sábado, 16 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18093: Bibliografia (44): “Os Papéis do Inglês”, por Ruy Duarte de Carvallho; Círculo de Leitores, 2002 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
A literatura lusófona é por de mais surpreendente. Podia fazer-se aqui o corolário de nomes impressionantes da lusofonia, de Cabo Verde a Moçambique, quedemo-nos nesse vulto espantoso que é Ruy Duarte de Carvalho, homem de sete ofícios, romancista inclassificável, expressão que não deve meter medo a ninguém, uma obra gigantesca como "Húmus", de Raul Brandão, também é inclassificável, mas é um dos pilares da literatura portuguesa da primeira metade do século XX. O que avulta neste livro é o deslumbramento de Angola, um mundo em que ainda há guerra civil, mas é o olhar do antropólogo que tudo excede e que põe o leitor num convulsivo labirinto africano.

Um abraço do
Mário


Os Papéis do Inglês, por Ruy Duarte de Carvalho (1)

Beja Santos

Ruy Duarte de Carvalho, angolano de origem portuguesa, nasceu em 1941 em Santarém. Viveu parte da infância e da adolescência em Moçâmedes. Temporariamente, viveu em Lourenço Marques e em Londres, no início dos anos de 1970. Regente agrícola, antropólogo, realizador de televisão, cineasta, artista plástico, poeta e ficcionista.

“Os Papéis do Inglês”, por Ruy Duarte de Carvallho; Círculo de Leitores, 2002, é um livro de difícil classificação, talvez uma novela às avessas, relato de viagens com dormências e reminiscências, páginas de um diário onde se imiscuem a polivalência e o autorretrato. A fazer fé do que teria acontecido, entre o imaginário e a factualidade real, estamos perto do natal de 1999, o autor saiu para a mata para fotografar pedras, enganou-se no caminho, andou às voltas e assim começa a história, a narração de um inglês que se suicidou no interior mais fundo de Angola, aí começa essa história “que até hoje me anda a trabalhar a cabeça, desde que esbarrei com ela num livrinho da autoria dessa fascinante personagem da nossa história comum, o muito ativo e irrequieto Capitão Henrique Galvão”. É uma história que se conta no acampamento e o que lhe anda na memória do tal livrinho de Henrique Galvão, edição de autor, no ano de 1929 com o título Crónicas de Angola, tem a ver com um cidadão inglês retirado do mundo, de boas famílias e caçador de elefantes, Perkings de seu nome ou Sir Perkings, como Galvão entendeu chamar-lhe. História burlesca e arrepiante, que se conta em poucas frases. O inglês abate com arma de fogo um obscuro grego, companheiro de profissão. Procura depois o posto administrativo mais próximo, a 100 quilómetros de distância, apresenta-se à autoridade portuguesa. O chefe do posto esquiva-se à ocorrência e só depois de muita insistência acaba por regista a ocorrência. O inglês, em liberdade, regressa ao seu acampamento. Espalham-se as interpretações do que terá acontecido, chega-se mesmo a dizer que o grego fora assassinado pelo inglês e este devorado por um jacaré, depois de atirar-se às águas do Cuando, com uma grande pedra atada aos pés. O que se conta é a imaginação? E o autor estica o fio da intriga: “E hoje, já que nunca mais deixei de me ver ligado à coisa, julgo que sei tudo. E não vou ter descanso, conheço-me, enquanto não reduzir a ideia a objeto, ou a ato”.

Sem parcimónia, biografa Henrique Galvão, que muito escreveu, que foi funcionário colonial altamente polémico e até se apossou do paquete Santa Maria, já em guerra aberta com Salazar. Conta depois que o pai o mandou ir buscar uns papéis que já não tinham interesse nenhum mas havia entre eles manuscritos antigos comprados a um ganguela (pequena etnia do planalto central de Angola). A viagem é um pretexto para abrir caminho para outros pretextos, fez-se a viagem à procura dos papéis, encontram-se imensas pessoas. Nisto, já se passou o Natal e volta-se ao estranho caso do inglês, estamos em 1909 numa reunião de professores universitários em que se discute a antropologia social, nele participou Archibald Perkings. Entra outro sujeito na história, Radcliff-Brown, também antropólogo social. A história emaranha-se, há traição à fidelidade conjugal, Archibald Perkings sai de Londres e ruma a Angola. Se tudo já estava emaranhado, agora labirinta-se, aparece um belga, interessado em pontas de marfim, aparece também Artur Virgílio Alves Reis, descrito ao pormenor e autor da maior burla bancária que até hoje houve em Portugal com o seu Banco de Angola e Metrópole, os personagens aproximam-se uns dos outros, e o autor especifica o território desse acampamento que é o local de encontro:
“Ocorre com uma precisão cinematográfica a cena que vai seguir-se. É o cair da tarde e há uma luz doce e aberta que se estende a Oeste pela anhara até lá muito longe e anuncia já a noite que está para vir, noite do Leste, vibrátil e imensa, capaz de acolher os uivos de todas as vigílias todas de um continente inteiro. O acampamento está instalado numa ligeira vertente que a oriente se introduz pela mata de acácias altas e depois a encosta à estreita corrente de água que passa logo em baixo e se vai alargar, mais a Sul, numa pequena lagoa de onde depois volta a sair o curso da ribeira. Uma barraca de pau-a-pique, onde habita o grego, está quase encostada à mata. As tendas das visitas foram armadas deste lado e é aí, debaixo de um toldo também de lona, que têm passado os dias. A tenda do inglês está montada mais em cima, do lado oposto, e entre ela e os telheiros onde se cozinha há um extenso terreiro que abre para o horizonte da anhara. É para aí que está a ser levado agora, por um homem que saiu da cozinha e entrou na tenda do inglês, um objeto, que o belga e os americanos, de longe, olham muito atentamente, porque talvez lhes custe acreditar que se trata mesmo do que estão a ver: uma estante de música. Há mais pessoas atentas ao movimento do homem que ele dispõe no centro do terreiro (…) O inglês sai da sua tenda com um violino na mão esquerda e o respetivo arco na direita. Uma mestiça muito jovem, moça ainda, com uma saia e uma blusa gastas, vem também do alpendre das cozinhas, descalça, com um caixote e um banquinho, põe o caixote ao lado da estante da música e senta-se no banquinho, a pouca distância. Entalha a roda da saia entre as pernas compridas, assenta os cotovelos nos joelhos, apoia a cara nas mãos em concha e fica assim, de frente, a olhar para o inglês, que entretanto arruma na estante uma folha de papel que o homem do princípio lhe entrega na mão antes de se colocar, por sua vez, ao lado, quase colada às pernas do branco, de cócoras e pronto para dedilhar um quiçanje que trouxe agora consigo. Vai começar o concerto”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18065: Bibliografia (43): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18092: Parabéns a você (1356): António Paiva, ex-Soldado Condutor Auto do HM 241 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18089: Parabéns a você (1355): Francisco Santos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 557 (Guiné, 1963/65) e Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18091: Agenda cultural (622): No centenário de Manuel Ferreira (1917-1992): sessão de evocação, Lisboa, CCB, sábado, 16, 15h00... Coordenação de João B. Serra, participação dos escritores Ana Paula Tavares (Angola) e Filinto Elísio (Cabo Verde)... Leitura de textos do histórico introdutor, na universidade, dos estudos sobre literatura africana de expressão portuguesa





Dia Literário Manuel Ferreira


CCB - Centro Cultural de Belém, Lisboa, sábado, dia 16, pelas 15h00, no Centro de Congressos e Reuniões, piso 1. Entrada livre, mediante a disponibilidade da sala:

(i) sessão coordenada por João B. Serra (historiador, docente do ensino superior, progamador cultural);

(ii) participação da escritora angolana Ana Paula Tavares e do escritor cabo-verdiano Filinto Elísio;

(iii)  testemunho e leitura de textos de Manuel Ferreira, por Deolinda Pereira de Barros.


Factos relevantes sobre Manuel Ferreira (1917-1992) (e alguns pouco onhecidos do grande público):

(iv) foi o introdutor dos estudos sobre literatura africana de expressão portuguesa em 1974, na universidade, tendo produzido uma extensa bibliografia sobre o tema e publicado diversas antologias de autores de Cabo Verde, São Tomé, Guiné, Angola e Moçambique;

(v) cultivou também a ficção, inscrevendo as suas obras principais, romance e conto, na paisagem social cabo-verdiana;

(vi) fez uma carreira militar, que o levaria a Cabo Verde (durante a II Guerra Mundial, entre 1941 e 1946), a Goa (1948-1954) e a Angola (1965-1967);

(vii) pertenceu à direção da Sociedade Portuguesa de Escritores, desde 1961 até à sua violenta extinção pelo governo de Salazar, em 1965;

(viii) foi o primeiro diretor de programas culturais da RTP, a seguir ao 25 de Abril.

Tem uma dezena de referências no nosso blogue.


Caldas da Rainha > Museu José Malhoa > 22 de julho de 2017 >  Inauguração da exposição temporária "Manuel Ferreira: capitão de longo curso" >  O curador João B. Serra, ao centro, tendo do seu lado direito o presidente da CM de Caldas da Rainha e à sua esquerda o diretor do museu....


Caldas da Rainha > Museu José Malhoa > 22 de julho de 2017 >  Exposição temporária "Manuel Ferreira: capitão de longo curso" >  Imagem do liceu do Mindelo, onde estudou o furriel miliciano Manuel Ferreira. Chegou a São Vicente em outubro de 1941, integrado num batalhão expecidionário do RI 7 (Leiria). No liceu conhecria, entre outros, além da sua futura esposa, Orlanda Amarílis, o jovem Amícal Cabral (1924-1973),  sete anos mais novo... O Amílcar era da turma da  da turma da Orlanda.  Manuel Ferreira concluiu aqui o antigo curso liceal (secção de letras).  Casou no Mindelo e teve aqui o seu primeiro filho.


Caldas da Rainha > Museu José Malhoa > 22 de julho de 2017 > Exposição temporária "Manuel Ferreira: capitão de longo curso" > Imagem do RI 5,  cuja secretaria Manuel Ferreira (1917-1992) chefiou, entre 1954 e 1958, e por onde muitos de nós passámos, antes de ir parar à Guiné, durante a guerra colonial (1961/74)...Escritor e investigador, e mais tarde capitão SGE Manuel Ferreira (Leiria, 1917 - Oeiras, 1983) passou por aqui, já depois de ter estado no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde (e 1941-1946), e na Índia Portuguesa (1948-1954).

Foi neste quartel, em 1957, quando chefiava a secretaria regimental, e nesta cidade onde viveu 4 anos, que ele escreveu o seu livro de contos, "Morabeza" (publicado no ano seguinte, em 1958).  Será depois  ser transferido para Lisboa. Em 1962, sai o seu primeiro romance de temática cabo-verdiana, o "Hora di Bai". E em 1965 é mobilizado para Angola. como tenente SGE, tendo feito parte até então da direção da extinta Sociedade Portuguesa de Escritores.




Caldas da Rainha > Museu José Malhoa > 22 de julho de 2017 >  Exposição temporária "Manuel Ferreira: capitão de longo curso" >  Imagem do então sargento Manuel Ferreira, colocado no RI 5, em 1954. Viveu nas Caldas da Rainha nesse período de 1954 a 1958. A sua presença é lembrada na exposição. A PIDE vigiava-o discretamemte... como se pode ver na informação que acima se reproduz.


Fotos (e legendas): Luís Graça  (2017).  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]. (Com a devida vénia ao curador da exposição, o nosso amigo João B. Serra.)

Guiné 61/74 - P18090: Notas de leitura (1023): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (13) (Mário Beja Santos)

Hotel do Turismo em Bolama, foi primitivamente a filial do BNU, que aqui se criou em 1903


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se registam os documentos que confirmam o afundamento de Bolama, a cidade revela-se, aos olhos de muitos, como sede de um funcionalismo excedentário, pouco motivado, muito entregue a intrigas, e fazendo negócios por conta própria.
Os relatórios de 1927 e 1928 são denunciadores de que o comércio está profundamente  anémico e sem soluções, perdeu-se o arrojo e a vontade de crescer ou irradiar negócios. É uma estagnação que relatórios subsequentes confirmarão, a agonia era irreparável, Bissau ganhara sua posição. No entanto, demorará cerca de uma década a impor-se a transferência.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (13)

Beja Santos

1928 é um ano de tremendas dificuldades para a Guiné, está em curso uma tentativa da reconstrução das finanças locais, houve redução de efetivos militares e cortes na administração, como já se referiu. No entanto, há elementos da agricultura e da exportação que devem ser examinados com prudência. Na sua História da Guiné, René Pélissier chama à atenção para a entrada em vigor, em Julho, do Regime do Indigenato e comenta o seguinte: “Nesta época, segunda parece, os régulos e os chefes desempenham um papel intermediário muito apreciado pela Direção dos Assuntos Indígenas, sobretudo em país muçulmano. Compensam, assim, a redução do quadro administrativo, mas é claro que não são mais que a sombra do seu poder de outrora. O poder militar e político dos chefes indígenas está morto com a prisão de Abdul Indai, em 1919”. Em nota de rodapé, Pélissier relata o drama do régulo Monjur, do Geba. Em 1908, é um aliado cortejado pelo Governador Muzanty. Mas, em 1917, a Administração confiou já uma parte do Gabu aos seus inimigos. É reinstalado na plenitude das suas prerrogativas em 1918-1919. Se bem que cobiçado por certos membros da sua prolífica família, o seu poder é ainda suficientemente sólido para que Monjur seja solicitado para combater em Canhabaque, em 1925. Mas em 1927 é demitido e expulso do Gabu, ao tempo de Velez Caroço.

No seu relatório de 1927, o gerente da filial em Bolama debruça-se expressamente sobre a produção. O governo pretendera com a criação da Granja Agrícola e a Estação Pecuária transformar a produção na Guiné. O relator manifesta-se cético: “A riqueza da colónia ainda e apenas consiste na produção indígena, não nos desparece que a granja possua facilidades especiais de vulgarizar novos métodos culturais ou novas culturas entre os indígenas da ilha em que se instalou, quanto mais entre os de toda a colónia; e fomentadora da cultura de fazendas de administração europeia, parece-me colidir a sua ação contra um facto irremediável: a pobreza do solo da Guiné, que dificulta, se não proíbe, a organização de tais empresas. A Estação Zootécnica enferma das mesmas dificuldades com o prejuízo de ser a cultura pecuária restrita às regiões da colónia habitadas pela população Fula, e constituir uma daquelas verbas de exportação que, sendo úteis não são fundamentais, pelo que a sua criação não conta, sequer, para prevenir uma futura crise económica. A distribuição de sementes, talvez o único processo de fomento intensivo da produção, limitou-se este ano à mancarra recebida pelo Estado, trata-se de um quantitativo demasiadamente pequeno para produzir bons resultados. Se o Estado não aumentou a importância das coberturas da colónia quanto ao desenvolvimento da produção, também não diminuiu a sua utilização no que toca às suas despesas em pessoal, há um funcionalismo superabundante. Pelo contrário, a despesa alguma coisa aumentou desde o termo do governo do senhor Capitão António Saldanha, não só com a criação de lugares, mas especialmente com a chamada à colónia de funcionários em missão sempre cara”.

O gerente chama à atenção as medidas tomadas para aumentar as receitas, com o agravamento das pautas aduaneiras e o aumento do preço dos serviços. Houvera aumento de vencimentos, o governo da colónia devia sete mil contos, criara-se a contribuição industrial, era previsível que não podia ser muito pesada, os agentes económicos já estavam sobrecarregados com outras tributações. E questionava-se se os funcionários não iriam pedir um novo aumento de vencimentos tendo em conta a previsão do agravamento do custo de vida com todas as medidas que estavam a ser postas para aumentar as receitas. E manda um recado para Lisboa: “Salvo melhor parecer, talvez se esteja a governar um pouco com o espírito que dominou durante a época da desvalorização, durante a qual o comércio pagava a diferença de tributos com a diferença do valor das notas. Na época da desvalorização, o comércio não sentia o peso dos progressivos encargos; e o Estado enganado com a riqueza aparente das colónias, agravava sem cessar os impostos. O resultado foi muito grave. É certo que a dificuldade na obtenção de dinheiro já se nota, embora levemente".



Muda de assunto para alertar Lisboa sobre uma questão muito premente, o da mudança da capital para Bissau e tece o seguinte comentário:
“Se com essa mudança se fizerem todas as economias em pessoal que a transferência torna possível, certamente que, apesar daqueles aumentos, apesar da paralisação do desenvolvimento agrícola, larga margem ficaria para o fomento indispensável da colónia.
Este projeto, posto em discussão pública por uma mensagem da Associação Comercial e Comissão Urbana de Bissau, já o conhecem V. Exas. nos seus fundamentos, nos seus processos e nos seus objetivos, pois em devido tempo vos enviámos a mensagem citada.
Não pode deixar de notar-se que, se a transferência da capital se tivesse feito, acompanhada das respetivas economias, se se tivessem distribuído 500 toneladas de mancarra e se se tivesse deixado o comércio livre de mais encargos no momento decisivo da solução da sua crise, a transição do estado económico e financeiro da colónia teria sido quase resolvida. Se a situação não é isenta de cuidados, também não é isenta de esperanças. Oxalá estas se confirmem”.

No relatório do ano seguinte, de novo se notifica que o comércio bolamense se mantém anémico e por isso o que nos diz sobre a situação da praça é pouco lisonjeiro:
“O meio comercial de Bolama não tem tido variantes e portanto continua sendo o que já era há mais de dez anos. Não se regista nenhum movimento progressivo, nem tão pouco sombra de atividade capaz de reagir contra a inação que carateriza esta praça.
Nos meses de Fevereiro a Abril há um esboço de animação, mas que logo se extingue para todo o resto do ano. Mesmo nesse período de maior movimento ao balcão, só têm saída os artigos gentílicos, tais como panos, tabaco, aguardente, vinhos e pouco mais.
A casa portuguesa de maior reputação é a firma António Silva Gouvêa, Lda, mas cujo movimento, ainda assim, é incomparavelmente inferior ao que já tivera outrora. As restantes casas comerciais, excetuando as estrangeiras, limitam-se a importar cerveja e artigos de mercearia, alguns dos quais são adquiridos em Bissau, para revenda em Bolama. Nenhum destes pequenos comerciantes tem iniciativa e espírito de concorrência, o que faz com que todos vendam os mesmos artigos e nas mesmas condições. São medrosos e excessivamente egoístas. Só transacionam em artigos cujos lucros lhes estejam de antemão assegurados. A insuficiência de cultura, entre eles, também é coisa notável.
A praça de Bolama podia exportar muito coconote e óleo de palma, que vem dos Bijagós em dongos e outras embarcações costeiras, realizando lucros apreciáveis. Mas tal não acontece, porque o comerciante em Bolama não se sujeita a qualquer risco e, assim, mas compra o produto, vai vendê-lo imediatamente a quem lhe pague qualquer coisa acima do seu custo, e que, no geral, é sempre uma casa estrangeira que, estando subordinada à sua casa principal, em Bissau, para ali o manda em lanchas. É por este motivo que Bolama não figura, por assim dizer, no quadro das exportações, quando é certo que muitos géneros poderiam exportar, dando assim provas de vitalidade e de progresso”.

Anunciava-se, pelo relato económico, a decadência de Bolama, as razões invocadas pelos comerciantes que se tinham dirigido ao ministro das Colónias não surtiram efeito, a realidade impunha-se às conveniências de alguns. O relatório de 1929 irá confirmar estas péssimas previsões.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 8 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18061: Notas de leitura (1021): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18075: Notas de leitura (1022): “A caminho de Viseu”, por Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2017 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18089: Parabéns a você (1355): Francisco Santos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 557 (Guiné, 1963/65) e Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494 (Guiné, 1971/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18085: Parabéns a você (1354): José Vargues, ex-1.º Cabo Escriturário do BART 733 (Guiné, 1964/66)

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18088: Agenda cultural (621): Joaquim Pais de Brito, na livraria Ferin, ao Chiado, amanhã, 6ª feira, dia 15, pelas 18h30, na apresentação do seu livro "Muitas coisas e um pássaro" (Lisboa, Sextante Editora, 2017, 256 pp.)



Capa  do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1230,  edição de 22 de novembro a 5 de ezembro de 2017.

Fonte: Sapo Visão > Jornal de Letras (com a devida vénia...)





1. Amanhã, 6ª feira, dia 15 de dezembro,  na Livraria Ferin, Rua Nova do Almada, 72, ao Chiado, Lisboa, pelas 18h30, realiza-se a sessão de lançamento do livro "Muitas Coisas e um Pássaro", de Joaquim Pais de Brito (Lisboa, Sextante Editora, 2017, 256 pp, preço de capa, c. 14 €). A apresentação do livro e do autor está a cargo de Rosa Maria Perez.


O autor é convidado, neste seu livro,  a abordar o seu percurso profissional, a partir de cinco motivos: um desenho, uma imagem, um texto, um objeto, um som.

Fala-se então apaixonadamente de teatro, de literatura, de etnografia, de museus, de exposições, de alunos, do Portugal rural e urbano, do cantar do carro de  bois, de fado... E de motivações, escolhas e, também, acasos que o conduzem a refletir, enquanto antropólogo, sobre questões de museologia, formação e conhecimento.

Apaixonadamente, como ele sempre o fez, e como eu o recordo, em tudo aquilo em que se meteu e em que tocou, da investigação ao ensino e depois à museologia. Mas falemos do presente, que ele continua vivo da costa, felizmente... Ainda há dias bebemos um café juntos.

No caminho desta revisitação surge-nos, entretanto um pequeno pássaro intrometido que o acompanha há muitos anos, e que gosta de participar nessa reflexão. 


2. Joaquim Pais de  Brito, nascido em Nelas, em 1945, é professor emérito de Antropologia do ISCTE-IUL e foi diretor do Museu Nacional de Etnologia entre 1993 e 2015.  É seguramente uma referência maior na área das ciências sociais e humanas em Portugal.

Recebeu, em 1996, o Prémio PEN de Ensaio pelo seu livro "Retrato de Aldeia com Espelho: Ensaio sobre Rio de Onor", que foi o tema do seu doutoramento (Lisboa, Dom Quixote, 1996, 396 pp.). Acompanhou, desde 1975,  e durante década e meia, as transformações que se operaram naquela aldeia comunitária de economia agropastoril de montanha, dividida ao meio por uma linha fronteiriça luso-espanhola. A aldeia é só uma, com dois povos, os de cima e os baixo, que têm um língua comum, o riodonorês), além de um território e uma organização social única.

Joaquim Pais de Brito foi distinguido pelo Presidente da República Jorge Sampaio com a Comenda da Ordem de Mérito Cultural, em 2002.

Foi também o fundador e o diretor da notável coleção "Portugal de Perto: Biblioteca de Etnografia e Antropologia", sob a chancela das Publicações Dom Quixote,  onde se publicaram dezenas de títulos de trabalhos, alguns clássicos, fundamentais para o conhecimento da cultura popular portuguesa e do nosso património cultural, material e imaterial, como o por exemplo o fado. É um coleção incontornável, de referência obrigatória para quem se interessa por este domínio do saber. 

Foi também ele quem terá o sido o primeiro a levar a academia a sair da sua "torre de marfim", despir-se de preconceitos e fazer do fado ("cultura popular urbana lisboeta") um objeto de estudo  multissectorial, na confluência de diversas disciplinas, da etnografia à antropologia, da sociologia à história, da museologia à  etnomusicologia...


3. Mandei-lhe há dias uma mensagem de resposta ao seu pedido de divulgação deste evento. Aqui vai:

Joaquim: antes de mais, parabéns!...Como eu costumo dizer, a gente, da nossa geração, que fez a guerra e a paz, tem de se recusar a ir para a "vala comum do esquecimento"... E tu fostes daqueles profes, no ISCTE, que a maioria de nós não vai esquecer... Acho que este é um dos elogios, dos muitos, a que tens direito... Se eu estiver inspirado ainda te faço uma quadra ou um soneto... onde meto o teu "pássaro"...

Para já prometo fazer-te um "poste", "à maneira", na nossa série "Agenda cultural"...

Bolas, não tens uma "chapa", uma foto do teu tempo de "menino e moço" ?... Vou procurar... E em princípio lá estarei, no dia 15, na Ferin, às 18h30... Vou divulgar pelos meus contactos, facebook, etc. (Infelizmente não fiquei com grandes contactos da malta do meu/nosso tempo do ISCTE...).


Um xicoração fraterno, Luís

Na realidade, quantos professores passaram pelas nossas vidas ? Dezenas e dezenas... E de quantos nos lembramos hoje ? Na melhor das hipótees, uma meia dúzia... O Joaquim Pais de Brito está nessa minha curta lista de "professores para a vida"... Daqueles que nos marcaram verdadeiramente, de cuja voz e brilhozinho  nos olhos nunca esqueceremos... Daqueles relativamente raros professores que sabem falar com paixão e rigor daquilo que sabem... As suas aulas eram uma festa!... Não fui antropólogo, fui para a sociologia do trabalho e, mais tarde, da saúde... Mas sempre dei importância ao lado "socioantropológico" das coisas.... Essa minha sensibilidade cultural deve muito ao Pais de Brito e ao entusiasmo com que ele nos levou a redescobrir e a repensar muitas das nossas formas, humanas e portuguesas, de ser e estar na vida, no território, na comunidade, no mundo...

Foi meu professor de antropologia, no ISCTE, durante a minha licenciatura em sociologia (que terminei no ano letivo de 1979/80). Foi com ele que ganhei o gosto não só por esta área científica como  pelo trabalho da investigação empírica, feita no terreno. 

Durante meses, eu e a minha equipa (que fazia parte de uma equipa mais vasta, um turma inteira que estudou o fado na suas múltiplas dimensões, sob a sua "batuta")...  fizemos durante meses "observação participante" numa taberna do Bairro Alto, a Princesa da Atalaia, na rua da Atalaia, onde em finais da década de 1970 ainda se cantava e tocava o chamado "fado vadio"...A expressão hoje não é consensual, "fado vadio", mas na altura queria significar algo que se opunha à  (ou pelo menos, não encaixava na) "cultura oficial" do fado, a do profissionalismo e da indústria do espectáculo... 

De qualquer modo a "Princesa da Atalaia" não existe mais, que eu saiba, engolida na voragem do tempo e no processo de "gentrificação" e "turistificação" dos bairros populares de Lisboa....Passei, por lá há uns anos, a loja era então de moda ou  de pronto a vestir... Há dias,  ao ir à "Tasca do Chico" (que estava cheia, que nem ovo, de turistame...), voltei a tentar reconhecer a fachada do prédio da antiga tasca da rua da Atalaia... Para surpresa minha, era agora um "kebab"...

Com muita pena minha, não vou poder estar amanhã com o Joaquim, na centenária Livraria Ferin (que mudou recentemente de dono, ao fim de 177 anos de existência...). Amanhã estarei fora de Lisboa, mas prometo ler  (e fazer a recensão de) o  livro...  De qualquer modo, aqui fica o poste prometido e o desejo de continuação de bons voos para o pássaro que o tem acompanhado ao longo da vida e que o inspira, motiva, protege e o mantem vivo, saudável, inquieto, irrequieto, ativo e produtivo... Apaixonado, em suma, pela vida, a cultura e a ciência... (LG)
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Nota do editor:

Último poste da série >  14 de dezembro de  2017 > Guiné 61/74 - P18087: Agenda cultural (620): No passado dia 9 de Dezembro foi inaugurado o Museu do Combatente de Gondomar que fica situado na Quinta dos Choupos - Fânzeres, sede da Tabanca dos Melros

Guiné 61/74 - P18087: Agenda cultural (620): No passado dia 9 de Dezembro foi inaugurado o Museu do Combatente de Gondomar que fica situado na Quinta dos Choupos - Fânzeres, sede da Tabanca dos Melros

Museu do Combatente de Gondomar
Foto © Jorge Teixeira


Antes do almoço/convívio de Natal, da Tabanca dos Melros, realizado no passado dia 9 de Dezembro, foi inaugurado o Museu do Combatente de Gondomar, há muito planeado, que ficou instalado num belíssimo espaço resultante da reforma de uma antiga cozinha da Quinta dos Choupos. Tarefa que o amigo Gil Moutinho levou a bom porto, com a colaboração do Carlos Silva, este Museu tem já um razoável espólio, fruto da dádiva dos habituais frequentadores da Tabanca dos Melros.

O anfitrião Gil Moutinho
Foto: © Luís Bateira - Editada por CV

Este, um filme que o Carlos Silva produziu e realizou para dar a conhecer o Museu do Combatente de Gondomar, acabado de inaugurar, e para sensibilizar os combatentes que tenham recordações da sua passagem por terras de Angola, Guiné ou Moçambique, as doam a este museu porque as ofertas serão catalogadas e preservadas.



Mais algumas fotos, com a devida vénia aos seus autores:





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Nota do editor

Último poste da série de 13 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18084: Agenda cultural (619): "Melech Mechaya", um "case study" para a história da música portuguesa: 10 anos de carreira, 4 álbuns, diversos telediscos, 150 concertos, 10 países, 3 continentes... Programação do fim do ano: dois grandes espectáculos, 27, 4ª feira, em Lisboa, Tivoli BBVA; e 29, 6ª feira, no Porto, Casa da Música... E eu vou lá estar em ambos, na assistência (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P18086: (D)o outro lado do combate (16): razões e circunstâncias da prisão e condenação do arcebispo católico de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), na sequência da Op Mar Verde: de "santo" a "diabo", aos olhos do "guia iluminado", Sékou Touré: o testemunho do mais célebre prisioneiro político do sinistro campo de Boiro (excerto com tradução de Jorge Araújo)


Fotografia prisional: Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), antigo arcebispo de Conacri (ao tempo da Op Mar Verde, 22/11/1970): o mais célebre prisioneiro do campo de Boiro onde passou 8 anos e meio ... Autor de "Noviciat d'un évêque : huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré". Paris: Fayard, 1987. 332 p. + ill.



Guiné-Conacri > Conacri > A antiga catedral do arcebispo católico Raymond-Marie Tchidimbo: a pedido do Vaticano, este homem, que simpatizava com a "causa nacionalista" do PAIGC, intercedeu, junto de Amílcar Cabral, em 16/9/1970, com vista a obter notícias do nosso camarada Geraldino Marques Contino, aprisionado pelo PAIGC em 3/2/1968.  (*).


O presidente Sékou Touré assiste à consagração de Raymond-Marie Tchidimbo como arcebispo de Conacri, em 31 de março de 1962.

Preso em 24 de dezembro de 1970, torturado, julgado à revelia, condenado a prisão perpétua um mês depois, em 23 de janeiro de 1971, foi libertado do sinistro campo de Boiro em 7 de agosto de 1970, e  expulso do seu país.  Vai para Roma,  em 13 de agosto de 1979 resigna como arcebispo de Conacri. É feito cardeal em 1992, pelo Papa João Paulo II. Quando jovem padre missionário (, ordenado em 1951), chegou a ser  amigo (e até admirador) de Sekou Touré (1920-1984). Nascido em Conacri, morre em França, em 2011.

Fonte: página Campo Boiro > Memorial > Bibliothèque  (com a devida vénia)




1. Comentário do nosso colaborador permanente, Jorge Araújo, ao poste P10076 (*);
Camaradas,

Na sequência dos comentários produzidos no final da Parte I [P18027] (**)  prometi dar-vos conta, após a publicação desta segunda parte, sobre o porquê da prisão do Arcebispo de Conacri, verificada um mês depois da «Operação Mar Verde», facto que consideramos de relevante valor historiográfico no contexto da guerra, pois essa operação  acabou por influenciar as novas formas de acção e o sentido de cada uma delas ao longo dos tempos que se seguiram, traduzido no reforço da aliança entre Sékou Touré e Amílcar Cabral.

Com efeito, a justificação para o seu cativeiro foi retirada [e traduzida] do livro «Noviciat d’un évêque: huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré» [«Noviciado de um bispo: oito anos e oito meses de cativeiro sob o regime de Sékou Touré»], Paris: Fayard, 1987. 332 p., obra escrita em francês da autoria de Raymond-Marie Tchidimbo [1920-08-15/2011-03-26] – o prisioneiro.

O texto que seguidamente se apresenta, com tradução da nossa responsabilidade, serve apenas para enquadrar a problemática acima.

TRADUÇÃO

Porque fui preso?

Após a minha libertação em [7 de Agosto de] 1979 [uma semana antes de completar cinquenta e nove anos], deram-me a oportunidade de realizar diversas conferências sobre a experiência de cativeiro na presença de audiências interessadas. Em cada uma delas, punham-me a mesma questão: «porque foi preso?».

Mas em cada uma também, perante esses públicos atónitos, eu respondia, em primeiro lugar, que era uma pergunta que nunca formulei em cativeiro. Porquê? Porque, simplesmente, uma resposta – e a única verdadeira – já havia sido dada nos anos 30, por aquele que me escolheu dois mil anos depois para servir na sua presença. […]

O que nos diferenciou então, entre os meus companheiros prisioneiros e eu, era que eu sabia porque me encontrei com eles nas prisões. Eu sabia-o, inicialmente, no dia da minha ordenação sacerdotal. Eu sabia disso mais precisamente após a expulsão de todos os missionários em 1967; um acto injusto que eu não tinha entendido/ligado e que valeu a irritação do «guia iluminado» da Guiné; como os seus “griots” [indivíduos com a responsabilidade de preservar as tradições, transmitindo histórias, factos históricos e conhecimentos do seu povo] e cortesãos gostavam de chamá-lo.

Eu sabia exactamente, desde 2 de Dezembro de 1970, que seria preso no fim do mês, se não deixasse o território da Guiné antes dessa data fixada por Sékou Touré [1922-1984], ele mesmo.

Dois médicos – um amigo, antigo ministro, e um primo – foram informados da minha prisão por pessoas muito próximas de Sékou Touré. Imediatamente, eles fizeram questão de me informar por prevenção, para evitar qualquer risco. Porque todos sabiam em Conacri que, durante vários meses, os arredores da chancelaria e a residência do arcebispo de Conacri estavam sob vigilância monitorada, e ainda mais, depois de 22 de Novembro de 1970, data do desembarque de opositores guineenses residentes no exterior.

Fui informado por um dos meus primos, ao qual, para além disso, lhe digo que informaria imediatamente o Papa Paulo VI; mas que deixaria a Guiné apenas por ordem expressa deste último. Agir de outra forma seria da maior traição: todo o bispo teve que jurar na véspera da sua ordenação episcopal permanecer fiel à sua posição, seja o que for que aconteça. O Papa Paulo VI foi informado por mim em 2 de Dezembro de 1970. E é a alma em paz que aguardava a visita do Senhor.


Em 23 de Dezembro de 1970, ao meio-dia, fui preso em casa, com a dupla acusação de colaboração com a oposição externa e delito de opinião. Fui levado para o campo militar de Alpha Yaya [Diallo], situado [nos arredores do aeroporto internacional] a dez quilómetros de Conacri. E aí, depois de confirmar a minha identidade, fui algemado, e fico trancado num quarto semi-escuro. As «férias grandes» começaram finalmente para mim.

O belo pretexto da minha prisão foi atribuído a Sékou Touré pelo desembarque em Conacri, durante a noite de 21 para 22 de Novembro de 1970 [«Operação Mar Verde»], de militares portugueses que vierem resgatar os seus nacionais detidos numa prisão em Conacri, e que haviam sido presos pelas tropas nacionalistas da Guiné-Bissau. A estes militares portugueses juntaram-se alguns elementos armados da oposição guineense que viviam no exterior.

Este desembarque – bem-sucedido no que diz respeito ao plano dos portugueses, e abortado quanto à acção dos opositores – permitiu que Sékou Touré se livrasse de todas as pessoas que o incomodavam e estabelecer um regime totalitário. […]

Mas, na realidade, Sékou Touré teve razões secretas para me prender: eu o desapontei sobre mais um plano e este «ressentimento» por vocação esperava o momento propício para se vingar.

Desculpo profundamente Sékou Touré! Jovem missionário de regresso à Guiné [-Conacri] em 1952, eu o apoiei e o encorajei na sua acção sindical, para a criação de uma sociedade mais justa e humana, no contexto colonial francês. E, devido a esse apoio de 1952 a 1956, Sékou Touré pensou ter encontrado em mim um aliado incondicional que abraçaria todas as suas ideias, e executaria todos os seus planos e instruções.


Mas eis que: em 1956, as eleições municipais permitiram que o partido de Sékou Touré [RDA - Reunião Democrática Africana] ocupasse todos os lugares dos municípios do território da Guiné Francesa. E esse foi o início da guerra surda contra a Igreja da Guiné. Este deveu-se, neste contexto viciado, para afirmar a sua identidade e a sua autonomia, respeitando as leis mas sem receio, na dignidade superior da sua vocação. Então, Sékou Touré começou a descobrir-me. E aquele que ele pensou ver como um puro revolucionário socialista tornou-se gradualmente aos seus olhos um assustador reaccionário burguês.


Fim.

Para consulta na íntegra ver:

http://www.campboiro.org/bibliotheque/tchidimbo/huit_ans_captivite/tdm.html

Boa semana.

Com um forte abraço,

Jorge Araújo.

[Tradução de JA / Seleção de fotos, legendagem e título do poste: LG]
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18027: (D)o outro lado do combate (14): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - Parte I (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18085: Parabéns a você (1354): José Vargues, ex-1.º Cabo Escriturário do BART 733 (Guiné, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18077: Parabéns a você (1353): Francisco Palma, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2748 (Guiné, 1970/72) e Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491 (Guiné, 1971/74)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18084: Agenda cultural (619): "Melech Mechaya", um "case study" para a história da música portuguesa: 10 anos de carreira, 4 álbuns, diversos telediscos, 150 concertos, 10 países, 3 continentes... Programação do fim do ano: dois grandes espectáculos, 27, 4ª feira, em Lisboa, Tivoli BBVA; e 29, 6ª feira, no Porto, Casa da Música... E eu vou lá estar em ambos, na assistência (Luís Graça)


Cartaz dos Melech Mechaya, que lançaram, recentemente, o seu último álbum, "Aurora" (cinco estrelas, "o melhor disco [da banda] até à data", segundo a conceituada revista Blitz).

A Banda, de que o nosso grã-tabanqueiro João Graça faz parte, tem 3 espectáculos agendados até ao fim do ano:

- 17 de dezembro de 2017, sábado, Belmonte, "Festa das Luzes", auditório da Santa Casa, 21h00-22h30;

- 27 de dezembro de 2017, 4ª feira, 21h30-23h00, Lisboa, Teatro BBVA;

- 29 de dezembro de 2017, 6ª feira, das Porto, Casa da Música, 21h00-22h30




Sinopse:

A comemorar 10 anos de carreira, os Melech Mechaya estão de regresso aos discos com o surpreendente “Aurora”, o quarto longa-duração do grupo. O disco foi misturado por Tony Harris (que trabalhou com nomes como R.E.M., Sinead O’Conner e Verve), e inclui as participações especiais dos portugueses Filipe Melo (piano) e Noiserv (voz), e da cantora espanhola Lamari de Chambao.

Depois dos bem-sucedidos “Aqui Em Baixo Tudo É Simples” e “Gente Estranha”, discos que foram apresentados em mais de 150 concertos em 10 países de 3 continentes, “Aurora” representa o trabalho mais inovador e original do quinteto, alargando os horizontes da música klezmer para uma sonoridade única que é só deles.

Guiné 61/74 - P18083: Em busca de... (285): Camaradas dos Pel Mort 4579; 4580 e 4581/BCAÇ 3884 (Bafatá, 1973/74) (Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580)

 

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580 (Bafatá, 1973/74), enviada ao Blogue em 25 de Novembro de 2017:

Onde param os camaradas dos pelotões de morteiros 4579, 4580 e 4581, que no dia 31 de Agosto de 1974 viajamos todos no Boeing 707 da TAP, Vasco da Gama, de regresso a Lisboa e passagem à peluda na quartel do Campo Grande, hoje Universidade Lusófona?

 
Saudações do tabanqueiro periquito 761 
Carlos Vieira[1]
Pel. Mort. 4580 



Bafatá - Comando do BCAÇ 3884 - Pausa merecida. À esquerda furriel Vieira e à direita furriel Teixeira, ambos do Pel Mort 4580; à retaguarda, à esquerda, furriel Martins, à direita furriel Boga, ambos de transmissões; ao centro o furriel Barcelos do parque auto. Todos da CCS da BCAÇ 3884. 
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17993: Tabanca Grande (452): Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580 (Bafatá, 1973/74), 761.º Tabanqueiro

Último poste da série de 13 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18080: Em busca de... (284): Veteranos da CCAÇ 797, "Os Camelos" (Tite e Nhacra, 1965/67), comandada pelo cap inf Carlos Fabião, e em especial os 8 elementos da secção do fur mil Júlio Lemos Pereira Martins, do 1º Gr Comb, comandado pelo alf mil inf Américo de Melo Pinto Lopes (Mário Leitão, autor do livro em elaboração "Heróis limianos da guerra do ultramar")

Guiné 61/74 - P18082: Consultório militar do José Martins (34): Memórias de Guerra (8): Memórias de Guerra - Adenda: Coimbra, Leiria, Lisboa, Porto e Estrangeiro


1. Adenda ao trabalho de pesquisa de autoria do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), sobre as Memórias de Guerra (Grande Guerra e Guerra do Ultramar), que podem ser vistas pelo país e estrangeiro. Aceitam-se, e agradecem-se, correcções e actualizações por parte dos nossos leitores.




ADENDA

Depois de concluído o trabalho acerca das «Memórias» da Grande Guerra e/ou da Guerra do Ultramar, continuei a pesquisar sobre as mesmas.

Solicitei a colaboração dos leitores, não só do Blogue «Luís Graça e Camaradas da Guiné», além de outras páginas das redes sociais, vou concluir este mesmo trabalho, acrescentando, ao mesmo, a presente Adenda.

Aqui usarei uma exceção. Colocarei fotos das mesmas memórias, usando a ordem alfabética do Distrito e do Concelho, dentro do País e por País no caso do estrangeiro.

Os créditos fotográficos ficam a dever-se a páginas do Facebook.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18073: Consultório militar do José Martins (33): Memórias de Guerra (7): Europa, África, América, Ásia e Oceania

Guiné 61/74 - P18081: Os nossos seres, saberes e lazeres (244): São Torpes, entre Sines e Porto Covo (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Há muito que se falava numas férias neste ponto do litoral alentejano, havia saudades do casco histórico de Sines, da sua preciosa comida, do infindável dos areais, daqueles rochedos curvados e recurvados. E há sempre o fascínio pela regeneração urbana de Sines, a multiplicidade portuária, tanto o porto de pesca como aquela linha contínua o porta-contentores que correspondem ao cartaz de que ali se abre uma porta para a Europa. E mais, havia saudades do centro de artes de Sines, um projeto dos arquitetos Aires Mateus, que foi finalista do Prémio de Arquitetura Europeu Mies van der Rohe, um dos mais consagrados.
Foi uma visita inesquecível, a neta rejubilava com as ondas, foi o eflúvio de alegria deste velho viandante.

Um abraço do
Mário


São Torpes, entre Sines e Porto Covo (1)

Beja Santos

Sines: praias, pescadores, terminal de carga, porta-contentores, património histórico, Vasco da Gama, centro de artes, festivais de música, comida. O viandante vinha com um firme propósito: alegrar a neta, doida por água, por saltar nas ondas, por resmungar na hora da retirada, a Benedita parece incansável, depois come uma pratada e faz a sesta. A casa que nos serve de refúgio é no Paiol, longe das centrais e perto da aprazível tasquinha de dona Anabela, que tem pão da Sonega e azeitonas gostosas, comida caseira primorosa. O que se vê nestas duas primeiras imagens é uma dádiva de Deus: muito provavelmente aquela flor é mais do que anual, dura um dia, aconteceu a companha aqui ter chegado e recebido tão maravilhosas boas vindas. Quanto ao nenúfar, é outra história, quando o viandante andou pela Guiné, em 2010, contemplou vezes sem conta, à volta dos arrozais aqueles tanques de água pejados de nenúfares. Aqui, dentro do tanque há uns peixinhos que quando veem um ser humano aproximar-se vêm à tona da água, querem amesendar-se, devem viver uma fome eterna. Isto para dizer que o meio circundante da casa do Paiol é magnífico, até grasna um ganso alimentado a alface e outras verduras.




É a neta quem decide o local do banho, está agradada com a bela temperatura, consta que devido à central elétrica, ali bem pertinho. O areal perde-se na lonjura, pergunta-se ao nadador o que é que se está a ver lá ao fundo, na ponta de tanta sinuosidade entre falésias e rochas espetadas no mar, e ele diz que é o Pessegueiro, depois de Porto Covo. O viandante confia, dentro de dias vai a Porto Covo conversar com Inácio Maria Góis, autor de uma das obras-primas da literatura guineense, um fabuloso diário, conversa proveitosa, o autor aceita que o seu livro seja revisto e inclusivamente Cherno Baldé, que veio de Fajonquito, fará as devidas emendas quanto à toponímia.


É necessário encarar a fortaleza para dar apreço ao que o velho casco histórico oferece. Não é um castelo esmagador, mas aquelas muralhas devem ter intimidado quem aqui se aproximava com más intenções. Hoje, é um castelo bonacheirão, já não há piratas nem corsários há o festival Músicas do Mundo, por ali andou Vasco da Gama, ali perto há uma praia com o seu nome. Andava o viandante numa sessão de cumprimentos na Pensão Carvalho, e apanhou este topo de casario à apontar para um tramo da muralha, gostou e disparou a imagem.


Esta adega é mais do que um edifício Arte Deco em formato modesto, o seu interior é uma preciosidade de tasca de outros tempos, enquanto a neta se atirava, lambona, a bifinho com ovo a cavalo, o avô enfrentava uma esplêndida meia-desfeita, foi almoço histórico, havia quem comesse javali, preciosidade da terra, o viandante nem oferecido comeria tal iguaria, lembra-se até à eternidade daqueles bifes duríssimos comidos em Missirá, há falta de melhor, aquilo nem com pimenta era tragável. Gostos não se discutem, até porque em breve aqui vem à procura do prato-ícone da adega, a feijoada de búzios.



Por aqui se entra para o tocante museu de Sines, vale a pena visitá-lo às frações, exibe vestígios de idades vetustas e chega à atualidade, pelo meio mostra relíquias como uma mercearia, como era na minha juventude. Logo à entrada temos estas colunas que vieram de um convento e que impressionam pela sua beleza, como seria o portal desta igreja, teria adro, como seria o seu interior? Questões para as quais não encontra resposta; por aqui o viandante passará várias vezes e sairá com as mesas incógnitas.



Faz-se uma pausa na visita ao museu, há por aqui imenso calor e a neta quer um sumo e um bolo de arroz. É nisto que se depara esta janela de outras eras, uma perfeição Arte Deco, o viandante já vira coisas parecidas, nada como esta. Irrecusável o seu registo, não vale a pena acrescentar mais o viandante tem obsessão por janelas, portas e portais, batentes e afins. Cada um é como é.


Não é uma obra qualquer de Graça Morais, ela por aqui andou e deve ter-se afeiçoado às fainas dos marinheiros, impossível ficar indiferente às formas, aos volumes, à expressão do olhar deste homem que ela imortalizou. Só por este quadro vale a pena regressar.



É o fim do dia, o céu cobre-se de umas nuvens escuras, é sinal que devemos abandonar a praia, vir para casa preparar a janta. Qualquer coisa chocalha na cabeça do viandante, não são nuvens como as pintou Turner, já as viu num livro qualquer, imprevistamente acende-se luz e lembra-se do pintor russo Isaac Levitan, desculpem a associação, mas aquele céu de Sines tinha algo de romântico. E assim nos despedimos nos primeiros dias, entre Sines e Porto Covo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18052: Os nossos seres, saberes e lazeres (243): Em Vila de Rei, um passeio em relance (2) (Mário Beja Santos)