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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 14 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20733: Os nossos seres, saberes e lazeres (381): Itinerâncias pelo Sotavento Algarvio (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Por mim, não sentiria qualquer desfastio em dar-vos novas imagens de Tavira, com os seus poços fenícios, as belas peças islâmicas, o que resta do bairro Almóada, os vestígios do gótico e do manuelino, as belas igrejas, conventos e capelas, num total de catorze, segundo um folheto dado no Turismo. Mas preferiu-se outra errância por este sotavento algarvio, começa-se por Vila Real, há uma neta que quer ondas e água morninha, impossível fugir das multidões, seja na ilha de Tavira, Cabanas, Cacela ou Manta Rota, ninguém sonha, em pleno agosto, ter mais de metro e meio de areal por sua conta, o que é altamente acessível é mesmo passear à beira-mar, mesmo que, fenómeno raro, o oceano vai expelindo a todo o instante algas às toneladas. Vicissitudes de banhista, é o preço de passar férias em locais da maior convergência da sociedade de massas.

Um abraço do
Mário


Itinerâncias pelo Sotavento Algarvio (1)

Beja Santos

Viajar em Agosto por qualquer ponto do Algarve significa deambular entre multidões, escolher um ponto do areal e dez minutos depois estar despudoradamente cercado de gente de diferentes proveniências nacionais. Mas tinha que acontecer, houvera um convite irrecusável, estacionar uns dias numa urbanização perto de Tavira, a neta clamava por ondas, a filha clamava por descanso, reivindicações a ter em conta. Depois de uma viagem sem engarrafamentos, atinado com o local da estância, feitos os arrumos e compras elementares, avança-se para a praia, jogada a moeda ao ar, pensa-se iniciar as férias na ilha de Tavira. E daí estas duas surpreendentes imagens, não houve inundações, nem tsunami, o que se vê são banhistas com a trouxa às costas ou no braço, nada de gastar dinheiro na embarcação a motor que faz o trânsito entre a areia e terra firme.


O coletivo começou novo dia a revisitar Vila Real de Santo António, tudo surpreende, por muitas vezes que lá se passe, para o viandante é o permanente deleite das dimensões da praça que recorda a reconstrução depois do terramoto, a traça pombalina, de uma geometria perfeita, atenda-se ao agradecimento ao Senhor Dom José I, questão de protocolo, quem deu ordem foi Sebastião José. A igreja, diga-se em abono da verdade, não é uma dessas joias inesquecíveis, mas não se pode obliterar os cuidados na manutenção e o pleno equilíbrio do seu altar-mor.





Viandante e comitiva entram na Câmara Municipal, conheceu um gravíssimo incêndio, quase tudo reduzido a cinzas. A reconstrução é tocante, aproveitou-se o que ficou, o teto é lindíssimo, o mesmo quer dizer que se sugere a quem por lá passe que não deixe de se avistar com esta intervenção talentosa no edifício autárquico.




Outro local inescapável é percorrer a beira-rio, marcada por um tempo áureo de negócios de fronteira, muito comércio por grosso e atacado, um bom hotel. Impressiona a escultura de João Cutileiro dedicada a Sebastião de José, é uma peça-maior da sua obra, salvo melhor opinião.



E aqui se suspende a digressão mostrando algum estadão de outrora que chegou ao momento presente. Vila Real de Santo António continua a ter uma enorme afluência por direito próprio e pelos turistas nacionais e internacionais, ali perto está Monte Gordo, Praia Verde e Alagoa/Altura, uns quilómetros adiante a bela Cacela Velha, e quem sobe tem Castro Marim, a Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, barragens não faltam, e há panoramas inexcedíveis em Alcoutim. Viandante e comitiva sentem-se felizes, caminham pouco mais, têm outros alvos neste sotavento para atingir.



(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20709: Os nossos seres, saberes e lazeres (380): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (8) (Mário Beja Santos)

sábado, 5 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20208: Os nossos seres, saberes e lazeres (358): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Se Lagos é surpreendente por se sentir à vista desarmada que há preservação do património, e ali se sente o peso da História, a costa recortada que nos leva a Sagres é seguramente um dos deslumbramentos que o Algarve oferece como valioso recurso da sua natureza prodigiosa. O que singulariza esta costa é a sua plena dissociação do Algarve agrícola, um completo dramatismo de falésias e escarpas, de pedregulhos lançados sobre as águas, fica a imaginação a funcionar se não houve aqui uma fratura, uma separação dilacerante num Jurássico qualquer. E depois a surpresa do arranque da costa vicentina, pela sua imponência, os seus escalvados, parecem quilhas de medonhos transatlânticos. E de novo nos fica a certeza de que não há viagem que sempre dure porque a viagem nunca acaba, o que pode acabar é a resignação do viajante, a perda de curiosidade, de se aventurar a outras terras e a outras gentes. Nestas escarpas e penedias sente-se perfeitamente que a viagem a Portugal é infindável, a grande marca da nossa identidade.

Um abraço do
Mário


Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (3)

Beja Santos

Prossegue a viagem entre Lagos e Sagres, logo paragem na Ponta da Piedade, para desfrute de uma enfiada de escarpas e falésias, pressente-se que junto do mar a areia é muito fina, contraste com todas estas vertentes dramáticas, recortes sucessivos, despenhamentos de pedra, como se este Algarve, milhões de anos atrás, se tivesse despegado de um outro continente. É de facto um outro Algarve, com praias de renome como Luz, Burgau ou Figueira. Saltita-se pela terra batida em busca de detalhes insólitos, recantos anichados, alcovas, praias secretas. Eis o resultado obtido.






É uma versatilidade de paisagens em que sobressaem os tons da rocha, róseos, cresce uma vegetação rala própria das dunas, a natureza reage bem e segura as suas areias, momentos há em que podemos imaginar que houve para aqui castelos que se afundaram no mar. E quando alcançamos a Costa Vicentina tudo se altera, basta confrontar.





Alguém faz o reparo de que parece que chegámos às falésias de Dover, alturas a pique, em contraste com uma ondulação que tenta largos grupos de surfistas, e assim se chega a Sagres, muda o dramatismo das panorâmicas, tudo como se de Lagos a Sagres fosse pedra caprichosa, a correr, com esfarelamentos, para a água. Agora a pedra ganha outra densidade, a altura de grandes transatlânticos, é uma costa de rochedos.




Em frente à Ponta de Sagres, veio à memória do viandante o final da obra “Viagem a Portugal”, de José Saramago, ele elogia a saga da viagem e a sageza do viajante, pode haver intermitência na viagem, mas ela nunca acaba, tem a ver com a nossa motivação, o gosto da aventura e da descoberta, como ele diz, o que se vê de manhã não é o que se vê de tarde, o que se vê no outono não é o que se vê na primavera, há a luz e a sombra, há o gosto por perguntar, ali em Sagres andava uma guia a falar na Escola de Sagres, ali se reunia, dizia a senhora, o Infante com os seus navegadores, cartógrafos, peritos na arte de marear, homens do ofício de conhecer a viagem pelas estrelas. Tudo não passa de um mito, não há um só documento sobre esta escola, nada abona um cenáculo de mestres e descobridores em Sagres. É um dos aspetos que marca a viagem até este belíssimo extremo associado à epopeia que foi o projeto henriquino, aqui se franqueou a porta para um Portugal imperial, e é aqui que se conclui uma viagem iniciada há escassos dias em Montechoro para comunicar com gente que se ama e que vive num outro extremo da Europa.

Bendita é a viagem que nos faz suspirar pela próxima!
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20185: Os nossos seres, saberes e lazeres (357): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 28 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20185: Os nossos seres, saberes e lazeres (357): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Percorre-se a artéria comercial de Albufeira e há lembranças de Torremolinos, Marbella, Lloret del Mar, empreendimentos para acolher aos muitos milhares, com muitas comidas e bebidas, areais extensos, passeios marítimos, um constante ruído de fundo.
Lagos é uma surpresa no que tange à preservação do património, sem prejuízo do bulício comercial. E a costa é um esplendor, a caminho de Sagres, onde se inventou que o infante tinha uma escola, perfeita mistificação, mas o que ali se construiu empolga, é como se ali acabasse um imenso passeio no continente europeu, olhando em frente, e pondo os olhos na costa sinuosa que sobe dentro de Portugal assiste-se à espetacular costa vicentina que só se pode captar na sua inteireza em passeio marítimo. Paciência.

Um abraço do
Mário


Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (2)

Beja Santos

O viandante deambula pelo centro histórico, está bom tempo, pelo que lhe foi dado ver muitos turistas enxameiam as praias da Oura, dos Pescadores, do Peneco, atiram-se à água e por ali vão em grandes braçadas, as crianças gralham em várias línguas, como certificando o que diz o folheto sobre Albufeira:  
“Primeiro, o mar e as praias famosas, as muitas tonalidades das rochas e falésias. Aqui, a vida tem o ritmo das metrópoles turísticas, em que os corpos que se bronzeiam durante o dia se agitam, quando o sol se põe, nos restaurantes, bares e discotecas que iluminam a noite. Alguns quilómetros para o interior e tudo muda. Amendoeiras, figueiras, pinheiros e laranjeiras salpicam de verde a paisagem. O rendilhado das chaminés destaca-se do vermelho ocre dos telhados. Aldeias bucólicas convidam a conhecer um quotidiano feito de natureza e tranquilidade”.
O viandante não se bronzeou, calcorreia o tal cosmos de comes e bebes, não resiste a registar o que por ali vai.



Já foi central elétrica, tem agora umas exposições de nível caseiro. Existem igrejas, bateu-se à porta de um arquivo histórico que tem uma boa exposição sobre a censura na cultura e nas artes, 1936-1974, intitulada “O que ficou por dizer”, não se avistou uma livraria, não se resiste a um comentário de que estas ruas de El Dorado cá no vale fazem suspirar pelo casario branco que se avista lá no topo. Continuemos.




Entrada por saída nestes estabelecimentos que oferecem passeios aos golfinhos, às grutas, aqui se alugam carros, se toma conhecimento do Zoomarine e se podem fazer reservas para ir a Lagos, Loulé, Silves e Monchique, Quarteira, Faro, mas também Lisboa, Gibraltar, Sevilha e algo mais. Registado o espetáculo do consumo, e por pudor escondidas as imagens das toneladas de álcool que se vendem na via pública, parte-se para Lagos, aqui chegaram, ao tempo do Infante D. Henrique os primeiros escravos oriundos da Senegâmbia que Zurara descreve num tom lamentoso que nos faz chorar pelo sofrimento alheio.






Há cuidados na preservação deste belo património, justifica-se, ao tempo do rei D. Sebastião foi capital do Reino do Algarve. É bom estar sempre a aprender, por aqui o viandante já tinha passado mas não houvera oportunidade de conhecer essa joia em talha dourada que é a Igreja de Santo António, deslumbramento sem rival, tem fausto que nos lembra os tempos de D. João V, foi capela militar e continua a sê-lo, recomenda-se a quem visita Lagos que em circunstância alguma deve perder a contemplação de tal esplendor, será ignorância do viandante, não conhece no reino dos Algarves um outro que se lhe equipare.



É cidade amuralhada, tem pormenores fantásticos e acrescentos que dão brado, o grande escultor Cutileiro deixou aqui algumas marcas de água, reconhecíveis e para sempre, e agora parte-se para ver os recortes da costa, toda ela deslumbrante, deixa-se aqui só uma imagem para abrir o apetite, pois a seguir parte-se para Sagres.


Toda esta costa, recortada, escalavrada, de tons uniformes, parece areia compacta que veio do Jurássico, a beijar um mar turquesa, está nos antípodas do que se vem construindo de modo atamancado e rapace para dar prazer a turistas de todos os escalões. E veio à memória mais uma poesia de Nuno Júdice na sua “Geografia do Caos”:

“Na baía terrestre, os prédios formam uma invencível armada
de vidro e cimento. Pousaram aqui; e as suas tripulações escondem-se
em porões com vista para os subúrbios, praticando a imobilidade
do sol posto, virando as cartas, rodando sobre um eixo de portas
giratórias. Não se ouvem os gritos do comandante; nenhum uivo
de farol indica o caminho para fora do porto. Alguém subiu
ao terraço, e os seus olhos embaciam-se, como se uma nostalgia
de convés lhe percorresse a memória. Com a mão, percorre
o círculo em que o mar e a terra se cruzam; mas todos os barcos
estão vazios, como se carregassem sombras. Um ruído de
elevadores sobrepõe-se ao vento, e um ritmo de portas a abrir
pontua o ruído surdo de rádios e televisões, por trás das
portas fechadas, onde ninguém vive.”

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 21 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20166: Os nossos seres, saberes e lazeres (355): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20177: Os nossos seres, saberes e lazeres (356): pelas ruas do meu Porto: o edifício da Liga dos Combatentes (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

sábado, 21 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20166: Os nossos seres, saberes e lazeres (355): Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Tudo tinha a ver com a visita de cortesia, amigos do coração que queriam espapaçar-se ao sol, em abril, escolheram Montechoro, quem para ali vai pode desembocar em duas praias, a pé, ou a da Oura ou Albufeira, esta mais extensa. Há anos que o viandante foge deste itinerário, há pormenores verdadeiramente medonhos, designadamente Albufeira by night, não será por acaso que por ali pululam cervejarias e tabernas de todo o estilo, para quem tem costumes mais discretos de beber álcool, loja sim loja não há garrafeiras imensas, a partir de 2,50€ o turista pode sair dali a empunhar uma botelha. Chama-se a isto prosperidade turística. E não foi por acaso que se vagabundeou por ali na companhia de um livro de poesia de um grande lírico algarvio magoado, Nuno Júdice. É uma questão de o escutar, e perceber a sua saudade sem fim no que ele chama a geografia do caos.

Um abraço do
Mário


Montechoro, Albufeira, Lagos, Sagres (1)

Beja Santos

Tratava-se de uma visita de cortesia, grandes amigos vinham do condado de Oxford com filhos e netos, impossível não descer ao Algarve para os abraçar e estar ali uns dias em bom convívio. Tinham escolhido um hotel denominado Júpiter, em Montechoro. Logo à entrada, deu para ver que era o Hotel Montechoro onde ocorrera, uns bons anos atrás, um assassinato inacreditável, que assim passou à História. Em Abril de 1983, à saída do Hotel Montechoro em Albufeira, no decorrer de um congresso da Internacional Socialista, Assam Sartawi foi barbaramente assassinado por um comando extremista palestiniano da Organização Abu Nidal. Médico e político palestiniano, Sartawi foi fundador da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1967, e membro do seu conselho de guerra. Na qualidade de conselheiro de Arafat para as questões externas, advogou o diálogo com a esquerda israelita. Impossível não fotografar o local do crime, há várias décadas atrás.



O visitante faz-se acompanhar de um livro de um grande poeta algarvio, Nuno Júdice, alguém que vai bramando contra as destruições desse Algarve que tem serra, figueiras e amendoeiras, uma costa esplêndida, com um recorte único, onde uma ganância descontrolada produziu estragos, talvez irreparáveis. O livro chama-se “A Geografia do Caos”, é um libelo onde não se esconde a amargura por ver partir casario, por ver amontoadas monstruosidades em cima de falésias, centros históricos praticamente desfigurados.

E ele escreve, com a nostalgia da identidade perdida:

“Aqui houve bosques, colheu-se o figo
e apanhou-se amêndoa, e nas eiras as mulheres
trocaram segredos e histórias, enquanto as suas
mãos se dedicavam a fabricar cestas e
esteiras. A cabeça de pedra guarda essa
imagem, que se manteve inalterável enquanto
um glúten de lágrimas juntou os pobres
no caminho comum do Inverno (…) ”

Eis a praia de Albufeira, quem aqui exibe o corpo ao sol, vindo de Narkiv, Helsínquia, Manchester, não faz a menor ideia do que se lapidou para tornar os lugares infinitos centros comerciais de grelhados, recordações de fancaria, bifanas e churros, turismo para múltiplas posses, muitas casas de álcool pelo caminho. E, no entanto, esta nesga de mar numa fresta de colinas é de uma beleza inexcedível.



Sobe-se para a velha Albufeira, irresistível não entrar na Igreja da Misericórdia, tem pequeno museu. O viandante fixou-se em duas peças, foi atraído pelo insólito, aquele Cristo em Ressurreição ou está na moda, corresponde a estes tempos de musculação e temos aqui peitorais vigorosos, ou então o artista que desenhou o modelo para a azulejaria não quis a identidade de género, seja o que for é uma peça admirável; e Nossa Senhora da Piedade, provavelmente do século XVI, indicia um panejamento barroco, pode ser arte tosca, saída das mãos de um santeiro anónimo, mas aquela mão acariciadora vale por mil palavras.



Volta-se a Nuno Júdice, poeta de grande mágoa, de saudade contida:


“As casas são como as casas sempre foram. Por baixo
dos prédios, onde há lojas e garagens, as casas estão,
sempre, abrindo a quem só vê prédios, lojas e
garagens, as portas que dão para um chão de
tijoleira gasta, onde cadeiras e bancos rodeiam a
mesa de madeira velha, onde já ninguém se
vai sentar. Mas se nos sentarmos nessa
mesa que não existe na casa que já não há,
alguém nos acompanha, falando dos prédios,
lojas e garagens que escondem aldeias
e vilas feitas de casas que são como as casas
sempre foram, mesmo que essas casas só
existam para quem, olhando prédios, lojas e
garagens, entra na casa que ali esteve, pisa o
chão de tijoleira gasta, puxa um banco para
o pé da mesa, e se senta, como se essa casa ainda
existisse, e alguém viesse do fundo da casa,
com uma bilha de água, refrescar a memória
de quem vive entre prédios, lojas e garagens,
como se estivesse numa casa que fosse
como as casas sempre foram.”




O viandante vai ao Posto de Turismo, quer o mapa da cidade, conhecer os locais dignos de visita. O texto é encomiástico, como se impõe: “Céu, mar, areia macia e dourada. Em seguida, uma falésia ocre coroada pelo branco faiscante das casas. Perspetiva de Albufeira que fica na memória de quem a visita”. Por aqui passaram romanos, o centro de pesca é ancestral, existiram explorações mineiras. Albufeira é nome árabe, prosperou a sua agricultura e o seu comércio com o Norte de África. Em 1250, virou-se a página, tornou-se Portugal. Tem igrejas, uma ermida e sobressai a sua Torre do Relógio.




Vai escurecer, volta-se para o que foi o Hotel Montechoro, um dos temas de conversa serão as férias em 2020, imagine-se, o viandante está ansioso por voltar a lugares de culto e pôr o pé no mar da Irlanda, agora é pôr a conversa em dia, amanhã saem em grupo, alguém fica com as crianças na piscina e centro de diversões, os mais velhos querem perceber o fascínio de Albufeira para os ingleses.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20147: Os nossos seres, saberes e lazeres (354): Casa da Cerca: a mais bela vista de Lisboa, na outra margem do Tejo (2) (Mário Beja Santos)