quarta-feira, 21 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18440, Manuscrito(s) (Luís Graça) (140): No Dia Mundial da Poesia...Um conto: "Feliz Natal e Bom Ano Novo"


Feliz Natal e Bom Ano Novo

por Luís Graça



Centro de Saúde de X…, concelho de Y…, Portugal. Aqui bateu a crise à porta. E bateu forte. 


Os pobres, os velhos, as mulheres, as minorias, ciganos, cabo-verdianos, guineenses… Os jovens sem escolaridade, sem emprego, sem futuro. Os adultos desempregados. Os desempregados demasiado velhos para arranjar emprego, demasiado novos para se reformarem. Os reformados que não vão ter tempo de gozar a reforma, e fazem contas à vida e riscam os dias no calendário, que faltam para receber a pensão.  As crianças que tiveram o azar de nascer em tempo de crise ou de pré-crise. As crianças que tiveram simplesmente o azar de nascer aqui e agora. Os avós, que voltaram a acolher, em casa,  os filhos e os netos. O comércio que fechou portas. As empresas 'deslocalizadas', como agora se diz... E até as farmácias que se queixam que o negócio já teve melhores dias... Em contrapartida, vai-se o ouro dos brincos e ficam as orelhas furadas... Ou vão-se os anéis e ficam os dedos... E as tatuagens nos braços. E os grafitos nas paredes. E a cabeça, por enquanto, em cima do pescoço... E os males da alma, sobretudo esses, que não se podem extirpar como o cancro...

Aqui a vida é cruel. Simplesmente cruel: não há escala para medir a crueldade. Há só um grau: a crueldade... Não há o muito cruel, o bastante cruel o assim-assim, nem muito nem pouco, o pouco cruel, o nada cruel... 

Apesar de ainda haver médico, medicamentos genéricos, assistência. Apesar de haver psiquiatras e saúde pública e até meninas do serviço social. E um segurança à porta, sempre é bom para as estatísticas do emprego haver um segurança à porta: é um posto de trabalho a mais. 

Enfim, ainda há o SNS - Serviço Nacional de Saúde, ou o que resta dele.  Há pelo menos tabuletas, gabinetes disto e daquilo. E gente de bata branca. E portas que se abrem e fecham. E gente que espera. Também não têm mais nada que fazer nesta manhã, do primeiro dia de inverno.
 Não faltam doutoras para tratar da gente, ao menos…
− Por enquanto… Sabe o vizinho dizer-me até quando ?

− Pensam que eu não sou maluca, pá… mas eu sou mesmo!... Vou lá fora fumar um cigarrinho.

Não diz cigarro, diz cigarrinho como se um cigarrinho fizesse menos mal que um cigarro. Tem os dedos amarelos da nicotina. O cigarro mata, diz a embalagem do maço de cigarros. A Rita tem uma idade indefinida, mas alguns traços ainda jovens e finos. Envelheceu precocemente, ou já está há muito nos entas. É cliente habitual do centro de saúde, faz daqui a sua sala de estar, usa um “piercing" no sobrolho... É ou foi auxiliar de educação infantil.
 Já sou freguesa…mas nunca mais me chamam p'rá Junta Médica.

Pega no maço de “Passo Malo” (, corruptela de “Pass Mall”) e sai intempestivamente.  Um jovem casalinho, ele, com ar de deprimido, não pára na cadeira, cheio de tiques. Ela, gordita, com ar maternal, traz o marido à “doutora”. Diria que são ambos ciganos... Como se conhece um cigano ?...Não arrisco...

O delegado de propaganda médica (será?) boceja, enquanto folheia o jornal local, de distribuição gratuita. Os títulos de caixa alta falam por si… Falam da “nova pobreza”, da associação cristã em prol da juventude desvalida que anda na droga, do bairro que tem má fama e pouco proveito... "Feios, porcos e maus", não diz mas pensa muito boa gente que não é cá do bairro...
− Sou preta, portuguesa, com muita honra... Nasci aqui, não conheço a terra dos meus avós e dos meus pais, que eram do Gabu. Mas nunca fui ao Porto. Um tio-avô combateu pelo lado dos portugueses. Em Buruntuma. Fugiu para o Senegal depois da independência. Acho que era milícia ou coisa assim.

Agora faz voluntariado, a Fatumatá. 
− Fátima, é melhor chamar-me Fátima..

Trabalhava numa empresa de limpezas industriais que fechou as portas. A patroa voltou para Angola. E deixou cá dívidas e gente de braços caídos. Chamavam-lhe a "rainha do Congo". Lá na associação, a Fatumatá faz distribuição de bens de primeira necessidade, roupas e outras coisas de uso quotidiano que fazem falta aos moradores, muitos deles, os homens e jovens, que trabalhavam na construção, agora parada. Também se dá o leitinho às criancinhas.

Onde é que eu vi já este filme ? A Caritas, no meu tempo, de escola, a distribuir os restos da América rica, o queijo, a farinha, o leite em pó, as roupas usadas… Há 60 anos atrás... A história repete-se, a crise, as receitas, a caridade dos ricos, a entreajuda dos
pobres, a sopa dos pobres... Ainda comi desse queijo, e desse pão, ainda bebi desse leite, ainda vesti  essa roupa usada... E ainda hoje me sinto desconfortável: é horrível ser objeto da caridade dos outros...E, no entanto, eu devia estar grato... aos meus irmãos católicos norte-americanos.

Outro título que salta à vista do tablóide da região: “A classe média já pede ajuda”... A classe média, que raio de conceito sociológico ?!.. No guiché, as mulheres fazem confidências (ou queixas ? ou pedidos ?) à funcionária, assistente técnica (nome pomposo, para a categoria de administrativa, na nomenclatura da função pública que ainda emprega e dá estatuto e paga vencimento ao fim do mês…). 

É também confidente e parte da rede social de apoio desta pobre gente… O sofrimento, a dor, a doença, a crise... tudo o que é mau suporta-se melhor se for partilhado. Tiro o chapéu aos cuidadores que não têm quem cuide deles...

A Rita voltou com um copo de plástico de café. Gente triste, baça, deprimida… Usada e abusada, em casa, na fábrica, no bairro...
− Gentinha, somos gentinha, vizinho.
− Gentinha, parece repetir o delegado de propaganda médica (será ?), que olha para o relógio, impaciente.
− Tudo a correr bem consigo ?  − pergunta a senhora do guiché à Rita.
− Tudo numa boa, querida!... Só tou à espera da baixa.
− Tem a consulta marcada, Rita, mas há gente à frente.

Dezoito doentes (e ou acompanhantes) à espera, cinco são homens, o resto são mulheres, duas cabo-verdianas, mais a Fatumatá / Fátima, luso-guineense…
− Adeus, Paulinha.
− Tudo de bom para si!

− Ciao, querida!

Não sei se é tudo para a "doutora" ou as "doutoras" da psiquiatria. Aqui funciona também uma USF – Unidade de Saúde Familiar. Mas deve ser ao lado. O guiché em frente é o da psiquiatria. São as mulheres que alimentam a consulta, os homens, por preconceito e estigma social, não aparecem… Ou só em situações mais graves, rebocados pelas mulheres. E com problemas de alcoolismo.

Ligo, discretamente,  o gravador de som: 
− Ó dona Paula, não passaram já 20 minutos ?
− Ó senhor António, acalme-se, deixe-me trabalhar, a doutora já o chama.
− Paula, saudinha para si e para os seus. Até à próxima.
− Adeus, meu amor, as melhoras... Olhe, e Bom Natal e Feliz Ano Novo!

A Rita, de Vila Vicosa, já não quer regressar à sua terra natal, quando se reformar:
− É uma pasmaceira, a província... Saí de lá menina e moça. E aqui tenho as amigas do peito. Mas tenho que lá voltar para fazer a minha árvore ginecológica (sic)...

A Rita é uma mulher com "pergaminhos"... Um das suas fantasias é a sua hipotética pertença a gente de teres e haveres, de nobre linhagem, com raízes na Casa de Bragança... Já foi princesa ou duquesa noutra incarnação. Insiste na sua ideia obsessiva da "árvore ginecológica"...
− Genealógica, Rita...  
− emendo-lhe, com um sorriso de delicadeza, condescendência e compaixão.

Desligo e volto ligar o gravador de som... Ainda tem pilhas, como as vidas desta gente.
− A crise ?!...
− Bom, a crise... boa pergunta, sei lá quando começou… E muito menos sei quando vai parar… 

“Bom Natal e Feliz Ano Novo”: a crise é circadiana, amanhã é sábado, e o sol volta a nascer. Daqui a dias é Natal. Ainda bem que é Natal... E valha-nos ao menos a santa ilusão de que um dia vamos ser todos ser felizes... 

Natal todos os dias, Natal todos os anos. A crença de que alguém vai descobrir a pílula da felicidade (e, "by the way",  ficar muito rico)... Ou que a gente vai ganhar o Euromilhões. E que a dona Rita ainda vai a tempo de descobrir que é descendente de Dom Afonso I de Bragança. E que a malta vai durar até aos 100 anos, a menos que não morra antes de uma bactéria no hospital. Ou de Alzheimer (de que Deus nos livre!)...

E todos os anos a Paulinha e a "doutora" nunca se esquecerão de desejar aos seus utentes, por esta altura, "Bom Natal e Feliz Ano Novo!"... A fórmula é mágica e tem uma tremenda eficácia terapêutica... mesmo que simbólica!

Não sei do que seria dos doentes da "doutora", se não houvesse ao menos esta locução mágica, "Feliz Natal e Bom Ano Novo"... O que seria de nós se não houvesse, ao menos, o eterno retorno, as quatro estações, e o Natal e o Ano Novo, o nascer e o morrer ?

Este ano a "doutora" vai de novo fazer férias na neve... É a melhor altura do ano: nas próximas duas semanas, até ao fim do ano, ninguém vai estar doente... porque é Natal e logo a seguir Ano Novo!... São quinze dias em que a sua agenda tem uma página em branco. Branco como o manto de neve que ainda vai cobrindo os picos da Serra Nevada.

Luís Graça
21/12/2012. Revisto, hoje.


PS - Gosto de escrever nos consultórios médicos, nos bancos dos hospitais, nas salas de espera dos centros de saúde, e até nas camas das enfermarias ... Só nunca escrevi a bordo das ambulâncias do 112 nem no bloco operatório... Afinal, ainda são os  sítios do mundo onde  a palavra esperança faz sentido ou mais sentido...  

Em prosa ou verso, tanto faz, que hoje, 21/3/2018,  é Dia Mundial da Poesia... Este "conto" foi tirado dos "meus caderninhos", e tinha a data de 12/12/2012... Só alterei para 21 por causa da proximidade do Natal...

1 comentário:

Juvenal Amado disse...

As crises criam a miséria, a miséria enriquece os que já são ricos e quem cria a miséria não nunca quis acabar com ela, mas discursam tão bem, que é um gosto ouvi-los.
Mas nunca tocam nunca mexem na pobreza só a criam e amparam e alimentam-se dela.

Não há vacinas contra as crises porque elas fazem parte da forma de resolver a "coisa" à maneira deles e como se costuma dizer, quem sabe da tenda é o tendeiro.

Estamos numa idade perigosa pois costuma-se dizer que a perdição do homem ou é o vinho ou as mulheres, no nosso caso parece-me ser mais o pensamento que nos perde.

Um abraço Luís