sábado, 3 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18375: Os nossos seres, saberes e lazeres (255): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 17 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Foi uma das poucas viagens fora de Bruxelas, esta ida a Namur. Em Novembro de 1984, o viandante participou numa conferência em Veneza e aí se encetou uma grata amizade com Nelly Alter, fluente em 8 idiomas. Ao longo de décadas, sempre que se vinha a Bruxelas, havia um telefonema prévio para saber se Nelly por ali andava. Nos dias de sorte, houve encontros memoráveis com passeios, idas ao teatro, ao cinema, à ópera, o viandante beneficiou de um acolhimento extraordinário com mesa farta, tinha e tem sempre que trazer novidades da literatura portuguesa, Nelly é insaciável, retribuição mais feliz não pode haver que lhe trazer o último Lobo Antunes.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (5)

Beja Santos

O dia vai ser passado em Namur, capital da Valónia, conhecida pela sua famosa cidadela, uma cidade magnificamente posicionada na confluência dos rios Sambre e o Meuse, tem o viandante a dita de aqui regressar frequentemente, fez há mais de 30 anos amizade com Nelly Alter, que vive a escassos quilómetros da cidade, em Saint Marc. O viandante vai feliz na companhia de André Cornerrote, que muito aprecia o bom vinho e as excelentes vitualhas com que Nelly amesenda os amigos. Recordam-se outros passeios, outros encontros, Nelly não esconde também a sua satisfação em receber o amigo e o amigo do amigo.





É este o ambiente cativante em que se faz a receção. Programadora previdente, Nelly tem seis pontos para passeios pós-prandiais, André encolhe-se, precisa de fazer uma pequena sesta, pede redução do programa para metade. Negócio fechado. Bebeu-se do melhor Beaujolais, depois de uma excelente sopa de cebola e uma tábua de queijos, café e chocolate belga. Depois de um soninho reparador, começa a excursão por Namur. Primeiro prato forte, uma ida ao Museu de Arte Antiga de Namur, aparentemente modesto, mas acolhe desde 2010 uma das chamadas sete maravilhas da Bélgica, o tesouro do antigo priorado de Oignies, um conjunto excecional de 400 peças de ourivesaria do século XIII, único no mundo pela sumptuosidade dos materiais. O museu com opulências na ourivesaria, marfins, pintura, escultura em madeira e pedra. A visita tem um móbil claro, uma exposição sobre fumos, vem-se com o tempo contado, impossível nesta visita passar pelo gabinete de numismática, de enorme valor, ou pelo gabinete de estampas e pela biblioteca, enfim, faz-se um percurso e mostra-se alguma coisa que cativou o viandante.




Já estamos na exposição dos fumos celestes ou funestos, do século XII ao século XVIII, dir-se-á que é uma exposição muito contida mas está inteligentemente organizada, incorpora vasos de sepulturas, tabaqueiras, cachimbos, arte efémera, gravuras alusivas ao uso do fumo na relação do homem com as potências sobrenaturais, nas relações entre a terra e o céu. O fumo para perfumar, o fumo do tabaco e os usos nas armas e no fogo-de-artifício. Uma exposição de grande ecrã, sobre os aspetos religiosos e profanos, fumos para oração, para afugentar a cólera divina, fumo das resinas odoríferas, fumos dos fogos de artifícios. Enfim, uma exposição que é um espetáculo.




Segue-se uma “visita de médico” ao museu Félicien Rops para ver em relance a exposição Shakespeare Romântico, título atrativo mas insólito mas que se prende com o facto do genial dramaturgo ter inspirado autores românticos como Delacroix ou Moreau e que puseram na tela Hamlet e Ofélia, Romeu e Julieta, Otelo e Desdémona, Macbeth e a sua mulher, é uma exposição sobre estas figuras trágicas que se organiza a exposição. Na continuidade do romantismo, também os artistas simbolistas representarem os heróis shakespearianos como arquétipos das paixões humanas, caso de Constantin Meunier ou Alfred Stevens, aqui representados. E depois dessa tragédia pictórica em muitos atos, a expedição vai até à Antica Namur 2017, um pavilhão monumental que alberga riquezas de várias épocas e onde até se podem comprar desenhos ou gravuras de grandes mestres a preços não chocantes. Foi uma passeata e peras, com os olhos deslumbrados por quilómetros de tanta maravilha, os expedicionários regressam a Namur, regalam-se com jantar opíparo, adeus até ao meu regresso, pela calada da noite regressa-se a Watermael-Boisfort e desde já se informa que o programa seguinte é bastante animado, como se contará.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18349: Os nossos seres, saberes e lazeres (254): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18374: Em busca de... (287): Minha prima Gilda Pinho Brandão e outros membros da família, a que pertenço, e de que estou a fazer a árvore genealógica (José Pedro Caetano)


Gilda Pinho Brandão, nascida em Catió, de mãe fula e pai português, quando veio para Portugal, aos 7 anos, em 1969, para uma família de acolhimento, trazida por um camarada nosso, o Fur Mil João  Pina, a quem ela chama mano. Em 2007 pediu ajuda ao nosso blogue, para encontrar a família do pai, que é de Arouca. Afonso Pinho Brandão, comerciante, foi assassinado em 1962, em Catió.

Foto: © Gilda Brandão (2007). Todos os direitos reservados [ Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso leitor José Pedro Caetano

Data: 2 de março de 2018 às 20:38
Assunto: Gilda Brandão

Olá, Luís,

Espero que esteja bem.

Deparei-me com o seu blogue e vi um pedido  da Gilda Brandão [, procurando descendentes da família Pinho Brandão] (*)

Acontece que sou sobrinho de uma prima da Gilda e gostava de entrar em contacto com ela. Tentei enviar-lhe um email (para gilda@asanto.pt) mas recebi uma mensagem de erro. Por acaso o Luís não terá um outro contacto da Gilda que me possa facultar?

Encontro-me a construir a árvore genealógica da minha família. Neste sentido, não terá também alguma fotografia dos meus familiares Afonso Pinho Brandão e Manuel Pinho  Brandão, que estiveram na Guiné?

Obrigado,
José Pedro Caetano
[telemóvel, telefone e emails...]


2. Resposta do editor LG:

José Pedro:

Não tenho notícias, desde finais de 2015,  da nossa amiga e grã-tabanqueira Gilda Brandão. Mas vamos tenta localizá-la, através do seu último endereço (um gmail),  de que lhe dou conhecimento, a título privado...

Há também um familiar, aliás, filho do mesmo pai, irmão dela, em Bissau, o engº Carlos Pinho Brandão, que terá interesse em contactar... Foi colega, em agronomia, do nosso também grande e saudoso amigo Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014). Foi através deles os dois  que ela soube das circunstâncias da morte do pai, Afonso. Preciosas foram também as ajudas do nosso amigo, guineense, Leopoldo Amado, cujo pai era chefe dos correios de Catió, e cuja família convivia com os Pinho Brandão.

É uma família extensa, os Pinho Brandão... Ajudámos a Gildão Brandão [Brás, por casamento] a encontrar as suas raízes portuguesas, em Arouca... e em Bissau.

Ver aqui referências a ela  [Gilda Brás] e à família Pinho Brandão:

Obrigado, por nos autorizar a publicar esta mensagem... Assim, é possível chegar mais facilmente a ela e a outros membros da família, bem como camaradas nossos que estiveram em Catió (***).  Dou-lhe também o email do engº Carlos Pinho  Brandão, de Bissau. Boa sorte para a sua pesquisa.

O editor,
Luís Graça
PS - Infelizmente não temos, connosco, nenhuma  foto do pai dela, Afonso, morto logo no princípio da guerra. Ela conseguiu, em Arouca, pelo menos a certidão de nascimento do pai. E estava feliz por poder mostrar as suas raízes arouquesas à filha (**). Vou repescar mais informação no nosso blogue.

A Gilda faz parte do nosso blogue desde 25 de julho de 2007. Foi graças a nós, e com o incentivo do nosso saudoso Vítor Condeço, e as preciosas informações do Leopoldo Amado, do Pepito e do Carlos Pinho Brandão, em Bissau, que ela conseguiu encontrar os seus irmãos e outros familiares do pai.
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Notas do editor:

(* ) Vd. poste de 30 de maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1798: Região de Catió: Descendentes da família Pinho Brandão procuram-se (Gilda Pinho Brandão)


sexta-feira, 2 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Estamos em plena guerra, a economia e o sistema financeiro da colónia entraram em retração. Data de 23 de Setembro de 1940 um documento espantoso enviado para Lisboa sobre um serial killer que deixa bem claro que a ideia feita sobre a pacificação tinha profundas fissuras, os Papéis ainda sonhavam em liquidar o poder dos brancos na ilha de Bissau, andavam também acirrados com os Mandingas e o documento termina numa completa hilaridade, quando um grupo veio reclamar o corpo do régulo, vinham de camisas castanhas, o administrador mandou uns tiros para o ar e quis prender gente, julgava tratar-se de uma arruaça do tipo nazi, os tais camisas castanhas que espancavam opositores e destruíam os estabelecimentos dos judeus... enfim, um episódio de ópera bufa.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24)

Beja Santos

Aproximamo-nos da II Guerra Mundial, certos assuntos que irão ser versados na correspondência entre o BNU da Guiné para Lisboa prendem-se com o entendimento das modificações que foram ocorrendo desde a governação de Leite de Magalhães (1927-1931). Viu-se como a chamada “revolta da Madeira”, de Abril de 1931 teve ressonância na Guiné, os republicanos em 17 de Abril tomaram conta do quartel e de outras instalações públicas de Bolama. Fazemos uso do que escreve João Freire na sua obra “A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, edição da Comissão Cultural de Marinha, 2017. Leite Magalhães e alguns militares não aderiram, foram presos e metidos no navio Maria Amélia com destino ao Funchal e Lisboa. Em Bissau, os insurretos tomaram conta da fortaleza e da estação da TSF. Fizeram proclamações, expediram telegramas, tentaram mesmo, sem êxito, aliciar Cabo Verde para que aderisse ao movimento insurrecional. Isolados pela derrota ocorrida na Madeira a 2 de Maio, os revoltosos aceitaram negociar. É nesta atmosfera que o Major de Artilharia João Soares Zilhão chegou às funções de governador de colónia e toma medidas administravas interessantes, a Guiné passa a ter uma nova orgânica, os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições civis de Canchungo, Bissorã, Farim, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. Recorde-se que no ano seguinte entra em vigor a “Carta Orgânica do Império Colonial Português”. Em 1934, Soares Zilhão é substituído por Carvalho Viegas. Aparece o serviço militar dos indígenas a quem serão fornecidos um calção de caqui, um jaleco de caqui, uma camisola e um barrete. No limiar da guerra, o governo de Lisboa determinou que a Guiné tivesse três Companhias de Caçadores, uma Companhia de Engenhos (pequenos veículos motorizados a lagartas, para todo-o-terreno, abertos e geralmente armados de metralhadora) e uma Bateria de Artilharia. O investigador João Freire refere que se manteve rotina na atividade administrativa-financeira, lançaram-se novos impostos sobre o património, os orçamentos da colónia mantiveram-se equilibrados. É a época em que aparece o transporte aéreo, chegaram os hidroaviões da Pan-American Airways, Carvalho Viegas era um extremo defensor destas linhas aéreas internacionais, considerava-as decisivas para o progresso da colónia.

A correspondência de Bissau, neste tempo, afina por outro diapasão, cuidando sempre de quem chega e de quem parte, lançando alertas quanto aos aspetos económicos e recriminando o funcionamento dos serviços. Veja-se um documento confidencial datado de 1 de Agosto de 1939 que tem por assunto “Autoridades – Tribunal Judicial” onde reza o seguinte:
“O Tribunal Judicial vai de mal a pior. Sem juiz de carreira há quase dois anos, têm passado por ele vários juízes interinos que, como é natural, apenas fazem o menos que é possível fazer-se. Há dias um escrivão desrespeitou e insultou o juiz interino e este, para não se incomodar mais, pediu a demissão informando o governo da colónia da vergonha que suportara, mesmo dentro do tribunal.
Foi chamado o segundo o substituo que, vendo o que de vergonhoso se está passando e não querendo ligar o seu nome honesto ao suspeito e rápido andamento que se está dando a um processo célebre e escandaloso, só para o criminoso ficar sem castigo para os seus gravíssimos crimes, se negou a entrar em funções.
Foi então nomeado juiz interino o senhor capitão do porto o que, e com razão, Bissau achou simplesmente espantoso, por muitos motivos.
Mas, para cúmulo de tudo e para o delegado efetivo não intervir no tal processo, nomeou-se delegado substituto um cabo-verdiano aqui conhecido pelo “Pé de Cabra”, nome este que o classifica. Trata-se de um indivíduo ainda há pouco não nos deixava à porta a pedir um lugar de praticante e que não nos podia merecer atenção devido a não nos merecer confiança, o nome o dizia.

É isto que o tribunal da Guiné chegou e, dando este aviso, queremos dizer a V. Exas. que se nós ou qualquer cliente tivermos necessidade de recorrer à justiça é melhor esperarmos que ela exista e expulse a desvergonha que vai naquela casa.
O tribunal, tal como está, é por e simplesmente uma extensão do gabinete do senhor governador.
À hora de fecharmos esta, soubemos que as forças vivas de Bissau, cheias de repugnância pelo que se passa no tribunal, quiseram telegrafar a Sua Excelência o Ministro e pedir providências, mas resolveram nada fazer com receio de vinganças absolutamente de esperar neste regime de meio terror em que aqui se vive e para que já não há nenhum apelo, ao que parece”.

Os relatórios anuais dão informações preciosas sobre os mercados, convém não perder de vista que a filial de Bolama mantém-se igualmente ativa e dá as suas informações de acordo com o território que cobre, mas já não ilude a apagada tristeza para que foi encaminhada. As informações económicas são de quem está muito atento, vejamos alguns exemplos:
“Couros – Tem estado ativo o respetivo negócio e os preços são bons. Os couros das regiões de Bafatá e de Farim (Fulas e Mandingas) continuam a ser os de melhor preço. Os das regiões de Mansoa (Balantas) e de Canchungo (Manjacos) têm menor preço. Os de Canchungo são os piores. Couros ressequidos e mal tirados, regra-geral são os que vêm do território francês.

Borracha – Tem tido procura aos preços de 4$50 e 4$60 a dos Mandingas e 5$ a de primeira, ou seja a dos Beafadas (Quínara). O mercado de Lisboa deve começar a precisar de borracha das nossas colónias por ter talvez dificuldade de a importar das colónias estrangeiras, do Oriente. Interessou-se o mercado de Lisboa pela nossa borracha e para lá foi alguma boa. Mas a Casa Guedes colocou uma partida de má borracha mandinga e deve ter, por algum tempo, desacreditado a borracha da Guiné. É a eterna ganância de fazer fugir os escrúpulos.

Cera – Mercado parado. Pouca vai aparecendo, extemporânea, e é paga a uns 9$00 por quilo.

Coconote – Se bem que não se esteja em tempo de negócios ativos, têm-se feito alguns. Regra-geral, os detentores revendem à Gouveia que carrega a granel nos barcos da Sociedade Geral. Outras entidades não podem carregar por não haver sacaria e por haver dificuldades de compradores em Lisboa, que os do estrangeiro não aparecem. A Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, que trabalha na ilha de Bubaque, Bijagós, de aspeto português mas alemã na essência, está tratando de vender o seu coconote e azeite para a América, fazendo-os seguir – via Lisboa – pelo “Guiné”. Assim pretende dar saída ao grupo contra dólares que tem que por à ordem do governo alemão.

Purgueira – A “ferocidade” que o governo da colónia que vem aplicando aos detentores de terreno vulgo os concessionários, querendo por força que eles façam agricultura nesses terrenos, coisa que o governo da colónia não é capaz de fazer pelos seus erviços agrícolas e nas granjas onde se tem enterrado milhares de contos, obriga aqueles a defenderem-se, plantando purgueira a torto e a direito, pois é a única coisa que nasce e se desenvolve sem mais despensas nem cuidados além de se espetar a estaca no chão e colher dali a dois ou três anos”.

O gerente Virgolino Teixeira pretende manter Lisboa informado ao máximo mesmo quando os assuntos envolvem crime e animismo. Vejamos o documento enviado em 23 de Setembro de 1940 em que o assunto é marcadamente sensacionalista:
“Acontecimentos anormais”. E segue a informação:
“Por se tratar de factos passados, em parte, com gentio da nossa propriedade de Bandim, damos conhecimento do que se segue.

Há uns 10 dias, por uma circunstância de acaso, soube-se que tinha sido assassinado perto de Bissau um indígena que andava a vender panos pelo mato. Das averiguações, resultou-se conhecer-se que um outro indígena, ex-soldado do Corpo de Polícia desta cidade era o assassino mas, ao mesmo tempo, veio a saber-se que além desta morte, já tinha praticado, pelo menos, umas oito mais.
Preso, declarou então que procedia aos assassinatos por razões de ordem ritual, a instigação do balobeiro, ou seja o feiticeiro, do régulo da nossa propriedade de Bandim.
Declarou que ele tinha que matar um cento de pessoas, pouco mais ou menos, de todas as raças, incluindo quatro europeus. Com o sangue das vítimas, faziam então os régulos e os seus súbitos, por intermédio do balobeiro, oferendas ao Irã, seu Deus, para que este acabasse com o poder dos brancos na ilha de Bissau e tornasse a dar o poderio antigo dos Papéis da referida ilha.
Implicados em tudo, segundo o senhor administrador de Bissau nos informa, o régulo de Bandim e outro do Biombo e um chefe de Safim. Os dois primeiros foram presos e levados para o posto de Safim. O de Safim cortou a garganta para não falar. Está à morte. O de Bandim, no dia imediato à prisão, morreu. As autoridades dizem que teve uma congestão. O filho e outros indígenas contam que foi manducado (morto à paulada) pelos Mandingas do nosso ex-servente Borah, tenente de segunda linha e auxiliar do senhor administrador na perseguição e prisão dos culpados ou suspeitos. Vamos pela segunda versão”.

De acordo com este documento, havia um conflito latente entre Papéis e Mandingas. Mas outras surpresas estavam para vir, apareceram à porta do banco muitos indígenas de Bandim a solicitar, visto ser o banco o proprietário das terras onde moram, que se pedisse ao senhor administrador a entrega do corpo do régulo para se fazer o ‘choro’. O gerente de Bissau ficou intrigado por alguns desses Papéis estarem vestidos de camisas castanhas. Segue-se um episódio de uma quase ópera bufa. Apareceu o administrador que trazia um pedido do governador, ao ver aquela gente de camisas castanhas pensou que se tratavam de uma fação política, excitou-se e quis prender todos, os Papéis fugiram. Ficou um preso que esclareceu, estupefacto, que não havia nenhuma intenção de provocar motim pelo facto de usarem camisas castanhas. Não deixa de surpreender as apreensões do senhor administrador, sugerindo qualquer associação entre as camisas castanhas dos Papéis e porventura a tropa de choque dos camisas castanhas nazis…




Três magníficas imagens de um evento Felupe, propriedade da investigadora Lúcia Bayan, que prepara o seu doutoramento na história desta etnia. Vemos jovens lutadores rezando junto do seu Irã, uma cena de luta e depois um desfile, é uma apoteose de cor desta etnia djola, ciosa pela sua cultura e pelos valores da sua identidade.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 23 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18344: Notas de leitura (1043): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18356: Notas de leitura (1044): “Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído”, por Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira; Oficina do Livro, 2006 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018



1. Mais um artigo de opinião da nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres (*), publicado no Diário de Coimbra a 23 de fevereiro de 2018. Foi-nos remetida cópia,  diretamente, por mensagem da autora, de 26/2/2018.  

O "Diário de Coimbra", "órgão regionalista das Beiras", foi fundado em 24 de Maio de 1930 por Adriano Viegas da Cunha Lucas (1883-1950). Afirma-se como um jornal republicano,  independente, de orientação liberal, defensor da democracia pluralista,

A guerra em "copo meio cheio"

por Sílvia Torres
O Fernandes nunca viu o mar, ao vivo e a cores, mas imagina-o enquanto pesca, silenciosamente, à beira-rio. O Rodrigues toma banho às vezes. Poucas. O Simões nunca entrou numa escola e o Veiga só sabe escrever o seu primeiro nome. Foi o irmão mais novo que o ensinou, ao serão, quando ele era já um pastor experiente, apesar da juventude que vivia. O Marques nunca saiu da aldeia onde nasceu mas sonha conhecer Lisboa. Um dia, talvez. O Falcão não sabe usar talheres e não vê neles qualquer utilidade. O Oliveira trabalha de sol a sol, sete dias por semana, desde menino. O Pinto, nas suas orações diárias, pede a Deus um carro, enquanto poupa trocos para a carta de condução. O mealheiro é um tacho velho, furado e ferrugento, escondido num monte de agulhas. Está mais vazio do que cheio.
No século passado, histórias idênticas encaixavam perfeitamente noutros sobrenomes: Ribeiro, Sousa, Martins, Lopes, Sena… Alguns, durante o Serviço Militar Obrigatório e no decorrer da Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, tiveram a "sorte" de ser destacados para Angola ou Moçambique. A milhares de quilómetros de casa, num Portugal pouco português, ficaram estupefactos com o mundo novo que lhes era dado a conhecer: tão grande, tão diferente, tão quente, tão despido, tão livre, tão africano…

Para os Fernandes, os Rodrigues, os Simões e muitos outros, a tropa e a consequente ida para o império lusitano longínquo, não foi apenas sinónimo de perda mas também de ganho, a vários níveis. A Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, afinal, também teve um lado positivo para alguns dos soldados que nela foram forçados a participar, no auge da juventude.

"Lá longe, onde o sol castiga mais", o Fernandes viu e sentiu o mar e até aprendeu a nadar. O Rodrigues inseriu o banho na rotina diária. O Simões e o Veiga foram à escola e conseguiram ainda escrever, orgulhosamente e com a ajuda de camaradas, aerogramas para a família. O Marques descobriu que o mundo é enorme e o Falcão, a custo, aprendeu a comer com talheres. Regressados à metrópole, o Oliveira, mudou de profissão e o Pinto, já com a carta de condução que a tropa lhe deu, passou a amealhar para o carro. Apesar dos horrores da guerra, ambos viveram no ultramar momentos felizes e de descoberta. Para alguns (muitos) jovens combatentes, que foram e voltaram sem grandes mazelas, a vida mudou para melhor porque o olhar alcançou outros mundos.

A guerra foi uma lição e um impulso para um futuro mais promissor e cheio de oportunidades. Jovens combatentes regressaram a Portugal (metrópole) com mais conhecimentos, mais competências e novas ideias. Assim, a Guerra Colonial/Guerra do Ultramar pode também ser vista na perspetiva do "copo meio cheio". Afinal, até na guerra há um lado positivo. E nesta, como noutras, o conflito foi também um "catalisador de desenvolvimento", que teve depois impacto na sociedade portuguesa. (**).

Sílvia Torres

[Fixação de texto, negritos e sublinhado a amarelo: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P18371: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XX: o render da guarda do palácio do Governador, aos domingos, "grande ronco"


Foto nº 1 > Bissau > Palácio do Governador – neste caso ocupado pelo general Spínola  [1968-1973] >  Junho de 1969 > Render da Guarda >  Faz parte um destacamento da Marinha (fuzileiros), a força mais vistosa, e uma força do Exército, Infantaria, Cavalaria ou Artilharia, ou dos Comandos, ou Paraquedistas e  bem como a Banda Militar de  Bissau.


Foto nº 2 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > A força da Marinha (fuzileiros) na escadaria do Palácio do Governador; 


Foto nº 3 > Bissau > Palácio do Governador  >  Junho de 1969 > Render da Guarda >  A Banda e os fuzileiros, dando a volta ao Palácio em formação 


Foto nº 4 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > A força da armada portuguesa logo atrás,  fazendo as honras militares ao Governador 


Foto nº 5 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda >  As forças  em parada descendo a Avenida da Republica, acompanhada por populares locais que apreciavam estes desfiles e a atuação da vistosa banda militar de Bissau (, constituída exclusivamente por militares do recrutamento local);


Foto nº 6 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > Novas fotos com a parada militar pela avenida abaixo, com participação da banda, fuzileiros e população local;


Foto nº 7 >  Bissau > Palácio do Governador  >  Junho de 1969 > Render da Guarda > As forças  em parada descendo a Avenida da Republica, acompanhada por populares locais que apreciavam estes desfiles e a atuação da banda militar africana.


Foto nº 8 >  Bissau > Palácio do Governador >  Junho de 1969 > Render da Guarda > A população local perfilada pela berma da rua principal, para ver e apreciar as nossas tropas, aplaudindo-as à sua passagem. Não esquecer que estava lá também a banda militar africana.

Fotos: © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado. (*)

Assunto - Tema T025 – Render da Guarda no Palácio do Governador em Bissau

(i) Anotações e Introdução ao tema:

Todos os domingos havia uma cerimónia militar com grande envergadura e acompanhada de perto pelas populações locais e militares que se encontravam em Bissau, com "grande ronco",  com vista a mostrar que estava lá um representante do Governo da Republica, e a reforçar a imagem de Portugal.

Tive a oportunidade de assistir algumas vezes ao render da guarda do palácio, por me encontrar em Bissau nesses dias de Domingo de manhã, mas só tenho fotos reais captadas pouco mais de um mês antes de embarcar, de regresso, em Junho de 1969. Nota-se o piso molhado, com poças de água, devido ao tempo de chuvas que era o máximo nessa época.

(ii) Legendas das fotos:

F1 – Mostra o Palácio do Governador da província – neste caso ocupado pelo general Spínola. Faz parte da guarda um destacamento da Marinha, a força mais vistosa, e uma força do Exército, Infantaria, Cavalaria ou Artilharia, ou dos Comandos, Paraquedistas e Fuzileiros, bem  como a Banda Militar, constituída por elementos do recrutamento local.

F2 – A força da Marinha na escadaria do Palácio do Governador;

F3 – A Banda Militar dando a volta ao Palácio. (**)

F4 – A força da armada portuguesa (fuzileiros),  logo atrás,  fazendo as honras militares ao Governador

F5 – As forças  em parada descendo a Avenida da Republica, acompanhada por populares locais que apreciavam estes desfiles e a atuação da Banda Militar.

F6 – Novas fotos com a parada militar pela avenida abaixo, com participação da banda, marinha e população local;

F7 – A parada após ter descido a avenida, volta a subir até ao cima da Rotunda, onde se vê a bandeira e o Palácio do Governador, cor-de-rosa.

F8 – A população local perfilada pela berma da rua principal, para ver e apreciar as nossas tropas, aplaudindo-as à sua passagem. Não esquecer que estavam lá também tropa africana (a banda militar)

Em, 12-02-2018 - Virgílio Teixeira

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18360: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XIX: Visita ao território, do Presidente da República Almirante Américo Tomás, com início em 2/2/1968 - II (e última) parte


Postal ilustrado da época >  A Banda Militar de Bissau

(**) Vd. poste de  29 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

(...) A guarda ao Palácio englobava as seguintes forças essenciais:

a) - Uma Secção de tropa regular, comandada por um Sargento da Guarda, que tinha a seu cargo os postos de sentinela ao fundo do jardim e ainda um posto de sentinela ao lado direito do jardim. A segurança era feita durante o dia do lado de fora do jardim. Com o render dos postos de sentinela às seis horas da tarde a segurança passava a ser feita do lado de dentro dos muros.

b) - Uma Secção da Polícia Militar, incluindo um sargento e um oficial, que tinha a seu cargo o pórtico principal do Palácio e o portão lateral de serviço geral.

c) - Durante a noite, entre as dezoito e as seis horas, a segurança era reforçada com um elemento da Polícia de Segurança Pública, que ficava encarregado do espaço entre a casa da guarda e do pessoal civil servente do Palácio e o edifício principal.

d) - Também durante a noite, a segurança era ainda reforçada com um cão treinado em segurança e respectivo tratador, na altura um pára-quedista, que tinha a seu cargo o patrulhamento do interior do jardim,

(...) No Domingo de manhã acontecia ronco grande em Bissau.

O atavio militar das Praças da Guarda era o fardamento n.º 2, com cordões brancos nas botas, tendo como armamento a G3. O Sargento da Guarda também vestia o fardamento n.º 2, com luvas brancas e cordões das botas da mesma cor. O seu armamento era a FBP. Durante a cerimónia o carregador na arma estava vazio. Em verdade se diga, os carregadores que estavam nas cartucheiras estavam devidamente carregados.

(...) Para além das Praças da Guarda, as Forças em Parada eram, normalmente, as seguintes: dois Grupos de Combate reduzidos, nesta nossa participação, da CCaç 3327, com fardamento n.º 2 e G3, um Pelotão da Polícia Militar em camuflado e G3, e um Grupo do Destacamento de Fuzileiros Navais em fardamento branco e G3. Os Leopardos (se a memória não me falha essa era a sua sigla e sujeito a correcção) de Bissau, com os seus inconfundíveis turbantes vermelhos, eram a Banda Militar que nos acompanhavam nestas cerimónias.

Após o içar da bandeira e o render da Guarda, as forças desfilavam pela Avenida da República indo destroçar junto ao Quartel da Amura.


(...) Nunca poderei esquecer a atenção e o respeito que os guineenses demonstravam nestas cerimónias. Novos e velhos, homens e mulheres seguiam com muita atenção todos os pormenores do içar da bandeira e do Render da Guarda. Vi muitos deles saudar com continência a Bandeira que subia no mastro, e senti o calor de milhares de palmas quando as nossas tropas acabavam as manobras em frente ao Palácio e desfilavam pela Avenida da República. Nestas ocasiões, devo confessar, não sentia que os guineenses procuravam a sua independência. Quanto muito desejavam a paz, a mesma paz que nós procurávamos. Nós éramos a sua esperança. (,,,)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18370: Álbum fotográfico de António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 e da CCAÇ 17 (4): Ainda a visita à Guiné-Bissau em Março e Abril de 2017

ÁLBUM FOTOGRÁFICO DE ANTÓNIO ACÍLIO AZEVEDO, EX-CAP MIL, CMDT DA 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 E DA CCAÇ 17, BULA E BINAR, 1973/74

AINDA A VISITA À GUINÉ-BISSAU ENTRE OS DIAS 30 DE MARÇO E 7 DE ABRIL DE 2017


Foto 56 - Colega Isidro, no interior da Fortaleza do Cacheu e junto à estátua de Teixeira Pinto

Foto 58 - Foto do amigo tabanqueiro, Carlos Schwarz da Silva "Pepito", falecido em 2014 e colocada numa das paredes do Museu da Escrvatura e do Trafico Negreiro, no Cacheu

Foto 89 - Foto tirada num bar, em S. Domingos (norte da Guiné) - junto ao Senegal e onde aparecem os colegas Rebola, Rodrigo, Moutinho, Monteiro, Isidro, Leite Rodrigues e Cancela, convivendo com um grupo de portugueses que tinham viajado no mesmo avião em que fomos para a Guiné

Fto 93 - Foto da localidade de Susana, situada entre o Ingoré e S. Domingos, onde aparece a espada Felupe estilizada, construída em betão armado e onde ainda se vê o mastro de ferro onde era hasteada a bandeira portuguesa. Apresenta-se agora pintada com inscrições do PAIGC

Foto 134 - Um jovem guineense aplainando uma prancha de madeira numa pequena oficina, em Bissorã

Foto 154 - A pequena Igreja de Safim, localidade entre Bissau e Bula

Foto 157 - Posto de combustível em Jugudul, onde parámos para abastecer os jeeps e tomar um café

Foto 158 - Edifício de destacamento de trânsito, à saída de Bafatá, a caminho de Gabu

Foto 160 - Arrozais na bolanha, junto ao Rio Geba e à entrada de Bafatá
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Nota do editor

Poste anterior de 16 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18219: Álbum fotográfico de António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 e da CCAÇ 17 (3): Ainda a visita à Guiné-Bissau em Março e Abril de 2017

Guiné 61/74 - P18369: Manuscritos(s) (Luís Graça) (139): Um triste tuga entre três tristes fulas... Elegia para as vítimas da "justum bellum" do comandante Mamadu Indjai

Um triste tuga entre três tristes fulas

Elegia para as vítimas da "justum bellum" de Mamadu Indjai (*)
 

por Luís Graça
 

E de repente
tudo te é estranho,
o muro que corta, rente,
a brisa da manhã,
a fonte onde ainda ontem
os
djubis tomavam banho,
o portentoso poilão aonde ias rezar,
à tua maneira, ao teu irã,
ponta onde colhias a manga, a papaia, o abacaxi,
o macaco-cão que chora e que ri…

De repente
não sabes donde vens,
não sabes o que és,
aqui de camuflado e de G-3,
dois cantis de água,
oito cartucheiras e quatro granadas à cintura,
nem a verdadeira razão para matar e morrer,
não sabes o que fazes neste lugar,
muito longe da tua terra,
abaixo do Trópico de Câncer,
a 11 graus e tal de latitude norte.

Mal reconheces, pobre periquito,
os sinais da guerra,
o combate em noite de luar,
o cavalo de frisa esventrado,
os pássaros de morte,
os jagudis no alto da árvore descarnada,
a terra revolta, ensanguentada,
o arame farpado,  aqui e acolá cortado,
o colmo das moranças,  carbonizado,
o medo que não se vê mas se pressente,
num olhar de relance, breve,
sobre a tabanca que quiseram riscar do mapa,
as cápsulas de 12.7 da metralhadora pesada Degtyarev,
um par de chinelos,
os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
das granadas de RPG…

Um triste cão, famélico, vadio e louco, ladra
ao cacimbo fumegante
e o seu latido lancinante
ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha,
que não se foi embora,
com a sua máscara impassível
de séculos de dor,
de seu nome, Satu.

Mais tarde, saberás tu,
saberão de cor,
os jovens pioneiros,  os blufos, do PAIGC,
que por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível,
hoje valoroso, amanhã insidioso,
combatente da liberdade da pátria,
hoje herói,  amanhã traidor,
que nunca conhecerá a glória nem a honra
do Forte da Amura,
transformado em Panteão Nacional.

Diz-me tu, Satu, mãe e pitonisa,
onde estão as mulheres da tua tabanca,
com os balaios à cabeça
e os seus filhotes às costas ?
Onde estão as tuas gentis bajudas, de mama firme,
cujo sorriso climatizava os nossos pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
e donde vêm aqueles sons, ambivalentes, de bombolon?

Diz-me tu, homem grande,
onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
sopram os ventos da história, afinal ?

Dis-me, mauro,  onde fica Meca ?

E a quem e para onde é que eu hei-de rezar ?
E, no seu conciliábulo, meu irmão,
os nossos deuses, o meu e o teu,
o que sobre nós
, cinicamente, decidirão ?

Diz-me onde está o velho cego,  mandinga,
a quem demos boleia, até Mansambo,
que tocava kora
e nos contava a história
de velhos e altivos senhores do Mali e do Gabu,
agora servos no seu chão ?

Passei na madrugada
de um final de mês de julho de 1969,
pela tua tabanca, abandonada,
do triste regulado do Corubal,
de que já não guardo o nome,  na memória:
Sinchã qualquer coisa,
Sinchã-a-ferro-e-fogo,
Afiá ou Candamã...
Que importa, de resto, minha irmã,
o topónimo para a história?!...

Venho apenas em teu socorro, meu irmãozinho,
quando as cinzas ainda estão quentes
no forno da tua morança,
da morança que fora também minha…

Raiva, sim, meu camarada,
Abibo Jau, meu bom gigante,
que serás mais tarde fuzilado em Madina Colhido
com o teu comandante Jamanca,
como eu te compreendo!…
Mas vingança, para quê ?

Do teu justum bellum ao justum bellum do teu inimigo,
de guerra em guerra se chega ao nada!

A um espelho partido me estou vendo,
e a mim mesmo me pergunto  quem sou eu,
um triste tuga entre três tristes fulas, ai!,
para te dar lições de história ?!

Saberei apenas,  muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai, no Boé,
que diziam ser região libertada da Guiné…

O mesmo Mamadu Indjai,
fero e bravo comandante,

que fazia a sua justum bellum,
que os tugas de Mansambo irão ferir gravemente
em emboscada no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois, chefe das secretas,

será um dos carrascos de Amílcar Cabral.

Versão 12 (**), 
Alfragide, 1 de março de 2018 (***)
____________

Notas do editor:

(*) Muitos dos nossos camaradas nunca viram o rosto do IN, nem vivo nem morto... Durante a minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71), fizemos diversos prisioneiros, entre guerrilheiros e população civil... Mas o Mamadu Indjai, o Bobo Keita ou Mário Mendes, nunca lhes pus a vista em cima...  Destes três, Mamadu Indjai foi fuzilado pelos seus antigos camaradas, Bobo Keita morreu de morte natural, em Lisboa, e Mário Mendes foi abatido pela minha antiga CCAÇ 12...

O nosso blogue tem feito luz sobre estes homens que nos combateram... Temos vindo a juntar as peças do puzzle... E sabemos hoje um pouco mais sobre quem foram estes homens que lutaram por um ideal,  uma causa que consideravam justa ("justum bellum"), mas também espalharam a morte, o terror, a miséria e a dor no setor L1 ou setor 2 (para o PAIGC)... As populações civis foram as vítimas da violência, de parte a parte...

Durante anos Amílcar Cabral (e o seu partido, o PAIGC) foi glorificado e levado ao céu dos mitos... , foi para o  olimpo dos deuses e dos heróis... Hoje voltamos à terra, e a realidade é muito mais "mesquinha", ou seja, "humana"...

A PIDE/DGS (e seguramente outras polícias secretas, desde a do Sekou Touré, às francesa, russa, sueca e outras) tinham os seus "olhos e ouvidos" no próprio seio do PAIGC...  Não sei se Mamadu Indjai foi agente da PIDE/DGS, e se vendeu por 30 dinheiros como Judas, tal como sugere o historiador e nosso grã-tabanqueiro Leopoldo Amado... Seja como for, mais de meio século depois, temos dificuldade em perceber  como é que um homem inteligente e experiente como Amílcar Cabral (, mas também egocêntrico, vaidoso e ingénuo, como outro líderes revolucionários) se "deixou cair na armadilha" que o levou à morte: ao que parece, toda a gente sabia, menos ele, da traição que se estava a preparar debaixo da sua janela...

O que leva um "herói da liberdade da Pátria", como Mamadu Indjai, a tornar-se um "vilão" e um miserável "traidor"? Bom, isso é outra história... Infelizmente, a história está cheia de vilões e traidores...

Temos 21 referências no blogue sobre este homem... que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e fogo nos  primeiros meses da época das chuvas de 1969.

(**) Vd. poste de 4 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(***)  Vd. poste de 14 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18316: Manuscrito(s) (Luís Graça) (138): a vida são dois dias e o carnaval são três

Guiné 61/74 - P18368: (Ex)citações (330) O "meu querido mês de julho de 1969"... e a "justum bellum", de Mamadu Indjai, contra os colonialistas e os "cães" dos colonialistas (Luís Graça)


Foto nº 1 >  No rescaldo do ataque a Candamã, na madrugada de 30/7/1969: granadas de canhão s/r, e de RGG, 1 granada de mão, munições, restos de fardamento, etc,


Foto n.º 2 > Em Mansambo, o Henrique Cardoso, alf mil, cmdt do 1.º Gr Comb, 2.ª cmdt da CART 2339 (1968/69)



Foto nº 3 > A tabanca de Candamã, transformada em "alvo militar" pelo Mamadu Injdai...

Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (Mansambo, 1968/69) > Candamã


Fotos: © Henrique Cardoso  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em todas as guerras as grandes vítimas são sempre as criança, as mulheres e os velhos que não podem pegar em armas... E logo seguir os combatentes,  os que pegam as armas, convencidos de que lutam por uma causa justa ("justum bellum")... E depois ainda os combatentes que lutam contra a sua própria guerra, os combatentes sem causa, arrebanhados para a guerra, como eu e tantos outros, de um lado e do outro... Quantos dos que morreram nas guerras, sabiam por que lutavam e podiam morrer? 

Este foi "o meu querido mês de julho de 1969" em que tive o primeiro contacto, brutal, com a guerra e as suas insanáveis contradições... Foi aqui que comecei a perceber que não se pode fazer uma guerra sem tomar partido e sem odiar... É preciso "objetivar" o outro, o "inimigo"... Não há guerras justas, muito menos sem ódio... O resto é ideologia...

Amílcar Cabral falava, não poucas vezes, dos "cães dos colonialistas"... Amílcar Cabral usou, não poucas vezes, esta expressão racista, referindo-se aos guineenses que não tomaram partido pela sua causa, o seu partido... (É verdade que ele sabia fazer a distinção entre os portugueses e o "regime colonialista" português; mas também é verdade que, não poucas vezes,  se referia a nós, "tugas", em sentido depreciativo, se não mesmo racista...).

Para os comandantes e demais combatentes do PAIGC, seguindo esta ordem de pensamento (único), o termo "cães dos colonialistas"  tinham um sentido explicitamente racista e um alvo concreto: os fulas, os manjacos e outros grupos étnicos,  menos permeáveis ao apelo da  "guerra de libertação", da "justum bellum"...

O comandante biafada (ou mandinga, não sabemos ao certo...) Mamadu Indjai levava a peito a "justum bellum": um "cão" dos colonialistas bom, era um "cão" morto... Infelizmente, alguns dos meus soldados fulas também partilhavam a teoria inversa: um balanta bom era  um balanta morto... Cada um tinha a sua "justum bellum" e os seus ódios de estimação...

O meu papel, como graduado da CCAÇ 12, na minha esfera de ação muito limitada, foi  impedir que, em situações-limite,  os meus "mamadu indjai" fulas, fardados com a farda do exército do meu país, levassem a teoria à prática... O verdadeiro Mamdu Indjai, biafada ou mandinga, comandante do PAIGC; esse, nunca se coibiu de praticar a teoria...

Dizem os cronistas que terá sido ferido três vezes em combate. À quarta, sucumbiu sob o pelotão de fuzilamento dos triunfadores da "justum bellum"... Mas Amílcar Cabral já não estava lá para ver... Já estava no olimpo dos deuses e dos heróis... A história (ou uma certa historiografia...) encarregou-se  de o 'santificar'... Em boa verdade, ele teve, apesar de tudo, a sorte dos criadores que não sobrevivem às suas criaturas...


2. Confirmei a sequência dos acontecimentos na história do BCAÇ 2852 (1968/70), Cap. II, pag. 90, bem como na história da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

As coisas andavam "feias e bravas"  lá para aqueles lados dos regulados a norte do Corubal, depois da retirada de Madina do Boé em 6/2/1969...  O "chão fula" ficou desguarnecido a sul e sudeste, incluindo o setor de Galomaro (vd. carta de Duas Fontes ou Bangácia, nome do sede do posto administrativo que, com a guerra, terá perdido importância, em detrimento de Galomaro):

Na madrugada de 30 de Julho de 1969, eu estava em Candamã, ainda as armas dos defensores da tabanca fumegavam ... O espetáculo dessa madrugada ficou-me na memória e inspirou-me um poema que vou sucessivamente revendo...

Eis o filme desse mês (só registo a actividade da guerrilha que, haveríamos de saber mais tarde, era comandada pelo Mamadu Indjai, na zona de acção da CART 2339, Mansambo, 1968/69):

(1) No dia 1 de julho, às 20h00, um Grupo IN, estimado em 30 elementos, flagelou à distância o destacamento de Dulombi, a sudeste de Galomaro / Duas Fontes... durante duas horas (!). Os camaradas do PAIGC utilizaram Mort 60, LGFog, Metralhadoras Ligeiras e armas automáticas. Causaram 1 morto e 7 feridos, todos civis. Retiraram na direcção Norte...

(2) Em 10, um outro grupo IN, em número não estimado, emboscou um grupo de 4 civis de Dulombi, a partir de uma árvore, em Paiai Numba [, a sul de Padada, vd. carta da Padada]. Só dois dos civis conseguiram regressar a Dulombi, para contar o sucedido...

(3) Quatro dias depois, a 14, por volta das 16h05, um bigrupo (equivalente a um Gr Comb nosso, reforçado, c. 40 homens) - que presumivelmente se dirigia a Dulombi - reagiu a uma emboscada nossa em (PADADA 2E4), com Mort 60, LGFog e armas automáticas durante cerca de 35 minutos... Antes de retirar para Sudoeste, o IN causa às NT 1 morto, 2 feridos graves (1 civil), 3 feridos ligeiros, além de danos materiais num rádio CHP (de mal o menos)...

(4) No dia seguinte, às 20h00, um grupo IN (estimado em cerca de 40 elementos) atacou as tabancas de Cansamba e Madina Alage, durante 60 minutos, com Mort 60, LFog e armas automáticas mas, desta vez, felizmente, sem consequências... O IN retirou na direcção da tabanca de Samba Arabe, levando consigo um elemento da população...

(5) A 20, pelas 20h00, tocou de novo a vez à tabanca de Cansamba, flagelada por um grupo de 30 guerrilheiros, durante 20 minutos, sem consequências... Retirou na mesma direcção (Samba Arabe)...

(6)A 24, às 00h45, é atacado o destacamento de Dulombi, da direcção SSW. O IN, estimado em 60 elementos, utiliza LGFog e armas automáticas.

(7) Nesse mesmo dia, às 17h20, o aquartelamento de Mansambo é flagelado, a grande distância, com Mort 82, a partir da direcção sudoeste. Sem consequências. Na outra ponta do Sector L1, o Xime é flagelado, às 19h45 por canhão s/r.

(8) Meia hora depois, a sul de Madina Xaquili, a cerca de 1 Km, um grupo IN não estimado reagiu a forças da CCAÇ 2445, causando 6 feridos ligeiros, entre os quais 2 milícias. Simultaneamente, este destacamento é flagelado à distância, com Mort 60 e LGFog. Há apenas danos numa viatura GMC. O IN retira na direcção de Padada. Três Grupos de Combate da CCAÇ 12 (na altura, ainda CCAÇ 2590) tiveram aqui, nesse dia, o seu baptismo de fogo... em farda nº 3 (!).

(9) No dia seguinte, à 1h20, é atacado o destacamento de  Quirafo, durante 3 horas (!), por um grupo estimado em mais de 100 elementos, que utilizam 3 Canhões s/r, 3 Mort 82, vários Mort 60, RPG 2 e 7, Metr Lig e outras armas automáticas... Felizmente, há apenas 1 ferido, mas as instalações do destacamento ficam praticamente destruídas, bem como os rádios DHS e AN/RC-9 e quatro G-3... O arame farpado fora cortado em vários pontos... Quirafo, na altura é guarnecido por um pelotão da CCAÇ 2406.

(10) A 26, há uma nova flagelação do Xime, às 17h45, da direcção Sul. Com Canhão s/r e Mort 82 durante 10 minutos. No Xime está a CART 2520, com menos dois pelotões (um destacado em Galomaro e outro - duas secções - na Ponte do Rio Udunduma).

(11) No dia seguinte, 27, às 16h50, Mansambo volta a ser flagelado, à distância, durante 10 minutos, com Mort 82. Sem consequências.

(12) Em 28, por volta das 22h30, o destacamento e tabanca de Madina Xaquili vai conhecer o inferno: durante 1 hora e meia, é atacado de todas as direcções, por um grupo de cerca de 60 elementos, com Mort 82, Mort 60, LGFog e armas automáticas. Há dois feridos. Na altura era defendido pelo Pel Mil 147.

(13) A 29, às 10 da manhã, um grupo IN reagiu, durante 10 minutos, a um patrulha nossa, a 200 metros a SW de Dulombi, que acabava de sair na sequência do rebentamento de uma mina A/C. O IN, que utilizou Mort 60, LGFog e armas automáticas, causou 2 feridos civis.

(14) A 30, às 18h00, Mansambo sofre nova flagelação à distância, da direcção SW, durante 20 minutos, com Canhão s/r e Mort 82. Sem consequências.

(15) A fechar o mês (quente) de julho de 1969, é a vez da tabanca em audodefesa de Candamã [, já no limite leste da ZA da unidade de quadrícula de Mansambo,] conhecer o inferno: a 30, às 3h40, um numeroso grupo IN (80 a 100 elementos) ataca a tabanca, até de madrugada, durante 2 horas e 20 minutos, utilizando 2 Canhões s/r, Mort 82, 3 Mort 60, LGFog, Metralhadora Pesada, Pistolas-Metralhadoras e Granadas de Mão Defensivas, causando um 1 ferido grave e 4 feridos feridos às NT e 2 mortos, 3 feridos graves e vários ligeiros à população civil... Valeu o comportamento heróico dos homens - menos de  pelotão - de Mansambo!...

Registe-se para a história: o 1.º pelotão da CART 2339, comandado pelo alf mil Henrique Cardoso foi quem, com a população civil, defendeu a bela tabanca de Candamã... Por feitos muito  menos heróicos, distribuíram-se a torto e a direito muitas cruzes de guerra durante a guerra colonial...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

26 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18357: Efemérides (269): 30 de julho de 1969, quando o famigerado comandante Mamadu Indjai (, um dos carrascos de Amílcar Cabral), quis pôr Candamã, a última das duas tabancas do regulado do Corubal, a ferro e fogo... Recordando um raro e precioso vídeo sobre uma tabanca fula em autodefesa, da autoria de Henrique Cardoso, ex-alf mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), que vive hoje na Senhora da Hora, Matosinhos

5 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16562: (De)Caras (47): Ainda o enigma dos ferimentos de Mamadu Indjai [N'Djai] e a missão do Bobo Keita na mata do Fiofioli (Jorge Araújo)

 4 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(**) Último poste da série >  15 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18321: (Ex)citações (329): Da Restauração da Independência de 1640 à guerra na Guiné (1963/1974). Batalhas em campos e tempos desiguais (José Saúde)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18367: Fotos à procura de... uma legenda (101A) : A técnica de construção da estrutura superior das moranças fulas... (Cherno Baldé / Luís Graça / António Rosinha / Armando Tavares da Silva)



Desenho manual da fase inicial de construcao de uma palhota
Infografia: Cherno Baldé (2018)




Foto nº 1


Foto nº 2

Foto nº 3


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 2339 (1968/69) > Candamã > Reconstrução de moranças, depois do ataque de 30/7/1969. Fotograma de "slides", do Henrique Cardoso, retiradas, com a devida cortesia, do seu vídeo, disponível aqui, no You Tube / Henrique Cardoso.

Fotos: © Henrique Cardoso (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 4

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > Madina Xaquili > Junho de 1969 > A morança que foi destinada ao Fernando Gouveia quando foi destacado para Madina Xaquili, para reforçar o sistema de autodefesa.

Foto: ©  Fernando Gouveia  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Comentário de Cherno Baldé ao poste P18357 (*):

Quero desafiar a capacidade de observação dos antigos combatentes com a seguinte questão:

- Quem sabe ou quem é capaz de descrever a técnica que os Fulas do campo usavam na construção daquelas casas (palhotas) redondas onde viviam? Quem acertar dou um preéio.

 PS: Nas imagens vemos algumas casas (palhotas) com a estrutura já pronta, faltando cobrir com a palha [Fotos nº 1 e 2]

2.  Comentário do nosso editor LG [Tabanca Grande]:

Cherno, é um bom desafio...Mas eu não me atrevo a ser o primeiro a tentar responder-te... 

Passei algumas semanas em tabancas em autodefesa, sobretudo no tempo das chuvas... A (re)construção das moranças, a mudança do colmo, etc., era feita no tempo seco... E o tempo seco era o das grandes operações, quando íamos aos 'santuários' [ou 'zonas libertadas']  do PAIGC, uma vez por ano...



3. Comentário de António Rosinha:


Respondendo à pergunta sobre a técnica dos fulas na construção das cubatas redondas e o colmo de palha no telhado, não sei bem a que se refere o Cherno, sei que são abrigadas contra o calor, o frio e os ventos de qualquer direcção.

Com aquele telhado que fica a aba a 1 metro do chão, temos uma climatização o ano inteiro.

Mas já vi jovens cooperantes suecos a fazer adobe e a construir,  com esses tijolos, uma escola nos arredores de Bissau, e os guineenses sentados à sombra dos mangueiros a ver aquela "novidade", adobe.

Também já vi japoneses a fazer arroz numa bolanha de Bafatá, e balantas e fulas a assistir àquela novidade agrícola, o arroz.

Acho que os suecos e os japoneses já foram todos embora e os guineenses não continuem sentados.


4. Resposta do Cherno Baldé:

Caros amigos Luis e Rosinha,

A última imagem do Post mostra uma armadura circular feita de canas de bambu enrodilhadas e suportada por paus à volta com um diâmetro de mais ou menos 4/5 metros (onde os dois rapazes estão encostados) [Foto nº 2] . É este o sítio onde se começa a montagem/construção das estruturas que vão servir de cobertura às casas (Palhotas).

Para começar, escolhem as melhores canas de bambu e encostadas uma a uma a volta da estrutura circular, vão cruzá-las no meio do círculo onde serão atadas, formando desse modo a parte que, quando invertida ou levantada para cima , vai constituir o topo da casa, chamada de cabeça.

Assim, mais de metade desta estrutura de cobertura de colmos é colocada ainda no chão e amarrada com cordas de ramos de palmeira (ráfia), antes de a levantar, colocando a parte que estava em baixo para cima, e fazer subir em cima das paredes redondas (ou outra estrutura qualquer de Kirintins) que servirão de base de apoio à cobertura feita de palha ou de folhas de cibes, conforme as regiões do país e a disponibilidade da palha de cobertura que se podia encontrar na orla das bolanhas, que é cada vez mais rara.

À primeira vista parece simples, da mesma forma que, aos olhos do leigo, parece simples matar uma galinha e dividi-la em partes, mas os mais novos tinham que aprender com os mais velhos e respeitar os procedimentos e o ritual subjacente, sem o qual o trabalho não tinha o devido valor aos olhos da comunidade e dos seus valores.

Se calhar, todos acham que sabem fazer o trabalho elementar de matar uma galinha é de a dividir em diferentes partes!?

Nada mais errado. Da forma como os metropolitanos matavam galinhas no quartel, nenhum Homem grande Fula aceitaria consumi-la. Primeiro por razões religiosas sim, mas também porque não correspondia às normas locais de procedimento e de respeito à vida do animal.

Uma casa que fosse construida sem respeitar as regras ancestrais, também podia ser rejeitada pelos mais velhos e transformar-se num trabalho inglório.

Tenho a quase certeza que o "alfero Cabral",  de Missira, sabia esfregar mamas de Bajudas, mas não aprendeu a arte de matar uma galinha ou da construção de uma bela palhota, palhota de receber hóspedes ilustres, como aquela que reservaram ao Fernando Gouveia em Madina Xaquili ou ao Luís Graça em Saré Ganá com os respectivos mobiliários, sem esquecer a "turpeça" do chefe.


4. Comentário de Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno: sim, a cobertura ou cabeça da habitação em forma cónica é montada ao nível do solo à volta da estrutura circular de bambú que se vê na imagem do lado direito e onde estão encostados os dois rapazes [Foto nº 2].

As canas de bambú serão atadas no meio, mas penso que esta operação não será feita ao nível do chão, pois, de contrário os rapazes não chegariam ao topo onde as pontas das canas irão ser atadas.
Mas acrescenta que esta estrutura é ”levantada ou invertida”, fazendo crer que esta fase da construção pode ser realizada de 2 maneiras. Em qualquer caso isto obriga a levantar a estrutura alguns metros acima do solo, para se poder construir por baixo as paredes da habitação. E isto, como é que é feito? Não será preciso mais gente?

Agradeço estes esclarecimentos.


5. Resposta do Cherno Baldé:

Caro Armando,

Obrigado pelo interesse sobre o assunto.

O topo da cobertura das casas que estão a ver, estavam no chão e no centro da estrutura circular, mas invertidas e na posição contrária daquela que se ve nas imagens. Mais de metade desta cobertura em canas de bambu deve ser montada no chão, em posição invertida, antes de se colocar em cima da parede da casa. Para a colocar, o indivíduo que estava a montar e amarrar as canas  precisava do apoio de um número determinado de pessoas para colocá-la em cima da parede, dependendo do tamanho da casa em construção.

A fase seguinte consistia em meter mais canas de bambu, agora de baixo para cima e fechar todos os espaços vazios. É isto que o rapaz da primeira imagem { Foto nº 1] está a fazer, estando em cima da cobertura a fim de prender solidamente com as cordas de rafia fabricadas a partir de ramos de palmeiras.

Espero ter ajudado a compreender o procedimento,


 6. Nova pergunta Armando Tavares da Silva:

Caro Cherno:

Peço desculpa mas ainda não compreendi bem o procedimento. Invertidas significa que a parte de cima (ou de fóra)  é a que vai ficar da parte interior da habitação? O atar da extremidade das canas de bambú é feito quando estas se encontram ao nível do chão (no plano do chão)? Qual a utilidade da estrutura circular? Como é que ela é utilizada na momtagem das estruturas de cobertura? Eu pensava que esta estrutura servia para nela se encostarem as canas de bambú de modo a serem atadas no topo.

Abraço

7. Resposta  final do Cherno Baldé:

Caro amigo Armando,

Tenho umas fotos que vou tentar recuperar e enviar-te via  Blogue da Tabanca Grande, pois acho que não consegui explicar convenientemente, mas com a imagem será mais facil. Se quiseres, poderás indicar um contacto de e-mail para poder enviar-te directamente, caso consiga recuperar a tal imagem que tinha numa máquina fotográfica [, vd infografia acima]. (**)

Um abraço,
Cherno Balde

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