabancas, muita terra de ninguém que poderia ser controlada pelo PAIGC. Fulacunda que talvez por ter um nome sonante e quase mágico e pela vizinhança confinante com Buba ainda que um pouco distante, sempre foi para mim um mistério a  despertar a minha curiosidade.

O José Teixeira, que fez tropa em Buba, antes de mim, e é um grande andarilho, que já voltou algumas vezes à Guiné, falou-me duma povoação nessa direcção, não muito longe de Buba, controlada pelo inimigo, segundo testemunho que recolheu junto de habitantes dela. Nunca soube ou não me apercebi da existência dessa tabanca. Saindo de Buba, próximo da pista de aviação, havia um troço de estrada abandonado, onde já crescia algum mato, que segundo parece não levava a parte nenhuma, que eu nunca percorri em toda a sua extensão até por ser um caminho muito exposto. Terá sido uma tentativa frustrada de abrir uma estrada, no tempo de companhias anteriores, na direcção de Aldeia Formosa.
Na direcção de Empada, a sudoeste, só me recordo de ter ido duas vezes com dois pelotões, numa espécie de patrulhamento sem outro objectivo definido, que não fosse observar se haveria vestígios da passagem ou actividade do inimigo, que por vezes nos atacava dessa zona, ainda perto do quartel, do outro lado do Rio Grande Buba.

Paisagem da Guiné - Pôr-do-sol no Pelundo

Depois de Buba, rumei para Mansabá, recomendado, por erro de casting, como bom combatente, como me chegou a dar a entender o Capitão Abreu, Comandante do COP, e para aborrecimento do capitão miliciano da companhia, que chegou uns dias depois de mim, Economista na vida civil e que tinha tanto jeito como eu para a vida militar.  Bom homem esse capitão, pois se ele fosse rigoroso na aplicação do RDM, eu provavelmente teria cumprido mais alguns meses de Guiné.
Mal recordo a actividade operacional. Lembro-me de fazermos uma operação, no sentido contrário à mata do Morés, não recordo qual o objectivo. Sei que andei muito tempo a pé por uma mata bastante densa e não me recordo porque motivo cheguei a andar de helicóptero, talvez para ver a paisagem.
Foi nessa ou noutra operação, que de manhã cedo a companhia estava toda formada na parada à minha espera, e o capitão danado pela minha demora, e eu a chegar  impassível e abstracto a olhar para ele.
Já escrevi algures no blogue que por muita pena minha nunca pude entrar na mata do Morés, por proibição conjunta do PAIGC e das autoridades militares, já que nessas operações somente eram utilizadas tropas especiais. Mas eu gostaria tanto de conhecer essa grande extensão de floresta, de preferência sem tiros nem bombas.

Pelo prazer que sempre tive em conhecer os campos e florestas da Guiné, se revelam as minhas origens camponesas. Se pudesse tinha dado a volta a toda a Guiné a pé.

Por causas várias que talvez não consiga analisar objectivamente, ou porque isso não me agrade agora, reconheço que nos meses passados em Mansabà, já estava um pouco "apanhado pelo clima" e o meu comportamento reflectiu bastante isso, confirmado recentemente pela minha irmã, mais próxima da minha idade, que há dias me falou do meu regresso a casa.

As nossas irmãs, essas jovens que desde cedo desenvolviam em relação a nós, uma mistura de sentimentos fraternais e maternais e alguma admiração e curiosidade pelas  nossas diferenças físicas e psicológicas.
As nossas irmãs, que nesses anos de aflição das famílias, acrescentavam tanto carinho e afectividade à que nos era dedicada pelos pais e que, segundo ela, eu tratei com tanta indiferença quando regressei. Nunca demos muito realce ao amor e sofrimento dessas jovens como se elas fossem obrigadas a isso por dever familiar. Tantos anos passaram e só agora esta irmã me fez esta "queixa", que surgiu somente, por acaso, no decorrer de uma conversa sobre o passado comum.

Outros factos que não sabia e outros que esqueci, por exemplo que a minha mãe chorava muito porque eu não dava notícias, e ela culpava as filhas por me escreverem pouco quando isso até não seria verdade. Note-se que a nossa mãe tinha a quarta classe mas bastante ocupada nas múltiplas tarefas que tinha que fazer no lar, cozinhar, costurar, chulear, tecer e outras, entre as quais ir na burra à horta, uma grande paixão para além dos filhos, encher as alforjes com as diferentes qualidades de hortaliça, atribuía a responsabilidade da escrita dos aerogramas às filhas.

Talvez esse estado de espírito, de que falei, em que se misturava abulia e esquecimento tenha varrido da minha memória muito do que se passou e vivi em Mansabá. Algumas recordações conservo e já aqui falei delas, sobretudo a cordialidade e camaradagem que senti da parte de todos.

Durante muitos anos, como muitos camaradas, voltei as costas à Guiné, quis esquecê-la e riscar da minha vida os dois anos que por lá passei. Há três anos, com a descoberta do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" e com a premência causada pelos dias intermináveis dos primeiros meses da reforma e o avançar da idade, comecei a sentir mais a necessidade de fazer um balanço da minha vida pelo que tentei explicar e integrar esses dois anos na corrente e sucessão dos outros de forma a reconciliar-me com a memória dos tempos de brasa da juventude.

Um abraço.
Francisco Baptista
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15737: Blogoterapia (274): Portas estreitas da vida onde nem sempre se consegue passar (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto, CART 3493, Mansambo, Fá Mandinga, Bissau, 1972/74)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15325: Inquérito "on line" (14): Spínola sendo muito popular entre a tropa em geral, era impiedoso perante chefes militares seus subordinados que ousassem discordar dele e que não demonstrassem submissão perante o Chefe (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 30 de Outubro de 2015, dando a sua opinião sobre a incontornável figura que foi o General Spínola:

O General Spínola foi sempre o Com-Chefe nos dois anos em que estive na Guiné. Confesso que não gostava do estilo emproado dele, de monóculo e bengalim, não sei se copiado dum antigo general inglês ou alemão.

Sobre as suas capacidades de comandante militar, não se pode negar que não desse apoio aos soldados com as suas palavras e a sua presença nas visitas frequentes aos quartéis espalhados pelo território ou mesmo às tropas em algumas operações no mato.

Uma guerra de guerrilha, a história recente do século XX, têm-nos ensinado que não se consegue vencer militarmente. Só se poderá vencer se forem criadas condições sociais e políticas que possam retirar argumentos aos defensores dessa via armada e, acrescento eu, às potencias que apoiam essa solução. Sobre a condução da guerra, do que vi e ouvi, não achei que fosse um grande estratega. A grande operação "Mar Verde" realizada sob o seu comando, planeada e comandada pessoalmente pelo Comandante Alpoim Calvão, já muito debatida no blogue, foi um enorme fiasco. Dos vários objectivos militares e políticos somente se conseguiu realizar com êxito, a libertação dos nossos camaradas presos em Conakry. Já se falou muito nela, havendo opiniões diversas e nem sempre coincidentes. A minha opinião baseia-se no testemunho que ouvi ao Tenente dos Fuzileiros Lucas, natural de Coimbra, infelizmente já falecido.
Depois dessa operação o destacamento de fuzileiros africanos que ele enquadrava, regressou a Buba, donde tinha saído, talvez um mês ou dois antes. O Lucas, um grande camarada, sempre alegre e bem disposto, o maior cómico do quartel, veio triste, cabisbaixo e horrorizado com cenas de saque e selvajaria que presenciou. Já li no blogue descrições bastante pormenorizadas que se assemelhavam muito à descrição feita por ele, pelo que me abstenho de a reproduzir.

Tenho também presente uma grande operação, planeada em Bissau, como todas as grandes operações, realizada perto de Mansabá, que duas companhias de comandos africanos fizeram largadas de helis no Morés, depois da aviação e da artilharia terem bombardeado dois dias antes a zona. A aviação com todos os aviões de guerra disponíveis e a artilharia com obuses de longo alcance transportados para o destacamento de Cutia . Após esse bombardeamento intenso, ao terceiro dia, manhã cedo, foram largadas de helis duas companhias de comandos africanos. Um major, que comandava o COP 6, em Mansabá, no rescaldo da operação foi lá de helicóptero e disse-me, no regresso ao quartel, que não viu guerrilheiros e disse-me ainda que não gostou do que viu. Não lhe fiz perguntas pois pareceu-me entender o que ele disse. Pedimos cada um o seu whisky e a conversa ficou por aí.

 General Spínola

A política de Spínola em relação à população "Por uma Guiné melhor" foi inteligente, mas nada tem de original já que os manuais de contra-guerrilha, há muito tempo, ensinavam isso. Terá agradado a alguns naturais da Guiné mas não a tantos que conseguisse retirar o apoio popular suficiente que a guerrilha precisava para prosseguir o seu esforço de guerra. Também não sei se o Caco Baldé conseguia agradar à população controlada pelo inimigo. Sendo muito popular entre a tropa em geral, era impiedoso perante chefes militares seus subordinados que ousassem discordar dele e que não demonstrassem submissão perante o Chefe. Já se falou aqui do caso do Tenente-Coronel Agostinho Ferreira, um homem recto, vertical, valente e sem medo de acompanhar tropas no mato, que foi Comandante do BCAÇ 2898, a que pertenci, depois de, por castigo, lhe ter sido retirado o comando doutro batalhão. Como o caso deste tenente-coronel houve outros com ou sem motivos justificáveis.

Spínola na Guiné tinha uma corte de fiéis que o adulava e era sobretudo a esses que ele apreciava. Sendo muito popular entre os mais humildes, isto é a população indígena e os soldados, penso que era uma atitude que sendo humana seria também bastante política. O General terá pensado no poder e com o livro "Portugal e o Futuro" vai inspirar o 25 de Abril e procurar abrir espaço para impor o seu ideário político ao país e que em relação às colónias, todos o sabem, preconizava não a independência, mas uma autonomia gradual. A ideia não seria má, só me parece que a guerrilha e muitos países que os apoiavam, alguns descaradamente e outros pela calada, já não estavam para esperar mais. Era uma experiência que a marcha da história já não consentia.

O levantamento das Caldas da Rainha planeado pelos oficiais spinolistas, provavelmente os mesmos que no Quartel General em Bissau planeavam as operações, e rapidamente abortado pelas forças do regime, foi o princípio do fim do General. Tal como a operação "Mar Verde", foi uma operação falhada. Não posso deixar de ressalvar que nessa operação se conseguiu um grande objectivo, o único, a libertação dos nossos camaradas presos.

Os operacionais que fizeram o 25 de Abril deram-lhe a Presidência da República mas não lhe garantiram todo o poder que ele ambicionava. Nesse tempo o país vivia agitado por uma democracia nascente em que os partidos, em guerra verbal, procuravam atrair ou manipular os cidadãos a apoiarem as suas teses e agitavam nas ruas, sobretudo os de esquerda, multidões ruidosas que condicionavam os governos da nação.

Spínola, com um projecto de poder muito pessoal, face à confusão institucionalizada, faz um apelo dramático ao "bom povo português" que não encontra o eco que esperava, e porque a maioria dos militares também não o apoiavam, retira-se para não mais voltar à ribalta da política.
Voluntarioso tal como o General Humberto Delgado, décadas atrás, ainda procura no estrangeiro congregar forças políticas e militares, mas mesmo, o bom povo português , em que ele tinha confiado, já tinha deixado de acreditar nele. A ser o Presidente da nação que ele ambicionava, eu compará-lo-ia ao Major Sidónio Pais por um certo pendor autoritário e por alguma demagogia popular (bom povo português!) . Dada a diferença de idades entre um e o outro, faltou-lhe o élan e o carisma entusiástico da juventude do Major Sidónio Pais ou até do General Humberto Delgado.

Este texto, que procura corresponder a uma ideia lançada pelo grande camarada Luís Graça, escrevi-o também para "calar" dois amigos nossos, o José Dinis, mais conhecido por JD, e o Carlos Vinhal, quando nos encontrámos há cerca de quinze dias, na companhia dum primo do J.D. e da esposa, ambos muito simpáticos, num café em Leça da Palmeira, não para resolver a situação complicada do país, mas para beber umas águas e cavaquear um pouco.

Um abraço a todos.
Francisco Baptista
____________

 Nota do editor

 Último poste da série de 30 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15305: Inquérito "on line" (13): Os três Comandantes da Guiné (Mário Vitorino Gaspar)

domingo, 25 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15289: Meu pai, meu velho, meu camarada (47): A minha mãe terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 21 de Outubro de 2015:

No quarto dos meus pais, lembro-me desde criança, da fotografia deste jovem soldado. A minha mãe por não ter outra fotografia dos bons tempos de namorados, em que ambos trocavam olhares com promessas de beijos e palavras cheias de significado e de futuro, tirou esta fotografia da caderneta militar deste soldado garboso e colocou-a num lugar de destaque no quarto do casal.

Nesses tempos antigos do século XX, até à década de cinquenta, em que todos os militares tinham direito a uma farda número um, com dólman e quepe, semelhante aos dos oficiais superiores, em lugar do quico e do blusão verde dos nossos tempos, a minha mãe, costureira e esteta amadora, terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância que já lhe reconhecia, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador.

Emídio Baptista, meu pai

A fotografia dos últimos trinta anos ou talvez mais, já não será a original, pois a minha irmã mais nova, que sempre gostou de recordações da família, mandou fazer uma cópia e guardou para si uma delas.

À minha mãe, esse retrato de militar, devia trazer à memória recordações gratas da sua juventude e do seu namorado, tão discreto mas que sabia tão bem dizer-lhe as palavras apropriadas, que acompanhadas por um sorriso afável, lhe adoçavam os dias, a faziam sonhar e lhe prometiam um futuro radiante.

Apesar de todas as contrariedades e dissabores próprios do casamento, a minha mãe continuou a confiar para sempre nesse homem, que ela conheceu menino, adolescente e jovem.

Ele morava tão perto da sua casa, a menos de 100 metros. Aos 19 anos, por morte do pai dele, por ser o mais velho de 4 irmãos, teve que tomar conta da casa de lavoura e de dar todo o apoio possível à sua mãe viúva. Nesses anos e em anos anteriores teve tempo e oportunidade de avaliar esse vizinho, da idade dela, que passava à sua porta com as vacas e vitelos, com o carro puxado pelas vacas, vazio, para trazer cortiça, trigo, ou lenha, ou outros produtos agrícolas, ou com as charruas e os arados para lavrar as hortas, as oliveiras ou os campos de trigo e centeio. Muitas vezes se terão cumprimentado conforme os usos e costumes da terra: Bom dia Maria! Bom dia Emídio! E pela urgência das lides quotidianas ou pela timidez de um ou do outro, a troca de palavras terá ficado por aí.

Afinal, apesar do silêncio, da reserva e da dureza da vida após o casamento, o seu homem não era pior do que todos, mesmo irmãos ou cunhados. O seu homem era trabalhador e responsável e nunca faltaria com o indispensável às necessidades da família que ia aumentando ano após ano. Nessa sociedade patriarcal todos tinham essa máscara ou marca de rudeza, que tinham herdado dos pais e avós que lhe dava autoridade, até demasiada, mas que lhe iria também exigir muitas responsabilidades. O sustento da mulher de dos filhos ficaria para sempre a seu cargo, bem como todos os trabalhos agrícolas. A mulher teria o encargo de criar os filhos e de ajudar em alguns trabalhos agrícolas menores, se possível, como por exemplo alguma ajuda no tratamento da horta.

A minha mãe, uma mulher inteligente, acreditava na escolha da sua vida, pelo conhecimento e enamoramento que terá crescido dentro dela desde criança, ao longo dos anos, pela forma gentil com lhe terá dito que gostava dela e pelo seu sorriso simpático de garoto brincalhão ou trocista. Na fotografia desse soldado, a melhor representação do seu amor juvenil, que imaginou para a vida inteira, a minha mãe apostou todo o seu projecto de vida.

Apesar dos seus silêncios, do seu feitio reservado que não lhe conhecia bem dos tempos de namorado, os filhos iam nascendo para alegria dela, cada qual o mais belo (os filhos são sempre tão lindos), para compensar desgostos passageiros. Ao seu marido autoritário ela sabia que o sabia vergar e moldar aos seus gostos quando fosse necessário. Recordo-me bem quando plantávamos a horta, com feijões, tomates, cebolas, batatas, pepinos, melões, etc., as guerras que a minha mãe tinha com o meu pai, por ele não lhe querer garantir um bom lote de terreno para plantar as suas flores: os crisântemos, as sécias e as zínias. A nossa mãe ganhava sempre.

Quando os filhos começaram a crescer, depois de fazerem a escola primária, a minha mãe lutou como uma leoa para que a todos fosse garantida toda a continuação da educação escolar possível.

O nosso pai já a pensar que com a ajuda dos quatro filhos varões podia aumentar bastante a riqueza da família teve que se curvar perante as exigências da mulher, que não sendo autoritária, se sabia impor em defesa das suas flores e dos seus filhos, os bens que mais amava.

A vida deste militar, garboso e aprumado, com o mesmo porte que conservaria para o resto da sua vida civil, continua a ser para mim um enigma, já que ele nunca falava do seu passado, civil ou militar, nem das suas recordações da meninice ou da juventude. Sei somente algumas coisas que a minha mãe ou outros contaram.

Consta-se que era da arma de Cavalaria e que terá tido uma repreensão por um dia ter vergastado um cavalo mais rebelde. Terá passado por Mafra em 1939, por onde eu passei 30 anos mais tarde. Sei que escrevia cartas muito meigas à namorada que a minha irmã mais nova, já depois da sua morte, morreu cedo, aos 59 nos, encontrou numa arca de madeira. no meio de lençóis de linho.

Cartas que tinham sempre no cabeçalho duas palavras: Minha Maria. A minha irmã, sempre a mais nova, teve tempo de ler duas cartas porque entretanto foi encontrada pela nossa mãe, nesse delito de inconfidência, as cartas, com os segredos desses namorados, terão sido queimadas ou bem escondidas, o que se sabe é que não mais foram encontradas.

Esta é a minha homenagem singela, que se me permitem os meus camaradas, presto a estes dois guerreiros que lutaram até ao limite das suas forças, pelo futuro dos filhos, e que a todos deixaram uma herança tão grande em valores humanos: honra, honestidade verticalidade, companheirismo, dedicação e solidariedade .

Um abraço.
Francisco Baptista
____________

OBS: 
- Foto editada por CV
- Título do poste da responsabilidade do editor 
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14648: Meu pai, meu velho, meu camarada (46): O meu avô, cruz de guerra de 1ª classe, esteve na I Grande Grande, nas margens do rio Rovuma, norte de Moçambique.... Quando regressou, trouxe com ele um "filho da guerra", que seria mais tarde o meu pai, que eu sempre adorei e adoro (Jaime Machado, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70; membro do Lions Clube Lusofonia)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15219: Notas de leitura (764): "O Quarteto de Alexandria", escrito por Lawrence Durrell, edição D. Quixote 2012 (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 4 de Outubro de 2015:

O tédio dos dias longos da reforma, que para muitos de nós se pode assemelhar a uma longa espera, de braços cruzados, dum fim inevitável que a todos nos aguarda, na sucessão dos dias e na curva dos anos, essa tristeza de horas vazias, que se pode transformar numa depressão melancólica e ligeira ou até numa depressão mais aguda, segundo os especialistas, pode ser combatida por várias formas.

Uma boa forma de o combater, aconselham eles, são as viagens. Viagens que até podem não ser muito longínquas mas que representam sempre, para quem as faz, uma mudança de rotina, uma mudança do cenário quotidiano, em que o espírito desperta e se reanima por estímulos novos, que podem ser cidades com outras ruas avenidas, pontes, rios, monumentos, outras gentes e outras paisagens.

Dado que ninguém pode andar sempre em viagem e sobretudo os reformados portugueses, a toda a hora assaltados pelos rapazes da política de mãos dadas com os banqueiros, temos que encontrar outras alternativas para nos ocuparmos nos longos meses que ainda sobram depois das viagens possíveis.

Alternativas possíveis há muitas: tratar dos netos, plantar uma horta, escrever um livro, ajudar a melhorar a vida dos presos, dos doentes, dos sem-abrigo, dos refugiados. Estas e outras actividades são uma boa terapia para as nossas horas de enfado e solidão.

Para os que preferem o aconchego do lar, podem sempre navegar na internete, o que se pode tornar um pouco cansativo depois de algumas breves horas. Navegar na internete ou ver televisão duma forma passiva, pode tornar-se pouco estimulante na medida em que o nosso trabalho cerebral é diminuto.

Para esses recomendo uma leitura de um livro ao seu gosto. Há tantos e tão variados; sobre saúde, psicologia, filosofia. sociologia, política, história, poesia, romances para todos os gostos, policiais, sentimentais, históricos, de viagens.

Nos livros, o nosso espírito encontra o alimento essencial para rejuvenescer, e todo o nosso ser viaja com eles pelos domínios do conhecimento e pela arte literária, essa arte onde as palavras nas suas diversas combinações fonéticas, sintácticas e figuras de estilo nos embriagam, pelos quadros de beleza que o escritor vai compondo.

Gostava de dormir, sobre ele, uma noite calma e feliz e que o meu cérebro conseguisse absorver toda a arte narrativa e literária deste livro denso e imenso, "O Quarteto de Alexandria" escrito por Lawrence Durrell.

Sem ser crítico literário, nem pretender ter conhecimentos e qualidades para tal, somente me atrevo a falar deste livro pela surpresa e espanto que senti quando o descobri e comecei a ler. Foi a segunda vez que eu repeti a leitura dum livro. A primeira vez li-o um pouco apressadamente, dei-me conta da sua beleza, mas não o li pausadamente para puder apreciar todos os seus contornos, pensamentos, quadros humanos e naturais. Procuro entendê-lo melhor nesta segunda leitura.

Este livro é uma sinfonia de melodias, de ritmos de cor, de palavras que nas variadas combinações que formam entre si adquirem outra vida, outro colorido. Este livro sente-se, vê-se, ouve-se, este livro pode declamar-se como um poema sem rima. Nas suas novecentas páginas é sólido como um tijolo e talvez mais perigoso como arma de arremesso. É um grande livro, para durar enquanto os homens lerem livros, um dos maiores romances do século XX.

O pano de fundo do romance é a cidade de Alexandria, essa cidade mítica, cultural, monumental, que o general grego Alexandre o Grande construiu à beira do Mediterrâneo, no cruzamento das antigas civilizações, egípcia, grega, romana, judaica e outras levantinas. Durante séculos, praticamente até à nossa era, Alexandria tornou-se um pólo de atracção de sonhadores e artistas da Europa e do Mundo.

Ao longo dos quatro livros que compõem o quarteto, o narrador vai falando da cidade, ruas e bairros, os habitantes, árabes, judeus, gregos e europeus, porto de mar, lago Mareotis, Mar Mediterrâneo, a cidade transforma-se também numa personagem importante da obra.

Nesse cruzamento de povos e de culturas, das mais avançadas de três continentes, os viajantes parecem procurar o esplendor antigo da cidade:
Quando o Farol de Alexandria iluminava o mar Medirerrâneo e assombrava pela sua grandeza e monumentalidade.
Quando a Biblioteca de Alexandria pela sua beleza e pelos seus muitos milhares de livros convidava todos os intelectuais, sábios, filósofos e outros amantes da sabedoria a fazer-lhe uma visita demorada.

Farol de Alexandria, construído por volta de 280 a.C. pelo arquitecto grego Sóstrato de Cnido
Foto com a devida vénia ao site por acaso

O trama do quarteto gira à volta das quatro personagens que dão nome a cada livro, tendo um lugar de destaque Justine, casada com Nessim, que desperta amizades e paixões eróticas destes e doutros protagonistas a que ela por vezes corresponde. Justine pela atração que provoca, pela sua sabedoria religiosa da Cabala e filosófica, pelas línguas que domina fluentemente faz ainda lembrar Cleópatra aquela alexandrina famosa do inicio da nossa era.

Duas mulheres muito belas e muito cultas mas bastante diferentes, Cleópatra foi uma rainha egípcia por sangue, da dinastia dos Ptolomeus, uma mulher ambiciosa e que pelo poder aceitou casar-se com os irmãos, como era hábito nessa e noutras dinastias egípcias e pelo poder rejeitou essas ligações e tornou-se amante ou mulher de dois generais e cônsules romanos. Justine é uma judia que teve uma vida difícil antes de casar com Nessim, um banqueiro egípcio de religião cristã copta, com quem tem também um grande entendimento filosófico, cuja ambição é conhecer com a ajuda dos outros o conhecimento necessário para conseguir o seu equilíbrio interior através duma teoria religiosa e filosófica satisfatória. Uma mulher frágil que atrai os outros pela sua beleza e pela força espiritual que parece emanar dela.

Nesse círculo de intelectuais e afins, respira-se uma atmosfera libertária no campo dos costumes e das ideias, são aceites tanto os místicos como os agnósticos ou ateus, os homossexuais ou os outros, é conhecido, sob algum sigilo, o caso de incesto de um escritor, infidelidade conjugal, sem escândalo, não só o de Justine..

Abro o livro à toa e transcrevo uma pequena passagem:

"Este gesto recordou-me aquela mulher grávida que me abordou certa noite e que, como eu procurasse afastar-me, me pegou na mão comprimindo-a contra o enorme ventre ou simplesmente talvez para dar uma ideia antecipada do prazer que me oferecia (ou simplesmente para exprimir a que ponto estava necessitada de dinheiro".

Confesso que esta passagem recolhida ao acaso até nem é das mais expressivas. Transcrevi-a pelo acaso e pela verosimilhança que lhe encontrei com uma passagem da minha vida, quando embarcado no navio Alfredo da Silva, a caminho da Guiné, passamos um dia na cidade da Praia em Cabo Verde.
O Alfredo da Silva era um navio, de porte médio, de carga e passageiros, propriedade da antiga CUF que fazia regularmente transportes para Cabo Verde e a Guiné. Militares íamos muito poucos, talvez uma dúzia, dos quais três eram topógrafos que ficaram em Cabo Verde, os restantes seguimos viagem para a Guiné, mobilizados em rendição individual.

À noite fomos a um baile popular, onde ao som dos ritmos africanos e cabo-verdianos toda a gente dançava, homens e mulheres, sobretudo mulheres velhas e novas. Quando saímos, na rua fui abordado por uma jovem grávida, já com uma grande barriga que me pediu com muita insistência para ir com ela. Nos meus 21 anos, senti-me embaraçado pela sua grande barriga, pela sua insistência com modos tão doces, e pelos seus olhos belos e tão meigos que, pensei para mim, traduziam mais a necessidade de dinheiro que lhe faltava, do que a simpatia ou encanto que poderia ter por mim.
E ela teimava em me agarrar a mão e o braço como um naufrago agarrado a uma tábua de salvação.
Por uma mistura de sentimentos onde havia além do embaraço de que falei, alguma compaixão e alguma ternura, tirei 50 pesos da carteira dei-lhos e despedi-me dela.

Cidade da Praia
Com a devida vénia a polemikos

Antes tínhamos ido comer lagostas a um café, mal descongeladas, que me terão provocado uma digestão difícil, ou isso, ou o mar agitado, sei que tive tantas náuseas, vómitos e mal-estar que o resto da viagem entre Cabo Verde e a Guiné passei-o deitado no quarto, tendo recebido a visita do médico de bordo, que me receitou duas injecções.

Já restabelecido desembarquei em Bissau e senti aquele sufoco de calor tropical que já tinha experimentado nas ilhas de Cabo Verde, já que o navio tinha feito escala em duas, para deixar mercadorias e emigrantes cabo-verdianos, que regressavam talvez de férias à terra, vindos do norte da Europa, sobretudo da Bélgica e Holanda, se bem me lembro.

Fujo do tema do grande livro que descobri e propago junto dos meus amigos e perco-me nessa viagem épica que todos fizemos com desembarque em Bissau. Enfim todos nós, guineenses por dois anos, enviados quase como prisioneiros, a combater, para essa terra de homens grandes, mulheres grandes e bajudas, voltámos vencidos pela afabilidade e simpatia dos nossos irmãos africanos e com essa mágoa sem remédio dos nossos camaradas que por lá caíram.

Só os outros, os que não experimentaram os nossos gostos e desgostos, é que não compreendem a nossa necessidade em evocarmos essa terra e esses tempos.

Um abraço.
Francisco Baptista
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15203: Notas de leitura (763): “Memória e Império, Comemorações em Portugal (1880-1960)”, por Maria Isabel João, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15015: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (21): Esta Europa vai definhar por anemia, implosão e autofagia (Francisco Baptista)

1. No seu bate-estradas do dia 9 de Agosto de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da nossa velha Europa.

A minha mulher pediu-me para fazer algumas compras num super-mercado próximo. Antes de ir lá decidi passar pela minha amiga Lurdinhas, dona da tasca Badalhoca, a comprar dois tocos de presunto que podem ser bons para cozer e descarnar o bom presunto que têm, como para comer cru. O presunto junto do osso é o mais seco e o melhor.

Depois duma conversa amigável e apimentada, pois a Lurdinhas conforme o tom da conversa tanto pode chamar-me meu grande amigo como outros nomes que na gíria do Porto antigo e popular serão aceitáveis ou não, para isso tem que se pedir aos clientes que tenham olhos e ouvidos sensíveis, pois para além da audição conta muito expressão.

Depois fui ao banco onde uma funcionária simpática me disse que as minhas fracas poupanças depois de terem acabado o depósito a prazo só poderiam ter um juro de 1 por cento ao ano. Chegámos a tal ponto que para termos bancos como os países ricos, vamos ter que pagar a essa corja de ladrões, banqueiros, políticos e associados, que vão à falência mas quem fica na miséria somos nós.

Saí do banco, pouco confortado, mas sem vontade de descarregar a minha raiva sobre uma simples funcionária, a quem não podia imputar responsabilidades e para mais uma senhora, entre os 30 e 40 anos tão simpática e que nem será muito bem paga.

Depois fui ao supermercado fazer as compras. Dirigi-me a uma caixa. À minha frente estava somente uma cliente com bastante compras, na caixa ao lado estava uma jovem senhora africana, de aspecto urbano e delicado, com cerca de vinte cinco anos, que empurrava uma bebé num carrinho. O jovem de serviço da caixa contabilizou os artigos da senhora que somavam 24 euros e pouco. A cliente meteu um cartão multibanco que me pareceu tanto a mim como ao jovem da caixa ela não sabia utilizar muito bem. Depois de algumas tentativas e ensinamentos o "caixa" chegou à conclusão que o cartão não teria dinheiro de saldo. A jovem senhora em face disto, puxou da carteira e deu vinte euros, procurou outros trocos que não encontrou. Como tal começou a retirar artigos, talvez os menos necessários, o primeiro não recordo, sei que o segundo era massa italiana, o terceiro que o rapaz da caixa ia retirar-lhe do saco, não sei se eram batatas, ela não deixou, protege-o até como se do pão da vida se tratasse.

Logo atrás dela estavam três cavalheiros, com cerca de sessenta e tal, setenta anos. O que estava mais próximo começou a olhar para a senhora e para a menina no carrinho, com algum mal-estar patente na sua expressão facial. De repente vi-o tirar uma nota de dez euros da carteira que deu à senhora e dizer ao caixa: Por favor volte a meter tudo no saco. A jovem, muito agradecida, pagou e devolveu-lhe os 5 euros e tal do troco, apesar da insistência dele para que que ficasse com eles.

A seguir reparei que este homem depois de fazer essa dádiva, como quem se liberta de um pesadelo, ficou mais calmo. Reparando melhor eu reconheci o homem como sendo um camarada, ex-furriel que me disse uma tarde escura, sem sol, sem pássaros, com chuva, que tinha estado no norte de Moçambique. Era o camarada que encontrei, no Inverno, à saída de uma churrasqueira onde fui lanchar com três amigos para alegrar um pouco esse dia. Esse camarada com a pele já bastante curtida e engelhada pelo vento, pelo tabaco ou pelas agruras da vida, que me pareceu mais velho do que os anos que contava. Era o mesmo camarada que me tinha dito com tristeza que tinha conhecido e sentido a guerra em Moçambique, enquanto fumava um cigarro à porta do restaurante.

Muitas vezes, aos que por lá andámos, com pouca ou muita guerra, sobra-nos guerra para toda a vida. Uns digerem melhor do que outros as situações fáceis ou difíceis. Uns falam muito dela, outros não dizem nada, outros falam dela mas evitam falar das situações mais dolorosas. Alguns procuram guiar-se através duma memória muitos anos adormecida para trazer à tona essa realidade esquecida e só recordada em pesadelos.

Recordo-me dum cadete em Mafra que na carreira de tiro quando chegava a vez dele não conseguia disparar e punha-se a chorar, porque dizia ele que no alvo via um homem. Não é difícil entendê-lo, não há qualquer premonição nessa visão, afinal nas guerras os homens matam-se uns aos outros. Em Mafra como em tantos quartéis de Portugal estávamos a ser treinados para matar. Muitos perderam a guerra antes de chegarem à Guiné, uns por não acreditarem na vitória, outros por não acreditarem nas razões da luta. Entre eles estavam sobretudo oficiais e sargentos que por serem mais instruídos, tinham mais capacidade e informação, para pôr em dúvida a politica ultramarina do governo da ditadura.

Em Buba dei-me conta que a maioria dos militares do meu pelotão não punham em causa a defesa das colónias e a politica ultramarina do governo. Nesse tempo o atraso politico cultural e educacional em sentido lato era muito grande. Não minto se disser que pelo menos metade dos soldados do meu pelotão fizeram a quarta classe em Buba. Poucas fotografias trouxe da Guiné, na aldeia do interior norte do país onde me criei, os meninos e garotos como eu não tinham direito a fotografias, não havia máquinas nem fotógrafos, já na juventude não lhe senti a falta, não faziam parte da minha cultura que se alimentava mais da palavra escrita, a literatura sempre me fez sentir uma grande emoção estética. Só mais tarde me apercebi que a fotografia pode contar grandes histórias humanas, sociais e naturais.

Eis o meu pelotão da CCac 2616, desarmado, confesso que com armas se sabiam bater como leões, a opção da fotografia sem armas terá sido minha. 

Esta fotografia foi-me amavelmente remetida pelo António Granja, soldado do pelotão. Tenho pena de não ter uma foto semelhante do pelotão da CArt 2732, de Mansabá, onde estive sete meses. Tanto num pelotão como noutro conheci homens solidários e corajosos, a maioria deles, quase todos. Os nossos soldados eram os descendentes iletrados dos nossos marinheiros dos séculos quinze e dezasseis, que guardavam ainda a autenticidade e a bravura dos antigos lusitanos. Nas suas veias corria ainda o sangue duma Pátria milenar e vibravam ainda com a glória duma bandeira desfraldada orgulhosamente por todos os mares e continentes da Terra. A ditadura que lhes garantiu uma existência esfomeada deu-lhes também uma educação escassa, perseverando-os de ambições materiais para lá da alimentação necessária à vida. No seu espírito, imune às diferentes ideologias dum século em conflito, desprovido de ideais, cultivou com êxito o patriotismo e os valores da tradição gloriosa da Pátria.

Por vezes penso que atendendo ao espírito de sacrifício e à coragem dos nossos soldados, se eles tivessem comandantes que os motivassem e os soubessem orientar na arte da guerra, venderiam bem cara a derrota ou o abandono dos territórios ultramarinos, que dadas as circunstâncias adversas da politica internacional, com a conjugação do bloco comunista e capitalista, apostados na descolonização, tornaria muito difícil ou impossível a vitória.

Quando saí do super mercado, vi que a jovem africana tinha outra filha, que tinha ficado a brincar fora, com 5 ou 6 anos e a quem falou em francês. Deduzi, não sei se apressadamente, que seriam naturais do Senegal, da Guiné Conakri ou de outro país francófono africano. A sociedade de consumo é uma sociedade canibal já que tem sempre que andar à procura de recursos e matérias primas que irão empobrecer e matar povos menos desenvolvidos politica, social e tecnologicamente. Quando se fala nos pedidos de perdão dos grandes erros do passado, da Inquisição por parte da Igreja, de alguns povos pelos morticínios que fizeram noutros, era já tempo da Europa inteira indemnizar toda a África pela exploração dos recursos humanos e naturais que fez nos últimos séculos e que continua a fazer através de muitos políticos africanos corruptos, que tal como tantos ocidentais, somente vêem o bem deles, esquecendo o bem comum.

Li ontem um poste, P14985, muito elucidativo, de um nosso camarada que lutou em África, trabalhou em África, percorreu parte dela. Passo a citar um parágrafo dele: "A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta. António Rosinha".

A velha Europa que se cuide pois os africanos já provaram tanto no Novo Mundo, como no Mundo Antigo que sabem resistir a todas as guerras e calamidades. Pelos seus conhecimentos, pelas suas vivências, pela sua seriedade, pela sua lucidez, o António Rosinha para mim é, o africanista, o analista político deste blogue, que melhor sabe interpretar a desgraça desses pobres do mundo que vindos do sul tentam atravessar o mar Mediterrâneo, onde muitos encontram a sepultura, quando tentam entrar na Europa, essa terra de promessas e ilusões. Por todas as regiões da Terra para onde se deslocaram ou para onde foram vendidos como escravos, os africanos estão em crescimento. Não se deixaram abater por doenças ou por guerras e morticínios como milhões de índios da América do Sul e do Norte. Os africanos continuam em expansão e os povos guardam por séculos a memória do bem ou do mal que lhes fizerem.

O meu pensamento dispara e divaga pela história antiga e pelo futuro que não é história e a mim parece-me que a Europa será submergida por vagas e vagas de povos africanos e orientais. Os povos demograficamente mais produtivos e menos decadentes, tomarão conta da Europa, tal como os Vândalos, Suevos, Visigodos, Francos, os Iberos e Celtiberos, os Germânicos e outros, tomaram conta do Império Romano do Ocidente no século quinto da nossa era. A Europa de tantas guerras, entre dois povos ou entre várias povos em aliança, uns contra outros, no último milénio foram guerras sem fim, guerras intermináveis, até houve uma guerra dos 100 anos, guerras cruéis e execráveis, piores em selvajaria e desumanidade do que as piores guerras de qualquer continente. Esta Europa que já não pode fazer a guerra, (as bombas nucleares só intimidam, não são para utilizar) para resolver ódios antigos e conflitos nunca resolvidos e para se revitalizar, vai definhar por anemia, implosão, autofagia.

A todos até breve.
Nove de Agosto de 2015, num dia de calor, aqui neste ponto do extremo ocidental da Europa.
Francisco Baptista
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14999: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (20): Recordações "non gratas" da guerra da Guiné Operação Tridente (José Colaço)