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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18170: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): três balas de kalash para uma missão suicida: o trágico fim do ex-soldado 'comando', Cissé Candé, em abril de 1978


Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > Junho de 1972 > CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74> Equipa dos Condutores e Faxinas: da esquerda para a direita: José Maria, Vasconcelos, Carvalho e Fernando Mandinga. Na primeira fila: Jorge Suleimane, Barbosa (Mamassaido), Braima Banassé e o Francisco (Cherno-Dabo).

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Cherno Baldé, foto atual. Gentileza
da sua página no Facebook.
I. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Cherno Baldé, com data de ontem:

Caros amigos Luis e Carlos Vinhal,

Antes de tudo, espero que tenham entrado com o pé direito neste ano novo, com votos de saúde e felicidades junto dos seus entes queridos. Também aproveito o ensejo para desejar, a todos os meus amigos reais e/ou virtuais do Blogue da Tabanca grande, votos de festas felizes e prosperidade no ano novo que agora inicia.

Juntamente envio um texto para vossa apreciação e posterior publicação, caso assim o decidam.

Eu passei as festas de Natal na minha aldeia de Fajonquito e a passagem do ano em Bissau com a família.


Um grande abraço de estímulo e de encorajamento para mais um ano de luta e de trabalho para uma vida melhor.

Cherno A. Balde



Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > 1970  > Grupo da 1.ª CCmds Africanos, em formação. Vê-se na segunda fila, sentado, o cap 'cmd' graduado João Bacar Jaló. Não temos nenhuma foto do Cissé Candé, natural de Fajonquito,  que pertencia à 2.ª CCmds Africanos, tal como o nosso saudoso Amadu Djaló.

Foto: © Virgínio Briote / Amadu Djaló (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


II. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): 

Três balas para uma missão suicida (*)

por Cherno Baldé

Fajonquito, Abril de 1978

Os dias sucediam-se normalmente nessa época seca. As mulheres continuavam a levantar-se cedo para pilar o milho que seria utilizado para matar a fome das crianças que passavam os dias em casa durante o dia e no período da noite quando os homens voltassem dos trabalhos da preparação dos terrenos no campo para a época das chuvas que se aproximava e das pastagens longínquas situadas para lá das bolanhas de Berecolóm e Sunkudjumá.

A vida na aldeia decorria calmamente, entrecortada aqui e ali por questões mundanas, de querelas por mulheres e roubos de gado num contexto em que, cada vez mais, a autoridade de Estado deixava de se fazer sentir nas zonas mais periféricas do pais.

A contrastar com o sentimento de alguma insegurança e de incerteza politica, eram os festejos ligados à independência recente do país com danças frenéticas, acompanhadas de tambores e cânticos das mulheres nos seus trajes multicolores, embora o entusiasmo fosse cada vez menor, assim como a adesão das multidões. “Bhê-Tchebhiríma-ey!” (estamos fartos desta gente) diziam em surdina os mais ousados. Manifestações de apoio seguidos de reuniões intermináveis, todos os dias, era demais para os pobres camponeses que não podiam desperdiçar seu precioso tempo em futilidades.

Para o jovem Cissé (1), todavia, a preocupação era outra. Desmobilizado dos Comandos Africanos, tinha regressado à aldeia havia pouco tempo e, sem problemas de maior, tentava reintegrar-se na vida e nos trabalhos da aldeia na companhia do seu grupo de idade e dos irmãos mais novos, esperando poder mostrar aos mais velhos da aldeia que a vida militar não mudara em nada a sua aptidão e afinco no trabalho que aprendera desde os primórdios da sua juventude.

Ao mesmo tempo, as informações que circulavam não o deixavam sossegado. Os rumores davam o tenente Djamanca, o Carlos Bubacar Djau (2), o Sedjali Embaló (3) e outros, antigos oficiais e colegas do Batalhão dos Comandos, como presos algures em lugar incerto, talvez mortos, e havia que encontrar uma solução o mais rápido possível.

Uma noite decidiu falar com a mulher sobre o assunto. Deviam emigrar para o Senegal, afastar-se por algum tempo, deixar a poeira assentar. Que não, respondera a mulher, emigrar agora e deixar a família com um bebé nos braços, não podia ser, que esperassem ainda um pouco, talvez depois da próxima campanha agrícola.

Os olhos de Cissé emudeceram de lágrimas contidas, pois a mulher não compreendia o desespero da situação e ele sabia que não podia mostrar sinais de fraqueza. Precisamente, ele planeava passar as chuvas já no outro lado da fronteira. Nos dias que se seguiram falou com os seus pais, em especial com o tio paterno sobre o assunto, pedindo-lhes que intercedessem para convencer a mulher no maior sigilo possível, pois o assunto não podia ser do conhecimento público.

Entre outras coisas, chamou-lhes atenção sobre a presença assídua do homem da segurança do Estado que aos olhos de todos não passava de um idiota qualquer, animador da vida social na aldeia em promiscuidade constante com as mulheres, mas que, na realidade, trabalhava para a sua perda. Era ele que controlava a situação na aldeia e arredores, transmitindo as informações ao mais alto nível do Partido e da região. Passava todos os dias nas moranças como se viesse simplesmente cumprimentar os homens grandes, mas o objectivo era outro e Cissé sabia-o, sentindo-se vigiado por olhos e forças invisíveis cujo cerco se apertava de dia para dia.

Sentindo-se incompreendido e encurralado, não podendo aguentar mais, o jovem ex-comando começou a ser violento nas suas atitudes e numa tarde quente do mês de Abril [de 1978], por da cá aquela palha, passou mesmo a vias de facto com a mulher, tendo-a agredido e provocado alguns ferimentos na cabeça. Chegados ao posto sanitário para tratamento e, pela sua gravidade, o caso foi levado junto das autoridades que lhe deram ordem de prisão, sendo encarcerado dentro da residência do responsável pela segurança. Na solidão do cárcere, concluiu que aquilo que ele temia há muito, tinha finalmente chegado e agora estava nas malhas dos agentes da segurança, donde nunca poderia sair.

Por volta das 20 horas, já a noite se tinha abatido sobre a aldeia e, no desespero da causa, forçou a
janela do pequeno quarto que lhe servia de cela, saiu para a varanda da casa e reentrou, pelas traseiras, no quarto do homem da segurança e, como previa, estava ali a Aka (HK-47)  [foto à direita], pendurada na parede da casa. Inspeccionou e viu que a arma continha somente três balas. Abanou a cabeça de tristeza. O que poderia fazer com três balas num momento tão decisivo!?... Teria pensado. Saiu, contornando a área e dirigindo-se ao posto sanitário situado na zona central da aldeia, onde, nesse preciso momento e com a ajuda de um candeeiro petromax, estavam a suturar os ferimentos que ele tinha causado à sua esposa durante a briga da tarde. 

Apontou a arma para o circulo iluminado, não se sabendo bem se para matar a esposa desobediente, se o responsável da segurança que o tinha preso ou alguém do grupo dos curiosos que, entretanto, se tinham amontoado. O tiro da Kalash ecoou no ar e o candeeiro foi projectado pelos ares, aterrando-se a uma dezena de metros de distância. Entre gritos e gemidos de aflição, a multidão dispersou-se na noite escura, espalhando a noticia de um ataque a aldeia…, de mortos e de feridos…

Tudo leva a pensar que o Cissé ficou convencido ter cometido um acto tão irreversível quanto imperdoável e que poderia determinar o seu destino final, destino esse que, durante muito tempo na sua vida de soldado comando e em inúmeras ocasiões, durante as arriscadas missões em que participara, teria pensado, sem conseguir descortinar as suas reais formas. Quantas vezes perguntara a si mesmo quando e como seria a sua morte. Por bala ou por acidente? A única certeza que tinha era que não seria por doença.

Saiu da sua trincheira improvisada, contornou de novo a aldeia, seguindo por um trilho de cabras que atravessava a barreira dos arames farpados, entre o bairro mandinga de Morcunda e as ruínas do antigo quartel, embrenhando-se na escuridão dos arbustos à volta da pista de aviação, onde teria passado parte da noite, mergulhado na convulsão dos seus pensamentos confusos e de lembranças antigas da sua curta mas agitada carreira militar que agora subiam à tona.

Enquanto os guerrilheiros vindos em reforço andavam à sua procura no mato adjacente, durante a madrugada, qual animal ferido, ele teria voltado, sorrateiramente, junto a sua casa e, não tendo encontrado a esposa, ficara emboscado nas suas traseiras à espera dos primeiros raios do sol para finalizar a sua operação.

De manhã cedo, estavam os pais (o pai propriamente dito e seu tio, irmão do pai), sentados no “bentem” dos homens grandes, no centro da morança, a falar sobre os acontecimentos do dia anterior e, certamente, a reflectir sobre as possíveis consequências e medidas de precaução a tomar já que o problema se transformara, perigosamente, num caso de segurança de Estado com toda a região militar Leste em prevenção e de alerta máxima e, eis que surge, de repente, o vulto longilíneo de Cissé à porta da sua cubata, a poucos metros, com uma arma nas mãos e que os intimida nos seguintes termos:
- Olhem para o sol, seus velhacos, porque esta é a vossa última oportunidade em vida!!!

Todas as opiniões convergem no sentido de que ele dirigia estas palavras especialmente ao seu tio, com o qual nunca se dera bem, e que, na sua opinião, tinha contribuído negativamente para as difíceis relações com a sua mulher. Caçador profissional experiente, foi o primeiro a reagir, atirando-se ao chão num instinto de defesa. O mais velho, não sabendo ou não podendo reagir a tempo, ainda ficou petrificado e incapaz de reagir até sentir o assobio do projéctil perto das suas orelhas, para a seguir, também, imitar o irmão mais novo e estender o seu corpo esquelético e comprido no chão vermelho de poeira da sua morança como se estivesse morto, pensando na ousadia e atrevimento daquele garoto que ele criara com todo o amor de pai, antes de crescer e se transformar naquela máquina de Guerra insensível que os brancos apelidavam de Comandos africanos.

O Cissé tinha feito bem as contas, e pensando ter morto a esposa e os pais e, na certeza de que agora só lhe restava uma única bala, virou a Aka e meteu-a dentro da sua boca, premindo o gatilho. Era o fim…

Era o fim de um homem, de um jovem que tinha escolhido ser militar, um soldado da elite, que tinha participado e saído ileso nos assaltos as barracas de Oio e Morés em 1971; da invasão de Conakry em 71; que tinha visto com os seus olhos o cenário dantesco de morte e destruição na bolanha de Cufeu, em Maio de 73, durante o cerco a Guidage; da missão suicida e fratricida de Kumbamory em Junho do mesmo ano, dos raides e emboscadas sofridas naquele regresso lento e doloroso até à fronteira… E que tinha concluído que a vida sem honra e sem a dignidade, por que sempre lutara, não valia a pena ser vivida.

Foi assim o fim de um Comando africano, filho da aldeia de Fajonquito no Regulado de Sancorla, que no momento decisivo da sua vida, sentindo-se encurralado pelas estranhas circunstâncias da vida e incompreendido pela própria família, não querendo ser humilhado pelos Comissários do PAIGC pelos quais não nutria nenhuma simpatia e cuja legitimidade não reconhecia, só tinha três balas para cumprir a sua derradeira e última missão. Estava assim escrito que morreria de uma bala do inimigo, atirada pelas suas próprias mãos. Que a sua alma possa repousar em paz.

Nesse mesmo dia, quando chegaram os guerrilheiros, o Comandante da segurança, olhando para o corpo inerte de Cissé e o rio já escurecido de sangue que esvaíra da sua garganta esventrada, disse seca e asperamente aos homens e mulheres ali presentes:

- Este corpo que estão a ver é o de um cão nojento dos colonialistas que nos poupou o trabalho do seu fuzilamento.

Agora pergunta-se: Quantas vidas, quantos jovens ex-soldados, Comandos e não só, enganados e abandonados a sua sorte após a independência, terão sido obrigados a viver dramas semelhantes ou, dito por outras palavras, quantos terão sido imolados no altar dos quiméricos acordos e tácitos entendimentos entre o exército Português e os guerrilheiros do PAIGC, durante o processo da descolonização?

Feito em Fajonquito, aos 25 dias de Dezembro de 2017.

Com os testemunhos de Suleimane Pendo Baldé (o Camões); e de Mamadu Saido Candé (o Barbosa); com a autorização de publicação de Sambaro Candé (o João Henriques), irmão mais novo de Cissé Candé; tradução e texto de Cherno Abdulai Baldé (o Chico de Fajonquito).
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Notas do autor:

(1) Cissé ou Sissé Candé (as duas formas são utilizadas tanto para grafar nomes ou apelidos; no caso dos Mandingas é um apelido e para os Fulas de Gabu é um nome próprio mas de origem Mandinga). Desconheço como era escrito o nome do ex-comando que, pelas informações recolhidas, pertencia a 2.ª  Companhia dos Comandos Africanos.

(2) Carlos Bubacar Jau era natural de Fajonquito, foi alferes cmd da 2.ª Companhia e teria sido ele a patrocinar a entrada do Cissé nos Comandos.

(3) José Manuel Sedjali Embaló, natural de Fajonquito, era 2.º Sargento e pertencia à 1.ª  Companhia de Comandos.

Informação complementar  do editor:

Elementos recolhidos  a partir da pesquisa do cor inf ref Manuel Bernardo:

Abdulai Queta Jamanca: tenente“Cmd”, Cmdt CCaç 21 > Fuzilado em março de 1975, em Bambadinca. Incoprado em 12-1-1956, nasceu em 5/1/1937, em Farim; pertenceu originalmente à 1.ª CCmds Africanos. Era de descendência nobre ("príncipe fula").

Carlos Bubacar Jau: Alferes “Cmd” 2.ª CCmds Africanos; fuzilado no Cumeré; incorporado em 7-11-1971; nasceu em 13-3-1946, no concelho de Bafatá.

Sijali Embaló; furriel “Cmd” 1.ª CCmds Africanos. Fuzilado em 1974 no Cumeré: foi incorporado em  24/10/1966; nasceu em  7/5/1946, em Bafatá (concelho).
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de janeiro de  2017 >  Guiné 61/74 - P16913: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (52): à semelhança da França (em relação aos seus "tirailleurs sénégalais"), quando é que Portugal reconhece aos seus antigos soldados guineenses a nacionalidade portuguesa?

Vd. primeiro poste da série > 19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2713: Notas de leitura (11): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros: Resposta a um Combatente (M. Amaro Bernardo)

Com o pedido de publicação, recebemos do Coronel M. Amaro Bernardo (1) o seguinte texto:

Resposta a um Combatente

(…) Foram centenas os fuzilados que este conjunto de papéis sob a forma de livro nada refere. Não se exalta o esforço dos “Comandos” esquecendo os outros. (…)
Mário Beja Santos, in site de Luís Graça, em Março de 2008 (2)

Este combatente que cumpriu uma comissão na Guiné em 1968-70, veio a público manifestar a sua opinião sobre o meu livro Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros. Guiné, 1970-1980, lançado em Novembro passado, na Sociedade Histórica para a Independência de Portugal, onde foi apresentado pelo General Ricardo Durão (que já o prefaciara), oficial de operações do Comando-Chefe da Guiné e pelo Sargento guineense José Monteiro, Presidente da Associação dos Antigos Combatentes da Guiné.


A reportagem desta apresentação encontra-se num vídeo, que pode ser consultado num site independente de dois comandos, o “Passa-palavra”.
Como a crítica feita é a única excepção em relação aos comentários elogiosos que me chegaram dos mais diversos sectores, poderei deduzir tratar-se de um texto encomendado face a alguma possível solidariedade cívica, já que é do conhecimento geral que um dos oficiais posto em xeque neste livro pelo seu comportamento na Guiné, em 1970, pertence à maçonaria.

Assim, e dada a consideração que me merecem os leitores deste site de Luís Graça, venho esclarecer uma série de apreciações equívocas e falaciosas produzidas no seu texto. Parece-me que Beja Santos fez apenas uma leitura apressada e enviesada da obra em causa, pois surgiram afirmações que são completamente incompreensíveis.

1. É mentira que não me tenha referido às centenas de indivíduos fuzilados ao longo do consulado de Luís Cabral, e apenas aos 53 oficiais, sargentos e praças dos “Comandos” africanos. No anexo I ao Cap. VIII, que tem o título “Fuzilamentos Clandestinos na Matas da Guiné” (pp 135 a 138) são referidas nominalmente as 99 pessoas que o PAIGC de Nino Vieira, afirmou (no seu jornal oficial Nô Pintcha), terem sido fuzilados e enterrados em valas comuns em Cumeré, Portogole, Mansabá e Farim.


Nessa lista Beja Santos talvez possa encontrar algum dos homens que com ele serviram nas milícias. Aquele jornal declara terem sido referenciados 500 mortos em valas comuns de 35 a 38 pessoas, mas nas suas edições apenas indicou aqueles.

A seguir, no Anexo II, do mesmo capítulo (pp 139 a 141) são referidos também nominalmente 97 indivíduos, assim descriminados: um ex-deputado; 11 régulos; 6 sargentos, um 1.º cabo e 27 soldados da guarnição normal, 7 sargentos e 6 marinheiros fuzileiros especiais; 18 milícias (incluindo comandantes de Jabadá, Mansabá, Empada, Gampará, Jolmete e Bissorá); três cipaios; e mais 17 sem indicação das funções que desempenhavam. Também nesta lista poderá Beja Santos verificar se foram fuzilados os homens que serviram sob as suas ordens.
Não se consegue bem definir se apenas foram aquelas cinco centenas os fuzilados pelo PAIGC. Segundo o Marechal António de Spínola terão sido milhares (pp. 130) e de acordo com o Sargento Julde Jaquité Semedo, que se exilou no Senegal, foram mais de mil pessoas, entre “comandos”, fuzileiros, milícias, caçadores nativos, régulos e chefes de tabancas, incluindo os que foram obrigados a regressar daquele país (ao abrigo de acordo existente) e foram mortos em Cuntima e Cumeré. (pp. 350/351).

2. Quanto ao restante conteúdo do livro que este combatente considera mal estruturado, sem lógica sequencial e ”afundado num mar de equívocos e contradições”, aconselho a atentar na cronologia feita desde Abril de 1969 a Janeiro de 1981 (pp. 363 a 377) e na sequência temporal dos textos, desde o cap. II, com a operação da invasão de Conakry (1970) até ao capitulo VII intitulado a “Transição da Guiné-Bissau para a Independência” (1974).

Beja Santos não queria que eu investigasse apenas o período de 1970 a 1980. Não sei porquê, pois foi esse decénio que me propus fazê-lo. Devo chamar a atenção dos leitores para o facto de não me considerar historiador, mas apenas um investigador de História Contemporânea.
Repare-se que, no final da Introdução, afirmo: “Espero que as pistas deixadas neste livro, em relação a década tão conturbada da vida da Guiné-Bissau, possam ter alguma utilidade para a análise histórica posterior”.


Também se nota que não lhe agrada a figura de António de Spínola, que poderá ter sido um fraco político no pós-25 de Abril, mas que foi considerado um grande cabo de guerra, a par de Costa Gomes (Moçambique e Angola), Bettencourt Rodrigues (Angola e Guiné) e, para alguns, Kaúlza de Arriaga (Moçambique).

Claro que, segundo alguns analistas, também terá praticado alguns erros na Guiné, como terá sido a retirada de Madina do Boé, “permitindo assim que o corredor de Guilege fosse uma grande ameaça para nós” (Salifo Djau, pp. 353/354).

Quando diz que “em 1972 o PAIGC já tinha conseguido acantonar as forças armadas portuguesas nos quartéis” e que “a partir de 1973 a “guerra estava irremediavelmente perdida”, na minha opinião, tal não corresponde à verdade. Não foi isso que afirmaram os vários oficiais que prestaram depoimento, como Almeida Bruno, Alpoim Calvão, Marcelino da Mata, Raul Folques e Manuel Ferreira da Silva (pp. 213 a 309).

Também a versão do PAIGC através de um dos seus principais dirigentes (Aristides Pereira) era de que “por altura do 25 de Abril, este partido não teria maior capacidade militar que as tropas coloniais, na medida que estas estavam bem apetrechadas, tinham uma logística mais bem montada e um número superior em efectivos” (pp. 248/249).

3. Também não é verdade que Marcello Caetano tenha mandado fazer propostas em negociações secretas em 1973. Elas apenas foram iniciadas em Londres, um mês antes do golpe militar de Abril de 1974: 25/26 de Março. O encontro de 5 de Maio que se seguiria, já não ocorreu, por o regime ter sido derrubado.

Quando as FA ainda se encontravam em posição de maior força militar, na Guiné, decorreu em Maio de 1972, um encontro entre o Presidente Senghor do Senegal e o então General Spínola, com vista ao cessar-fogo. Tal não teve seguimento, devido à proibição de Marcello Caetano, que temia o “efeito dominó” em Angola e Moçambique. Essas diligências frustradas foram salientadas no capitulo III, “1972 – A Última Oportunidade Perdida” (pp 45 a 54).

A certa altura Beja Santos afirma que o General Spínola não sensibilizou Lisboa para haver um reforço das companhias de quadrícula, alimentando mais a “panaceia das forças especiais”.
Tal também não corresponde à verdade. Se for consultado o tomo II do 7.º. volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), referente às fichas da Unidades, na Guiné, verifica-se que o Batalhão de Comandos da Guiné apenas foi constituído em Novembro de 1972, depois da criação da 3.ª companhia de Comandos Africanos, em Abril desse ano. Entretanto foram criadas três Companhias de Caçadores: a n.º 19, em Dezembro de 1971, com quadros metropolitanos e as n.ºs 20 e 21, em Junho de 1973, já com quadros guineenses, e cujos oficiais seriam oriundos dos comandos africanos (Amadu Bailo Djaló, pp 343/ 346). Tudo isto ocorreu enquanto o General Spínola era Governador e Comandante-Chefe da Guiné, pois o seu sucessor, General Bettencourt Rodrigues apenas tomou posse em 21 de Setembro de 1973.

4. Posso aceitar que este meu trabalho tem falhas e que não tenha agradado a determinadas pessoas. Agora não aceito críticas deturpadas e baseadas em dados falsos, quando Beja Santos faz perguntas como esta: “Só foram perseguidos os comandos, não foram perseguidos militares provenientes da infantaria ou da marinha?"

Julgo que o atrás salientado nos três anexos, com os nomes dos militares do Exército e da Marinha, e dos civis (milícias, cipaios, régulos, etc) fuzilados clandestinamente, responde cabalmente a esta questão. Também basta ver a quem é dedicado o livro:


A todos os Militares Combatentes na Guiné, destacando os que lá perderam a vida pela Pátria Portuguesa.
Para os Militares guineenses e especialmente aos graduados do Batalhão de Comandos da Guiné, que se empenharam esforçada e valorosamente em combate e que, depois, na grande maioria, seriam clandestinamente fuzilados.

Para o Coronel José Pais (*), o grande Militar e Combatente, que sempre se empenhou nas causas nobres de defesa dos desprotegidos e das vítimas das injustiças praticadas em Portugal e nos territórios ultramarinos, com a nossa eterna saudade.

O MNE e de Estado, Luís Amado, no lançamento do livro do General Loureiro dos Santos sobre o Iraque, em Lisboa, afirmou ontem que “a ambiguidade é utilizada pelos políticos em situações mais complicadas, enquanto os estrategas/militares usam mais a frontalidade” (ou algo semelhante). De facto, devido à minha formação militar, costumo ser frontal e directo na resposta a algumas críticas infundadas…

2 de Abril de 2008

Coronel Manuel Amaro Bernardo


(*) Foi comandante da CCAÇ 14, na Guiné, tendo ficado muito ferido na detonação de uma mina anti-pessoal.
__________

Notas de vb: edição da responsabilidade do co-editor Virgínio Briote
(1) O Coronel, na situação de refoma, Manuel Amaro Bernardo cumpriu quatro comissões em Angola e Moçambique. Em 25 de Abril de 1974 encontrava-se colocado na Academia Militar. Na altura do 25 de Novembro de 1975, então no Regimento de Comandos, fez parte do Posto de Comando que coordenou as acções militares.

Diplomado com o Curso de Ciências da Informação pela Universidade Católica, tem publicadas numerosas obras que versam na quase totalidade questões de natureza militar nos tempos antes e pós 25 de Abril.

(2) Artigos relacionados com estes tópicos:
2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (6): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)

31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)

19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

Guiné 63/74 - P2711: Notas de leitura (11): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de M. Amaro Bernardo (Mário Fitas)

Mensagem do Mário Fitas, comentando a nota do Mário Beja Santos sobre o livro Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, Guiné, 1970/1980, de Manuel Amaro Bernardo

Aos editores da Tabanca Grande, com o pedido de publicação no Blogue
__________

P2706 do Mário Beja Santos

A ignomínia dos Comandos Guineenses Fuzilados

Sobre o livro do Coronel Manuel Amaro Bernardo, fundamentou o nosso camarada Tertuliano Mário Beja Santos determinadas opiniões com as quais estou em desacordo, tendo a sensação até, que determinadas afirmações serão fracturantes e desprestigiantes para o Blogue, bem como desvirtuam a História em vez de a enriquecerem.

Passemos então aos pontos que me causaram dúvidas:

Será o Blogue o local certo, para se produzirem guerrilhas sobre um documento com o qual não há ligação directa? Ou não existirão outros locais próprios, para os escritores debaterem os seus diferenciados pontos de vista "político-militares”?

Desconexão sobre o lançamento de Spínola na ribalta, solução político-militar sem descrever a sua herança, ascensão e consolidação do PAIGC, referenciando sub-repticiamente a fraca prestação das Forças Armadas Portuguesas? Será que estas só cumpriram após 1968? Fracturante e contraditório!

O desastre foi de facto não encontrar uma saída política. As Forças Armadas Portuguesas estavam no terreno após Spínola. Só depois do livro Portugal e o Futuro, e após o Povo e o MFA deporem o regime político vigente, em 25 de Abril de 1974, as Forças Armadas Portuguesas, foram substituídas pelas forças do PAIGC. Estarei errado?

Voltando a 1963/1968: Spínola não pode ser dissociado desse anterior! Como é? Ou estava ou não estava!... Contraditório!... Porquê não voltar a António Teixeira Pinto? Os Fulas, Futa-Fulas, Balantas, Papéis e Grumetes do Cacheu? Assim, a geografia étnica, teria de ir ao Chão Felupe: São Domingos, Varela etc, etc…. a verdade é que nunca houve um lado só! Vale a pena ouvir o Cor. Gertrudes.

Comandos Africanos: é absolutamente verdade, não foram só eles. Se estou a escrever neste momento, agradeço a homens a quem foram cortadas as mãos e outros que fugiram da sua terra, como o pessoal do João Bacar Djaló e os exemplos do Carlos Quêba, Gibi Balde e o Braima que encontrou no bondoso Hugo Ferreira mais que um irmão, um amigo.

Confrontemos datas e depoimentos do Cor. Florindo Morais e ver:

P2313……(Virgínio Briote)
P2308……(Jorge Santos)
P886……..(João Parreira)
DCCCXXII(João Parreira)
DCCCVI….(João Parreira)
DCCCIV….(João Parreira)
DCIX…….. (José Martins)


Como simples Fur. Mil. de Op Especiais fiz a Guerra e a Paz nas margens do mítico Cumbijã em 1965/1966 como um dos elementos da CCAÇ 763, portanto antes de 1968, assim seremos todos responsáveis da situação-contradição, recebida por Spínola.


Mas, com toda a franqueza, conhecendo como conheci todos os elementos da CCAÇ 763, que em 26/11/66 desembarcaram do N/M “NIASSA”, com 7 mortos e 53 feridos em combate, agiriam de idêntica forma em 1968/1969 na terra dos Soncó, ou acompanhariam em 1973 o Coronel Costa Campos a caminho de Guidage.

Recusando a fracturação! Meu caro Mário, se o receber…

O velho Abraço do tamanho do Cumbijã.

Mário Fitas

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Nota de vb: edição da responsabilidade do co-editos.

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31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (5): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)

19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

segunda-feira, 31 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (10): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)


Artigo que o Mário Beja Santos nos enviou há quase quatro meses (já refilou e com toda a razão...), depois de ter lido o livro Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, Guiné, 1970/1980, de Manuel Amaro Bernardo. (vb).


Capa do livro. Editorial Prefácio, Lisboa, 2007.

A Ignomínia dos Comandos guineenses fuzilados
por Beja Santos

(i) Um relato descosido que não serve a História de dois países.

O coronel Manuel Amaro Bernardo, autor de vários livros onde se versam as nossas Forças Armadas, a descolonização, a guerra colonial e o período revolucionário que vivemos entre 1974 e 1975, afoitou-se agora a contar num trabalho que classifica “de natureza histórica”, a guerra da Guiné, o papel do marechal Spínola na evolução desses acontecimentos e o fuzilamento de Comandos guineenses que tinham servido nas tropas portuguesas (“Guerra, paz e fuzilamento dos guerreiros, Guiné, 1970-1980”, Prefácio, Lisboa 2007).
É raro encontrar um livro tão descosido, tão mal estruturado, ainda por cima contando com um acervo de depoimentos que podiam ter contribuído para iluminar e estabelecer um juízo fundamentado sobre um dos períodos mais conturbados da guerra que vivemos em África e as sequelas da transição para a independência. Importa exemplificar.
Ao encetar o relato com António de Spínola em 1968, na Guiné, colocando-o como o promotor de um projecto que parecia levar a prazo aquela terra martirizada a uma autonomia gradual e à reconciliação de todos os guineenses, referindo seguidamente, sem lógica sequencial para explicar o papel dos Comandos, a inviabilidade da solução militar, a invasão de Conakry, o assassinato de Amílcar Cabral e o esforço de guerra desenvolvido em 1973, tudo se afunda num mar de equívocos e contradições.
Como é que é possível lançar na ribalta Spínola, fazendo dele a grande esperança numa solução político-militar, sem descrever, pelo menos em termos gerais o que ele herdou, a ascensão e a consolidação do PAIGC dentro e fora do território da Guiné, e dar a conhecer a resposta das forças armadas portuguesas em 5 anos de sublevação?
Sim, que Guiné encontrou Spínola em 1968? Qual o sucesso de Cabral e os seus companheiros para mobilizar as populações? Porque é que se discute a contabilidade das populações dentro e fora de controlo quando hoje se sabe que uma grande parte das populações, por razões familiares, não podia radicalizar e viver num quadro de ruptura?
Há uma clara vontade do autor em transformar Spínola no protagonista maior, clarividente e imaculado, fazendo recair sobre Marcello Caetano a responsabilidade do desastre, por não ter encontrado uma decisão política adequada e oportuna.
Em termos de investigação histórica, compulsados os elementos disponíveis e sem perder de vista que se desconhecem ainda as propostas que Marcello Caetano terá mandado apresentar nas conversações secretas com o PAIGC que decorreram de 1973 para 1974, temos aqui um mar de equívocos e falácias, incompatíveis com quem se diz à procura do rigor e da objectividade.
Spínola, que não pode aparecer dissociado do que foi anteriormente a luta entre 1963 e 1968, procurou uma solução militar e uma reorganização das populações que levassem a um claríssimo apoio ao seu projecto Por uma Guiné melhor. É escusado especular se trabalhou com o rasgo necessário e teve do seu lado a sorte indispensável. Até se pode contraditar: abandonou posições militares que provocaram um vácuo catastrófico; promoveu operações dispendiosas e inúteis, como a Lança Afiada, que acabaram por motivar a capacidade de guerrilha; não sensibilizou Lisboa para a constituição precoce de forças armadas regionais, isto quando na Guiné já havia forças de milícias e de caçadores nativos e depois companhias de caçadores, que deviam ter sido naturalmente organizações de quadrícula a sofrer um largo impulso, gerando confiança aos naturais na sua própria defesa, dando a imagem que as forças especiais era a panaceia da guerra. Estas são algumas acusações que poderiam impender sobre a obra de Spínola, argumentação igualmente de valor discutível.
A reunião de Spínola com Senghor, em 1972, em que o governador da Guiné propõe uma autonomia a dez anos, tem que ser encarada como uma proposta que seria liminarmente rejeitada, isto quando o PAIGC já tinha conseguido acantonar as forças armadas portuguesas nos quartéis, reduzindo-lhes drasticamente o espaço de manobra. Acresce que o autor refere os acontecimentos de 1973 e 1974, quando a força aérea perdeu capacidade de actuação com a chegada dos mísseis terra-ar e o PAIGC passou a ter a total iniciativa entre o Norte e o Leste, em todo o espaço fronteiriço com a Guiné-Conakry. Ou seja, o PAIGC ganhara uma capacidade ofensiva indiscutível, as nossas forças podiam ir esporadicamente às suas bases e acampamentos, havia mortes e feridos, mas logo tudo ficava na mesma. A partir de 1973, a solução militar estava irremediavelmente perdida.
Depois, o autor descreve o nascimento do movimento dos capitães, temos a seguir a transição para a independência e chegamos mais tarde aos fuzilamentos dos Comandos africanos. Será que o rigor histórico não exigiria que se explicasse o aparecimento destas forças que surgem neste livro imprevistamente?
O autor recheia o seu relato de anexos com os fuzilados, refere a lei de justiça militar do PAIGC de 1973, os militares exilados no Senegal, somos obrigados a apanhar uma polémica entre o autor e o Dr. Almeida Santos, depois vem a laude a vários amigos do autor e até se fala do distúrbio pós-traumático do stress, e temos em metade do livro relatos de vários protagonistas, alguns deles retirados de livros, outros entrevistados pelo autor.
É raro fechar-se uma obra com o sentimento de decepção e de frustração, como se passou comigo.

(ii) Uma história da Guiné ainda por esclarecer


Posso admitir que o autor tenha pretendido chamar a atenção para um punhado de militares, alguns deles altamente condecorados, barbaramente fuzilados e muitos deles a aguardar justiça e o direito à memória. Se era essa a homenagem que pretendia, falhou redondamente. Não se tira da indignidade do esquecimento estes fuzilados sem um relato histórico apropriado, clarificador, sem cedências à emoção.

Como é que apareceram estes Comandos guineenses que começaram a ser formados a partir de Fevereiro de 1970? Quais as queixas demonstradas que sobre eles recaíram, dos tão propalados crimes que lhes foram atribuídos pelo PAIGC?
Durante a fase de transição para a independência, os representantes das forças armadas portuguesas tudo fizeram, ou não, para os dissuadir a partir, quando se sabia que seriam inevitáveis os confrontos, os ajustes e vinganças, as explosões de ódio? Mas, indo mais a atrás, agiu-se bem na formação das tropas africanas, e se não o que é que falhou para garantir confiança às populações autóctones, de 1963 a 1970? Só foram perseguidos Comandos, não foram perseguidos militares provenientes da infantaria ou da marinha?
Está hoje demonstrada alguma relação causa-efeito entre o golpe de Malam Sanhá e os Comandos africanos refugiados no Senegal com os fuzilamentos realizados em Novembro de 1978?
Os relatos históricos não se fazem juntando uns papéis atabalhoadamente, mesmo que o pretexto seja o descerramento de duas placas com os 53 Comandos fuzilados na Guiné. Afinal, foram centenas os fuzilados que este conjunto de papéis sob a forma de livro nada refere. Não se exalta o esforço dos Comandos esquecendo os outros.
Vamos confiar que um dia se escreverá um verdadeiro relato histórico sobre quem combateu, foi ludibriado e injustamente tratado. Os combatentes da Guiné merecem-no. Os militares que comigo combateram e morreram no pelotão de fuzilamento, viveram o cárcere ou exílio nessa Guiné têm direito à clara certidão da verdade.
__________

Notas de Vb: Arranjo do texto da responsabilidade do co-editor.

(1) Com a devida vénia ao Cor Amaro Bernardo, transcrevo abaixo uma parte do depoimento do Cor Florindo Morais:

Uma oferta demasiado tentadora
(......) Eis senão quando, em meados de Agosto, a notícia surge como uma bomba: o Comandante-Chefe oferece a pronto e desde já, quatro meses de vencimento, mais o subsídio de Natal a quem quiser passar à disponibilidade. Assim lá se foi a lista dos interessados em vir para a Metrópole, continuando no serviço militar (refere-se aqui à grande maioria dos Cmds Africanos, que antes desta oferta se tinham inscrito para virem para Portugal) ...Esgotaram-se em Bissau os frigoríficos, as ventoinhas e demais electrodomésticos, a par das motorizadas. Ainda tentei que percebessem o que estava em causa, mas em vão. Os oficiais declaravam querer permanecer na Guiné, que era a sua Terra, e ser seu dever continuar a lutar pelo seu Povo. (...)
O então Maj Cmd Florindo Morais foi nomeado para a Guiné, já depois de Abril de 1974, para render o também então Maj Raul Folques no comando do Bat Cmds Africano.
(2) Sobre este assunto, ver artigos de
30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)
28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)
19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)
27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)
23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)