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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24697: Notas de leitura (1619): "PAIGC A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", por Rui Jorge Semedo; Nimba edições, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
É sempre meritório que investigadores guineenses se debrucem sobre a história do seu país, seja antes ou depois da independência, ao mesmo tendo em conta todo o histórico da guerra da libertação. O autor achou que já estava tudo dito quanto ao binómio Amílcar Cabral PAIGC, as resistências sentidas durante a presidência de Luís Cabral no contexto das tradições e de um círculo de interesses instalados na sua órbita de gente manifestamente corrupta e incompetente dentro do chamado Estado "suave" como observou Joshua Forrest, parece-me não ter cuidado da importância dos agrupamentos étnicos que obstaram à criação de uma consciência nacional, e é dentro deste quadro precário que se instituirá o regime de Nino Vieira, com as suas sucessivas intentonas, prisões e execuções. É incompreensível que um livro editado em 2021 omita, coletivamente ao estudo em apreço, bibliografia fundamental. Mais uma dissertação de mestrado com poucochinho.

Um abraço do
Mário



História do PAIGC monopartidário (1974-1990) por Rui Jorge Semedo

Mário Beja Santos

A história do PAIGC tem sido motivo de dezenas de livros de investigação, uma infinidade de ensaios, artigos, entrevistas. Rui Jorge Semedo [foto à direita] propõe-se a investigar a dinâmica política e a organização interna do PAIGC desde que a Guiné-Bissau se tornou independente até aos primeiros alvores de uma abertura ao multipartidarismo, processo que se iniciou, timidamente e controversamente, no início da década de 1990.

A investigação deste escritor, poeta e analista político guienense, intitula-se "PAIGC, A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", Nimba edições 2021. Algo surpreende, quer pela bibliografia utilizada, quer pelas entrevistas que o autor fez, estas últimas ocorreram em 2008 e 2009 e a bibliografia proposta no essencial é do século XX, apresenta lacunas incompreensíveis, desde o incontornável trabalho de Julião Soares Sousa sobre Amílcar Cabral, os trabalhos de leitura obrigatória assinados por Joshua Forrest (o seu trabalho mais importante não é citado), Patrick Chabal, Toby Green, Carlos Lopes, António Duarte Silva, Tcherno Djaló, entre outros. Fica-se com a ideia que o trabalho foi preparado alguns anos atrás e não atualizado para a presente publicação. Aliás, é o próprio autor que diz que ele resulta da sua dissertação de mestrado, numa universidade brasileira.

Nesta conformidade de trabalho de mestrado, o autor contextualiza, muito sumariamente o quadro das independências e tece um bilhete de identidade de um partido com duas nações, o seu alegado ato fundacional (sujeito a muitas dúvidas que tenha sido celebrado em 1956, recorde-se que só se começa a falar do PAI em 1960, quando se impôs que os movimentos independentistas tivessem partido e sigla), faz-se referência ao quadro político e militar decorrente do Congresso de Cassasá, a existência de certos conflitos internos, a sua organização como partido único, a sua passagem de opositor revolucionário para um controlo absoluto do poder governativo. Amílcar Cabral sempre anteviu os perigos de concentrar a nova classe política em Bissau, era um defensor da decentralização, como proferiu: “Queremos acima de tudo decentralizar o mais que for possível… Porque é que os ministérios não hão de estar dispersos pelo País? Ao fim ao cabo, o nosso País é um país pequeno… Para que é que havemos sobrecarregar com todo esse peso morto de palácios presidenciais, grande concentração de ministérios, tendo sinais evidentes de uma elite emergente que em breve se pode torna em grupo privilegiado?”.

O PAIGC que entra em Bissau em outubro de 1974 veio para se instalar, a sua elite ocupou os edifícios da administração colonial. Escreve o autor: “O que aconteceu foi apenas a substituição de uma força repressora estrangeira por outra nacional igualmente repressora. Pode-se dizer que não houve conciliação entre o que podemos chamar de projeto independência e uma liberdade efetiva com ações que visem melhorar as condições de vida das populações. E as contradições encontradas, principalmente na implementação de políticas públicas deveu-se a essa ausência limitada de liberdade que se acentuava sobretudo no medo de partilhar poder dentro do próprio partido”.

O autor elenca os preceitos constitucionais e a legitimação do PAIGC como única força política, ressalta a constituição da nova elite guineense, os atos de ajuste de contas com quem quer que lhe se opusesse, e mostra as contradições da Unidade Guiné-Cabo Verde, o rastilho de pólvora que fez eclodir o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, revelam-se as discriminações constitucionais propostas para os dois países, inegavelmente ofensivas para os guineenses. Efetuada a rutura, entra-se num período cesarista encabeçado por João Bernardo Ninho Vieira, vão avultar as crises, logo com Víctor Saúde Maria, em 1984, e temos o tenebroso processo de 17 de outubro de 1985, que levou a prisões arbitrárias e as execuções sumárias de figuras cimeiras do sistema político-militar, com destaque para Paulo Correia. Para o autor é incontestável que o golpe de 1980 produziu o militarismo sobre o partido e o estado, o César foi afastando sistematicamente quem lhe pudesse fazer frente, recorrendo a uma polícia de segurança que a todos intimidada.

Passando para a estrutura organizacional do PAIGC, ela possuí a lógica de um partido único, todas as estruturas eram dóceis e espelhavam o que Nino Vieira deles esperava, desde sindicatos, organização da juventude ou organização das mulheres. Uma das lacunas de análise deste trabalho passa por não dar conta da incapacidade em montar uma rede de influência do PAIGC em toda a sociedade, Joshua Forrest explica claramente que os denominados comités de tabanca acabaram por ser aglutinados pelo sistema tradicional, Luís Cabral tinha imaginado grandes projetos visando aspetos socioeconómicos que acelerassem o desenvolvimento, foram um rematado falhanço, Nino Vieira também não soube fazer melhor, grassava o nepotismo, a ocupação de lugares estratégicos por gente incompetente que se locupletava com dinheiros e mercadorias desviadas. Rui Jorge Semedo esqueceu-se de um trabalho fundamental para analisar o sistema do amiguismo instituído por Nino Vieira quando foi forçado a abrir o mercado. O trabalho “Guinea-Bissau: politics, economics and society”, por Rosemary E. Galli e Jocelyn Jones, Frances Pinter, Londres, 1987, ainda hoje é o documento de referência que evidencia claramente como a classe possidente que gravitava nos círculos de Nino Vieira se apoderou da agricultura e de praticamente todos os negócios.

Surge, entretanto, em 1987, e no exterior, o Ba-fata, Resistência da Guiné-Bissau, apresentava-se como o grupo de pressão e alternativa ao regime de Nino Vieira, será mesmo até ao fim do regime de partido único, o único grupo de pressão constituído e atuante. A partir de 1991, o PAIGC vê-se compelido a autorizar o multipartidarismo, tudo vai começar pela lei constitucional n.º 1/91, de 29 de maio, foi assim que se abriu caminho para as primeiras eleições multipartidárias de julho de 1994, ganhas inequivocamente pelo PAIGC. Só que os conflitos persistiram, o que leva o autor a um conjunto de considerações finais, primeiro os conflitos internos, que perduraram desde a presidência de Luís Cabral até ao exílio de Nino Vieira, derrotado depois da guerra de 1989-1999.

O autor finaliza assim:
“A indagação a fazer é sobre o sentido da mudança e/ou revolução preconizada pelo PAIGC. Ou seja, até que ponto pode ser considerado a Guiné-Bissau um país independente? Ou, nesse caso, a independência pode apenas ser considerada a ausência de forças coloniais? Talvez, observando o cenário que se desenhou desde 1974 a este momento nos levaria necessariamente a considerar que houve apenas uma transição do poder das mãos de uma força repressora estrangeira para as de uma força nacional. A legitimação da repressão como uma prática corrente no período pós-independência tirou do PAIGC a possibilidade de estabelecer interna e externamente uma relação baseada no respeito pelos direitos humanos, por um lado e, por outro, desconstruiu o vínculo que o partido tinha com as massas populares. Além de conflitos e contradições gerados, outro fator determinante são falhas verificadas na gestão da coisa pública, o partido não só retrocedeu na promissora política agrícola e industrial iniciada nos primeiros anos da independência, como também não conseguiu aproveitar, principalmente a partir de 1980, o escasso quadro que o país dispunha para maximizar o desempenho”.

Trabalho modesto, muito incompleto, manifestamente repetitivo do que já se encontra nas mais variadas investigações e pouco apreciador das políticas praticadas, como é o caso da referência que faz à promissora política agrícola e industrial de Luís Cabral, unanimemente condenada por todos a que a estudaram.


António Mamadu Camará, antigo soldado Comando com a sua foto da juventude (Tirada do Jornal Expresso, com a devida vénia)
Aristides Pereira
Nino Vieira
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24688: Notas de leitura (1618): "A Guerra de Moçambique 1964-1974", por Francisco Proença Garcia; Coleção Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, edição da Quidnovi, 2010 (Beja Santos)

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22479: Notas de leitura (1373): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à apreciação da tese de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho. Que investigou afincadamente, é dado irrefutável. Põe-se em dúvida quanto à utilidade do levantamento a que procedeu quanto a trajetórias pessoais e profissionais, tanto dos fundadores como dos líderes e combatentes da segunda geração. Dos eventuais seis fundadores, só dois prevaleceram, Amílcar Cabral e Aristides Pereira, nunca se fala daquele que efetivamente deu o corpo ao manifesto na mobilização de todos aqueles jovens que foram encaminhados para Conacri, Rafael Barbosa. A questão iconográfica, como foram encarados os heróis e o líder por ambos os países, parece-me uma visão acertada. E tudo descamba na análise do golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a historiadora veste-se de juíza e encontra razões de sobra para culpar os guineenses de tudo quanto se passou até à consumação da rutura. Vale pelo que vale, mas deu direito a doutoramento.

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (3)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne: “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: “O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”.

O estudo a que a autora se acomete sobre as trajetórias destas figuras gradas do PAIGC inclui uma verificação de quem é quem entre os fundadores do partido, traços comuns das trajetórias familiares, quem é quem entre os combatentes, o seu recrutamento e história familiar, valores e princípios proclamados e tratamento da figura dos heróis, tanto na Guiné como em Cabo Verde, como, nos dois países, se procurou implementar políticas de democracia revolucionária e como caraterizar o fim abrupto do PAIGC. É este o último ponto que aqui se analisa, sugerindo sempre aos leitores a leitura integral desta tese de doutoramento defendida em 2005 e agora publicada pela Imprensa da Universidade de Coimbra.

É estranho como a autora formula as suas premissas sem, em nenhuma circunstância, nos oferecer o contraditório. O golpe de Estado de 14 de novembro de 1980 é sumariamente descrito, lembra-se que o golpe de Estado era moeda-corrente da época, dá-se conta das medidas tomadas: aprovação da primeira lei do Conselho da Revolução, destituição de Luís Cabral, dissolução da Assembleia Nacional Popular, do Conselho de Estado e do Conselho dos Comissários de Estado, o Conselho da Revolução passa a ter o poder que tinham estes órgãos políticos. Ficamos a saber a composição do Conselho da Revolução e a sua proveniência. A 24 de novembro é nomeado um Governo Provisório, e desencadeia-se um rol de acusações quanto ao falhanço da unidade Guiné-Cabo Verde. Os golpistas acusavam a ala cabo-verdiana do partido por diferentes razões, era acusado o Governo anterior de corrupção, de irresponsabilidade, de laxismo face aos erros, de nepotismo, de ostentação e de ambição pessoal dos seus membros. Tivesse Ângela Benoliel Coutinho consultado o acervo documental do CIDAC, em Lisboa, e não teria escrito “não se deram exemplos destas práticas e não se nomearam os indivíduos que as teriam praticado”. Atenda-se que o próprio Luís Cabral em discursos proferidos, nomeadamente em 1978 e 1979, já referia casos de corrupção, de irresponsabilidade e de laxismo, vem nos documentos. A autora encontra muitas semelhanças entre a composição do Governo anterior e o Governo de transição sob a responsabilidade do Conselho da Revolução, o que sendo verdade só abona como os golpistas eram dirigentes de extração guineense e aderiram à rutura, não sabemos com que alma e coração. Ângela Coutinho não esconde o tratamento parcial na análise a que procede a este golpe: fala nas contradições de Nino, nas acusações graves, retoma o evento do assassinato de Amílcar Cabral em que já era patente o profundo sentimento anti-cabo-verdiano, em que mesmo os golpistas de 20 de janeiro de 1973 falavam em eliminar os cabo-verdianos e os mestiços.

Nino Vieira e Aristides Pereira travam-se de razões, trocam mensagens acusatórias, consumava-se na prática a rutura. A imprensa cabo-verdiana publicou os protestos e as críticas profundas ao golpe, o fantasma do assassinato de Cabral paira permanente no ar, em janeiro de 1991 cria-se o PAICV em Cabo-Verde, mantém-se o PAIGC na Guiné-Bissau. A autora procura afincadamente demonstrar que não havia nenhuma hegemonia cabo-verdiana, uma vez mais é esquecido o espírito do Congresso de Cassacá e em nenhuma circunstância a autora aponta para as razões próximas do golpe, nomeadamente as discriminações entre as novas Constituições de Cabo-Verde e Guiné-Bissau. A autora também critica o palavrório usado pelo PAIGC quanto a fuzilamentos perpetrados pelo Governo de Luís Cabral, Luís Cabral, no exílio iria sempre evocar a existência de inimigos do PAIGC, supostos agentes da ex-PIDE e Comandos guineenses que teriam tentado dar um golpe de Estado a 11 de março de 1975. Só que Luís Cabral nunca apresentou documentação nem mesmo provas de julgamento que pudessem justificar os fuzilamentos contínuos que se praticaram durante o seu mandato. Quem lê esta tese de doutoramento pode ficar com a sensação de que houve um grupo de maus da fita, os golpistas, e os mártires da unidade Guiné-Cabo Verde, que foram escorraçados pelos primeiros. Se isto é ciência histórica, o mundo anda às avessas.

E assim chegamos às conclusões. Dá-se como provado que houve uma renovação da direção política do PAIGC muito antes da declaração da independência da Guiné-Bissau, em 1973, não é rigorosamente verdade, houve mexidas, entrou muita gente na segunda geração mas o poder ficou nas mãos da dupla Aristides Pereira – Luís Cabral, ao longo do Governo deste último grassou o descontentamento e surgiram problemas políticos de grande melindre, suficientes para os militares guineenses terem encerrado fileiras. Há pontos suscitados que merecem estudos posteriores, é o caso da questão das mulheres, ausentes da fundação do partido, Carmen Pereira foi a única militante cabo-verdiana eleita para a direção do partido. Igualmente acertado aparece o tratamento da imagem de Cabral nos dois países. A direção do processo revolucionário, a que a autora faz alusão, tem vindo a ser estudado por variados autores, é incontestável que o PAIGC rapidamente perdeu a dinâmica revolucionária na prática, usou-a nos seus planos de desenvolvimento, enquanto se afastava das massas, completamente intimidadas pelas provas de terror de execuções, prisões e banimentos, afastamento de régulos, a par de nomeações sem qualquer relevância de comissários de nulo poder de decisão, o poder estava concentrado em Bissau. Comparando Guiné com Cabo Verde, obviamente que este último país vai ficar melhor na fotografia.

Enfim, uma investigação a que se pode reconhecer muito trabalho, mas um exercício que se deplora de tratamento faccioso da história de uma rutura. Aliás, não é só Ângela Benoliel Coutinho que foge ao estudo da verdade quanto à essência da rutura, o fantasma e a iconografia de uma unidade que foi extremamente proveitosa para a independência dos dois países nunca passou de um sonho arquitetado por Amílcar Cabral num cenário idílico que nunca existiu. E os dois países continuam a pagar caro a fantasmagoria de todas essa ficções.
Amílcar Cabral com Carmen Pereira, imagem do jornal Público, 5 de junho de 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22459: Notas de leitura (1372): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22459: Notas de leitura (1372): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Publicar um trabalho universitário, datado de 2004 em 2017, quando a historiografia deu passos significativos em matérias que a então doutoranda investigou e que hoje são, em certos casos, matéria refutável, acarreta uma severa interpolação: por que razão a historiadora dá à estampa um trabalho que em pontos fundamentais a investigação já encontrou outras respostas? Historiadores cabo-verdianos, guineenses, portugueses e de outras nacionalidades têm continuado a estudar a génese do PAIGC, as suas atividades na luta armada, as questões internas, o legado de Cabral, o fracasso da política de unidade, designadamente na Guiné-Bissau.

Mas o mais grave de tudo é quando a historiadora desembainha o sabre sobre os dirigentes guineenses, culpa-os diretamente da rutura de 1980. Pergunto seriamente como é que este trabalho foi aplaudido numa universidade da Sorbonne e como é que o professor Luís Reis Torgal vem saudar a publicação deste livro na Universidade de Coimbra, como é possível?


Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (2)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne: “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: “O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”.

Lançada luz sobre a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, tendo-se mostrado quem eram os combatentes desde a primeira hora da luta, como, no fundo, se constituíram como a segunda geração dos dirigentes do PAIGC, a investigadora procura traçar o perfil dos valores e princípios dos heróis e ideólogos do PAIGC. As publicações guineenses, caso de Nô Pintcha, os heróis são guineenses, a maioria pertence à segunda geração, só Amílcar Cabral pertence à dos fundadores. Como são apresentados? Como dedicados, nunca se poupando a sacrifícios, abnegados, corajosos, verdadeiros filhos do povo. Cabral está noutro pedestal, é estudante brilhante, foi engenheiro brilhante, homem profundamente humano, honesto e de grande estatura, aceitou o sacrifício mais elevado, foi guia incontestado. O Nô Pintcha não deixa de relevar o universalismo de Cabral e a internacionalização da sua imagem. Analisando os selos de correio, Amílcar Cabral é a imagem maioritária, tanto na Guiné como Cabo Verde. Depois de exprimir o entendimento sobre a ideologia do PAIGC, a autora destaca expressões e trabalhos de Cabral sobre a cultura, o trabalho, a promoção da mulher, a gestão do tempo, a dedicação, a apologia de uma nova sociedade em consonância com os valores do PAIGC e retoma a controversa questão das relações suicidárias da pequena burguesia e do PAIGC, o que Cabral pensava da democracia revolucionária e também da união política, não descurando esta observação das atividades do PAIGC num quadro de unidade com certos movimentos ou partidos políticos africanos, com destaque para o MPLA e Frelimo. Ângela Coutinho não traz nada de novo sobre a questão das principais linhas ideológicas nem da questão da unidade, em momento algum no seu trabalho se relevam as questiúnculas permanentes, as dúvidas permanentes, os ressentimentos de longuíssima data, entre guineenses e cabo-verdianos.

Em novo capítulo, a autora tem um olhar de relance sobre os revolucionários no poder, no fundo não se ultrapassou o legado ideológico de Cabral no conceito de partido-Estado, vemos que houve uma gradual sobreposição de cargos de direção dos militares no poder político, o que é compreensível na época da escassez de quadros técnicos altamente qualificados. Não nos explica como começou logo a falhar a democracia revolucionária, o militantismo muito cedo foi desaparecendo, mesmo nos comités de tabanca.

Já estamos na independência, as heranças económicas eram distintas, o modelo ideológico o mesmo, ainda que mais atenuado em Cabo Verde, o PAIGC sabia que não podia afrontar literalmente os seus emigrantes, caso tentasse um modelo de nacionalizações em massa, haveria uma estrondosa quebra na remessa dos emigrantes tanto da América como da Europa. A grande polémica passava sobre o modelo de desenvolvimento, como introduzir novas formas de progresso sem chocar com os milenários usos e costumes africanos. Mas o modelo existia, era dado incontornável: havia que romper com a economia de autossuficiência que ocupava 80% da população. Escreve a autora: “Defendia-se uma articulação entre a agricultura e a indústria, no sentido em que a primeira era o setor de base da economia e a segunda seria a dinamizadora do seu desenvolvimento. Ou seja, de forma a romper com a economia de autossuficiência, a indústria devia colocar produtos no mercado, o que deveria criar nos camponeses o desejo de produzir mais e melhor, de forma a poder vender o excedente e adquirir os referidos produtos. Era necessário modernizar previamente o setor agrícola, tarefa que seria cumprida com a introdução de fatores de produção suscetíveis de aumentar a produtividade, tais como os utensílios de lavoura e os fertilizantes”. Mais tarde, virão as críticas ao modo como se tentou esta modernização, que falhou redondamente. Como igualmente se irão fazer críticas duríssimas à criação de indústrias de transformação. Estas tinham como objetivo primordial a resolução de problemas de desemprego e de subemprego nas cidades. Por altura da independência, o potencial circunscrevia-se a 14 unidades de produção industrial. Após a independência criaram-se novas estruturas, a prazo, irão todas ao fundo, desde as cervejas e refrigerantes, passando pelos sumos e compotas, pelo descasque de arroz, pelos móveis, pelas casas pré-fabricadas e colchões e estofos de espuma.

Na altura em que Ângela Coutinho preparou o seu doutoramento ainda não tinha saído o testemunho de Filinto Barros, um Ministro da Indústria que pouco antes do seu falecimento resolveu revelar o porquê de tantos fracassos, a começar pelos Armazéns do Povo até à indústria do descasque. Falando de Cabo Verde, a tomar como referência os dados utilizados pela autora, as coisas correram um pouco melhor. Falando de outras mudanças, elenca-se o que se pretendeu fazer na Justiça, na Educação, na Saúde, contando-se com imensos apoios da cooperação internacional.

O III Congresso do PAIGC (1977) apostou na educação, na conceção científica do mundo, tudo sob a alçada do partido-Estado. Aumentou de facto o número de escolas, tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde e ganhou prioridade a política cultural.

Sem nunca nos oferecer qualquer tipo de esclarecimento sobre os confrontos internos no PAIGC, Ângela Benoliel Coutinho reserva a última parte do seu trabalho ao golpe de Estado de Bissau de 14 de novembro de 1980. Se até agora pudemos contar com uma postura tendencialmente neutral relativamente à evolução da conduta destes dirigentes, tanto na Guiné como em Cabo Verde, agora, em plena tese de doutoramento, e contrariando as regras elementares da ciência histórica, a historiadora desmanda-se sobre o PAIGC da Guiné-Bissau, veremos como ela vai exprimir a triste figura dos seus argumentos.

(Continua)
Os dirigentes do PAIGC Amílcar Cabral, Luís Cabral e Aristides Pereira saindo da reunião do CSL em Boké, 1971. Imagem da Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Notas do editor:

Poste anterior de 9 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22454: Notas de leitura (1371): "Os Roncos de Farim", por Carlos Silva; editora 5 Livros, 2021, a ser apresentado amanhã na Tabanca dos Melros (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,

A dissertação de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho visou colmatar conhecidas e reconhecidas lacunas sobre os dirigentes do PAIGC: extração, profissões, famílias, aferir diferenças entre a primeira e a segunda geração de combatentes. A autora não esconde um móbil principal que é procurar desfazer o que ela chama um mito da hegemonia cabo-verdiana no PAIGC. Como se verá, bem procura mas não alcança. A História tem destas vicissitudes que é comprovar a veracidade dos factos pelos comportamentos políticos posteriores. 

Os combatentes guineenses tinham duas razões de tomo para desconfiarem da sigla da unidade Guiné Cabo-Verde: tiveram séculos de patrões cabo-verdianos e não gostaram; e foram fundamentalmente dirigidos até 1980 de acordo com uma lógica que davam por inaceitável. Trabalho com bastantes méritos, mas surpreende como é que se edita a seco uma tese defendida em 2005 quando, no entretanto, surgiu muita outra documentação de elevada pertinência. Não teria sido útil publicar a tese de 2005 com comentários a investigações posteriores que trouxeram, iniludivelmente, apreciações distintas à que a autora defendeu, então?

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (1)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne. A sua tradução para português, nos dias de hoje, obriga-nos a questionar se não devia ser objeto de um texto complementar decorrente da importante bibliografia publicada nos últimos treze anos. Logo Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa, António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros. Mas também Piero Gleijeses que estudou a presença cubana na luta armada; a entrevista de José Vicente Lopes a Aristides Pereira, com data de 2012, A Criação e Invenção da Guiné-Bissau por António Duarte Silva, mas há mais. 

Um olhar sobre a História é por definição sempre datado, mas publicar treze anos depois um documento destes sem um comentário acerca de investigações posteriores que podem pesar nas conclusões então produzidas, parece-nos um tanto bizarro.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: 

“O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”

Mostra-se entusiasta pelo cruzamento de diferentes disciplinas, tendo como núcleo central a Sociologia Política e organiza o seu trabalho sondando a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, a longa e progressiva tomada do poder pela segunda geração dos dirigentes do PAIGC, discreteia sobre heróis ideólogos após a independência, o que aconteceu aos revolucionários no poder e elabora as conclusões.

É de lamentar que ao referir a organização política do PAIGC traçada no Congresso de Cassacá não extraia a mais devida das considerações: o poder militar ficou, a partir desse momento, custodiado, totalmente dependente do decisor político. Durante anos, o cérebro da estratégia, tanto militar, como organizacional, política e diplomática, foi Amílcar Cabral; Aristides Pereira era o pontífice da logística e Luís Cabral o dirigente que funcionava como uma antena no Senegal. Há que tirar ilações desta cúspide, eles foram os verdadeiros dirigentes e interlocutores dos comandos militares.

Quanto à fundação do PAIGC, sabe-se que há dados obscuros, e de há muito. Quem esteve presente em 19 de setembro de 1956 é uma verdadeira incógnita; Julião Soares Sousa avança mesmo que era fisicamente impossível Amílcar Cabral ter assistido àquela reunião; e quanto à existência do PAI continua a pertinência da pergunta porque é que Amílcar Cabral nunca falou dele em sessões públicas ou na sua correspondência até 1960.

Para a investigadora, temos um conjunto de fundadores, nascidos entre 1923 e 1930, Aristides Pereira, Amílcar Cabral, Júlio Almeida, Fernando Fortes, Luís Cabral e Elysée Turpin. Eles podem ter sido todos fundadores mas para a história do PAIGC o que conta são os irmãos Cabral e Aristides Pereira, três homens extraídos da cultura cabo-verdiana, e a autora desenvolve mesmo as respetivas genealogias, releva a importância do Liceu Gil Eanes no Mindelo, o papel de Baltazar Lopes da Silva e da revista Claridade e interroga-se mesmo de quem influenciou quem no meio universitário lisboeta, Dalila Mateus ouviu Marcelino Santos sobre leituras e intercâmbios ideológicos, não parece haver dúvida que a grande plataforma de encontro foi o Centro de Estudos Africanos, funcionava na Rua Ator Vale, em pleno Bairro dos Atores, em Lisboa.

A autora aborda as fugas e as partidas para o exílio, não há uma palavra para Rafael Barbosa e o seu determinante papel dirigente nesse período decisivo de 1960 a 1962.

Estamos agora na segunda geração dos dirigentes do PAIGC, os combatentes. Oiçamos a autora a propósito do recrutamento dos militantes no mundo obscuro da clandestinidade:

“Considerámos que existiram duas fases cruciais de recrutamento deste grupo de dirigentes. A primeira diz respeito ao início da sua militância no PAIGC, enquanto a segunda ocorreu no interior do próprio partido, tratando-se do seu recrutamento na qualidade de dirigente deste. A fim de compreender a primeira fase em causa, visto a falta de estudos sobre o PAIGC e a indisponibilidade de fontes do partido, apoiámo-nos em vários outras fontes: processos da PIDE / DGS, entrevistas, relatos de vida publicados e obras ou estudos publicados”.

Concluiu que o recrutamento dos dirigentes ocorreu durante um período muito curto, primeiro em Conacri e depois no Senegal. Esclarece que os militantes do PAIGC que agiram no espaço político sob domínio português e que não fugiram durante este período, não fizeram carreira até ao topo da direção política do PAIGC. 

A maioria dos militantes que chegaram à direção política do movimento entre 1963 e 1967 já se encontravam na cena política africana e já tinham sido recrutados pelo PAIGC pelo menos até 1962. Luís Cabral, em entrevista à autora, enumera-os: Rafael Barbosa, Victor Saúde Maria, Carlos Correia, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Nino Vieira, Abdulai Bari, Pascoal Correia Alves, Tiago Aleluia Lopes, Otto Schacht, Vasco Cabral, todos guineenses, e Abílio Duarte, Silvino da Luz, Pedro Pires, José Araújo e Osvaldo Lopes da Silva, todos cabo-verdianos. 

A autora dá pormenores sobre o seu recrutamento, as suas trajetórias, profissões e atividades antes de entrarem na luta armada e as conclusões são de há muito conhecidas: os cabo-verdianos eram estudantes universitários; com estudos universitários só o guineense Vasco Cabral, todos os outros guineenses eram pequenos funcionários, em casas comerciais ou organismos do Estado.

A autora não esconde a intenção em pretender demolir a tese da hegemonia cabo-verdiana, como se esta se revelasse em percentagens, e o equilíbrio fosse patente. A questão de fundo é tratada veladamente: a decisão ideológica e política, a orientação militar estava a cargo de três líderes políticos, competindo a Amílcar Cabral todas as grandes decisões: os combatentes na fase de arranque eram todos guineenses. 

Com o evoluir da luta armada e a deslocação dos cabo-verdianos para o interior da Guiné deram-se substanciais alterações. Refere-se igualmente a quase ausência de mulheres da direção, a exceção mais relevante era Carmen Pereira, havendo figuras de prestígio como Titina Silá, Dulce Almada, Francisca Pereira e Ana Maria Gomes, isto quanto a uma primeira geração. Há também uma exposição sobre as fugas dos militantes cabo-verdianos, vamos ficar a conhecer a sua genealogia.

A obra “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

(Continua)

Carlos Correia, imagem retirada do Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19733: Os nossos seres, saberes e lazeres (321): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte IV: Xangai, 24 de maio de 1980




República Popular da China > Xangai > 24 de maio de 1980

Fotos (e texto): © António Graça de Abreu (2019). Todos os direitos reservados. [Edição / revisão e fixação de texto para este blogue: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do António Graça de Abreu com data de ontem

"Um texto espantoso! Já me tinha esquecido que o tinha escrito. Foi publicado no Diário de Notícias, a 5.7.1980. Este é para o blogue, com as fotos."



[Recorde-se: foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Viveu em Pequim e Xangai entre 1977 e 1983. Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Vive em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Chama-se António [José] Graça de Abreu, nascido no Porto em 1947.] (*)



Xangai, 24 de Maio de 1980 (**)


Xangai não me surpreendeu. 10.800.000 de habitantes, uma terra com mais dois milhões de habitantes do que Tóquio, Londres ou a cidade do México, as outras urbes megalómanas com maior população no globo. 


Se fosse possível esvaziar Xangai da sua imensa mole humana, metiam-se cá todos os portugueses e ainda sobrava espaço. É a metrópole mais aberta da China, burgo diferente de todas as outras cidades do império. Parecer-se-ia com Hong Kong se Hong Kong tivesse parado de se desenvolver em 1949. 

A imponente Xangai, da Bund, da Avenida Nanquim que se estende por sete quilómetros, dos hotéis, teatros e cinemas permanentemente cheios desde as nove da manhã, foi toda construída antes de os comunistas tomarem o poder.

Só depois de viver há quase três anos na China, tive ocasião de visitar Xangai. Já atravessei este país por duas vezes, de lés-a-lés, de Pequim às fronteiras com o Laos e o Vietnam, da Manchúria, no norte, a Cantão e Macau, bem lá no sul, porém Xangai nunca tinha ficado nos espelhos do caminho. 

Desta vez, Xangai foi o objectivo da viagem e cheguei à cidade do delta do rio Yangtsé com uma enorme vontade de ver e conhecer. Esta fantástica urbe é motivo de permanente conversa e busca de entendimentos entre chineses, e não só. Eu tinha de atravessar Xangai, da a meter na minha vida, esta é a cidade onde tudo aconteceu, acontece e tudo pode vir a acontecer.

Na China existe uma certa rivalidade entre Pequim e Xangai, pequinenses e xangaineses puxam, à vez, a brasa à sua sardinha e tentam provar que a cidade onde nasceram é que é a melhor. Algo semelhante à nossa rivalidadezinha entre Porto e Lisboa, procurando tripeiros e alfacinhas pôr no galarim, fazer valer a superior e excelsa qualidade de cada uma das suas terras.

Pequim é o centro político da China, uma cidade com a História surgindo em cada canto, os palácios dos imperadores Ming e Qing, os templos, os parques, os jardins, três milhões de bicicletas para oito milhões de habitantes, um certo conservadorismo nos modos e hábitos das pessoas. 

Xangai é o grande centro industrial e comercial da China, uma cidade agitada, jovem, cheia de força, permanentemente voltada para horizontes mais amplos. 

Não por acaso, foi fundado em Xangai, em 1921, o Partido Comunista da China, e também aqui nasceu, na década de sessenta, o grupo de Xangai que, depois da morte de Mao Zedong, viria a ser tristemente famoso como o execrável “bando dos quatro.”

Nesta terra, num passado ainda próximo, cometeram-se as maiores brutalidades sobre o povo chinês, impiedosamente explorado pelo capital inglês, francês, norte-americano, japonês, cidade também à mercê dos gangues e das tríades chinesas. Paraíso de aventureiros sem escrúpulos, cadinho de um proletariado incipiente que talvez nunca se tivesse libertado das garras de uma exploração feroz sem a ajuda de Mao, Zhu De e dos milhares de camponeses que constituiam o grosso dos soldados do exército comunista que tomou Xangai em 1949. 

Mas, contradição em que a China, mais do que qualquer outro país é fértil, foi devida à espantosa invasão estrangeira dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX que Xangai se transformou na mais moderna e avançada cidade da China. O contacto com o capitalismo selvagem, desenfreado, abriu os olhos aos chineses e o capital estrangeiro e também o saber como se cria riqueza, proporcionou a Xangai os meios para fabricar tudo o que precisa e continuar a dar cartas em toda a Ásia. 

Não falta comida neste imenso burgo, a variedade e qualidade dos produtos ultrapassa de longe o que é feito em qualquer outra cidade do império. Xangai não só fabrica muito e bem, abastece-se e abastece a China.
Claro que a vida não é fácil para os milhões e milhões de pessoas que aqui vivem. O problema número um talvez não seja o arroz de cada dia, mas a casa, a habitação, o quarto para cada um. Há milhares de quarteirões inteiros a cair que precisam de ser arrasados e construídos de novo. Há milhões de jovens que querem casar, mas onde encontrar um tecto para os abrigar, onde descobrir um espaço para os ajudar a alinhar as suas vidas? 

Nesta cidade de brandos costumes, a mais liberal da China, ao fim da tarde, na Bund, no parque do Povo, junto ao rio, gostei de ver os namorados aos milhares, praticamente encostados uns aos outros, em filas compactas, debruçados no extenso parapeito sobre as águas do Huangpu. Beijando-se, longamente, ignorando quem passa e finge que não vê. Talvez seja a maior aglomeração amorosa do mundo. Estas meninas de Xangai (ou da China inteira?), suaves, pretensamente recatadas, enroscando-se nos namorados, enlaçando-se neles. Ah!...

Talvez não gostasse de viver em Xangai, este mundo enorme quase me assusta para a vida de todos os dias. Tenho uma costela forte de anacoreta frustrado, descontente com o mundo dos homens, procurando refúgio no isolamento das montanhas, longe das vilanias terrenas, mais perto do céu. No entanto, se velho monge panteísta, eu me escondesse nas faldas de um qualquer Gerês ou Soajo, lá no Portugal do outro lado do mundo, ou aqui na China, na magia de outras montanhas, entre nuvens do amanhecer e azáleas em flor, desejaria, por certo esquecer o meu bordão de reverente asceta da Natureza e adoraria descer, de vez em quando, para uma grande cidade, como Xangai, ao encontro da vida que por aqui se cria, queima, esbate e recomeça sempre.


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Notas do editor:

(*) Vd, poste de 20 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19701: Os nossos seres, saberes e lazeres (319): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte III: Pequim e Macau, out / nov 1982

(**) Último poste da série > 27 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19722: Os nossos seres, saberes e lazeres (320): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19693: Os nossos seres, saberes e lazeres (316): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte I: janeiro de 1980



República Popular da China > Pequim > s/d > O António Graça de Abreu na praça Tianamen [ou Praça da Paz Celestial]

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O António Graça de Abreu,  ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 230 referências. 

Nasceu no Porto, em 1947; é escritor, tradutor, poeta, sinólogo, com mais de duas dezenas de livros publicados; é professor universitário; licenciou-se em Filologia Germânica e é Mestre em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

Da sua experiência militar, no CAOP1 (1972/74),  escreveu um pessoalíssimo e original Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra e Paz, Editores, 2007), de que já publicámos inúmeros excertos no nosso blogue.

Dele publicamos também recentemente a série Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu).

É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

Menos conhecida, dos amigos e camaradas da Guiné, ou sejam, dos nossos leitores, é a sua obra de tradução,  para português, dos grandes clássicos da poesia chinesa bem como  a sua estadia na China, entre 1977 e 1983, onde leccionou Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Pequim e Shanghai, tendo trabalhado nas Edições Pequim.

Do seu "diário secreto, ainda inédito", escrito nos anos de 1977 a 1983, enviou alguns excertos para as pessoas da sua "mailing list", incluindo o nosso blogue. Dado tratar-se de um camarada nosso com um papel conhecido e ativo no desenvolvimento das relações culturais entre Portugal e a China (incluindo Macau), e, portanto, da lusofonia,  achamos oportuno e pertinente publlicar, com a sua autorização, alguns desses excertos.

Publicamos hoje a parte I (Pequim, janeiro de 1980) e oportunamente a Parte II (Pequim, outubro de 1982; Macau, novembro de 1982) (LG)



Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito", escrito na China, entre 1977 e 1983

por António Graça de Abreu


Pequim, 22 de Janeiro de 1980


A minha danwei 单位, a “entidade de trabalho”, é as Edições de Pequim, mas tenho igualmente ajudado um pouco a profª. Conceição Afonso na leccionação no Curso de Língua e Cultura Portuguesa numa outra danwei, a Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim.

Sou professor, por formação, e tenho dado aulas aqui nas Edições aos chineses que comigo trabalham, e a muitos outros chineses que estudam ou estudaram português e vêm assistir e participar no nosso aprendizado com a língua portuguesa. Estou por isso, relativamente bem informado sobre o que se passa nestas paragens quanto ao ensino do português.

O nosso idioma começou a ser estudado na China no ano de 1961 e, singularmente, muitos dos primeiros alunos haviam estudado russo, passando depois para o português. Com o conflito ideológico entre soviéticos e chineses no final dos anos cinquenta, que levou à saída da China de milhares e milhares de técnicos russos, o conhecimento da língua de Tolstoi e de Lenin quase deixou de ter utilidade.

Para alguns, não muitos, jovens chineses, a língua de Camões e Eça passou então a ser uma alternativa de vida, e avançaram do russo para o português, e a mudança não terá sido tarefa fácil. Até 1975, os cursos ministrados em vários lugares de Pequim foram apenas de português do Brasil e funcionaram em condições precárias, inclusive os professores não eram propriamente mestres, mas refugiados políticos, cidadãos escapados à ditadura brasileira, com diversas profissões que nada tinham a ver com o ensino.

A Revolução Cultural, com o encerramento da Faculdade de Línguas Estrangeiras durante cinco anos, foi responsável pelo desmembramento dos cursos e pelo desinteresse criado nos alunos. O governo chinês teve, no entanto, o bom senso, em 1965, de enviar para Macau, quase em segredo, 60 jovens chineses que estudaram português durante quase três anos. Alguns deles trabalham hoje comigo nas Edições e tiveram um professor que nunca mais esqueceram, de nome Júlio Dinis.

Neste momento funcionam na Faculdade de Línguas Estrangeiras, Departamento de Estudos Ibero-Americanos, dois cursos de Língua e Cultura Portuguesa, com quarenta alunos, uma professora portuguesa e sete professores chineses. Os alunos têm uma média de 20 anos e foram escolhidos para frequentar os cursos através de um exame especial, após terem terminado o secundário. 

Os cursos, além da língua portuguesa, literatura portuguesa, História de Portugal, debruçam-se também sobre outros temas como literatura clássica chinesa, política, etc. Prolongam-se por quatro anos e funcionam em regime de internato. Equivalem ao nosso Ensino Superior, embora o nível geral seja inferior ao do das nossas universidades, quando acontece elas em Portugal funcionarem bem. Após terminarem o curso, os estudantes não têm opção de escolha e são distribuídos por diferentes lugares, departamentos ou serviços. Alguns irão trabalhar nas embaixadas da China nos países de língua portuguesa, outros no turismo, como guias-intérpretes, outros como tradutores, intelectuais ligados ao mundo cultural da língua portuguesa.

Os alunos são trabalhadores e ao fim de um ano de aprendizagem começa a ser possível conversar com eles em português. Temos falta de materiais de ensino. É uma pena que sendo a nossa língua a quinta mais falada do mundo, não exista um bom manual, feito em Portugal, destinado ao ensino do português no estrangeiro.

Também não temos ainda um verdadeiro leitorado de português em Pequim, dado que as relações diplomáticas são recentes e não foi assinado nenhum acordo cultural entre os nossos dois países, mas eu próprio, de férias em Lisboa, no Verão passado, fiz a ligação com o ICALP, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa e com a Fundação Calouste Gulbenkian que já nos enviaram duas bibliotecas básicas de clássicos portugueses, uma para as Edições e outra para a Faculdade. 

Também temos recebido outros livros, jornais, revistas, diapositivos e discos. É pouco, mas estes materiais já estão a ser utilizados das mais variadas formas. A Fundação Calouste Gulbenkian, através do seu Serviço Internacional, prometeu bolsas de estudo em Portugal para cada um dos professores chineses que ensinam português na Faculdade de Linguas Estrangeiras de Pequim.

Em Xangai, cidade com 10 milhões de habitantes, na também Faculdade de Línguas Estrangeiras, funciona igualmente um curso de português, com 12 alunos e uma professora brasileira, a Drª. Yuko, por acaso de origem japonesa, mas nascida em São Paulo. Já me convidaram a ir a Xangai dar duas semanas de aulas, o que, creio, acontecerá ainda este ano.


Pequim, 25 de Janeiro de 1980

Original visita à Escola de Trabalho, Estudo e Reeducação no distrito de Lugoujiao,fundada em 1978, nos arredores de Pequim.

No nosso Portugal chamavam reformatórios ou casas de correção a estes estabelecimentos, tutorias destinadas a jovens transviados, problemáticos, de difícil inserção na sociedade.

Aqui, a Escola tem quase trezentos alunos, quarenta dos quais são raparigas, jovens oriundos de famílias desagregadas, não funcionais. Estavam habituados a provocar distúrbios nas escolas que frequentavam. Dizem-me que aqui se procura disciplinar os rapazes e raparigas, através do exemplo, do estudo e do trabalho físico que lhes ocupa 1/3 do tempo lectivo. Os temas ensinados são os mesmos do ensino secundário, mas com menor carga horária.

Os trezentos alunos estão distribuídos por dez classes, fazem trabalho manual, cultivam arroz e trabalham numa fábrica de plásticos integrada na escola. Quando têm família que os receba, vão a casa de quinze em quinze dias. Têm também duas semanass de férias por ano.

Muitos destes jovens cometeram delitos graves, mas não são criminosos. 10 a 20% deles reincidiram nos erros, mas a maioria aceita e gosta da Escola. Não existe uma vigilância apertada, não há muros altos, alguns alunos já fugiram, regressaram e voltaram a fugir. Não é fácil o labor dos professores e empregados.

A Escola é recente e o director que nos recebe, e vai dando as explicações, diz que tem pouca experiência de lidar com estes jovens problemáticos. Procura-se incutir um ideal na mente de cada um, explicando-lhes que eles não são os principais responsáveis pelos erros que cometem. Claro que eles também terão algumas culpas, no entanto não os devemos acusar directamente. É necessário fazer-lhes compreender porque cometeram erros, quais as causas, próprias e alheias, até que ponto são eles as vítimas.

Trata-se de salvar os adolescentes e de procurar formar jovens úteis à sociedade. Os professores têm obrigação de gostar dos alunos, de os compreender e orientar, os jovens necessitam de sentir que são amados, o seu comportamento não atraiu o amor, mas os afectos são importantíssimos na melhoria permanente de todos. Tenta-se ajudá-los a compreender melhor a sociedade, a dar-lhes interesse pela vida, a trabalhar pelo colectivo. Todos recebem um pequeno salário de 7 yuans por mês e já desfilaram orgulhosos na grande Avenida Chang’an no 1 de Outubro, o Dia Nacional da China.

Depois da extensa e didáctica conversa introdutória, fomos visitar a Escola. Instalações muito deficientes, salas de aula espartanas e nuas, à moda da China, camaratas para duas dezenas de jovens, cada uma, tudo muito feio, frio e pobre.

Os rapazes e raparigas não nos vieram saudar com a jovialidade de quem encontra amigos. Os rostos marcados pelo rasgar das vidas, ainda tão breves, sentindo-se observados, peixes fora do aquário, quase nenhum sorriso. Interessante, mas deprimente e triste esta passagem por uma casa de correção de jovens, em Pequim.

Como disse o director do reformatório “são flores em mau estado, estragadas pelos bichos.” E os “bichos” seremos todos nós.

Pequim, 31 de Janeiro de 1980

Sugeri às Edições [Pequim] uma viagem especial, duzentos e cinquenta quilómetros de bicicleta desde Shijiazhuang, capital da província de Hebei até Anyang, já na província de Henan e importante centro histórico. No século XIV a.C., Anyang foi capital da dinastia Shang-Yin e um dos grandes centros urbanos da China antiga. Há imensos vestígios arqueológicos, mal conhecidos, a visitar absolutamente. Pedi para ir comigo como intérprete, auxiliar de logística, a pedalar a meu lado pela China abaixo um dos jovens camaradas que trabalha comigo nas Edições onde não estamos muito ocupados e há tempo de sobra para outras actividades. 

O objectivo da viagem passa também por conhecer outras paragens da China, pedalando gloriosamente por dentro do mundo camponês, fotografar e escrever depois umas crónicas que poderão ser publicadas na revista onde agora trabalho, a China em Construção. A minha sugestão de publicação estende-se a outras revistas das Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, não importa qual seja o idioma.

Aguardo desenvolvimentos.[1]
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[1] Esperei meses e meses por uma resposta que acabou por chegar, diplomaticamente negativa.

[Links da responsabilidade do editor LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19675: Os nossos seres, saberes e lazeres (315): Viagem à Holanda acima das águas (19) (Mário Beja Santos)

sábado, 6 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14707: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte III): Op Jigajoga 2, 31/8/1967, e Op Jacaré, 16/9/1967... Fotos de Banjara


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... e todos eles membros da nossa Tabancca Grande: da esquerda para a direita,   o António Moreira, o Domingos Maçarico,  esquerda, o Alfredo Reis e o A. Marques Lopes,  O Domingos Maçariço foi gravemente ferido e evacuado para a metrópole no decurso da Op Jacaré,  16 de Setembro de 1967, na primeira tentativa (falhada) de assalto e destruição da base IN de Sinchã Jobel. 

Foto (e legenda) : © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.






Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara (vd. carta de 1956, escala 1/50 mil) > Foto nº 5 > 

O destacamento era constituído por: (i) uma caserna; (ii) quatro abrigos subterrâneos; e (iii) um posto de comando, que era uma casa abarracada, sem portas nem janelas... Tinha ainda outros abrigos à superfície. A envolver este destacamento, que no essencial era uma clareira circular com cerca de mil metros de diâmetro, havia duas fiadas de arame farpado paralelas e em círculo. As casas de banho, eram... a céu aberto. O capim era necessário cortá-lo de dois em dois meses, para evitar a aproximação camuflada do IN.


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Geba > CART 1690 (1967/68) > Banjara  > Foto nº 4 >

Banjara ficava situada a cerca de 40/45  km de Geba e a cerca de 20 Km de Mansabá, na estrada Bissau-Bafatá. Ficava no coração da mata do Oio, e teve, antes da guerra colonial, uma unidade industrial de serração de madeiras. Pertencia, durante a guerra, à área de actuação da Companhia de Geba, do Batalhão de Bafatá.

Na época, passava por ser, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé, o piro sítio da Guiné...  Não apenas pelos ataques a que estava sujeito o destacamento como, e  sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da companhia, e por estar cercado por uma cintura de posições IN, que vigiavam facilmente, de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores em redor, todos os movimentos da nossa tropa. Em termos de 'bases' IN tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte.




Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara  > Foto nº 6

A paisagem envolvente era de uma beleza indescritível, com dezenas de cajueiros, mangueiras, árvores gigantes, capim e as célebres lianas. O barulho ensurdecedor dos milhares de pássaros e a vozearia nocturna da mais variada bicharada, desde macacos a hienas, tornavam aquele ambiente um mistério todos os dias renovado.





Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 7 > A famosa fonte que saciava a sede, à vez, tanto das NT como do IN... A malta procurava lá ir a horas desencontradas...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 A> CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 12

Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares. A çaça era um recurso...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Gb, ea1967/68) > Banjara Foto nº 8 > Tudo o vinha à rede era peixe...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 >  CART 1690 (Gbea, 1967/68) > Banjara Foto nº 13 > Um valente javali...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 17 > Um dos nossos caçadores...



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 2  >  Cobra, também se comia...




Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara Foto nº 20 >

O dia amanhecia, então, e, pelas 7 da manhã, iniciava-se a distribuição da 1ª refeição. As horas mortas do pessoal eram gastas, durante o dia, à caça, quando isso era possível e o capim estava seco e caído no chão, a jogar cartas, pôr a correspondência em dia e jogar futebol. O jogo de futebol era normalmente diário, mas sempre a horas diferentes, para não se cair na rotina, e sempre com os abrigos guarnecidos de atiradores.


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara > Foto nº 44 >  Às voltas com uma avaria na picada...


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > CART 1690 (Geba, 1967/68) > Banjara > Foto nº 55

A guarnição deste destacamento, comandado por um Alferes, variava entre 60 a 80 homens, normalmente (houve alturas em que tinha só um pelotão), bem armados e disciplinados, capazes de aguentar debaixo de fogo uma boas dezenas de horas. O seu comando era rotativo e por lá passámos os mais longos meses da nossa juventude, então com 23 anos, e responsabilidades tremendas em cima dos galões de Alferes.

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]

I. Continuação da publicação desta série, "Jogos de Cabra-Cega: Sincha Jobel",com a reedição de alguns postes do A. Marques Lopes, que tem por objeto central a descoerta e a tentativa de destruição, pelas NT, de Sinchã Jobel, uma base ("barraca") do PAIGC, em pleno coração da Guiné, na zona leste, no regulado de Mansomine, entre Mansambé e Geba. São os postes nº 35, 36, 39, 40, 45 e 763, originalmente inseridos na I Série, e como tal como lidos e conhecidos... Fizemos a revisão de texto (e atualizámos o texto de acordo com a ortografia em vigor). (*)


II. Jogos  de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte III): tentativa falhada de assalto e destruição da base IN


1. Depois da minha "descoberta involuntária", mas sem surpresa para alguns, iniciaram-se algumas operações mais elaboradas com o objectivo da destruição da base de Sinchã Jobel.

Era, como vos disse, uma antiga tabanca, já destruída, sendo agora uma clareira de cerca de 2.000 m2, cercada por uma mata densa, tendo a sul o Rio Gambiel, com água pelo peito e uma "ponte" submersa, isto é, dois troncos de palmeira debaixo de água, (quando fui para lá o meu guia indicou-ma, quando regressei, sem guia, tive de a descobrir); a oeste e a este tem várias bolanhas, uma delas mesmo perto da clareira (a tal onde durante a noite toda a minha vida me passou pelo pensamento); a norte, até Banjara, tem uma floresta muito densa e dezenas de poilões (há lá, na Guiné-Bissau de agora, uma serração).

Nas margens do rio Gambiel e das bolanhas os guerrilheiros tinham sentinelas; pelo lado de Banjara, a floresta impenetrável tornava o acesso impossível. É claro que a base de guerrilha não estava na clareira de Sinchã Jobel (nem antes dela, pois não a encontrei quando ia para lá) mas em algum local deste contexto que vos descrevo, para norte, muito bem situada e com ótimas condições de defesa.

Nesta fase, certamente ainda em início de implantação, é natural que os guerrilheiros só se manifestassem quando lhes parecesse conveniente (foi o que lhes pareceu quando viram trinta mecos a ir para lá...), por isso não se manifestaram nesta Operação Jigajoga 2. 

Além de que o seu principal objetivo era montar minas e emboscadas no itinerário Geba-Banjara e atacar os destacamentos. Mais tarde, quando fortalecidos e bem guarnecidos, creio que alargaram a sua ação até Mansabá e para o Xime e Xitole. Este enquadramento da base de Sinchã Jobel expliquei-o ao comandante do Agrupamento 1980, em Bafatá, mas, pelo que vão ver nos "próximos capítulos", não valeu de muito.


Op Jigajoga 2,  31 de Agosto de 1967:

"Situação particular:

O IN tem-se revelado a sul de Banjara, com mais intensidade nos regulados de Mansomine e Joladu. Em Sinchã Jobel possui uma base forte, que serve de apoio às suas acções.

"Missão:

- Assegura a ocupação do Setor, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

- Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no setor, impedindo que a subversão alastre.

- Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afetadas.

- Armadilha os itinerários utilizados pelo IN.

"Força executante:

Dest A - CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); CCVA 1693 (1 Gr Comb); 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções); 1 PEL 109/CAÇ MIL 3

Dest B - CCS 1877 (1 Gr Comb) /CCS 1877 (1 Gr Comb); 1 PEL REC/EREC 1578.

"Desenrolar da acção:

"Em 31 de Agosto de 1967, pelas 4h30., iniciou-se a progressão a partir de Darsalame. Durante a progressão foi batida toda a zona do itinerário, procurando vestígios e/ou trilhos que indicassem a existência do IN.

"Pelas 09H00 aproximação de Sare Tamba, os cuidados de pesquisa redobraram no sentido de localizar e assaltar o possível acampamento IN. Batida toda a mata durante 2 horas onde se supunha existir o referido acampamento, não foi possível localizá-lo nem o IN se revelou.

"No deslocamento para o objetivo pelas 11h00 foi ouvido um disparo de espingarda tipo Muaser ao longe, não sendo possível determinar a sua direção. Continuada a batida foram encontrados restos de um camuflado IN, não sendo possível, porém, encontrar mais nada. Pelas 11h50 foram ouvidos muito ao longe alguns rebentamentos fora da zona de ação.

"Por parecer mais fácil passou-se a bolanha junto a Sinchã Bolo e a seguir o Rio Jago na direcção de Sucuta (Madina Fali) onde se chegou pelas 15h00. Fez-se uma paragem para se conferir pessoal e material, porque as bolanhas foram de difícil travessia e foi a coluna atacada por um enxame de abelhas durante a transposição da primeira bolanha.

"Reiniciada a progressão em direção a Sare Budi foi detetada pelas l6h00, em 1445 121.07H, 100 metros após a entrar na mata uma armadilha A/P a qual foi destruída pela Secção do PEL SAP/1877. Em Sare Budi no itinerário para Sare Madina foram montadas 2 armadilhas A/P cujo croqui será elaborado pelo Cmdt SAP/BCAÇ 1877.

"Continuando a progressão em direção a Sinchã Fero Demori, não foi possível montar mais armadilhas em virtude do adiantamento da hora e não ser possível determinar o itinerário de acesso ao interior do setor desta CART.

"A chegada a Sare Banda verificou-se às 19h30, seguindo em meios auto até Geba, o que se registou às 20h30, tendo regressado às suas unidades o Gr Comb / CCAÇ 1685 e o 1 PEL SAP / CCS 1877 (2 secções)".


2. Nesta altura, as cabeças pensantes do Comando de Agrupamento [sedeado em Bafatá, o Cmd Agr 1980, 1967/68] já teriam concluído, e tinham provavelmente informações, que a base se situava a seguir à clareira de Sinchã Jobel, para norte. Daí a presença de dois grupos da 5ª Companhia de Comandos para o eventual golpe de mão ao acampamento. 

Só que a guerrilha já se tinha também prevenido com minas A/P (já vistas na Op Jigajoga 2) e A/C como mais uma limitação no acesso à base e, ao mesmo tempo, um factor de alerta. Um dos feridos com o rebentamento de mina nesta operação foi o meu amigo (hoje eng agr  Domingos Maçarico, então alferes miliciano da CART 1690, que acabou por ser evacuado para o Hospital Militar Principal da Estrela, e anda agora com uma placa de platina na cabeça.


Op Jacaré,  16 de Setembro de 1967: 

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas nos regulados de Mansomine. Possui um acampamento forte em Sinchã Jobel que serve de base para as suas acções.

"Missão:

- Assegura a ocupação do sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzem ao interior.

- Deteta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre.

- Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

Dest A - CCAV 1650 (-); CART 1690 (2 Gr Comb); CCAÇ 1685 (1 Gr Comb); PEL MIL 111/C MIL 3

Dest B - 01 PEL REC / EREC 1578.

Dest C - 2 Gr  COMANDOS [,5ª CCmds]

Dest D - 1 Gr. Comb /CCS/BCAÇ 1877.

Dest E - 1 Secção / AML 1143.

Dest F - 1 Secção / AML 1143.

"Desenrolar da ação:

"Em 16 de Setembro de 1967, pelas 6h30, o Dest A menos o PEL MIL / C MIL 5 deslocou-se em meios auto em direção a Cheuel. Após a saída de Geba uma viatura avariou, sendo o pessoal distribuído pelas outras viaturas que constituíam a coluna.

"Cerca das 08h00, uma mina anticarro destruiu a terceira viatura da coluna a cem metros de Chuel, projetando os ocupantes, dos quais 8 foram evacuados por heli para o Hospital Militar 241, tendo os restantes ficado em condições de não prosseguir a operação, o mesmo acontecendo, com outros que ao saltar das viaturas se haviam magoado.

"Montada a segurança aos feridos e viaturas, procedeu-se a escolha e preparação do campo de aterragem para o heli que imediatamente fora pedido pelo PCV [posto de controlo volante] que na altura nos sobrevoava. Posta a situação ao PCV, quanto a baixas, foi ordenado ao Dest A para regressar ao quartel depois de evacuar as viaturas, e onde chegou pelas 17h00.

"Devido à quebra do segredo foi ordenado pelo cmdt AGRUP 1980 o cancelamento da operação.»

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Notas do editor:

Vd. postes anteriores da série:

3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João

5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14700: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II): Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui"...