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domingo, 14 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25384: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (13): "Acertar à primeira"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Acertar à primeira

- O Sr. Doutor, quando chegar ao lugar dos Couços, pergunta pela casa da Rosa da Eira, que toda a gente conhece. Ela, não se pode dizer que esteja muito mal, mas diz que tem fisgadas no baixo-ventre que lhe causam trupos no coração. E que há que Deus, tem de ser vista pelo Sr. Doutor.

O tempo ainda estava frio, apesar de a primavera ter começado a desabrochar, e alguns farrapos de neve ainda pintalgavam de branco a encosta da serra.

O pobre Hillman Minx, fiel companheiro de duas décadas, com as velas mais que rompidas, estava longe dos tempos de jovem quando, calçado de pneus de faixa branca, se lhe sentia o orgulho de tudo subir em terceira. Raramente se deixava abater, mas nesse dia gemeu a meio da serra, soluçou, e dá a ideia de que até chorou, pois pareciam de lágrimas as pingas do motor. Ao fim de meia hora de merecido descanso, lá arranjou jeito de pegar e, outra meia hora depois, entrava ofegante, mas contente, na descida do lugar dos Couços.

A casa da Rosa da Eira era grande, grande demais para tão recônditos e inóspitos lugares. Toda de pedra mal talhada, negra do varrer dos anos, tinha num dos topos uma pequena capela com a cruz quase a cair e no outro, uma extensa eira onde ladrava um cão.

- Ele não morde, Sr. Doutor, faça favor de entrar. É servido de um copinho para retemperar da viagem?

A Sr. Rosa da Eira mal se via, afogada na enorme e alvíssima cama de linho. Apesar das fisgadas do baixoventre e dos trupos no coração, tinha uma cara malandra e prazenteira, cujo sorrisinho macaco desarmava quem quer que se atrevesse a entrar com ar a mais no seu quarto a cheirar a lavanda.

- Como está, Sr. Doutor?

E logo de seguida, sem pestanejar:
- Sr. Doutor, eu sei como são os médicos. Não acertam à primeira nem à segunda, só acertam à terceira, que é para levar o dinheiro de três consultas. O Sr. Doutor já me conhece e já ouviu falar de mim. Eu sou uma mulher de posses. Não me faltam matos e campos.
Portanto, eu pedia ao Sr. Doutor o favor de acertar logo à primeira, que eu pago o preço das três consultas e assim, escusamos de andar para aqui a perder tempo.

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Nota do editor

Último post da série de 7 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25350: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (12): "Os velhinhos"

domingo, 7 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25350: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (12): "Os velhinhos"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Os velhinhos

Há vários restaurantes clássicos e tradicionais no Porto, aos quais acorrem, sobretudo ao domingo, as terceira e quarta idades. Como é óbvio, também por lá ando. Odeio a velhice, mas nunca os velhinhos, um pouco na mesma linha de que odeio as religiões, mas nunca os que as professam. Por vezes, convido o meu filho Marcos, não só porque gosto de estar com ele, mas também como contrapeso. Empresta-me um certo arejo de mais novo e permite-nos discorrer sobre filosofias da vida para as quais nos estaríamos marimbando se não fosse a garrafinha à nossa frente, às vezes duas.

Hoje fui sozinho a um desses restaurantes comer um cozidinho à portuguesa. Ia eu a meio da orelheira quando eles, os velhinhos, começaram a chegar. Bem alinhados nas roupas e nos arranjos, eles e elas, mais elas do que eles, numa derradeira tentativa de exumar alguns restos de juventude: logo à cabeça, um antigo colega meu do hospital de Santo António, que por acaso operara em tempos idos a minha irmã e, logo atrás, a sua própria irmã, que fora minha colega de curso. Que ternura! Quem os viu e quem os vê! O suficiente para eu parar de roer a unha, do porco, claro, e abrir os arquivos neuronais de trinta ou quarenta anos atrás. Quase me apetecia chorar se não fosse as couvinhas estarem-me a saber tão bem.

Logo a seguir, uma senhora de meia-idade, com ar de Senhora de Fátima, pedia uma mesa para seis. Podia ser aquela que estava mesmo à minha frente, disse o empregado. Logo, entraram dois de terceira idade, mais um de quarta idade e, um tanto atrasados, uma outra senhora de meia-idade, também com ar de Nossa Senhora de outra coisa qualquer, amparando um velhinho a arrastar-se, de braços trémulos no ar, como que a dizer Dominus Vobiscum. Uma cena provavelmente comum no Reino dos Céus.

Dizia um dos de terceira idade, carteira a tiracolo, calça pelo meio da perna e sapatilhas brancas da moda:
- Então, o que escolhem?
Ao que respondeu o outro, de quarta idade, a quem uma lufada de vento havia tombado definitivamente para o lado esquerdo:
- Comida mole, comida mole.

Tomei o meu cafezinho e pedi a conta. Nesse preciso momento, sentou-se na mesa ao lado um sujeito dos seus oitenta e muitos, torcendo a face com aquele esgar esquisito que denuncia a puta da dor das artroses, todo vestido a condizer, certamente ao gosto da filha ou da neta e não da mulher, que Deus provavelmente já havia chamado à sua Divina Presença. No meio da confusão, o empregado colocou a minha fatura na mesa do velho, ao que ele reagiu vociferando:
- Que caralho é isto? Eu ainda nem pedi nada!

É preciso vir a estes sítios para sentirmos a ternura da velhice. Odeio a velhice, mas cada vez mais me sinto pateticamente encantado com o mundo dos velhos, a sua profunda poesia e a dramática coreografia da antecâmara da morte.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25323: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (11): "Zulmiro"

domingo, 31 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25323: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (11): "Zulmiro"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Zulmiro

Diziam que ele tinha o Diabo no corpo, mas não tinha. Pelo menos assim o afirmava a sua prima, sabida que era em coisas de mau-olhado e almas penadas. O Diabo no corpo era outra coisa. O que ele tinha era uma comichão dos diabos que o atormentava dia e noite, obrigando-o a coçar-se até se arranhar e fazer sangue. O Ti Salvador dizia que, sem borbulha, sem mancha ou licenço à flor da pele, o mal estaria por baixo, sabe-se lá onde. Dada a falta de qualquer médico nas redondezas, o Ti Salvador reclamava toda a sabedoria nestas coisas de maleitas, sabedoria já herdada de seu pai e de seu avô.

Para entrar debaixo da pele, só uma mezinha muito antiga, raramente usada por cheirar muito mal. Uma pasta de azeitonas esmagadas, com uma mão-cheia de sementes de linhaça e outra mão-cheia de coirato bem cozido e bem pisado, uma colher de óleo de rícino e uma pequena porção de merda de galinha.

Zulmiro, sem fé nenhuma, besuntou-se da cabeça aos pés e, naquele dia, a comichão desapareceu. Mas era tal o fedor que a sua presença exalava, que as pessoas não se aproximavam dele a menos de cinco metros. Zulmiro não aguentou a cura e preferiu a coçadura.

Zulmiro sabia bem qual a causa do seu mal e do seu sofrimento. Não só sabia, como tinha a certeza.
Simplesmente nunca a contara a ninguém, por vergonha. Tudo começara com aquele beijo atamancado, arrepiado, babado, a saber a remédio das bichas. Tudo começara naquele dia em que a Maria tola o empurrou para trás da porta, apertou-lhe a ferramenta até o fazer ganir e assapou-lhe a boca desdentada na sua, como uma ventosa, deixando-o agoniado semanas a fio.

Por isso, ele sabia qual o remédio para o seu mal. Não só sabia como tinha a certeza. Só outro beijo o poderia salvar, um beijo limpo, casto e puro, a ferver de amor e ternura. Mas como iria ele arranjar uma namorada, assim a coçar-se como um bicho ou a cheirar a estrume? A Fatinha, há muito, que lhe punha os olhos em bico.
Era uma dor de alma, para quem quer que o sentisse, ver o Zulmiro a chorar pelos cantos, perdido na angústia de nunca se poder aproximar dela.

A Fatinha cantava na capela o Hosana nas alturas e outras coisas. Um dia, aguentando a comichão até humanos limites, o Zulmiro ajudou-a a levantar uns livros que lhe haviam caído do regaço. A Fatinha agradeceu com um sorriso tão doce e tão terno que o Zulmiro não teve mais comichão até ao fim da missa.

Mais tarde, Zulmiro soube pela tia Alice, sua madrinha, que a Fatinha lhe confessara gostar muito do afilhado, que achava um rapaz bonito e bondoso, e não acreditava que tivesse o Diabo no corpo.
Zulmiro andou até a Páscoa com essas palavras nos ouvidos e na cabeça, fazendo delas a mais bela canção do acordar e do adormecer. Além disso, caíra sobre ele a bênção do Céu. Quanto mais nelas pensava, menos a comichão o apoquentava.

Um dia, Zulmiro encheu-se de coragem. Empastelouse de mezinha pestilenta durante três dias, a seguir tomou um banho de alto a baixo, borrifou-se com água-de-colónia e foi à capela. Fatinha estava sozinha nas suas tarefas de zeladora do Coração de Jesus. Zulmiro ajoelhou-se no primeiro degrau do altar, lavado em lágrimas, e contou-lhe toda a sua desgraçada história, desde o maldito dia da investida da Maria tola, quando ele tinha treze anos.

Fatinha afagou-lhe o rosto e, perante o olhar atónito da Virgem, depôs-lhe nos lábios o beijo mais doce que algum dia um ser humano sentiu.

E assim, o Diabo meteu o rabo entre as pernas, deixando o Zulmiro em paz e cheio de felicidade.

E também a Fatinha que, ao fim de nove meses, mesmo sem autorização de Deus, lhe deu o primeiro Zulmirinho.

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Notas do editor

Posts anteriores de:


3 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"

14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"

20 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"

4 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25135: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (4): "Isabelino e Geraldina"

18 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25184: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (5): "A Maria nunca mais apareceu"

25 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"

3 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"

10 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25258: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (8): "Ele há coisas...!"

17 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25280: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (9): "Maruja"
e
24 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25303: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (10): "Tempo fora do tempo"

domingo, 24 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25303: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (10): "Tempo fora do tempo"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"



Tempo fora do tempo

O verão entra hoje, lembrou a velha a comer um pedaço de pão à porta da padaria.

Meio triste por vir tão cedo, meio contente por vir tão tarde, já que a primavera o deixa de mãos a abanar com este tempo sem tempo. Ainda agora caiu um aguaceiro que fez as gaivotas encolherem-se e o rio cobrir-se de um espesso véu.

O verão está à porta como a velha na padaria. Nem entra nem sai.

Também à porta, passa o elétrico na sua lenta e gemida marcha de outros tempos, que nada tem a ver com as velocidades de hoje. O tempo fora do tempo.

O homem do lado de lá da rua, sentado num monte de redes ainda com algas, sacudiu o casaco molhado e praguejou. Um menino brincava a seu lado com uma laranja espetada num pau.

As gaivotas espanejaram as asas quando a chuva parou, como fazem no inverno.

Pelo retrovisor, não me apercebi de que alguém fora atropelado, mas pareceu-me ver um gato a espernear na valeta.

O verão entra hoje, mas não parece verão, lamentou a mulher de preto à porta da padaria a comer um pedaço de pão. É mesmo um tempo fora do tempo.

Já o elétrico dava a curva quando um homem saltou, bem inclinado para trás, como se fazia no tempo dos elétricos. Trazia na mão um vaso com manjerico, este sim, deste e de outros tempos.

Não havia vento. Se vento houvesse, os barcos baloiçariam, mas os barcos mantinham-se serenos e dolentes. Apenas uma brisa quente e salgada cheirava a peixe.

O homem sentado nas redes procurava atiçar as teimosas brasas de um fogareiro, ainda sem tempo de serem brasas de assar.

Balões de muitas cores pendiam das árvores a pingar, lembrando o S. João seco de outros tempos, ou apenas orvalhado.

A velha que comia um pedaço de pão gritava de longe ao velho do fogareiro para que cobrisse as sardinhas por causa dos gatos. Pouca sorte a do gatito escorraçado, assim morrendo fora do tempo.

As nuvens teimavam em gotejar e o homem das sardinhas praguejou de novo, cobrindo as brasas com as mãos e com palavrões mais assanhados, deste e de outros tempos.

Uma pequena lufada de vento errante fez os balões brincarem e um deles rebentou para nunca mais ser balão de S. João. Outro desprendeu-se e voou, subindo quase até ao avião que atravessava o rio. O menino com a laranja espetada num pau correu, correu atrás dele e caiu.

A velha de negro, achando que era o tempo de sair da porta da padaria, atravessou a rua ao jeito das artroses, numa corrida fora de tempo, e foi levantar o menino que chorava. Deu-lhe um beijo de avó e levou-o ao velho do fogareiro. O pescador largou as brasas que já faziam chiar meia dúzia de sardinhas e pegou nele ao colo.

Uma gaivota, atrevida e cansada do tempo, achou que era tempo de pifar uma sardinha.

Apareceram mais dois a tempo, um dentro do tempo, vermelho e corcunda, e outro fora do tempo, pálido e esguio como vela de cera, falando dos diabetes e deitando o rabo do olho a um rabito de sardinha.

- Podem ficar. O meu genro está a chegar do mar com mais e bem fresquinhas, disse a velha fora de tempo, dado que o cérebro de cada um já impusera, uns segundos antes, o tempo de se sentarem no caixote mais à mão.

- Entra hoje o verão. Mas que verão! Não há nada mais triste do que o tempo fora do tempo.

- Deixe lá que estas sardinhinhas vieram mesmo a tempo.

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Nota do editor

Último post da série de 17 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25280: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (9): "Maruja"

quinta-feira, 21 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25293: (In)citações (266): No Dia Mundial da Poesia - O que penso (Adão Cruz, Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887)

O QUE PENSO

adão cruz

É muito difícil saber o que é a poesia. Duvido de quem diga que sabe o que é a poesia. Desde a depuração absoluta da palavra à respiração de Deus, tenho ouvido todas as definições. Isso não impede, contudo, o direito que temos à manifestação do nosso pensamento. Penso que a poesia é um sentimento como outro qualquer. Por isso eu prefiro chamar-lhe sentimento poético. Um sentimento como o sentimento do amor, o sentimento da alegria, o sentimento da tristeza, o sentimento do medo. Parece-me, contudo, um sentimento muito subtil, uma espécie de brisa mágica, uma essencialidade rítmica e harmoniosa da vida, uma espécie de musicalidade, quase uma ascese ética e estética que nos transporta à mais nobre e sublime expressão da realidade, através das mais impressivas, expressivas e sugestivas formas da nossa linguagem. O sentimento poético tem uma certa parecença com o sentimento místico. É quase indefinível, é um estado de hipersensibilidade, um ser-se de outra maneira, um sair do não-autêntico, um quase sentir a verdade total e o amor universal. Ele combina a palavra justa com toda a energia sinestésica e sensível que faz o poema acordar.

A poesia não é a cópia da realidade, mas a simbolização, a evocação e a invocação da beleza e da nobreza da vida. O fenómeno poético é entendido como harmonia verbal em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se fundem num resultado de suprema fruição estética. Por isso, o mundo dos sentimentos é extremamente complexo. Os sentimentos nascem, vivenciam-se, estruturam-se, apuram-se e afinam-se, podendo escalonar-se, em qualquer ser humano, entre o básico e o sublime. Para o bem e para o mal. Só desse mundo caldeado pelo tempo na alma humana nasce a poesia, como luz nas trevas, como broto de água ou vulcão, como sangue nas veias túrgidas ou fresca chuva nas entrelinhas da secura. Outro berço não tem. Por isso penso que criar poesia pode não ser encastelar versos uns em cima outros em baixo, fazer rebuscadas rimas, escrever labirínticas coisas que ninguém entende, inventar modas que podem não passar de execuções sumárias da poesia. O próprio poema, a matriz literária habitual da poesia, pode ser estéril e seco, ou mesmo a negação da poesia. A poesia percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística, podendo ter uma presença mais viva num texto em prosa do que num poema, ou ser muito mais sentida num quadro ou numa peça de música do que em qualquer forma de expressão literária.

E qualquer obra de arte, qualquer forma de expressão artística, só o é se contiver dentro de si a poesia. Penso, ainda, e parece haver estudos que o comprovam, que o sentimento poético e o sentimento artístico enriquecem e enobrecem todos os nossos processos de humanização, criam grandes afinidades com a consciência, aproximam-nos de todos os mecanismos de identificação da verdade, afinam todas as outras emoções e sentimentos, ajudam-nos no caminho do equilíbrio e da harmonia. Assim sendo, o sentimento poético pertence à esfera dos afetos. Todos nós possuímos no nosso cérebro o mesmo esquema neural do sentimento, já que é esse o esquema da nossa espécie. Mas o padrão neural do sentimento, o padrão sentimental de cada um é completamente diferente em cada um de nós e em cada momento da vida.

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Nota do editor

Último post da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25225: (In)citações (265): A Guerra. Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

domingo, 17 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25280: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (9): "Maruja"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Maruja

Furioso, João entrou na livraria e só lá dentro se deu conta de que era uma livraria gay, de literatura erótica. Não tinha disposição para nada, muito menos para aquilo. Deu duas voltas à sala, cumprimentou e saiu. Madrid estava fria como o seu coração e sentia uma lagrimeta no canto dos olhos. Atirou-se para a cadeira de uma esplanada em frente e pediu uma fabada asturiana.

Maruja tinha dezoito anos e era linda como um cravo. João encontrara-a na Candeia, um conhecido cabaret do Porto. Ali cantava e dançava, sempre acompanhada pela mãe.

João prendeu-se de tal modo nos seus olhos negros e na luz do seu sorriso que, durante uma semana, ali passou as noites até de madrugada. Terminada a semana do contrato, mãe e filha passaram para o Casino de Espinho, onde iriam trabalhar mais uns dias. João contou e recontou os trocos, pediu algum emprestado, marimbou-se para a faculdade e não falhou uma noite em Espinho até que a Maruja lhe disse que ia embora para Madrid.

Não seria fácil João encontrá-la por lá, na grande cidade, mas que tentasse, se um dia se resolvesse a lá ir. Não tinha morada certa, mas vivia a maior parte do tempo no Monasterio de Las Descalzas e, por vezes, cantava e dançava no Pasapoga.

Desde Portugal, João viajou na mesma cabine do comboio com uma prostituta. Em Ciudad Rodrigo, já alta madrugada, um padre fez-lhes companhia. Quem eram, quem não eram, João era estudante de medicina no Porto e ia a Madrid à procura do amor, o padre ia a Salamanca colaborar nas exéquias de um velho professor, e a prostituta, de Coimbra, ia cumprir mais uma temporada numa casa de alterne junto à Plaza Mayor.

Depois de Salamanca, João adormeceu e acordou em Madrid ao romper de uma manhã seca e fria. Ficou um tanto atemorizado com o silêncio das ruas e com a presença de muitos soldados nos telhados das casas, armados de metralhadora. O cheiro a Guerra Civil ainda não se desvanecera por completo. As camionetas a gasogénio subiam ronceiramente a Gran Via e um ou outro transeunte perguntava se tinha café para vender.

João martelou com força por duas ou três vezes o grande batente de ferro do enorme portão do Monasterio e, quando a esperança já parecia esfumar-se, um pequeno postigo lateral encastoado no portão emoldurou uma cara do outro mundo: uma freira muito feia, com ar de demónio, boca torcida e olhos fulminantes.

- ¿Qué quiere, usted?
- Quiero hablar con Maruja, quedé con ella.
- Maruja no está ni podría estar. Maruja, ¿Que Maruja, señor?
- La bailarina.


A portinhola bateu com estrondo, quase lhe esmurrando o nariz. João ainda carregou por mais duas vezes no batente, com toda a fúria e revolta, mas um silêncio pesado cobriu como uma avalancha negra toda a fachada do enorme edifício.

A fabada não parecia estar má, mas, apesar de nada ter comido desde a véspera, a tristeza dificilmente permitia que ela passasse da boca para baixo.

Esperou pelo cair da noite, gelado por dentro e por fora, passou junto ao Pasapoga e perguntou ao porteiro a que horas atuava a Maruja.

- Maruja, ¿Qué Maruja, señor?

Ainda hoje, ao fim de tantos anos, quando João passa pelo Monasterio, levanta os olhos para a grande fachada e vê Maruja vestida de branco a voar de janela em janela.

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25258: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (8): "Ele há coisas...!"

domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25258: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (8): "Ele há coisas...!"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


ELE HÁ COISAS...!

adão cruz

Quem se tenha dado ao trabalho de ir lendo as historietas que por aqui se escrevem, lembrar-se-á, porventura, da Geraldina, a moça roliça que morreu de amores pelo Isabelino.

Pouco tempo depois da sua morte, a mãe apareceu no café, o mesmo café da loura descaída dos anos e do corpo, o café em que a vida do Isabelino se fez tragédia, como foi relatado, chorando amargamente a perda da filha. Mas depois levou sumiço e nunca mais apareceu.

Apareceu ontem, sete semanas depois, com alguns quilos a menos. Meio a sorrir, meio a chorar, tinha os olhos mais papudos e pisados, sempre molhados, reflectindo amargura e tristeza.

Até a velha Torre dos Clérigos, espetada num céu de chumbo, parecia mais escura e mais cansada da sua erecta posição de séculos.

- Ela gostava muito de subir lá acima, quando fazia anos. Dizia que dali via o futuro. Que Deus a tenha em descanso.

A mãe da Geraldina falava com a Tininha da Cantareira, a quem contava que andava na modialse. A modialse é uma coisa triste, mas nem tudo é mau, pois já tinha perdido peso e estava muito melhor das barizas. Tinha as pernas mais lisinhas.

E em surdina, lá foi dizendo à Tininha que havia um bruxo que não era bem bruxo, ali para os lados de Campanhã, que era capaz de a pôr a falar com a sua filhinha. Falar… falar…, não era bem falar como as pessoas falam, era um falar assim a modos que por sinais, por meio de uns trupos numa mesa, que só ele entendia e depois dizia de maneira à gente perceber. Dizem que é spritismo.

A Tininha estava de boca aberta, mas disse que já ouvira falar nesse bruxo, e mais, disse que a Fatinha lhe contara que essas falas com o além só se podiam fazer com mortos que não foram atopsiados.

- Qual atopsa qual carapuça! A minha filhinha nunca foi atopsiada, pois o mal dela não era mal de corpo, era mal de amor, e os males que não são do corpo não são atopsiados.

- Isso é verdade.

- Só há uma coisa, Tininha, que me faz cá uma comichão dos diabos! É que a Lurdinhas, aquela que mora ali nos Caldeireiros, também já falou com a mãe, que morreu na Páscoa do ano passado, mas ficou chateada porque lhe pareceu tudo uma vigarice. Diz ela que não entendeu patavina daquela lengalenga e só gastou dinheiro. Houve, no entanto, uma coisa que a impressionou muito! Foi quando o spritista lhe disse que a mãe lhe pedira umas papas de sarrabulho. Ela agarrou-me os braços com toda a força e cravou-me os olhos arregalados:
- Porra!!! A minha mãe era louca por papas de sarrabulho, mulher…! Ele há coisas…!

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Nota do editor

Último post da série de 3 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"

sexta-feira, 8 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25251: Blogpoesia (798): No Dia Internacional da Mulher - "A Mulher que amanha o peixe", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



A MULHER QUE AMANHA O PEIXE

Sempre que a vejo
no supermercado onde vou
reconheço que não é por acaso.
Muito bonita a mulher que amanha o peixe
(não sei se amanha se amanhece).
Rosto combatido
dorido
olhar sofrido e manso
não sei o que faz desta mulher um poema
se os olhos negros e fundos
se o desenho rasgado da face
se um gesto brusco da natureza
revoltada de cansaço.
Um vale profundo entre o cá e o lá
banca de peixe
mar imenso
mar morto
do outro lado um peixe vivo no céu
tocando o mar
estripando com mãos invisíveis
entre lágrimas e sangues
as entranhas da vida
nas elegâncias difíceis dos plásticos
cobertos de escamas.
Passos molhados
encharcados
pesados
cheirando a algas
ondas de tempestade
no lindo rosto marcadas
pela ânsia de voar.
Com tantos apetrechos de borracha
botas altas
luvas e avental
não sou capaz de adivinhar
o corpo que tem por baixo
nem quero que aconteça o tal.
A mulher é segredo
a mulher é sonho
sonho de si mesma
no olhar dos outros
sonho de ventre liso
crescente de imensidão
fonte de pão e de leite
eternidade e sorriso
dança de movimento
para além das formas
e da imaginação.
Trepadeira de vida e de morte
olhos que se abrem no céu
e repousam no mar
mãos de todas as direções
ainda que vestidas de plástico
amanhando o peixe.
Não sei se é casada ou mãe
se é tudo ou nada
no reduto escasso do dia-a-dia
nem me interessa.
Bastam-me os olhos infinitos
a boca seca de beijos
a dor-desenho dos lábios
a doçura-criança que não cresceu
por falta de uso
tempo e espaço.
O corpo desta mulher está na face
oculta e sedenta
na ânsia fervente do impulso
na mais íntima agitação do mundo
e da dimensão
que pode caber numa banca de peixe.
Difícil acertar ideias e olhares
quando só olhares fazem ideias...
Enfeita-se a beleza desta forma estranha
criando beleza no amanhar do peixe.
Cruel seria descobri-la a dançar
pesadamente etérea e volátil
nos salões de púrpura da mulher vulgar
entre rendas e espumas
que não são espuma do mar.
Como sempre, tenho de dizer até amanhã
sou forçado a serenar as ondas
a desnavegar meu barco.
Muito obrigado.
Não tem de quê.
Você é das mulheres mais lindas que já vi.
Muito amável, um exagero...
Faça o senhor o resto das compras
e depois passe por cá.
Buscar o peixe... ou voltar a vê-la?
Sei lá!


adão cruz

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Nota do editor

Último post da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25158: Blogpoesia (797): "Mãos de hoje que foram de sempre", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 3 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"


Conoscere TV > "Contos do Ser e Não Ser" de Adão Cruz


Sarita, a bailarina

adão cruz

Acordei às seis da manhã, eram sete em Santander. Sem ponta de sono, fui à janela do pequeno Hotel Central na Rua General Mola, paralela ao passeio que ladeia o mar. Caía uma chuva miudinha e a rua estava escura e completamente deserta.

Preparei-me e saí. Pequeno-almoço só a partir das oito.

Ninguém na rua. A uns vinte metros do hotel, apenas uma mulher alta, elegante, espreitava os caixotes do lixo. De um deles, retirou um guarda-chuva vermelho, fechado, que utilizou como bengala. Debaixo do outro braço, trazia um guarda-chuva preto.

Apesar de sermos as únicas pessoas daquela rua deserta, silenciosa, estreita e comprida, a minha presença foi-lhe completamente indiferente quando me aproximei. A mulher parou frente a um painel de um pequeno centro comercial, tentando ler o que por lá estava escrito.

Longe de ser andrajosa, a sua indumentária denotava apenas o desgaste de alguns anos. Vestia um casaco castanho até meio da perna e uma saia verde que descia um palmo abaixo do casaco. Um pequeno chapéu preto luzia com a chuva. A tiracolo, uma grande carteira escura caía pelo flanco esquerdo. Os pés calçavam uns sapatos rasos, de cor baça, em desafio aos tacões da moda que conferem às mulheres metade da sua altura. Colada ao canto da boca, uma prisca queimada. A dois metros da sua esguia figura, cumprimentei:
- Buenos días!

A mulher olhou-me de relance, sem nada dizer, e estendeu-me o guarda-chuva vermelho que aceitei e agradeci.

- Não há nada aberto por aqui para tomar el desayuno?

Ela riu-se, mostrando algumas cáries que lhe sujavam o sorriso bonito, estendeu-me a mão e apresentou-se:
- Sara, la bailarina. Sarita.
- Encantado.

E sem deixar cair a prisca, respondeu com uma pequena gargalhada:
- A esta hora? Domingo? Ah!... Ah!... Ah!...

De repente, com ar sério, emendou:
- Verdad!... El hotel!

E apontou o meu hotel que se destacava na rua por três pequenas bandeiras e pela sua forte cor azul.

- Me pagas el desayuno?
- Sí, por que no?
- Graaaaacias!

Aguardámos alguns minutos, em silêncio, debaixo de um beiral, até que os lentos ponteiros marcassem as oito. Ela cuspiu a prisca e entrámos no hotel. O rapaz, ainda ensonado, mas simpático, um tanto surpreendido pela minha inesperada companhia, indicou-nos a escada para a primeira planta.

A sala pequena, mas confortável, toda decorada com velhos instrumentos musicais, estava vazia. Os clientes ainda faziam meia-noite. Comi um pão com manteiga e bebi dois copos de leite al tiempo. Sarita pediu café com leite, comeu com vontade, mas sem sofreguidão, um pão com manteiga, um pão barrado com compota, um croissant, pediu mais um pouco de café solo e foi buscar uma banana e uma maçã que meteu na mala.

Pela primeira vez, ergueu o rosto e olhou de frente para mim com um leve sorriso que me pareceu conter alguns laivos de felicidade. Era de facto bonita, tinha olhos verdes que me trouxeram à memória os peixes verdes de Eugénio de Andrade. Eram, no entanto, olhos vazios, sem transparências de vida, olhos que se perderam, há muito, para lá das órbitas. Algumas rugas vagueavam dispersas pelo seu rosto seco à procura de fazerem ninho.

-Vámonos?
- Quando quiseres.

Já na rua, abriu a grande saca que me parecia um poço sem fundo e vasculhou, vasculhou, retirando um isqueiro. Remexeu mais uma vez e, resignada, encolheu os ombros:
- No hay… no hay!

Percebi e disse-lhe que não fumava, mas lhe daria dinheiro para comprar cigarros. Retirei da carteira uma nota de vinte euros que ela segurou delicadamente na ponta dos dedos. Beijou-me na testa, levantou os braços, esboçou um passo de dança, deu meia-volta sobre si mesma e deixou-me com aquele adeus final da Liza Minnelli no Cabaret.

Só depois de ela ter desaparecido ao fundo da rua, eu me dei conta que tinha nas mãos o guarda-chuva vermelho. Calma e solenemente fui restituí-lo ao seu legítimo dono, o caixote do lixo.

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Nota do editor

Último post da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"


A LAIDINHA

adão cruz


A Laidinha veio ao mundo nos arredores de Paris, filha de emigrantes portugueses. Nasceu sem vislumbre de futuro, como toda a gente. Mas, na sua cabecita, o futuro foi-se acoitando, calmo e decidido. Seria cabeleireira.

Por volta dos vinte anos, já os cabelos se enrolavam e desenrolavam habilmente nos seus dedos. Arranjou um namorico com guita, que tinha um Porsche. Não dava uma para a caixa, mas roncava de Porsche de manhã à noite. Só queria marmelada, mas a Laidinha virou a tigela e deu um pontapé na marmelada. Nunca mais se encostou a um homem. A mãe até dizia que ela parecia que nem tinha vontades de mulher.

Um dia… apaixonou-se por um velho. Um velho a quem cortava o cabelo e arranjava as unhas. Um senhor. Não era feio, era muito simpático, professor de astronomia, não tinha família e contava coisas muito bonitas! Falava-lhe de tudo aquilo que ela não sabia e nunca sonhara: poesia, arte, música, coisas do Universo.

Um dia, levada por um impulso das entranhas, espetou-lhe um beijo na testa. Outro dia, depôs-lhe docemente um beijo nos lábios. Viveram juntos durante dez anos. Dez anos de felicidade.

O velho morreu. A casa, o telescópio, a biblioteca e uma pequena fortuna ficaram para a Laidinha.

Um dia, a Laidinha resolveu vir a Portugal visitar a terra natal dos pais. Ela adorava o mar e ficou por cá. Comprou uma casa, mandou vir os livros e o telescópio. Escreveu um livro de poemas e pintou uma dezena de quadros.

Depois de uma penosa gravidez teve uma filha, ninguém sabe de quem. Um dia escarrou sangue. O cardiologista diagnosticou uma estenose mitral severa. Foi operada e depois reoperada.

Dois anos depois morreu com cancro da mama e sem ponta de cabelo onde enrolar a saudade dos seus dedos. Tinha quarenta e dois anos e chamava-se Adelaide.

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Nota do editor

Último post da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25184: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (5): "A Maria nunca mais apareceu"

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25184: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (5): "A Maria nunca mais apareceu"


A MARIA NUNCA MAIS APARECEU

adão cruz

Os olhos, vindos do outro lado do mundo, fundos de ausência, casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não conseguia. O nariz afilava de um só traço o rosto magro, e os cabelos errantes fugiam da testa, cada pedaço para seu lado. A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros, imagem baça do avesso da vida. Uma dor subtil desenhava os lábios maduros, finamente trémulos, como se estivessem prestes a chorar. Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo. Apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade. A Maria olhava-me sempre fixamente, olhos cravados nos meus como que a dizer: - Tu entendes-me, tu és capaz de me compreender. Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos vencidos.

Conheci duas mulheres iguais à Maria, fotocópias da Maria, ambas se chamavam Maria, uma brasileira e outra francesa, uma pisava o teatro, outra o anfiteatro. Inquilina de soleiras e vãos, a Maria pisava a grande cidade da noite. As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento. A mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira. A Maria mijona não tinha idade nem tempo, nem antes nem depois, era apenas instante. Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma. Escolhia sempre a mesa central, desafiando os olhares, vidrando o espaço em seu redor. Comia a sopa, o prato de sempre, como quem tocava violino. Apesar da mão trémula, nem um pingo deixava cair no desbotado regaço, sumido de cores pelo uso e abuso. Se moedas cresciam da sopa, não dispensava o brande, sua única bebida.

Por detrás do corpo sujo de Maria, mordiscava uma beleza intrigante. Tivesse ela banheira e emergiria da espuma, como sereia das águas. Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato, para cá da sombra. Por outro lado, tenho a certeza de que já dormi com ela… ou terá sido um sonho? A Maria nunca mais apareceu. A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro. Não tinha sopa nem brande, apenas falta de ar. Engolira o violino e a música era uma dispneia sibilante, cântico fúnebre gemido pelas entranhas. Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la. Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo com a mão. Afastei-me com a sensação de que tinha profanado um sacrário. A Maria nunca mais apareceu.

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Nota do editor

Último post da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25135: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (4): "Isabelino e Geraldina"

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25158: Blogpoesia (797): "Mãos de hoje que foram de sempre", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


MÃOS DE HOJE QUE FORAM DE SEMPRE

Na noite que já não é mais noite de madrugadas perpassa em doce silêncio por entre os dedos dormentes uma brisa dolente esquecendo as mãos na paz adormecida.

Por entre os frágeis dedos de quietude e silêncio perpassa agora em suave melancolia o magro regato da secura da vida arrastando em seu leito rugoso a triste canção de um tempo sem cor nem movimento.

O lento gesto do abrir destas mãos de tantos anos vividas cai agora em pesado silêncio por entre as malhas da sombra no impiedoso vazio das mãos cheias de nada.

Foi-se embora a madrugada das manhãs perdidas no tempo em que o sol sorria por entre os sonhos e as mãos cantavam a força da vida como ondas do mar entre os dedos frementes.

No penoso abrir e fechar de mãos deste plangente gesto do fim do dia feito canção de tão gélido silêncio apenas a saudade se aninha no fundo escuro para morrer sozinha.

Adão Cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25116: Blogpoesia (796): "A Mensagem que deixaste", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25135: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (4): "Isabelino e Geraldina"



ISABELINO E GERALDINA

adão cruz

Quem se sentasse na mesa em frente, perto da janela, via sempre, não só a velha e esguia Torre dos Clérigos, mas também o Isabelino e a Geraldina a trocarem olhares ternurentos. A empregada do café, uma loura descaída nos anos e no corpo, disse um dia ao Isabelino:
- Isabelino, por que não se junta à menina Giraldina, e deixam de estar aqui, todos os dias, a lamberem-se com os olhos? Até o D. António já virou a cara para o outro lado. Qualquer dia cai da estátua.

O Isabelino, franzino, encolhido, sorriu por entre as falhas dos dentes, e a Geraldina, gorda, roliça e peituda, baixou os olhos meio envergonhada.

- Que Deus lhe dê melhor sorte, disse a mãe da Geraldina, com o dobro da idade e da gordura da filha, avançando a sua presença com um par de repolhudos seios.

- Melhor sorte a quem? Perguntou a loura, passando o pano na mesa.
- A ele, coitado! Ela é um paxá, uma calaceira, não sabe estrelar um ovo nem coser um botão, não faz nada, eu é que faço tudo.

A Geraldina torceu a boca com a maldade da mãe e o Isabelino abriu mais o sorriso e as falhas dos dentes, deixando que tais acusações entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro. Ora, estas conversas aconteceram uma semana antes de a Geraldina ser internada. Ela caíra na rua junto à mercearia e, segundo a peixeira, os INEMs levaram-na para o hospital de Santo António, ali ao lado, onde ficou internada com um esgotamento. O Isabelino ficou muito triste, e quem estivesse perto podia enxergar-lhe umas gotitas de água ao canto dos olhos.

O Isabelino não tinha um emprego sólido, melhor dizendo, o Isabelino não tinha um emprego nem sólido nem frágil, e dizendo ainda melhor, o Isabelino não tinha emprego. Tinha um carro, um desses carrinhos de supermercado que ele abafara, um dia, no Continente. Com ele levava sacos de batatas, cebolas e hortaliças desde o mercado à casa dos clientes. Logo que a Geraldina fosse desinternada, seguiria o conselho da loura descaída. Estava decidido. Havia uns casozitos com a polícia, mas nada de maior. Juntava-se a Geraldina, iriam viver para casa da sua madrinha Porcina, que tinha um quartelho para alugar, ali ao lado da torre, quem desce a rua da Assunção, e passaria a trabalhar a dobrar, ora no mercado grande, ora no mercado pequeno.

Convém saber que todas estas coisas se deram uma semana antes de a Geraldina morrer. A Geraldina morreu, mas ninguém sabe de quê. Há quem diga que foi da pouca sorte, há quem diga que foi destino ou mau-olhado, mas também há quem diga que morreu de amor. O Isabelino como que se esvaziou. Sentiu-se desligado, desbobinado, descalibrado, despovoado, deserdado. Não era preciso estar muito perto para ver que as gotitas de água ao canto dos olhos se fizeram lágrimas. Vendeu o carro por cinco euros ao sobrinho da peixeira e levou sumiço.

Ora, tudo isto aconteceu uma semana antes de a mãe da Geraldina reaparecer no café, acomodar os cento e tal quilos em duas cadeiras da mesa do canto e começar a chorar:
- Coitadinha da minha menina, era uma jóia, era um anjo, tão minha amiga e tão amiga de toda a gente, faz-me tanta falta, trabalhava que nem uma moira, antes Deus me levasse a mim.

A loira descaída pousou a bandeja, enxugou-lhe as lágrimas com um guardanapo de papel e fez-lhe umas festas no cabelo. Do Isabelino ninguém falava. Do Isabelino ninguém sabia. Quem, por acaso, uma semana depois, se lembrasse de descer a Rua da Restauração e ir dar uma volta pelas margens do rio, poderia calhar de ver o Isabelino ali para os lados da Cantareira, carregando às costas uma rede de pesca. E poderia vê-lo, também, sentado junto ao rio, escrevendo com um pedaço de caliça na proa de um barco meio desfeito, o nome giraldina. E se a curiosidade se sentasse junto à margem, na mesa de pedra onde os pescadores jogam a sueca, ouviria certamente dizer que Isabelino andava meio tolinho e estava convencido, coitado, de que Geraldina tinha morrido com saudades dele.

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Nota do editor

Último post da série de 20 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"

domingo, 28 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25116: Blogpoesia (796): "A Mensagem que deixaste", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



A MENSAGEM QUE DEIXASTE

A mensagem que deixaste
como laço da prenda de todos
faz pensar.
Tão sublime que exalta
e tão vaga que oprime.
Leva-nos além do falar
que só não falando se entende.
Por mais serena que seja a luz
e mais suave o convite
não sabemos quem ordena e conduz
se a razão se o palpite
se a chaga ou a lança
se a sorte ou a desdita
ou o sonho que tudo reduz
àquilo que se acredita.
Trememos de frio em dia de sol
e somos ventre de cobiça
nas tardes cinzentas de chuva.
Ressumamos de inveja gotas de suor
na face dos que pensam
sermos nós o melhor.
Subimos o alto dos montes
descemos o fundo dos mares
onde tudo se fecha e se abre
na falsa harmonia dos contrastes
que fazem a ponte entre a noite e o dia.
Nascem algemas de ouro
nos pulsos abertos de sangue
e não sabemos quem seguir
se a alma se a razão
quando neste vaivém de cansaço
uma entra e outra sai
como sangue no coração.
Se o sonho cai desfeito
nas trevas de tudo ter feito
entre a razão e o deserto
não há razão que resista
a uma vida em aberto.
Todos olham e dizem
o que seria bom de sentir…
mas nós não queremos ouvir.
A farsa que a gente é
só dói mesmo de pé
antes de a gente cair.

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25096: Blogpoesia (795): "Os sítios que são só recordações", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS / BCAÇ 3872

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25105: Blogues da nossa blogosfera (185): O que é feito do "Vidas Lusófonas", sítio fundado e animado por Fernando Correia da Silva (1931-2014) ? Fomos revisitá-lo no Arquivo.pt e encontrámos revelações surpreendentes na biografia de Vasco Cabral...

 

1. Há um ano atrás fomos "revisitar" a nossa lista de  "blogues da nossa blogosfera" (*),  blogues e outras páginas (c. 110) que  constavam da coluna estática do nosso blogue, no lado esquerdo (a "aba", como lhe chama o Carlos Vinhal). Há muito  que não era atualizada, essa lista.


Numa verificação por amostragem demos conta  que mais de metade dos blogue e outras sítios (ou "sites")  tinham sido  descontinuadas, já não existiam ou tinham mudado de URL. 

Comentámos então que era o preço que se pagava por uma existência virtual, que é sempre precária, dependente da boa vontade ou dos caprichos dos servidores, das contingências da vida dos fundadores e animadores, etc.

Uma das páginas que seguíamos era a da  "Vidas Lusófonas" (vd. logo acima): 

O sítio era animado por  Fernando Correia da Silva (1931-2014), e outros jornalistas e escritores de língua portuguesa (mais de 3 dezenas de colaboradores). Infelizmente o sítio já não existe... Entretanto, e felizmente,  foi capturado pelo robô do Arquivo.pt (a última captura de écrã terá sido feita em 21 de fevereiro de 2017):



2. O "Vidas Lusófonas" ainda se mudou para a página "A Viagem  dos Argonautas" (onde também é argonauta o nosso camarada Adão Cruz). Aí escreveu o seguinte, em 21 de julho de 2015, a filha do Fernando Correia da Silva, Ethel Feldman:

(...) Queridos colaboradores,

No início, em 1998, tudo indicava que seria mais um projeto utópico de pouca dura. Um site cultural, onde todos os colaboradores estavam empenhados, cujo o intuito era o de partilhar a vida de personagens que fizeram história, cuja língua materna é o português.

O dinheiro não fez parte da equação. A dedicada teimosia de todos mostra que o Vidas Lusófonas só morrerá depois de todos termos partido.

No dia do aniversário da morte do seu fundador, meu pai, cumpro a promessa de um site renovado. A todos quero agradecer a paciência e confiança. O site continua tendo um número de visitas extraordinário.

Que se mantenha assim e sob o lema do Fernando: "Acho que cada vida tem que ser contada como se fosse um romance. Portanto, morra a prosa de notário! Morra a chatice do verbete enciclopédico!” (...)
 

Em quase duas centenas de biografias de gente lusófona,  de A a Z  (de Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé Príncipe, Galiza, etc.) temos também a de Vasco Cabral (**), assinada pelo próprio Fernando Correia da Silva de quem foi colega da faculdade e amigo en Lisboa e depois ao longo da vida fora.  

Com o exílio de ambos, andaram desencontrados mais de vinte anos. Depois de regressar do Brasil, na sequência do 25 de Abril de 1974, o escritor e exilado político Fernando Correia da Silva integra a Federação das Cooperativas de Produção e +e numa viagem a Cabo Verde que reencontra o Vasco Cabral. Aqui vão excertos, com a devida vénia, do que ele escreveu sobre o seu amigo, e figura histórica do PAIGC.


3. Vidas Lusófonas > Biografia de Vasco Cabral  (Farim, 1926- Bissau, 2005)

por Fernando Correia da Silva


 (...) Achamos que o mais correcto seria convencer os operários a tomar conta dos meios de produção abandonados pós 25 de Abril. A ideia vinga e os trabalhadores de umas cinquenta pequenas e médias indústrias aceitam a proposta e assim nasce a Federação das Cooperativas de Produção.

Uma das metas da Federação é promover a compra de matérias primas e a venda de produtos manufacturados. Com a independência das ex-colónias portuguesas o mercado tende a alargar-se. Ainda em 1975 sou mandatado pela Federação para viajar até à Guiné-Bissau, já que Vasco Cabral, o Ministro da Economia da jovem nação, é meu amigo pessoal. 

Foi assim: em 1949 ambos participámos na campanha de Norton de Matos, candidato da Oposição anti-salazarista à presidência da República Portuguesa; em 1950 fomos colegas em Ciências Económicas e Financeiras, ele no 5.º e último ano, eu no 1.º; em 1953 participámos, em Bucareste, no IV Festival Mundial da Juventude (ele como militante comunista, eu apenas como aderente do MUD Juvenil, movimento unitário antifascista). Tanto bastou para firmar a nossa amizade. 

E agora passo a recordar o que vim a saber depois: Vasco é preso em 53 e libertado cinco anos depois. Em 62, numa fuga organizada pelo PCP, Vasco, juntamente com o angolano Agostinho Neto, de barco alcança Tânger. Ruma depois para o sul e vai procurar Amílcar Cabral para formalizar a sua adesão ao PAIGC e, junto com o fundador do Partido, lutar pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Cabral é pura coincidência de sobrenomes porque entre ambos não há qualquer parentesco. Em 63 começa a luta armada.

NA CIDADE DA PRAIA

Por telegrama, combino encontro com o Vasco Cabral em Cabo Verde, onde ele está transitoriamente. Desço na ilha do Sal, um longo, plano e calvo rochedo em alto mar. Dali, num pequeno bimotor sigo para a Cidade da Praia, na ilha de Santiago, esta já arqueada, cumes e vales, litoral recortado, arvoredo à beira-mar.

Na Alfândega, ao apresentar o meu passaporte, dizem-me que há um carro do Estado à minha espera. Sento-me ao lado do motorista. Atravessamos a Cidade da Praia e seguimos pela Marginal rumo à Prainha.

Paramos frente a uma vivenda e no alpendre está o Vasco Cabral à minha espera. Levanta-se e abre os braços, eu corro para ele, o grande e apertado abraço, há mais de 20 anos que a gente não se via. Em 54 eu fugira para o Brasil antes que a PIDE me deitasse a luva, o que parecia estar prestes a acontecer. Porém, sob a euforia do Vasco pressinto um alçapão. A ver vamos aonde é que ele vai dar…

Lá do fundo da vivenda surge então o Mário Pinto de Andrade, angolano meu amigo desde os tempos do Café Chiado, em Lisboa. Mais um longo e apertado abraço. O Mário fora um dos dirigentes da luta pela libertação de Angola. Mas depois da independência saíra do seu país por não suportar a prepotência do seu camarada Agostinho Neto e, na condição de refugiado, viera para Cabo Verde trabalhar na área da Cultura.

Anoitece, deito-me, durmo. No dia seguinte, de manhã, o Vasco convida-me a ir até à Cidade da Praia. Vou. Num clube local disputa umas partidas de ténis. Não tenho jeito para esse desporto e fico na bancada a assistir. Uma hora depois, já cansado, o Vasco vem sentar-se a meu lado enquanto, lá em baixo, outros pares continuam a bater bola. 

Evoco o IV Festival Mundial da Juventude. Sorrindo com malícia, o Vasco pergunta-me pela brasileirinha que eu andava a namorar em Bucareste. Óptimo! , se ele quer brincar talvez consinta que eu abra o seu alçapão secreto… 

Conto-lhe que em datas diferentes eu e a brasileirinha saímos de Bucareste porém marcámos reencontro em Paris. E de Paris rumámos para Lisboa onde viemos a casar em Janeiro de 54. O Vasco espantado com esta aventura mas não paro. Digo-lhe que ela era filha de judeus polacos emigrados para o Brasil e que o seu casamento com um não judeu causara traumas na família, apesar de progressistas serem eles. 

Digo ainda que, de navio, seguimos depois para o Brasil (eu já a furar o cerco da PIDE…) Ao descermos no porto de Santos lá estava toda a sua família, pais, irmão, avó, tios e primos. A avó, que teria mais de oitenta anos, dá-me um beijo e um abraço e, para a neta, diz qualquer coisa que me traduzem:

– Quando se cai de um cavalo, que seja de raça!

Aproximo-me da matriarca, dou-lhe um outro beijo e relincho.

O Vasco mata-se a rir com a história. Aproveito a galhofa para tentar abrir o alçapão. Pergunto-lhe como é que fora assassinado o Amílcar Cabral. Apesar de renitente, conta-me que um grupo de ex-guerrilheiros do PAIGC, controlados pela tropa colonial e pela PIDE, assaltara a sede do PAIGC na Guiné-Conacry, matara o Amílcar e preparava-se para matar outros dirigentes como o Aristides Pereira, o Pedro Pires e o próprio Vasco, quando Seku Touré, presidente da Guiné-Conacry interviera e frustara a tentativa. Pergunto depois se o bando de assassinos tinha sido caçado e justiçado. Responde-me o Vasco:

– Não quero falar disso.

E não fala, ponto final. Mas não desisto. No fim de tarde, ao regressar à vivenda na Marginal, puxo o Mário para o pátio e peço-lhe que me explique a agonia do Vasco. E ele explica ou tenta explicar:

Fernando, tu não sabes o que é a luta armada. Nem podes imaginar o que é ser traído por antigos companheiros de armas, a pretexto do tu seres cabo-verdiano e eles serem guineenses.

– Compreendo, ou tento compreender. E o Vasco caçou os assassinos?

– Todos.

– Quantos eram?

Mais ou menos cinquenta entre matadores e cúmplices. Caçou e executou ou mandou executá-los. É por isso que ele anda sorumbático, porque cada um dos executados tinha sido seu companheiro de armas, portanto tinha sido seu amigo. Compreendes?

Sim, compreendo. Magoado, mas compreendo…

No princípio da noite um carro, acompanhado por quatro motociclistas, pára frente à vivenda. É Pedro Pires, o primeiro-ministro de Cabo Verde que vem despedir-se do Vasco, o qual viaja amanhã para Bissau. Eu também viajarei amanhã, mas num voo diferente. Não quero ser intrometido e recolho-me lá para os fundos da vivenda. Porém, pouco tempo depois o Vasco vai buscar-me e apresenta-me o Pedro Pires. É uma simpatia de homem. Entre outras coisas pergunta-me:

– Como é que vai a Reforma Agrária portuguesa? Vinga?

E eu respondo:

– Se o folclore revolucionário for substituído por uma eficiente gestão económica, não há quem possa destruí-la. (...)

(Seleção, transcrição, revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de edição deste poste, com a devida vénia, e à memória do autor: LG. )

4. Outras vidas lusófonas (apemas uma amostra) que podem ser lidas, no sítio agora recuperado pelo Arquivo.pt:

Amílcar Cabral (1924-1973) (Guiné-Bissau), por Carlos Pinto Santos

Eugénio Tavares (1867 - 1930), (Cabo Verde) por Carlos Lopes

Fernando Correia da Silva (1931 - 2014) (Portugal), por José Brandão

Joaquim José da Silva Xavier, "O TIraddentes" (17446 - 1792) (Brasil), por João Sodré 

Joshua Benoliel (1873-1932) (Portugal), por Fernando Correia da Silva

Mário Pinto de Andrade  (1928 - 1990) (Angola(, por Fernando Correia da Silva

NGungunhane (c.1850 - 1906) (Moçambique),por Carlos Pinto Santos

Rainha Jinga (1582 - 1663) (Angola), por Fernando Correia da Silva

Salgueiro Maia (1944 . 1992) (Portugal), por Carlos Lopes

Samora Moisés Machel (1933 - 1986) (Moçambique), por Fernando Correia da Silva)

sábado, 20 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"



MULHER 5 ESTRELAS

adão cruz

- Ó Alves, escusas de estar para aí muito chateado por eu ter ido dormir com o meu ex, apenas com o fito de lhe gamar umas sapatilhas para o meu filho. E não te armes, pois tens à tua frente uma mulher 5 estrelas, que te ama, e é capaz de te mandar um pontapé nos tomates da noite pró dia.

A mulher 5 estrelas não era nova nem velha, tinha aquela idade subjectiva em que ninguém acerta. Era magra, quase escanzelada, e até não seria feia se tivesse dentes. Daí, a resposta do Alves não ser de todo descabida:
- 5 estrelas, o caralho!

O Alves ainda não tinha o estigma da terceira idade mas andava lá perto. Baixo e estreito, tinha aquela estatura que habitualmente se designa como roda 26. Devia ter tido um AVC, pois apresentava um pequeno desvio da comissura labial e soprava ligeiramente as sílabas graves, assobiando as agudas.

Ninguém tem nada com a vida dos outros e muito menos a D. Alice que por ali aparece, para comer uma torradinha e beber meia de leite, quando o negócio das cuecas e camisolas a um euro ou dos guarda-chuvas assim o permite.

- Coitada, e apontava o dedo à mulher 5 estrelas. Foi casada com um médico, não era bem um médico desses doutores de Medicina, era uma espécie de endireita. Um dia ele caiu de uma figueira e nunca mais se endireitou. Como não foi capaz de se endireitar a si próprio, nunca mais ninguém acreditou nele. E caiu outra vez, mas na miséria. Esta pobre, e estendeu o dedo na direcção da mulher 5 estrelas, ficou sem eira nem beira, com um filho nos braços (supomos que o mesmo que a levou a dormir com o ex). E, é claro, pôs os cornos ao marido na primeira esquina da vida. (A mulher 5 estrelas acenava com a cabeça em jeito de confirmação e aprovação. E inventou uma lagrimeta nos olhos).

- Mas não foi com este borradito, continuou a D. Alice com o dedo espetado no Alves. Este veio na onda da desgraça. Não é má pessoa, mas teve um ABC e ficou com a boca a tocar flauta e a mão a pôr açúcar nas farturas. O que lhe tem valido é a fé da velhota dele, ali sempre ajoelhada na Capela das Almas a pedir a cura. O certo é que está muito melhor e só quero que o Senhor o conserve. Do mal o menos. Ai Deus me perdoe, não leves a mal, ó Alves, mas sabes que é por bem que eu digo estas coisas e não era capaz de dizer mal do meu genro, ainda que meio emprestado.

Só aí ficamos a saber que a mulher 5 estrelas era filha da D. Alice e que o Alves fazia o papel de genro mais ou menos oficial. Portanto retirámos, neste caso, a observação de que ninguém tem nada a ver com a vida dos outros. Ela tinha.

O Alves não parecia lá muito contente com a conversa e já estava com os cabelos em pé. Por acaso não estava porque os não tinha. Quando foi danificado pelo AVC, os seus papéis foram trocados pelos de um outro doente que era cauteleiro e tinha um tumor cerebral. Aplicaram-lhe uma valente dose de quimioterapia que lhe fez cair tudo o que era pêlo. Quando deram pelo engano, já ele se queixava de quase tudo e até que mijava às pinguinhas. O médico disse que era da prósta e deu-lhe um daqueles remédios que amolecem o órgão mas põem um gajo a ejacular ao contrário, a ejacular para dentro. Por isso lhe fazia uma grande espécie quando ele batia uma e sentia todo aquele doce no baixo-ventre mas nem uma gota. Também por isso a mulher 5 estrelas lhe dizia que ele era uma malagueta seca. Com ele não precisava de tomar a pírula, ao que ele retorquia dizendo que nem com ele nem com outro, pois ela já tinha o úter fora de prazo.

E assim se passou um bocado da tarde entre dois finos, com o Alves a levantar-se da cadeira para depor ternamente um beijo na face da mulher 5 estrelas, esta a sorrir tapando a boca com a mão espalmada, a D. Alice a lamber os dedos besuntados de manteiga, e nós a virarmos a última página do jornal, desiludidos com as mentiras e as hipocrisias deste mundo.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"

domingo, 14 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"


A RAINHA

adão cruz

Dizem que toda a vida sonhara ser Rainha. Rainha de qualquer coisa, já que não podia ser Rainha a sério. Por isso, no bairro, todos lhe chamam Rainha. A Rainha para aqui, a Rainha para ali.

Não que haja, em bairro tão pobre, qualquer tipo de estatuto, hierarquia ou respeito especial. Não é um bairro onde os respeitos tenham degraus. No entanto, a Rainha, talvez pela idade, é assim uma espécie de pessoa honoris causa, uma espécie de Rainha-Mãe.

Dizem que é a prostituta mais antiga da cidade. Dizem que anda pelos oitenta, mas não precisam de o dizer. Está escrito nas engelhas. Trabalha na parte oriental da cidade, na zona oposta à do bairro onde vive. Noutro reino. Para não misturar as coisas.

Chega um pouco antes da meia-noite, ao único café aberto àquela hora. Senta-se sempre na mesma mesa, se estiver vaga, e na mesma posição. Virada para a porta. Com ela traz o filho e dois netos. O filho, alto e desengonçado, com um pequeno bigode à Hitler, mudo como uma pedra, não fala, e mal se senta não se mexe. Talvez fale para dentro, mas como falar para dentro é pensar, não é provável, porque ele dá a ideia de que não pensa. Dizem que nunca trabalhou e que sempre viveu à custa da mãe.

A neta, dos seus doze anos, engraçadinha, dá a entender que nada existe nem nunca existiu à sua volta. Não mexe uma fibra do corpo. Apenas os polegares, para premir, ininterruptamente, as teclas do telemóvel. O rapaz cola cromos numa caderneta como se, para ele, mais nenhuma tarefa houvesse neste mundo.

A Rainha e o filho comem um prego com mostarda, como quem cumpre um ritual, com os olhos fitos no nada, e bebem um fino. Ele, em duas goladas, ela, aos bocadinhos. Os netos comem hambúrger e bebem algo que está dentro de garrafinhas muito coloridas. E repetem, até à uma hora da madrugada. Entre a uma e as duas horas, o sono vence-os e eles tombam sobre a mesa. O pai pede mais um fino.

Por volta da uma hora, a Rainha mexe-se. Olha para os dedos enrolados em anéis de vários tamanhos e cores, compara-os com as argolas enfiadas nos pulsos magros, a ver se condizem, alisa as roupas e as repas que, teimosamente, saem do gorro vermelho, confirma a cor vermelha das unhas e das meias, espreme os lábios, onde o batom resvala para fora dos bordos e das comissuras por imprecisão das mãos secas e trémulas, sulcadas de veias. Com dificuldade põe a carteira a tiracolo, levanta-se um tanto cambaleante e sai. Dizem que vai trabalhar mas ninguém sabe para onde.

Cinco minutos antes das duas horas da madrugada regressa, antes de o café fechar. Paga a conta, o pai acorda os putos com um safanão, único gesto verdadeiramente activo da noite, e todos, como sonâmbulos, desaparecem na escuridão da rua, dizem que em direcção a casa, no bairro onde a mais antiga prostituta da cidade é Rainha.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"