quarta-feira, 14 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18415: Bibliografia (47): “Lamento de uma América em Ruínas”, por J. D. Vance; Publicações Dom Quixote, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Há muito que procurava um depoimento de como vivem os grupos sociais desfavorecidos nos EUA.
Este livro tece considerações perturbadoras sobre a perda do Sonho Americano para um largo espectro da população. Quem o escreve é um jovem que constitui um dos raros casos de ascensão social, ele saiu da comunidade operária branca do Cinturão da Ferrugem, o Ohio. Dá-nos, dada a sua análise pessoal e apaixonada, a oportunidade de conhecer a cultura dos norte-americanos brancos e pobres, de ficar a conhecer melhor o lento processo de desagregação que começou há cerca de 50 anos e parece imparável. É a história de uma família que vai de Kentucky para o Ohio, na esperança de escapar à miséria.
Um testemunho que nos insere numa comunidade caótica marcada pelo abuso, o alcoolismo, a pobreza e o trauma.
Uma outra América que raramente vemos nos filmes nem nas séries televisivas.

Um abraço do
Mário


Imperdível: Lamento de uma América em Ruínas

Beja Santos

É o testemunho de um jovem bem-sucedido diplomado em Direito pela Universidade de Yale, um caso bem raro de ascensão social entre a comunidade operária branca do Cinturão da Ferrugem. Relato de uma experiência de vida de quem viveu numa família e num grupo social disfuncionais, incapazes de aceder ao Sonho Americano. De múltipla leitura, pois é uma análise pessoal de uma cultura em crise – a dos norte-americanos brancos e pobres, na vertente da desintegração, que se iniciou nos anos 1970; e é um verdadeiro lamento, autobiográfico, íntimo e sentido; e uma viagem pela história, tudo começa pelos seus avós que se mudaram da região apalache do Kentucky para o Ohio, procuravam escapar à miséria generalizada da sua comunidade, obtiveram um relativo sucesso e formaram uma família da classe média, o símbolo desse sucesso é o autor deste documento de leitura obrigatória: “Lamento de uma América em Ruínas”, por J. D. Vance, Publicações Dom Quixote, 2017.

Famílias disfuncionais, é um grito que ele não reprime:  
“Uma das perguntas que eu odiava, e que os adultos me faziam constantemente, era se eu tinha irmãos ou irmãs. A menos que alguém seja um sociopata especialmente ardiloso, não é possível estar sempre a mentir. Eu tinha um meio-irmão e uma meia-irmã biológicos que nunca tinha visto porque o meu pai biológico me dera para adoção. Eu tinha muitos irmãos e irmãos não-biológicos segundo um terminado critério, mas apenas dois se limitasse o cálculo aos filhos do marido atual da minha mãe. E havia a esposa do meu pai biológico, e ela tinha pelo menos um filho, então talvez eu tivesse de contar com ele também. Às vezes pensava filosoficamente sobre o sentido da palavra irmão. Os filhos dos antigos maridos da minha mãe ainda eram meus parentes? Se sim, o que dizer dos futuros filhos dos antigos maridos das minha mãe?”.

Temos pois uma relação complexa com este meio familiar, avós amorosos e uma mãe toxicodependente. Destinado a ter um futuro sombrio pela frente, descreve a genealogia mais recente, os inumeráveis acidentes da sua infância, o meio operário e o sonho de ascender à classe média. Dá-nos um relato primoroso dos locais onde viveu, do sistema educativo público, do que é viver numa relíquia da glória industrial norte-americana. Comunicação violenta, o recurso às obscenidades, discussões de partir a loiça, intervenções da polícia e da assistência social. O autor irá listar-se nos Marines após completar o ensino secundário e combateu no Iraque. Amadureceu, frequenta o ensino universitário em Ohio e em Yale, é hoje diretor de uma destacada firma de investimentos de Silicone Valley. Um tremendo relato que nos prende pela lucidez e subtileza, onde se misturam todos os dramas da sua vida familiar e onde entram em cena, para nosso espanto, gente pobre completamente descrente do futuro. E nessas famílias disfuncionais todos os incidentes são imprevisíveis, como em dado passo ele observa:  
“Era assim o meu mundo: um mundo de comportamentos verdadeiramente irracionais.
Gastamos tudo até ficarmos pobres. Compramos televisões de ecrã gigante e Ipads. Os nossos filhos usam roupas boas graças a cartões de crédito com juros altos e empréstimos. Compramos casas de que não precisamos, refinanciando-as em troca de mais dinheiro para gastar, e depois declaramos falência e deixamo-las geralmente cheias de lixo. Poupar é para nós uma hostilidade. Gastamos para fingir que somos de uma classe superior. E quando a poeira assenta – quando a falência chega ou algum parente paga a fiança da nossa estupidez –, não sobra nada”. 

O ambiente familiar também não é poupado: 
“As nossas casas estão sempre numa desordem total. Gritamos e berramos uns com os outros como se fôssemos um bando de arruaceiros num jogo de futebol. Pelo menos um membro da nossa família consome drogas. Em momentos particularmente stressantes, batemos uns nos outros, e à frente do resto da família, inclusive das crianças pequenas. Um dia mau é quando os vizinhos chamam a polícia para acabar com a confusão. Os nossos filhos vão para um centro de acolhimento mas nunca ficam por muito tempo. Pedimos-lhes desculpa”.

A ignorância e a alarvice andam de mãos dadas: “Percentagens significativas de eleitores brancos conservadores acreditam que Barack Obama é muçulmano. Numa sondagem, 32% de votantes conservadores declararam que acreditam que Obama tinha nascido no estrangeiro. Ouço frequentemente conhecidos ou parentes distantes dizerem que Obama tem laços com extremistas islâmicos, ou é um traidor”. Conservador, está ciente da profunda debilidade ideológica deste pensamento: “Em vez de incentivarem o envolvimento, os conservadores cada vez mais fomentam o tipo de desapego que exauria a ambição de muitos dos meus amigos. A mensagem da direita é cada vez mais: você não tem culpa de ter fracassado; a culpa é do Governo”.

A todos os títulos, um relato corajoso no quotidiano de maus-tratos, de insultos, de depressões, dos traumas múltiplos que sofrem os membros da classe operária. E há esse rolo compressor que há um grau de instabilidade nunca visto em nenhum lugar do mundo: a miríade de figuras paternas, a elevada percentagem de crianças expostas a três ou mais parceiros das mães, o caos em casa. E testemunha o que viu: “Para muitas crianças, o primeiro impulso é fugir, mas as pessoas que correm para a saída raramente escolhem a porta certa. Foi assim que a minha tia se viu casada aos 16 anos com um marido abusivo. Foi assim que a minha mãe, a oradora da turma na escola secundária, no final da adolescência já tinha engravidado e depois divorciou-se, mas não chegou a terminar o secundário. Saem de uma situação má para uma pior. O caos gera mais caos”.

É um livro inspirador, mais construtivo não pode ser, ajuda a compreender aqueles EUA conservadores que confiam nas vozes messiânicas, como nos ajuda a compreender que há vencedores que não se atolam no princípio da competição e que tanto lutam pela sua felicidade como pela solidariedade com os grupos sociais desfavorecidos que vivem no país mais rico do mundo.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18339: Bibliografia (46): “Lideranças na Guiné-Bissau, Avanços e recuos”, por Santos Fernandes, Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

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