quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18337: Recortes de imprensa (92): A primeira visita de um chefe do governo português ao Ultramar: Marcelo Caetano, em Bissau ("Diário de Lisboa", 14/4/1969)






"Diário de Lisboa", nº 16637, ano 49, segunda feira, 14 de abril de 1969, 3ª edição, pp. 1 e 10. Diretor: António Ruella Ramos. Cortesia de Casa Comum > Fundação Mário Soares > Fundos DRR - Documentos Ruella Ramos.

Citação:(1969), "Diário de Lisboa", nº 16637, Ano 49, Segunda, 14 de Abril de 1969, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_7219 (2018-2-20)


1. Complementando a "cobertura fotográfica" da visita a Bissau, do prof Marcelo Caetano, da autoria do nosso grã-tabanqueiro Virgílio Teixeira (*), publica-se um recorte de imprensa da época, mais exatamente do vespertino "Diário de Lisboa", com data de 14 de abril de 1969. (**)

Tratava-se de um jornal "independente", considerado de "referência", que se publicou entre 1921 e 1990,  e que foi, entre nós, uma grande escola de jornalismo.  Chama-se a atenção para o título de caixa alta, publicado na primeira página: "A primeira visita de um chefe do governo português ao Ultramar"...

Caetano, que sucedeu a Salazar, tinha estado na Guiné em 1935, no âmbito do I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola), de que foi o diretor cultural. (Este cruzeiro foi uma inciativa da revista "O Mundo Português",  tendo juntado  cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comeriantes").

Há aqui uma crítica implícita ao seu antecessor que nunca quis pôr os pés no "império"... Nesta viagem, de 14 a 21 de abril de 1968,   às capitais da Guiné, Angola e Moçambique os aviões da TAP iriam fazer qualquer coisa como 19 mil quilómetros, o que dá uma ideia da distância dos territórios ultramarinos em relação a Lisboa.

O jornal é politicamente correto, referindo-se sempre às "províncias ultramarinas" (e não colónias, desde a reforma de 1951). Não nos parece que tenha mandado um "enviado especial" a acompanhar o périplo de Marcelo Caetano  pelo Ultramar, tendo por isso que recorrer ao material enviado pelas "agências noticiosas do regime", a Lusitânia e  a ANI. 

Relativamente aos representantes das principais etnias presentes nas cerimónias de boas vindas, é dado o destaque aos fulas, mandingas, felupes e bijagós, mas fazem-se também referências a outros como os papéis, os manjacos e os balantas...

A "representação social" destes grupos continua a ser "estereotipada" na imprensa portuguesa:  "os Papéis dos subúrbios de Bissau, os Manjacos, trabalhadores do porto, os Balantas, cultivadores de arroz, os Beafadas, os Nalus, hábeis escultores de madeira, os Saracolés,  notáveis ourives, enfim, todas as raças"...  Mas antes deles, vêm os "chefes fulas e mandingas que ostentam condecorações ganhas por atos de bravura em campanha"... E ainda, "com turbantes e formatos especiais, os maometanos que já foram em peregrinação a Meca, nas viagens que todos os anos o Ministério do Ultramar organiza"...

Era aguardado, com expetativa e interesse, o discurso do chefe do governo no palácio do Governador. Nessa cerimónia usaram igualmente da palavra o vogal do conselho legislativo Joaquim Baticã Ferreira (, de etnia manjaca, fuzilado pelo PAIGC depois da independência) e o brigadeiro António de Spínola governador-geral e comandante-chefe. 

O último ato público do presidente do conselho de ministros, antes de partir, no dia seguinte, 15 de abril, para Luanda foi a homenagem aos "mortos em defesa da Pátria", no cemitério de Bissau.

Destaque também para a entrevista do brigadeiro António de Spínola, à Emissora Nacional, em que "minimiza" o problema "militar", face às preocupações do governo da província, que seriam a promoção económica, social e cultural do povo guineense, com vista a "acelerar o seu processo de desenvolvimento" (sic)... Começa talvez aqui, menos de um ano depois da sua chegada à Guiné, a consolidar-se a tese (spinolista) de que a solução para o conflito que se trava no território, é muito mais "política" do que "militar"...



Guiné > Bissau > 14 de abril de 1969 > Visita presidencial do Professor Marcelo Caetano a Bissau: lado a lado, mas já de costas viradas, Marcelo Caetano e Spínola...

Foto: © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. O que os jornais (e muito menos a televisão...) não noticiaram foi a reunião extraordinária de comandos, ocorrida a 14 de abril de 1969, na sala de operações do comando chefe, em que estiveram presentes, além de Spínola e de Marcelo Caetano, o ministro do ultramar [, Silva Cunha], o CEMGFA [, gen Venâncio Deslandes,] e mais cerca de duas dezenas oficiais com funções operacionais e de comando no TO da Guiné.  Foi seguramente mais importante do que a reunião anterior, protocolar e propagandística, do conselho legislativo...

A reunião extraordinária de comandos acabou num tom sombrio, face às perspetivas de deterioração da situação militar,  à consolidação e relativo sucesso da estratégia do IN (e à sua mais que previsível escalada militar), à ausência de uma "ideia de manobra à escala estratégica nacional", à incapacidade de resposta da "infra-estrutura administrativa-militar", à desmoralização dos operacionais metropolitanos no CTIG, à dramática falta de reforços (em homens e material)...

Segundo o biógrafo de Spínola, Luís Nuno Rodrigues, Marcelo Caetano tende  a ser visto pelo primeiro  como um político, fraco e impotente, nomeadamente face à inércia da estrutura administrativo-militar.  Mas Spínola, que chega ao generalato em julho desse ano, não se coíbe  de falar alto e bom som, ao CEMGFAQ, o gen Venâncio Deslandes, que ele trata por tu, que nunca aceitaria, em terras da Guiné, um segundo caso da Índia...em que os militares foram os bodes expiatórios do desastre político e diplomático... (Rodrigues, L. N. - Spínola: biografia. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010,  pp. 130-135).

Spínola recordou o pedido, ainda em grande parte por satisfazer, que tinha feito em nobvembro de 1968, em termos de "necessidades imediatas": 4 comandos de batalhão  e 13 companhias, além de material de artilharia e antiaéreas...

Marcelo Caetano terá perguntado a Spínola porque é que não utilizava "mais pessoal africano",  uma vez que se encontravam "exaustas as possibilidades demográficas metropolitanas" (sic). Spínola respondeu que a africanização da guerra poderia resolver o "problema humano", mas não dispensava a solução do "problema financeiro"... O tosco do ministro do Ultramar ainda perguntou se as unidades africanas não seriam "mais baratas"... Estou a imaginar a  irritação (contida) de Spínola, ao responder-lhe que já não o eram, por que: (i) "os africanos já tinham tomado consciência de que "neste tipo de guerra e neste terreno são mais aptos do que os metropolitanos" (sic); e (ii) e já não aceitam auferir remunerações inferiores a estes, tendo perdido o seu "complexo de inferioridade" (ibidem, p. 131).

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Nota do editor:


5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A propósito dos militares do "recrutamento local" e da idiota pergunta do Ministro do Ultramar, Silva Cunha....

A minha CCAÇ 2590 deve ter sido uma das companhias independentes que vieram, em 24 de maio de 1969, no T/T Niassa, respondendo ao pedido de reforços do Spínola, em novembro de 1978... A CCAÇ 2590, a CCAÇ 2591, a CCAÇ 2592 e outras...

Recorde-se aqui que, no meu tempo (1969/71) a composição da CCAÇ 2590 (mais tarde, passados uns meses, CCAÇ 12) era a seguinte: cerca de 75 graduados e praças especialistas, de origem metropolitana (45,4%); e 90 praças, oriundos do recrutamento local (54,6%).

Só havia, na altura, um 1º cabo guineense, o José Carlos Suleimane Baldé, que tinha o exame da 3ª ou 4ª classe, E, se bem me recordo, eram todos fulas, dos regulados de Badora e Cossé, com exceção de 2 mandingas e 1 mancanhe, de Bissau, o Vitor Santos Sampaio, valente mas muito reguila...

Ao Vitor, só lhe conheci um momento de "fraqueza" (?), no decurso da Op Abencerragem Candente, em 26/11/1970, em que as NT foram massacradas (6 mortos e 9 feridos graves)... O Vítor recusou-se a acompanhar-me à cabeça das NT que tinham acabado de sofrer uma tremenda emboscada (CART 2715 e CCAÇ 12); era preciso resgatar os 6 mortos e socorrer os 9 feridos graves; ainda hoje recordo a desculpa que ele me deu: "vai, tu, furriel, pessoal africano só ganha 600 pesos"...

As baixas mortais... eram todas de "tugas" (da CART 2715, sediada no Xime), com exceção do nosso guia e picador, o Seco Camará, mandinga...

O Vítor pertencia ao 1º Gr Combate e eu estava no 4º (, não tinha pelotão certo)... Terá sido o único gesto de "cobardia" (?) que testemunhei em 22 meses de comissão, na CCAÇ 12,,, Mas quem sou eu para julgar os meus camaradas guineenses ? Infelizmente, já não deve ser vivo, o Vitor Santos Sampaio, o único mancanhe que conheci... (80% a 90% destes meus camaradas guineenses já morreram)... Quem poderia falar dele, seria o seu antigo comandante de pelotão, o Francisco Magalhães Moreira, alf mil op espec, mas infelizmente ele não deve conhecer sequer o nosso blogue... O Moreira que era o "menino bonito" do capitão, o mais "competente" de todos nós, exercendo as funções de adjunto do capitão inf Carlos Brito... Que é feito de si, meu capitão ?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A desigualdade salarial manteve-se no tempo do Spínola: os meus soldados eram tratados como praças de 2ª classe, por não terem o exame da 3ª ou 4ª classe... Ganhavam apenas 600 pesos, enquanto os metropolitanos, incluindo os analfabetos, ganhavam 900 pesos... Os guineenses eram "desarranchados", recendo mais 24$50 pesos por dia...o que ajudava a compôr o orçamentp familiar... Todos tinham famílias numerosas para alimentar...

Estamos a falar de gente que pagou um elevado posto de sangue!... E que eram, de facto, bons combatentes, melhores do que nós na aptidão para "viver" e "sobreviver" no mato, nas duríssimas condições do terreno e da guerra que tínhamos de enfrentar...

Já em relação às tropas especiais (Comandos, parás e fuzos...), as praças e os graduados guineenses deviam receber o mesmo que os metropolitanos...

Fernando Pessoa disse...

... à atenção do editor:

Deste 'post', além de tudo o mais, retive a seguinte info, que, por não corresponder a factos, reproduzo, solicitando a devida corrigenda - «Caetano [... ] tinha estado na Guiné em 1936 como alto comissário da Mocidade Portuguesa.»
Aquele datação, é incorrecta.

Cpts

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, caro leitor, já corrigimos... Marcelo Caetano foi comissário nacional da Mocidade Portuguesa, de 1940 a 1944... E a ter estado na Guiné terá sido em 1935, por ocasião dum cruzeiro, de que foi mentor, pelos territórios portugueses da África Ocidental... Há um documentário de 1936, sobre este cruzeiro.

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http://cinecartaz.publico.pt/Filme/301452_i-cruzeiro-de-ferias-as-colonias-do-ocidente


I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente

Título original:
I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente

De:San Payo
Outros dados: POR, 1936, Cores, 71 min.

Realizado pelo fotógrafo Manuel Alves San Payo (1890-1974), este documentário regista a viagem do paquete "Moçambique" a Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e Angola entre agosto e outubro de 1935.

O cruzeiro foi uma iniciativa da revista O Mundo Português (editada pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional), que assim premiava os melhores alunos na conclusão do curso geral dos liceus. O mentor do projeto, que tinha como objetivo cativar as jovens elites do país para a questão colonial, foi Marcelo Caetano.

Texto: Cinemateca Portuguesa

Antº Rosinha disse...

Os soldados de lá "Ganhavam apenas 600 pesos, enquanto os metropolitanos, incluindo os analfabetos, ganhavam 900 pesos".

Não sabemos se nas guerras modernas, Iraque, Afeganistão, República Centro Africana...etc., se os diversos postos são subsidiados diferentemente ou é criado algum subsídio comum, além do ordenado base, logicamente diferente.

Mas o ridículo de um simples soldado ou um simples furriel, ou um simples capitão, quando em combate ou em patrulha, ou em operações perigosas, receberem compensações diferentes é que é "humanamente" incompreensível.

As balas matam todas da mesma maneira.