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segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24370: A galeria dos meus heróis (50): Diz-me quem foi o teu pai... (Luís Graça)

 


A galeria dos meus heróis > Diz-me quem foi o teu pai…

por Luís Graça (*)


Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

Quem, o Ulisses?

 Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

 Já agora retifica: ex-cunhado... Mas nunca fomos à bola um com o outro.

E eu aproveitei então para esclarecer, o meu interlocutor, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… Mal saiu a amnistia aos faltosos, refratários e desertores, voltou à sua terra para abraçar o paizinho e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, mal nos vimos. Mas ainda me lembrava dele na escola, ao ex-cunhado de Jorge, hoje o senhor embaixador com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola acrescentou o Jorge.

Foi um sortudo, o Ulisses!...

Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

A dona Natércia?!... exclamei eu. A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

Há,  sim. E a nossa terra não teria agora  atalhou o Jorge uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe", estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou-me o Jorge, uns bons anos mais velho do que eu. − Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... (Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos.)

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.   Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa.

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrei eu.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o nosso historiador local, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da terra, vim a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época.

Claro, o pai Anselmo visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante 20 e tal anos mais nova.

Mas… exilado, dizes tu?!

É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

 À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como alguns que a gente conheceu. Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou comigo,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorger  a completar a minha frase.

E depois elucidou-me:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube muito mais tarde... Também nunca vi semelhante humilhação aos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste dos primeiros da terra a marchar para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o senhor Anselmo.  

Das suas origens do Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios.

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadmizada.

Os negócios do senhor Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a tímida abertura da economia, ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém. Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos".)

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. O Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. O Jorge achava que ele era do "reviralho"...

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política comigo. Nem nunca o ouviu falar de política com os filhos.

Também é verdade, sempre declinou o insistente convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca.

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. Em boa verdade, a razão não era essa: ele movimentava mais dinheiro que a câmara toda, dependente das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, e elevação de espírito, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... Acabou,  no entanto, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Todavia, sabia-se pouco da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indaguei eu.

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que sempre me pareceu mais verosímil ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distància, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir à  arte xávega e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a muher e os filhos detestavam... preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial era menos considerado socialmente do que o comerciante. O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) destas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano, o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE . Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, outra assistentes social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório das empresas.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses ainda foi meu colega de escola… Mas não propriamente meu amigo, Separavam-nos três anos e os seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de menino rico… Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que eu nunca pude frequentar. Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos. 

−  Tudo combinado com o pai, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida trocou-lhe as voltas − acrescentei eu.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena melodramática que terá feito lá em casa, "preferia ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". A mãe era uma senhora conservadora,   beata e amiga dos pobres. E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se política naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente... Formou-se em direito europeu na Holanda, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematei eu. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  Mas temos de reconhecer que teve um bom pai.

© Luís Graça (2023)




Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934.  São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a  Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

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Nota do editor:

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24272: 19º aniversário do nosso blogue (4): A pior democracia é sempre melhor do que a melhor das ditaduras (Luís Graça / J. Sarmento)


1.ª página do "Diário de Lisboa", 2.ª edição, 28 de fevereiro de 1969 > Excerto> A noite em que a terra voltou a tremer, violentamente, 70 anos depois... Estava eu e o Sarmento em Castelo Branco, mobilizados para a Guiné. Custava  o jornal um escudo e ganhávamos nós, como 1.ºs  cabos milicianos, 90 escudos de pré (equivalente, a preços de hoje, a 30 euros).

Fonte: cortesia de Hemeroteca Digital | Càmara Municipal de Lisboa.

Peniche > Museu Nacional da Resistência e Liberdade , o  15.º Museu Nacional > 27 de abril de 2019

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Por ocasião do 19.º aniversário do nosso blogue, esperávamos poder contar com a publicação de alguns textos inéditos dos nossos camaradas, que são os nossos primeiros colaboradores, autores e leitores. Até ao próximo dia 13 de maio, ainda aceitamos "material" para inserir nesta série. 

Neste quarto poste, republicamos um texto de J. Sarmento, velho conhecido do nosso editor, Luís Graça (dos tempos do CISMI, Tavira, 1968), e que já tem quatro anos (*). Foi revisto nesta data.  Tem uma introdução, um pouco longa (e que vai em itálico), em que se explica como é que ele surgiu aqui no blogue.


Peniche, ou melhor, o forte de Peniche, era talvez o lugar mais improvável para reencontrar um dos poucos camaradas, do tempo do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), em Tavira, de quem eu guardava uma nítida (falando da sua fisionomia) e sobretudo grata recordação (no que dizia respeito ao convívio e à camaradagem)... Refiro-me ao Sarmento, ao J. Sarmento (nome fictício, a seu pedido, para proteger a sua privacidade).

Tínhamos em comum o gosto e a paixão pela escrita, pelo jornalismo pelo "Diário de Lisboa Juvenil". Ele era do 
Fundão, de uma terra chamada Alpedrinha, sabê-lo-ei mais tarde. E chegara a colaborar, enquanto jovem, no prestigiado "Jornal do Fundão", criado em 1946, por António Paulouro, e um dos raros jornais independentes que existia no Portugal desse tempo... Eu também vinha do jornalismo regionalista, onde aprendi a fintar a censura…

Em Tavira, no quartel da Atalaia, no CISMI, o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos (CSM), colaborávamos no jornal de parede. Recordo-me que tínhamos uma equipa editorial, composta por vários soldados-instruendos que tinham dado como profissão o jornalismo… 

E, claro, tínhamos,  um "diretor". O comandante da unidade, um tenente-coronel ou coronel, já não me recordo qual era o posto, zelava pela "orientação editorial do jornal" e, cumulativamente, pelo moral da tropa (e, o mesmo era dizer, pela  moral da Nação). 

Miúdas de peitos fartos, generosos, de bicos espetados, e "bundas" (como se diz hoje, na gíria brasileira) largas e redondas, loiraças, provocantes, anglo-saxónicas, francesas ou escandinavas, eram bem vindas e aclamadas: afinal de contas, "os nossos  soldados-instruendos estavam na flor da idade" (sic), precisavam de ter sonhos cor de rosa à noite... Sim, porque os sonhos verde-rubros das grandezas do império não davam tanta "pica"... a avaliar,aliás, pela rarefacção dos heróis que se dispunham a bater-se (e a morrer) por eles...

Também havia a rádio CISMI, se bem me lembro, que nos acordava em altos berros logo pela madrugada… (Eram uma tortura aqueles altifalantes!)... Mas eu e o Sarmento pertencíamos à equipa do jornal de parede, distista da rádio. Tínhamos alguma liberdade para trabalhar , todavia havia limites para a "desbunda": recordo-me de, um belo dia, ele, comandante, director, censor-mor, lídimo representante do Exército e da Nação, ter-nos obrigado a mandar para o lixo uma vasta e luxuosa edição especial, uma verdadeira enciclopédia, ilustrada, com dezenas e dezenas de fotos, infografias, gráficos, quadros estatísticos, mapas e recortes, dedicada à II Guerra Mundial e ao "nazifascismo" (que palavrão!). Foram horas e horas de trabalho, roubadas ao sono, que acabaram ingloriamente no caixote do lixo!

O argumento do censor-mor era de peso (e até de bom senso, tenho o de reconheer hoje...). Era um argumento definitivamente pedagógico e sobretudo retumbante: "Meus senhores, para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar. Ponto final, parágrafo!"... Como, de resto, iríamos comprovar dentro de escassos meses... 


Quis o destino que tirássemos, os dois, eu e o Sarmento, a especialidade de armas pesadas de infantaria, e que depois fôssemos mobilizados para a Guiné, não sem antes termos ido ainda dar uma rápida recruta, como 1.ºs cabos milicianos, em Castelo Branco, no BC 6, se não erro... Estávamos lá os dois quando foi o terramoto de 28 de fevereiro de 1969... O "nosso" já acontecera umas horas antes, com a ordem de mobilização para a Guiné... Ganhávamos 90 escudos de pré, o que em 1969 equivaleria hoje a 30 euros, mal dando para comprar o "Lisboa" , comer uma sandocha e tomar uma "bica", uma vez por outra... (Recordo que, meio "anestesiado", dormi que nem um justo nessa noite, não tendo sequer acordado com o pânico ou o alvoroço que se gerou na caserna, com malas, candeeiros e até cacifos metálicos a caírem com o violento tremor de terra.)

Embarcámos no mesmo dia e no mesmo navio, o "Niassa",  três meses depois, em 24 de maio de 1969. Convivemos ainda nesses cinco dias de viagem, especulando sobre o incerto mundo e a  estranha terra que nos esperavam. Mas, chegados a Bissau, cada um seguiu o seu inexorável destino, depois de dois ou três dias nos Adidos. 

Apesar das promessas de irmos dando notícias por carta ou aerograma, acabámos por perder o rasto um do outro. Como aconteceu com outros efémeros amigos que íamos fazendo pelas estações do calvário da tropa: Caldas da Rainha, Tavira, Castelo Branco, Santa Margarida... Em todo o caso, não tenho qualquer memória da passagem do Sarmento pelo RI 5...Aliás, tenho poucas memórias do RI 5.

Foi preciso esperar meio século para, num bambúrrio de sorte, nos encontrarmo-nos e nos reconhecermo-nos, aos 72 anos !... Eu e o Sarmento, logo na cerimónia da celebração dos 45 anos da saída dos presos políticos da cadeia de Peniche, dois dias depois do 25 de Abril de 1974.

Fui lá, ocasionalmente,  acompanhando a  minha mulher que queria recordar os momentos, de grande ansiedade e euforia, em que fora dar um abraço a um dos seus amigos, colega de trabalho, que estava a cumprir pena de prisão. Ela não tinha a certeza  de que ele viria a essa cerimónia dos 45 anos, que era também a da inauguração do novo Museu Nacional da Resistência e Liberdade. Mas a verdade é que o amigo veio,  e para mais 
com a filha e a  neta. A minha mulher voltou a fazer-lhe uma festa, abraçando-o e beijando-o efusivamente. A seu lado estava  imaginem!   nem mais nem menos, o Sarmento, e mais um amigo dele. Como virei a saber mais tarde, era o Sarmento em pessoa. Naturalmente, irreconhecível ao fim de tantos anos...

Há 45 anos atrás, na Cadeia de Peniche, foram longas horas de espera e mesmo assim não saíram todos os presos. Os fuzileiros tinham recebido instruções, da Junta de Salvação Nacional, para não deixar sair os presos condenados por "crimes de sangue" (sic)... Enfim, acabaram por sair todos, graças à forte mobilização e resiliência da multidão que se juntou frente aos portões da fortaleza de Peniche, e que foi gritando, até ao fim do dia 26 e princípios do dia 27, "ou saem todos ou não sai nenhum"... E a verdade é que saíram todos na madrugada do dia 27 de abril de 1974...


Eu não estive lá nessa altura, trabalhava e vivia em Mafra, e nem sequer namorava ainda com a minha futura mulher. Mas, ao que parece, um dos tipos que foi solto era também um amigo, conterrâneo ou familiar do Sarmento, alegadamente preso e condenado por pertencer à LUAR.

Quarenta e cinco anos depois, na comemoração dessa efeméride, e de entre os mais de dois mil e quinhentos presos políticos, que passaram por Peniche, entre 1933 e 1974, estavam alguns, talvez algumas dezenas, dos sobreviventes, agora todos eles de cabelos grisalhos... Lá estavam, aparentemente felizes e orgulhosos, de cravo ao peito, nesse sábado, dia 27 de abril de 2019. A fortaleza, monumento nacional, passava também a ser a sede do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, o 15.º museu nacional.

Curiosamente, entre os VIP presentes, sentados, frente ao palco, descortinei o Jerónimo de Sousa, deputado e secretário-geral do PCP (e, que eu soubesse,   nunca fora preso pela PIDE/DGS). Há uns anos atrás é que eu viera a descobrir que ele fora também  mobilizado para o TO da Guiné, tendo embarcado no "Niassa", em 24 de maio de 1969, comigo e com o Sarmento e mais uns mil setecentos e tal militares, sem sabermos naturalmente nada dele nem ele de nós. Éramos uma série de  companhias independentes, além de vários pelotões, incluindo uma companhia de polícia militar a que pertencia o ex-soldado condutor auto, da companhia de polícia militar, a CPM 2537, Jerónimo de Sousa.

O Sarmento não sabia, nem sequer suspeitava, dessa coincidência, de resto já aqui relatada no nosso blogue. Também não revelou particular interesse pela presença do dirigtente comunista, nosso antigo camarada de armas. Mas fui eu quem lhe revelei esse segredo de Polichinelo, nessa manhã,  depois de sermos apresentados um ao outro pelo ex-preso político, amigo e colega de trabalho da minha mulher.

Palavra puxa palavra, falou-se do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mas o Sarmento só me conhecia por Henriques... Afinal o Graça e o Henriques era a mesma e única pessoa... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, conclui eu, algo embevecido. Caímos, naturalmente, nos braços um do outro!

Diga-se, em abono da verdade, que o Sarmento já em tempos tinha procurado saber do meu paradeiro através do blogue, e estava para me contactar, até porque queria trazer os netos à Lourinhã, para uma visita ao DinoParque, o parque dos dinossauros que é o maior da Europa, e está justamente localizado na terra onde eu hoje moro e onde nasci. (Enfim, perdoem-me a publicidade, mas é por uma boa causa!)... Não foi preciso, afinal: reconhecemo-nos em Peniche, em 27 de abril de 2019, por um mero (mas feliz)  acaso... 


Enquanto os ex-presos políticos ficaram a partilhar as suas doridas memórias da cadeia de Peniche, eu e o Sarmento pusemos a "escrita" em dia, falando dos tempos de Tavira, de Castelo Branco, da nossa memorável viagem no "Niassa" e das nossas desventuras por terras da Guiné, eu no leste, ele no sul... 

Não sei qual de nós teve mais sorte, no TO da Guiné: mais emboscada menos emboscada, mais mina menos mina, andámos os dois na "porrada", eu numa companhia africana, ele numa companhia independente, adida a um batalhão . Nada do que aprenderamos em Tavira nos serviu. E a arma que nos distribuíram foi a G3. Nunca tivemos nem manejámos armas pesadas, canhões sem recuso, morteiros, bredas, brownings...

Antes de despedirmo-nos, trocámos endereços de email e números de telemóvel e prometemos encontrarmo-nos na Lourinhã, no próximo verão de 2020, nas férias grandes escolares dos netinhos... Eu prontifiquei-me a fazer-lhe uma visita guiada pelo DinoParque, para cuja criação, de resto, também dera a minha pequena, modestaíssima, contribuição enquanto sócio e membro, há uns largos anos atrás, dos corpos sociais do Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã (GEAL) que está na génese do "museu da Lourinhã" e, mais recentemente, do DinoParque. 

Infelizmente, no verão de 2020, estávamos todos em casa, confinados, acabrunhados, surpreendidos pela pandemia de Covid-19. E a ideia do reencontro, na Lourinhã, foi esmorecendo... Até hoje. (Pelo meio, meteram-se entretanto problemas de saúde, de um e do outro.)

O Sarmento, que vivia então  nos arredores do Fundão, numa "quintinha cheia de belas cerejeiras", depois de ter feito uma carreira como professor de filosofia, no ensino secundário, na área metropolitana de Lisboa, havia-me, contudo,  prometido mandar um pequeno texto para o blogue, para a minha série, "A galeria dos meus heróis"... Não só prometeu  como cumpriu. Com a seguinte mensagem, passados dois dias:

"Henriques, ou melhor Graça, velho amigo e camarada de armas (pesadas): Não me peças mais para escrever sobre a tropa e a guerra. Já fechei há muito esse departamento. Por amizade e apreço pelo teu trabalho de mineiro das nossas memórias, mando-te este texto que me saiu de rajada. Vê se era isso que tu querias. Até ao próximo verão, no Dino Parque da Lourinhã. 29 de abril de 2019. Sarmento".

Matando, de vez, a minha veleidade de o convidar para integrar a nossa Tabanca Grande, ele foi definitivo e peremptório na sua resposta:

"Muito obrigado, camarada, mas o tempo não volta atrás... E depois, os professores de filosofia, mesmo reformados, são chatos, e pior ainda, incómodos. Tenho as minhas cerejeiras para tratar. E os meus netos para ver crescer. As cerejeiras são árvores delicadas. E os meus netos são a maior riqueza que eu deixo, quando morrer. E não quero que eles passem o que eu já  passei. Quero para eles (e para os teus e os  vossos netos) um país e um mundo muito melhor do que o país e o mundo em que eu nasci, vivi, penei e fui obrigado a fazer uma guerra, contyra a minha consciència. Por favor, não me peças para voltar a falar desses tempos cruéis."

Texto introdutório: LG
___________


A melhor ditadura é sempre pior
que a pior democracia

por J. Sarmento (2019)


Os portugueses, soturnos e fatalistas, escrevem nas portas interiores das casas de banho: "Isto é uma merda". Os espanhóis, cínicos mas encantadores, escrevem um bilhetinho e põem-no na porta do elevador: "Disculpen las moléstias".

O pequeno almoço é uma merda, casqueiro com marmelada, e a Internet não funciona, o quarto do hotel é horroroso,já passaram por aqui milhares de motoristas de camiões TIR e putéfias (desculpem-me as feministas!). As paredes estão pintadas a cor de vómito e de esperma requentado. Mas o gerente não tem que ser simpático, apenas tem que saber gerir o bordel espanhol que a agência de viagens nos arranjou à beira da estrada, na periferia de Cáceres. (Éramos, nessa altura, um grupo de reformados de visita à  Espanha romana com capital em Mérida,  aliás a cabeça da então  Lusitânia. )

Com a violência de género a aumentar exponencialmente em Espanha, eram as espanholas que então gritavam, em manifestações de protesto na rua: "Disculpen las moléstias..., pero nos están matando".

Que pena, eu nunca ter estado em Espanha antes do 25 de Abril, nem conhecer nenhum espanhol e muito menos nenhuma espanhola. Minto, conhecia alguns galegos, que tinham tascos e carvoarias em Lisboa ou eram amola-tesouras. Ia-se a Espanha, nesse tempo, só com passaporte. Há séculos que havia uma fronteira, com gajos façanhudos, mal encarados, armados,  de um lado e do outro, como em todas as fronteiras.

Mas a maior parte dos portugueses deu-se ao luxo de dispensar o passaporte e o controlo fronteiriço e foi "a salto", com a mala de cartão às costas. Só lhe interessava chegar aos Pirinéus franceses. A partir daí, era outra vida, outro mundo, o "eldorado" (pensavam muitos, coitados)... Desgraçadamente, o "paradis"  de França, era o "bidonville" e os "chantiers", o bairro de lata e os estaleiros de construção. Nunca ninguém ofereceu, em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, o paraíso aos imigrantes...

Dava-me jeito ter aumentado o meu léxico com essa deliciosa expressão idiomática espanhola: "Disculpen las moléstias!"... Dava-me jeito quando fiz a tropa e fui mobilizado para a Guiné para defender uma parte da Pátria que não era minha. Estava disposto (ou pelo menos fui educado para isso, na escola de Alpedrinha) a dar a minha vida pela parte da Pátria que era minha, a minha terra, a terra dos meus pais, avós e demais antepassados, os meus filhos e netos, as minhas cerejeiras...

Faço a minha declaração de interesses: não fui faltoso, nem refratário, muito menos desertor. Também não fui herói. Nunca me bati à cruz de guerra. O tenente Esteves, no CISMI, Tavira, ainda bem tentou cantar-me a cantiga do bandido: "Eu sou devedor à Pátria, / E a Pátria me está devendo, / A Pátria paga-me em vida, / Eu pago à Pátria em morrendo"...

Quem disse que "é doce morrer pela Pátria", que dê um passo em frente... Aprendi na tropa a não ser voluntário para nada, e muito menos para morrer aos vinte e poucos anos... (Tinha vinte e dois, quando recebi o batismo de fogo.)

Eu nunca consegui perceber os  discursos patrioteiros do tenente Esteves, dizendo-me que eu, o Henriques e mais uma chusma de soldados-instruendos do CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, vindos dos quatro cantos de Portugal, éramos "a fina flor da Nação"... Gajos que tinham o 5.º ano dos liceus ou equivalente. Outros até  o 7.º ou o 7.º incompleto. Sempre tinham mais letras do que a grande maioria da população, é verdade. Mas quem é que frequentava o liceu naquele tempo? Só nas capitais de distrito havia liceus, nas vilórias como as nossas havia alguns colégios particulares, incluindo seminários (como o do Fundão onde estudou o grande escritor Virgílio Ferreira, e foi essa experiência que o inspirou, e o levou a escrever a "Manhã Submersa").

Para mim, desde os quinze anos, em 1965, quando comecei a escrevinhar e a interessar-me pela vida política, tinha a estranha perceção de que era "a fina flor, sim, mas... do entulho". Na terreola onde nasci, lá nas berças... E era isso, que escrevíamos, por outras palavras, nos jornais de caserna em Tavira... Eu, o Henriques e outros soldados-instruendos de quem já não recordo nem nomes nem caras.

Fiz questão, há uns largos anos atrás, de visitar o antigo quartel da Atalaia, em Tavira, depois de lutar durante mais de quarenta anos contra a minha fobia em relação às coisas da tropa e da guerra, que me deixaram um amargo de boca e um arreigado sentimento antimilitarista. As fobias não se explicam... Os preconceitos têm raízes fundas, daí não ser fácil extirpá-los. No realidade, baseiam-se em experiências mais ou menos desagradáveis de cada um de nós (e, muitas vezes, na ausência efetiva de contacto com o objeto do preconceito).

Achei o quartel ainda muito mais pequeno do que no meu tempo. Ridiculamente pequeno,  liliputiano. Aquilo parecia o "Portugal dos Pequenitos". Não sei como é que, naquele espaço diminuto, cabiam tantas cabeças e pernas e braços, fardados, éramos algumas centenas de jovens na flor da idade, já com carimbo na caderneta e destino marcado: "Mobilizado para servir a Pátria na províncias portuguesa ultramarinas de... Angola, ou Guiné, ou Moçambique".

Por muito que eu me esforçasse, não consegui reviver os dois meses e meio que aqui passara, no último trimestre de 1968... Não consegui chamar até mim os fantasmas de alguns instrutores e comandantes de companhia, como o Robles, o Trotil e o Esteves a quem batíamos a pala com temor e reverência... Não me recordo do Robles, já não era do meu tempo, mas o seu fantasma pairava no ar... Eram heróis, "cacimbados", da guerra de Angola, dizia-se...

Do Esteves, que foi meu comandante de companhia, meu e do Henriques, e tinha o posto de tenente, recordo-me da sua única frase de digna de antologia: "Vocês são a fina flor da Nação"... E a malta repetia, baixinho: ... "fina flor do entulho"... Fina flor da merda da feira do gado da cidade, onde rebolávamos às quintas-feiras, fina flor da merda das salinas de Tavira, fina flor da merda das bolanhas da Guiné...

Nunca me passou pela cabeça, a não ser agora, que estou reformado, mas eu devia ter apresentado, no regresso a casa, um "pedido de desculpas"... Devia ter devolvido a massa que o exército me pagou. O que era complicado: o "patacão da guerra" que ficou amealhado no banco, foi para a vida de estroina dos primeiros meses, na peluda, em Coimbra e depois Lisboa, e para pagar dívidas da família: as propinas do colégio da mana mais nova, num colégio de padres, na capital de distrito; um adiantamento para as despesas da boda da mais velha; um adiantamento ao velhote para o compensar dos calotes dos clientes...

Deviam-me ter pedido desculpas e aceitar de volta o "patacão sujo da guerra" (a expressão, acho que era do Henriques), que me pagaram a troco da intrujice de me considerarem parte integrante da "fina flor da Nação"... 

Acho até que fui vítima de um erro de "casting", devem ter-se enganado no nome e morada... (Naquele tempo ainda não havia código postal!)... Certamente  por engano dos serviços mecanográficos,  devo ter ido em lugar de um gajo qualquer da elite, da fina flor da Nação, que, esse, sim, é que devia ter combatido (e até morrido, em caso de necessidade...) pela Pátria ou pelo menos pela parte da Pátria que lhe pertencia. Para mim a Pátria estava dividida em duas partes: a que não era minha e a que era minha... Confesso, no entanto, que a linha divisória não era facilmente percetível e reconhecível...

"Fina flor do entulho" voltei a sentir-me eu, quando fui preso pela PIDE/DGS, depois dos acontecimentos da Capela do Rato, logo nos primeiros dias de janeiro de 1973. Ainda hoje estou para saber qual foi o meu crime e o móbil do meu crime...

Tinha vindo da Guiné há um ano e tal, em março de 1971. Completei o sétimo ano e matriculei-me na Faculdade de Letras, em filosofia, no ano letivo de 1972/73. Nunca me filiei em nenhuma "organização subversiva" (como então se dizia), contrariamente ao meu amigo da LUAR, que estava preso em Peniche no dia 25 de Abril de 1974, e que acompanhei 47 anos depois. Muito menos andei a pôr bombas e sabotar os navios de transporte de tropas, ou as Berliet do Tramagal, ou os helis de Tancos. Estava demasiado cansado da guerra para voltar a "pegar em armas"... mesmo que a causa fosse justa. E, de resto, nunca fora (nem tivera jeito para) "rambo".

"O Grito do Povo", órgão
da OCMLP, nº 19
outubro / novembro de 1973.
Fonte: Casa Comum,
com a devida vénia
Como é que eu fui parar à António Maria Cardoso e depois a Caxias, ainda hoje  estou por saber, essa informação está omissa na ficha da PIDE/DGS que eu consultei na Torre do Tombo. Ou pura e simplesmente desapareceu. Estive detido três meses e tal,  sem culpa formada, e fui submetido à tortura do sono, como era uso e abuso  na António Maria Cardoso... 

Queriam  nomes e moradas!... Por muito boa vontade que eu tivesse (pudera, debaixo de porrada!), não tinha nomes para dar, aos pides, sobre a "rede" a que eu alegadamente pertencia: chamavam-lhe "O Grito do Povo", uma organização que se destacava, na altura, pela denúncia da guerra colonial e pelo apoio aos desertores e exilados políticos... (Soube mais tarde que "O Grito do Povo" passou a ser, em dada altura, em meados de 1973,   o órgão da OCMLP - Organização Comunista Marxista Leninista Portuguesa.)

Devo acrescentar aqui um pormenor caricato: quando já estava há vários dias e noites, na tortura do sono, à beira da exaustão (para não dizer do colapso), na véspera de ser interrogado por um novo inspetor da PIDE/DGS, há um "estagiário" que vem fazer o "turno da noite"... e que, de repente, me reconhece do tempo de Guiné:


− Meu furriel?!... Sarmento?!...

Incróvel, náo podia ser, eu devia esdtar a delirar!... 
O homem era da minha antiga companhia!... E parecia mais incomodado do que eu pelo insólito da situação: eu, vítima, e ele, carrasco. Senti um frémito de horror só de pensar que ele estava quase tentado a abraçar-me:

 O que é faz... aqui ?

− Eu é que te pergunto!...Afinal, sou teu hóspede... 

Intencionalmente, tratei-o por tu, e com ironia, tive esse rasgo extremo de lucidez. Enfim, conhecia-o bem, era o "escritas", o 1º cabo escriturário da companhia... Um tio, padre, aconselhara-o, a entrar para a PIDE, agora rebaptizada como DGS - Direção Geral de Segurança... "Tinha cama, mesa e roupa lavada. E vencimento de funcionário público ao fim do mês". Nada mais seguro, nos incertos tempos que corriam. E a "situação estava para durar", garantia-me... Disse-me que ainda era "estagiário"... e estava a "aprender os truques" (sic) para poder integrar uma brigada de investigação.

O  meu guarda dessa noite era, afinal, um antigo camarada de armas!... Eu não podia acreditar!... Devia ser delírio, mas não, era mesmo real, ele estava ali, de carne e osso!...E a mim, de repente,  apetecia-me mesmo esganá-lo...

Afinal, tínhamos ido e vindo no mesmo navio. E, naturalmente, sempre que eu ia à secretaria da companhia, lá estava ele a bater à máquina de escrever, no teclado HCESAR. E a tirar cópias a "stencil"... Confesso que nunca fomos amigos, embora tenhamos feito um trabalho ou outro juntos, na secretaria, por ocasião da festa do 1º ano da companhia. Nessa altura, o 2º sargento estava de férias e substitui-o, por duas ou très semanas, na chefia da secretaria, por conveniência de serviço. Nem sequer tínhamos um 1º sargento, como tantos outros, quando soube     que ia para a Guiné, deu baixa por razões de saúde....

De resto, éramos mais de 160 na companhia, e vivíamos em abrigos diferentes. Mas eu não tinha nada a apontar-lhe por eventuais palavras, ações ou omissões. Era um gajo igual a tantos outros, contando os dias do calendário que faltavam para acabar a comissão. Nem sequer sabia o que é que ele pensava da guerra ou da situação política, ou deixava de pensar. Se calhar nem pensava nada, como muitos outros, a grande maioria. Éramos todos uma "carneirada", rosnava eu, entre dentes.

Pois é, a vida dá muitas voltas e é preciso "fazer pela vidinha". justificava-se ele, quase com candura... Para alguns, a PIDE/DGS era um emprego, "seguro", tal como era a GNR, a Polícia de Trânsito, a Guarda Fiscal, a PSP, as finanças, os tribunais... O tio era padre e tinha uma boa paróquia, "estava governado"... Enfim, o "escritas" procurou ser "gentil" comigo, ao tentar justificar a sua opção de emprego no pós-guerra... Que "o Exército só podia estar grato à PIDE na Guiné", e outras enormidades que me dispenso de citar... O homem não se calava...

Bêbedo de sono, ofendido e humilhado, acabrunhado, não conseguia manter qualquer diálogo com  o meu novo carrasco, de quem no entanto, devo acrescentar, sentia um misto de asco e de curiosidade mórbida... Como é que um gajo, que me parecia "minimamente decente", como era o "escritas" da minha  companhia, um antigo camarada de armas, da Guiné, de 1969/71, se tinha tornado um pide ?

O cabrão do "escritas", que ainda mantinha o sotaque nortenho que eu sempre lhe conhecera, teve um tímido e atabalhoado gesto de compaixão, ao ver-me no mísero estado em que eu estava, um autêntico farrapo humano, sonâmbulo, com olheiras fundas, daquelas de meter medo a  qualquer ser vivo... Continuou sempre a tratar-me por "meu furriel":

 Meu furriel, não fique de pé, sente-se aqui nesta cadeira. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas... 
E assim retempera as forças −  aconselhava-me o gajo.

Sem esperar pela minha resposta, acrescentou, mostrando já conhecer bem os cantos à casa:

 O senhor inspetor tem horário de funcionário público. Só volta às nove horas, nove e tal, de amanhã, para não dizer dez. Até lá, você  tem a minha autorização para dormitar. 

E enfatizava o adjetivo possessivo (a "minha autorizaçáo"), para logo a seguir mostrar a sua  cumplicidade misturada com esperteza saloia:

− Eu velo pelo seu sono. Estamos aqui os dois, sem ninguém nos ver, eu empresto-lhe a minha cadeira. Por mor dos tempos passados na Guiné... Por mor da nossa camaradagem... E pela nossa divisa: "Um por um, todos por todos", lembra-se ?!... Se eu ouvir passos, dou-lhe um empurrão e acordo-o. Mas está tudo a bater a sorna a esta hora da noite. Afinal também somos gente, civilizada. Não quero que fique com má impressão minha... Pode ficar descansado...

Não foi, confesso,  o melhor sono da minha vida. Não consegui dormir em cima da cadeira do pide, meu ex-camarada de armas. Mas descansei as pernas, que estavam um trambolho, depois de tantos dias de pé, sujeito à tortura do sono. O meu medo era aparecer, de rompante, o filho da puta do inspetor e perceber a marosca... Espantoso, sem o querer, era eu, inconscientemente,  que estava a vigiar o pide (ou aprendiz de pide, ou o raio que ele dizia que era...), e não o pide que me estava a guardar...

Por volta das oito e tal, ele sacudiu-me os ombros e eu abri os olhos, estremunhado... Só me disse:

− São horas de se preparar... Boa sorte. E desculpe lá qualquer coisinha. 

Desta vez já não me tratou por "meu furriel". Também ele ensonado, deve-se ter compenetrado do seu e do meu papel... Nunca mais, na vida, lhe pus a vista em cima ... 

Entretanto, às dez horas em ponto, com uma hora de atraso em relação ao horário do funcionário público que tem de assinar o livro de ponto às nove, o senhor inspetor, bem barbeado, bem dormido, ainda a cheirar a café, a cigarro e a água de colónia barata,  veio-me fazer a sua visita matinal e trazer-me notícias:

- Uma boa e outra má, ou menos má... − disparou o sacana, cofiando o bigode, curto, "démodé".

E, depois, já em tom de confidência, sentou-se, numa cadeira ao meu lado, e revelou-me:

− Vou-lhe contar um segredo: também estive na Guiné, afinal fomos camaradas de armas, sabia ?!...,  se bem que desempenhando papéis diferentes, eu na guerra da inteligência, em Bissau, e você de G3 em punho no mato. Ambos lutámos pela Pátria. Eu, ainda no tempo do general 
Schulz ele dizia Schultz...], você do nosso general Spínola. Dois grandes chefes militares, se quer que lhe diga.

E prosseguiu, cínico, provocador, ameaçador e enigmático:


A boa notícia é que vou... soltá-lo. Não tenho mais razões por o manter aqui detido. E depois está a ocupar uma vaga no nosso hotel de cinco estrelas 
[ referia-se ironicamente a Caxias... ]  que nos está a fazer muita falta. Como sabe, nestes últimos tempos a procura tem excedido a oferta. Não nos  faltam clientes... Aquela coisa da Capela do Rato foi muito feia, muito má para todos, a começar para nós, os católicos... Os comunistas, infelizmente, já chegaram ao altar... Mas quanto a si, não temos, em boa verdade, nenhum facto, substancial, que comprove, de maneira clara e inequívoca, a sua ligação ao "Grito do Povo". 

Calou-se intencionalmente  por alguns  segundos, respirou fundo e voltou, solene, a ser o dono do jogo:

A má notícia... é que você vai continuar a ficar debaixo de olho. Do nosso, claro. Se lhe posso dar um conselho, como seu ex-camarada da Guiné, não se meta com essa canalha, acabe o seu curso, e trate da sua vidinha. Case-se e dê filhos à Nação. E, já que anda em filosofia, fique com esta máxima que eu lhe dou de borla: "Mais vale uma boa ditadura do que uma má democracia"... 

Puxou de um cigarro, ofereceu-me um outro (que recusei polidamente, por não fumar), e prosseguiu a sua diatribe:

− Estamos em guerra, lá fora, em África. E cá dentro, também, infelizmente... Somos talvez o último bastião da defesa da liberdade do mundo ocidental.  O apoio, direto ou indireto, à deserção e aos desertores é um crime de lesa-Pátria.

Num ápice levantou-se da cadeira, ajeitou a gravata e ordenou-me em tom militar:

  Levante-se, vista-se, lave a cara, recomponha-se... 

E dando a estocada final na minha pobre autoestima, repetiu a expressão que eu já havia ouvido ao aprendiz de pide:

− E desculpe lá qualquer coisinha.

Não sem antes de me ter posto ao ridículo, pela enésima vez, lembrando-me o "crime" de eu ter dado, ingenuamente, a minha morada para a entrega do correio, a um gajo meu conhecido da faculdade, que tinha passado à clandestinidade (sem eu o saber)... A correspondência passou a ser intercetada pela PIDE/DGS e eu caí que nem um patinho nos braços dos gajos...

... Ainda voltei a Caxias, para fazer o "check out"... Pequei na minha trouxa, com um nó seco na garganta, apanhei o comboio até ao Cais do Sodré e voltei ao meu quarto, numas águas furtadas da rua da Misericórdia, que estavam inteiramente por minha conta (tal como a caixa do correio). Tomei um banho, demorado, e fui ao Trindade comer o melhor bife da minha vida... No dia seguinte, voltei à Faculdade para dar uma explicação sobre as minhas "férias" de 3 meses e tal por conta da PIDE/DGS... Não estiveram com contemplações, os gajos da secretaria. Chumbei por faltas nesse ano. Felizmente que um ano depois aconteceu o 25 de Abril.

E hoje,  ao fim de uma vida, só posso discordar do inspector da PIDE/DGS  que me torturou, ao mesmo tempo que me dava lições de ciência política... Afinal, a melhor ditadura é sempre pior que a pior das  democracias. Os democratas é que são parvos, tratam os seus inimigos com tolerância e clemência...

Tanto quanto soube, mais tarde, tanto o "escritas" como o "senhor inspetor", estiveram na prisão de Alcoentre e foram uns dos tais 89 pides que fugiram pela porta do cavalo, em 29 de junho de 1975... Para Espanha, seguramente. E de lá estou a vê-los a mandarem, cinicamente,  um bilhetinho para as suas antigas vítimas:

 "Disculpen las moléstias"!...

J. Sarmento, Fundão, Quinta das Cerejeiras, 29/4/2019.

Versão revista em 25 de abril de 2023.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24262: 19º aniversário do nosso blogue (3): Somos uma autêntica "Universidade Sénior" (Hélder Sousa, provedor da Tabanca Grande)

(**) Vd. poste de 30 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19729: A galeria dos meus heróis (29): 'Disculpen las moléstias"... Ou uma história que mete vítimas e carrascos (Luís Graça)

terça-feira, 18 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24230: A galeria dos meus heróis (49): A doença do Alemão (Luís Graça)

A galeria dos meus heróis > A doença do Alemão

por Luís Graça (*)


− Eu era capaz de oferecer o meu lugar no reino dos céus por um prato de favas suadas!... Antes que se faça tarde…

− Tarde ?!... O que queres dizer com isso, Arsénio?... E, por favor, não blasfemes…

− Calma, senhor provedor, não invoquei o nome de Deus em vão… Também andei na catequese como tu, embora em África…

− Mas o teu catecismo não era o mesmo que o meu, aposto…

− Olha, a mim quem me dera saber se tenho um lugar reservado no céu…

− É com essa que Deus nos trama… Mantém o suspense até ao fim… 

− Ah!, para ti, António, está mais do que reservado, está assegurado!... Não precisas que te rezem missas...

− Obrigado, mas que história, afinal,  é essa… das favas ?!

− É o que me estava mesmo a apetecer agora, um prato de favas suadas…

− Abriste-me o apetite. Também já ia… E estamos em março, é a altura delas. Vamos almoçar ao Jacinto, pode ser que nos arranje, nem que seja um pires de favinhas, como entradinha, com chouriço preto alentejano…

− Sabes, tenho medo de esquecer como se chamava o prato de favas suadas feitas pela minha mãezinha, com tanto esmero e carinho…

− Ah! , a nha Bertinha, de saudosa memória…

− … E sobretudo esquecer a delícia do seu sabor, memória que me vem dos tempos da meninice.

− Ó engenheiro!..., estás com a doença do Alemão, ou quê ?!...

− Quem sabe ?!...

− Só Deus e os médicos é que sabem… A tal doença que nenhum de nós ousa nomear.

− Acho que ainda não a tenho, meu caro António…  Os neurónios  estão no sítio, descansa...

− Mas quem te pode garantir que a não vais apanhar, a dita cuja?...

− Cruzes, canhoto!... A única coisa que me aterroriza, mais do que a morte, é perder a memória, a identidade... e alguns dos cinco sentidos, como o gosto, o olfato, o tato...

− Terror por antecipação… Mas essas reminiscências da infância, quando recorrentes, dizem os entendidos, podem muito bem ser o primeiro sintoma precoce da doença do Alemão…

− Achas ?!...

− Lembras-te das favas suadas da senhora tua mãe que Deus já lá tem, mas não do que comeste ontem…

− Tens razão… E não me lembro mesmo!... Fora de brincadeira, dizem que para lá caminhamos todos…

− A demência ?!... A menos que apareça, um dia destes, a tal droga milagrosa que nos há de salvar da amnésia total…

− Já não será para os dias que me restam…

− Não sejas tolo, Arsénio, não vês o cancro ?!... Todos os anos saem novos medicamentos inovadores.

− Ah!, a indústria da doença: quem entra num hospital, já de lá não sai… Vê o meu irmão: já não lhe bastava ter que fazer hemodiálise três vezes por semana…

− Ah!, sim, é bem pesada a sua cruz… Mas desculpa-me que te pergunte: e a outra solução, o transplante renal?!

− Não brinques comigo, António, estás farto de saber que ele também já passou o prazo de validade!

− Tens razão, os setenta?!

− Sim, os malditos setenta!… Ainda esteve na lista de espera. No dia em que fez os setenta, riscaram-no logo da lista.

− É tramado…

− É isso mesmo, não fazem transplantes aos velhos. E não há dinheiro que compre um rim novo...

− Nem serviço nacional de saúde que aguente... 
Mas dizes bem, os setenta!... Passas a ser “velho… vitalício”!... Ora toma lá o carimbo... 

− E é aí que um homem se sente velho pela primeira vez, António Queiroz. Ou discriminado como tal. 

− Mas, por outro lado, já não precisas de renovar o bilhete de identidade…

− É agora o que somos, meu amigo. Eu, tu, o meu irmão… Gosto da expressão: “Velho… vitalíco!”... A mim também me puseram o carimbo, quando arrumei as botas aos setenta!

− Há que dar lugar aos novos!, dizem-te os safad0s que lá ficam… 

 Mas a ti ainda te fizeram uma festinha…

− …com direito a uma salva de prata e uns versinhos recitados pelas criancinhas mais novas… ”Ao nosso querido diretor, dr. António Queiroz, com (e)terna saudade!”… Até houve balões, coisa que eu sempre detestei e proibia por causa do ambiente…

− E o que é que tu querias mais, meu velho e caro amigo, dr. António Queiroz, agora dedicado e piedoso provedor da Santa Casa da Misericórdia ?!

− Gratidão, verdadeira gratidão… E não reverência cínica!...  No último dia de trabalho, dão-te um chuto no rabo com sapato de veludo.

− Mas ergueram-te um busto, em bronze…

− …um mamarracho, que está lá no átrio, ao pé do lago com repuxo, nenúfares e peixinhos vermelhos… Por mim, bem o dispensava.

− És um gajo com sorte, António… A mim, nem isso, nem salva de prata, nem versinhos, nem balões… E muito menos um busto em bronze...

− Oh!, pá, mas ainda não morreste, que eu me tenha dado conta!... Ou sou eu que já estou com a doença do Alemão ?!

− Não, não morremos, nem tu nem eu!...Ou melhor, eu já morri, da primeira vida. Morte social, que não é menos cruel que a morte física que me espera, um dia destes…

− Morte social ?!... Dizes bem. Foi por isso que eu nunca mais lá pus os pés na associação que ambos ajudámos a criar e a engrandecer. E tu ainda mais, Arsénio, que andavas na política, tinhas bons contactos em Lisboa e puxavas os cordelinhos… 

− Sempre a pensar no interesse da terra do meu querido pai... Mas poucos já se lembram desses tempos!… E, sem memória, não há gratidão!

− Dizes bem: essa é outra forma de doença do Alemão, a que dá no povo…

− … ingrato e vilão,  o Zé Povinho!

− Mas tu não tens lá ido mesmo, nem na festa de Natal ?!...

− Eu, agora, é raro lá pôr os pés, e pior ainda com a hemodiálise do meu irmão. A minha vida social acabou há muito, desde que larguei a política.

− Lembro-me sempre do tipo que eu fui substituir, o dr. Veloso, o professor do Colégio… No dia seguinte, depois de deixar o cargo, deu-lhe a veneta, quis ir matar saudades e foi lá cumprimentar as criancinhas, os velhos, as funcionárias… Ele era a delicadeza em pessoa. 

− Quem, esse palerma ?!... Desculpa lá, está xexé...

− Sabes o que é que eu ouvi, sem querer (a porta do gabinete estava entreaberta), da parte de um grupinho de senhoras (educadoras, auxiliares e até a nossa antiga secretária e a assistente social) ?

− Não, não imagino…

− Estavam na galhofa, e a cochichar entre elas, deu para ouvir: “O que é que o filho da p...  do velho está aqui a fazer?!”…

− Assim, sem mais nem ontem ?! Filho da p... ?!

− Isso mesmo, e ainda dizem que nós, os homens, é que somos ordinários… E toda a gente a saber que tinha sido ele, o meu antecessor, quem estabeleceu (ou melhor, propôs, em Assembleia Geral) o limite dos setenta anos para o exercício de cargos diretivos. 

− Das catraias era de esperar tudo, mas logo da nossa assistente social!... Olha, era uma senhora por quem eu tinha elevada estima e consideração… Afinal, António, quem vê caras, não vê corações…

É uma longa transcrição, esta, que pode aborrecer o leitor, sobretudo se for jovem, com a vida toda pela frente: trata-se de uma conversa, seguramente deprimente, entre dois homens (chamemos-lhes “velhos”…) que eram das minhas relações sociais. E que eu, ainda há alguns anos atrás, costumava encontrar nos sítios habituais da pacata cidade de província onde então vivia: o barbeiro, o Café Central, o Museu Etnográfico, a Universidade Sénior (onde cheguei a dar aulas), o Clube Náutico  e, claro, a IPSS, a associação privada de solidariedade social que era o orgulho da terra, e a que eles, os dois,  estiveram ligados desde a sua fundação.

Eu sabia da história de vida de ambos, mesmo sendo um estranho, para não dizer um “outsider”, chegado há poucos anos do estrangeiro, mais exatamente do Luxemburgo, a minha segunda pátria.

Nos meios pequenos sabe-se tudo ou quase tudo da vida uns dos outros, das doenças, das sacanices, dos amores e até dos negócios (mesmo quando se diz que o segredo é a alma do negócio).

O homem, o engº. Arsénio Marques, que temia o Alzheimer (sem nunca o nomear), morreu há pouco tempo. Não teve "funeral de Estado" mas a câmara municipal acabou por fazer-lhe uma discreta e cínica homenagem póstuma: numa sessão da assembleia municipal, foi aprovado por unanimidade  um voto de pesar pelo seu falecimento e foi-lhe atribuída a medalha de mérito municipal.  Tarde e a más horas, como se costuma dizer.

O outro, o dr. António Queiroz, que fora diretor da IPSS que geria várias creches e lares de idosos em todo o concelho, e depois provedor da misericórdia local (o último cargo que exerceu), está doente, dizem-me que sofre da doença de Parkinson. E, em boa verdade, há alguns anos que não o vejo, não sendo eu visita da família, residente em Lisboa.

Ambos, o Arsénio e o António, eram do mesmo partido, mas com diferentes sensibilidades e experiências de vida. O António, dizia-se,  era da "Opus Dei". E o Arsénio, provavelmente, era "maçon"...

Mas é dele que eu quero falar: retornado, engenheiro técnico, empresário, autarca, dirigente partidário, figura grada da terra. Os seus mandatos como autarca a seguir ao 25 de Aril não terão sido pacíficos ou consensuais. A avaliação dependia muito das simpatias ou antipatias partidárias. Diabolizado por uns, santificado por outros, não deixava ninguém indiferente.

A seu favor tinha a construção de todas as infraestruturas e equipamentos sociais que fizeram a terra dar "um salto para a modernidade"… Abriu estradas, construiu em altura na orla costeira, fez  a rede de saneamento básico, criou o parque industrial, ofereceu terrenos aos investidores de fora,  inaugurou o polidesportivo, fez o passeio marítimo, trouxe o politécnico, pôs o clube de futebol da terra a subir de divisão, convidou  os homens de letras para as feiras do livro, apoiou a banda filarmónica e os bombeiros, deu emprego a muita gente, na câmara e nos serviços municipalizados,  
desenvolveu o turismo, em suma, "pôs a terra no mapa"... Chamavam-lhe o “marquês de Pombal sem acento circunflexo”. O seu apelido era Marques… 

Os insultos grafitados nas paredes da câmara municipal irritavam-no solenemente… Chegou a contratar uma empresa de segurança para apanhar em flagrante os autores dos grafitos… Até tinha uma família, decadente mas ainda com brasão, de alcunha os "Távoras", que concitavam os seus ódios de estimação por causa de um polémico processo de expropriação de terrenos. E com o padre da terra as suas relaçóes também não eram as melhores.  Um dia, o padre, que era dos tesos,    ostensivamente recusou  dar-lhe a comunhão quando soube que ele mantinha uma amante no concelho vizinho.

Só o conheci no ocaso da sua vida política. Era ainda um cacique à moda antiga... e perdia-se por um rabo-de-saia, diziam as más línguas.  Personalidade truculenta,  tinha uma frase lapidar, reveladora da sua repugnância quase atávica para o compromisso e a negociação:

− Não se pode agradar a gregos e troianos, e quem os seus inimigos poupa, às mãos lhe morre.

Os pais do eng.º Arsénio Marques haviam-se conhecido em Cabo Verde. O pai fora expedicionário em São Vicente, durante a II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Rainha. Cavador de enxada, tocador de concertina e poeta popular. A mãe era de Santo Antão, filha e neta de comerciantes e pequenos proprietários de terras. 

Depois de cumprido o serviço militar, o pai do Arsénio fixou-se em Angola, empregando-se nos caminhos de ferro de Benguela. A mãe, depois de uns tempos no Continente,  seguiu-lhe os passos. Ele nasceu em 1944. Foi a avó que transmitiu à mãe os segredos gastronómicos da família.

Não sei muito da sua vida em África. Mas, perguntará o leitor: onde e como nos conhecemos, eu e o Arsénio Marques ?

Eu explico… mas primeiro tenho que falar um pouco de mim… Sou ribatejano da beira rio. Emigrei, "a salto", para o Luxemburgo, em meados dos anos 60, como outros jovens da minha geração, para fugir à tropa e à guerra colonial. Não gosto do termo “fugir”, e muito menos de “fujão”. Já uma vez me chaparam isso à cara…Rejeito o insulto mas tenho que contar a minha história, se não se importam.

Faço aqui a minha declaração de interesses: nunca fui comunista. Mas o meu pai foi preso por estar ligado a um rede clandestina que distribuía o jornal “Avante”… Nunca foi julgado, mas não se livrou de estar preso, arbitrariamente, sem culpa formada, durante pelo menos seis meses…

Julgo que se portou com dignidade na prisão. E, mesmo sob tortura, não denunciou ninguém do Partido (como ele dizia...)  por uma simples razão:  ele não era militante comunista nem pertencia a nenhuma célula clandestina. Em boa verdade, era um simples simpatizante do PCP, o que para a PIDE  era igual. E, depois, ser apanhado a distribuir o "pasquim do Avante", era crime de lesa-Pátria... De qualquer modo, não tinha nomes importantes a dar aos esbirros de Salazar. O jornal chegava sempre misteriosamente de comboio, que vinha de Santa Apolónia, num pacote embrulhado em folhas  do jornal "O Século". A PIDE nunca terá descoberto o "ferroviário vermelho" que preparava a encomenda, e que seguia juntamente com os outros jornais e revistas ao cuidado do quiosque do meu pai... 

Ficámos com o negócio do meu pai, eu e a minha mãe, um quiosque de jornais e revistas, que era o sustento da família. Claro que fiquei com ficha na PIDE, apenas por ser filho de quem era, embora legalmente ainda fosse menor. 

Quando o meu pai regressou a casa, ainda antes de o Marcello Caetano ter substituído o Salazar na Presidência do Conselho de Ministros, eu devia estar a ser chamado para a tropa. Foi aí que tomei a decisão mais difícil e corajosa da minha vida: um antigo colega de escola, que já tinha em França os pais, também eles alentejanos como os meus, desafiou-me a ir com ele… Havia uma carrinha dum passador que partia num fim de semana próximo. Só precisava de 10 contos, o que na época,  em 1967, era muito dinheiro.

Com algumas economias e com o resto emprestado por um tio (cerca de seis ou sete contos, já não me lembro bem), deixei a minha terra sem me despedir sequer dos meus pais… Não os queria comprometer, no caso de vir a ser apanhado na fronteira ou ao atravessar a Espanha do Franco. Pensava escrever-lhes quando chegasse a bom  porto.

Mas tudo correu bem. Fiquei uns dias em Grenoble. E foi de lá que contactei uns parentes afastados que viviam no Luxemburgo, e que me arranjaram os papéis. Cama e mesa, sempre se arranjava por uns tempos. Sabia que não iria, nos anos mais próximos, voltar a ver os meus pais. Mas esperava que a Ditadura caísse ainda antes de eu completar os meus trinta anos. E de facto iria cair, uns anos mais tarde, em 25 de Abril de 1974… (Mesmo assim tarde de mais para o meu pai: morreu cedo, em 1972, e a minha mãe, vinte anos depois.)

É uma dor que trago comigo e que ainda não ultrapassei: não ter podido acompanhar os últimos dias de vida do meu progenitor. Nunca partilhei com ninguém, até agora, e muito menos no Luxemburgo,  as minhas memórias de infância e adolescência. Sempre achei que não poderiam interessar a ninguém. Hoje não tenho a mesma opinião. Às vezes acusam-me de ter dado o "salto" por ter medo de ir parar à “guerra do ultramar”, como então diziam alguns dos saudosos do "Portugal do Minho a Timor". Irei ter mais tarde uma discussão sobre isso com o engº. Arsénio Marques, na terra do seu pai, e que eu irei adotar também como minha.

Confesso que ainda hoje não sei por que razão é que escolhi aquela terra, para voltar ao meu país natal e viver o meu último terço ou quarto de século de vida. Tinha 65 anos em 2009, uma razoável reforma (por comparação com os padrões portugueses da época) e umas boas economias (para quem tinha começado como eu a ganhar a vida como ardina…). Com isso comprei um apartamento à beira-mar, um T3 onde esperava poder receber os amigos e as amigas (poucos, é verdade, mas do peito) que eu fui fazendo ao longo de uma vida de “imigra”. E ainda com uma vaga esperança de, um dia, os meus netos irromperem,  de braços abertos, pela casa dentro...

Não tinha filhos. Ou melhor: os que tive perderam-se, pelos quatro cantos do mundo: uma rapariga a viver algures na Califórnia, e um rapaz que criou raízes na Noruega, depois de casar com uma víquingue.

Fiquei viúvo relativamente cedo, aos 50 e tal anos. A mulher da minha vida morreu de cancro da mama. Era italiana, ou melhor napolitana. Certamente por inépcia minha, nunca consegui que os meus filhos luxemburgueses fizessem de Portugal a sua segunda pátria. Vieram cá, algumas vezes, ainda adolescentes. Mas depois casaram e foram à sua vida. Falamos por telemóvel pelo Natal e pouco mais… Fui à Califórnia conhecer os meus netos. E, claro, dei um salto também à Noruega, aqui mais perto.

Tudo isto para explicar por que é que eu sou mais espetador do que ator, na terra que me acolheu, aos sessenta e tal  anos, depois de regressar do Luxemburgo. Aqui estive ligado à animação sociocultural. E exerci, nos primeiros tempos, os mais diversos ofícios, daqueles pouco ou nada qualificados,  que são desempenhados por qualquer “imigra”: fui varredor municipal, trabalhador agrícola sazonal, trolha da construção civil, operador de caixa de supermercado, ajudante de camionista,  etc. Mas também, mais tarde, radialista, diretor de clube de futebol de “imigras” portugueses, tradutor e guia turístico, jornalista, autarca, etc.

Acabei por montar um pequeno negócio na área da indústria gráfica, cujos principais clientes eram portugueses, ou descendentes de portugueses, mas também italianos. Em boa parte devido aos conhecimentos que tinha, eu e a minha mulher.  Éramos um casal popular nas nossas comunidades. 

Fixei-me nesta cidadezinha do Oeste Estremenho. Abreviando razões, tenho amigos aqui e  no Alentejo. Reformados como eu. Aos alentejanos, meus compadres,  visito-os uma ou duas vezes por ano, em Aljezur,  na costa vicentina.  Gosto do meu sossego, de  ler os meus livros, de ver os meus filmes, e, sobretudo, de contemplar o pôr-do-sol à beira do Atlântico com as Berlengas e o cabo Carvoeiro no horizonte. E tenho alguns hábitos burgueses: não desgosto de comer bem, nisso sou igual ao Arsénio, que também é, ele,  filho de gente pobre. Os pobres têm sempre mais olhos do que barriga, já dizia o meu velhote. 

Um dia, há muitos anos, vim cá com uma representação municipal e uma banda filarmónica.  Do meu município luxemburguês (que não  identifico, porque o país é uma aldeia). Na altura era aqui presidente da Câmara, o engº. Arsénio Marques. Estava no auge da fama, da glória e do proveito. 

Ele tratou-me muito  bem (a mim e aos meus munícipes). Ficámos amigos. Ou melhor, simpatizámos logo um com o outro. Desafiou-me a ficar ou a voltar, quando me reformasse. Ou sempre que me apetecesse. Com cama e mesa à disposição.  Aceitei, vim cá pelo verão, duas ou três vezes. Sempre por minha conta, acrescente-se. No Luxemburgo sempre o tratei também muito bem,  fazendo jus à  tradição de hospitalidade do grão-ducado. Uma terra que ele também aprendeu a amar.  Sempre pusemos de lado as nossas diferenças políticas, ele situava-se mais à direita, eu mais à esquerda. Mas era uma "charmoso", como dizia a minha mulher que ainda o chegou a conhecer.

Depois ele perdeu as eleições (ou já não podia legalmente concorrer a novo mandato, não sei ao certo). Ainda tentou uma carreira política a nível nacional, mas puseram-no na prateleira. Zangado com o seu partido, bateu com a porta e continuou a dedicar-se aos seus negócios.  E a comenda de Belém, que lhe haviam prometido,  nunca chegou em tempo útil, ter-lhe ia feito muito bem ao ego...

No bom tempo, e graças aos amigos de Benguela, do Huambo e de Luanda, matou o galo da UNITA e engoliu o sapo do MPLA (quer dizer, a catana e o martelo, que são mais  indigestos)... Tinha amigos de um lado e do outro, gabava-se ele.

Fez alguns bons negócios, na área da engenharia, planeamento urbano e arquitetura, com um conhecido general que era do seu tempo de escola, e considerado  um dos heróis da batalha do Cuito Canavale. Chegou-me a contar algumas confidèncias do general,  sobre os horrores dessa batalha, que se travou no sul de Angola, entre novembro de 1987 e março de 1988, se não me engano.  E onde o meu amigo perdeu gente conhecida sua. 

 Também chegou a ter, a meias, com esse general, uma empresa de construção civil e obras públicas. Nunca falei muito com ele sobre esses tempos. Mas sei que o sócio passou-lhe a perna. E o capítulo de Angola acabou por fechar-se na vida dele. Para mais, e para seu grande desgosto,  ele nunca chegou a conseguir obter a nacionalidade angolana,  apesar de lá ter nascido e vivido. Falava da sua terra com grande paixão e saudade. Em contrapartida tinha um filho a viver em Cabo Verde, onde explorava um pequeno hotel, em sociedade com um oitro estrangeiro, italiano ou francès, não sei ao certo.

Sei que fez a tropa (e a guerra) na Guiné.  Não posso dar muitos pormenores, porque sou um zero à esquerda nessas matérias.  Julgo que pertencia à arma da engenharia militar. Tanto quanto me lembro das nossas conversas, ele não deixava de simpatizar com o Amílcar Cabral, filho de pai cabo-verdiano. Mas achava um disparate a ideia de união ou unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde. 

−  O Amílcar Cabral tinha tanto de génio como de ingénuo   recordo-me de ele me ter dito uma vez. 

−  Ingénuo ?... − indaguei eu.

  E viu-se: deixou-se matar por um dos seus. Em vez de mandar limpar o sebo a esse tal Inocêncio Cani, que era guineense, não, deu-lhe uma segunda oportunidade para  ele se regenerar... 

O Arsénio tinha uma costela cabo-verdiana, pelo lado da mãe que, garantia ele, era bisneta de escravos... 

− E eu trisneto, com muita muita honra, sem qualquer complexo... Tive pena que Cabo Verde tivesse entrado, em 1975, na  paranoia da dipanda, a reboque do PAIGC. Arrepiaram caminho, anos mais tarde, que a euforia revolucionária  não enche barriga...

Dipanda ?!...

− Ah!, desculpa, é angolês, uma corruptela de independência...

Eu aqui não quis comentar, nem nunca disse que tinha tido amigos cabo-verdianos que apoiavam o PAIGC no Luxemburgo... Depois meteram a viola no saco, quando se deu o golpe de Estado do 'Nino' Vieira, em 1989, se bem recordo... Foi o fim de muitas ilusões... "A segunda morte do pai das nossas nacionalidades", chorava um dos meus amigos que era cantor, com discos publicados  na Holanda... E, para mim, também, embora eu nunca tivesse conhecido a realidade da Guiné-Bissau nem de Cabo-Verde, antes e depois da "luta de libertação", como eles gostavam de dizer... Mas o direito à independência, tanto da Guiné-Bissau, como de Cabo Verde, esse, sempre o reconheci. Como lá se chegou, num caso e no outro, isso eu já não discutia, era assunto para os guineenses, os cabo-verdianos, os portugueses  e os historiadores... E eu, afinal, era cidadão luxemburguês...(embora mantivesse a cidadania portuguesa).

 Nos últimos anos, senti o meu amigo Arsénio Marques mais alquebrado, para não dizer deprimido:  o fogo do seu vulcão havia-se extinguido, e "a terra do seu pai" já não era mais a mesma para ele... Queixava-se que, no fundo, havia uma surda discrimição contra os retornados e os mestiços, como ele. O seu antigo partido nunca mais recuperara o poder, nem o antigo autarca era chamado para nada... O sonho de voltar a Angola estava cada vez mais distante, e em Cabo Verde também não se sentia em casa, embora uma vez por outra fosse visitar o filho.

O nosso convívio, por outro lado,  também se foi espaçando... Afinal, pertencíamos a mundos muito diferentes.  Incentivei-o a escrever as suas memórias. Mas a escrita não era o seu forte. 

− Escrever, o quê ? Para quem ?... Sempre fui um homem de ação, não de  pensamento... Tu é que és um homem de letras...

Divorciado, com um filho e netos a viver em Cabo Verde e nos Países Baixos, não tinha muitas amizades no fim da sua vida. O irmão, antigo professor primário, também já tinha partido. Para minha grande surpresa e desgosto, o Arsénio  suicidou-se com um tiro nas têmporas, na casa da amante.  Uma coisa premeditada. Na véspera, ainda me mandara uma mensagem por telemóvel: "Gostei de te conhecer. Um candando" (#). Nunca imaginei que ele pudesse fazer uma coisa dessas. Afinal, não foi a doença do Alemão que o matou. Prefiro, em todo o caso, pensar que  ele partiu para a sua última viagem, desencantado mas lúcido...

(#) Candando, do quimbundo: abraço. (LG)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23803: A galeria dos meus heróis (48): Adeus e até à próstata! (Luís Graça)