terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17029: Estórias do Juvenal Amado (55): O Dia da Defesa Nacional



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 2 de Fevereiro de 2017:

Meus caros,
Vamos misturando o passado com presente, salvo as devidas diferenças e vamos mesmo assim saboreando a vida.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

55 - O DIA DA DEFESA NACIONAL

A minha neta telefonou-me a pedir se ia levá-la a Queluz, pois tinha que ir ao R.A. Antiaérea para estar presente no Dia de Defesa Nacional, que era obrigatório. Que chatice, pensaram os garotos e garotas por terem que ir gramar esta pastilha, ainda por cima num dia com aviso meteorológico amarelo a poder passar a laranja. Mas de que raio se haviam de lembrar eles?

Bem, quando lá chegámos vimos vários grupos dispersos, que com ar pouco animado esperavam pelas 9 horas da manhã, para assim ficarem a saber o que se ia passar.

A minha Luana ficou dentro do carro até ao último momento. Estava visivelmente enervada e dizia-me que não conhecia ali ninguém. Eu tentei sossegá-la dizendo-lhe que logo se ia sentir integrada entre aqueles rapazes e raparigas com ar de estudantes, roupas à moda, etc. Lembrei-lhe que quando foi para universidade também se tinha sentido assim, pois tinha ido para uma terra estranha, com colegas de casa que não conhecia e agora, dois anos depois, encara a aventura do Erasmo em terra de costumes e língua estranha .


Era impossível não me vir à memória e também acabei por lembrar o dia da minha inspecção.

Nasci na localidade de Fervença, porque a minha mãe tinha ido visitar a irmã e por isso fiquei para sempre ligado a uma terra e uma freguesia onde nunca vivi.
No dia da inspecção lá estava eu. Também não conhecia ninguém pois não tinha frequentado escola e embora alguns trabalhassem na mesma empresa que eu, não os conhecia, nem eles a mim.
Mas que diferença. Em 1969 os jovens na província eram duros, curtidos pelo o trabalho nos campos e nas fábricas, ou dos dois. Falavam com uma irreverência, ao verem-se nus, gozavam uns com os outros mau grado e mau olhado dos militares recrutadores, que faziam a parte que inspeccionavam alguém. Só cegos, ou sem uma perna, ou sem um braço eram rejeitados. Se tivessem outro problema escondido, a seu tempo ele viria a lume e se veria o que fazer.

Ainda tenho na memória a cena na Junta de Freguesia. Despíamos-nos numa sala e lá íamos em fila, todos como viemos ao mundo, uns mais tímidos, outros mais descarados, as bocas, os dichotes e as risadas sucediam-se.

Três militares já com alguma idade, tentavam impor a ordem ameaçando já com porradas, etc. Mas aquilo ainda eram frangos do campo e ia ser difícil metê-los na capoeira. Não perdíamos pela demora, pensavam os examinadores e com razão.

Na verdade, pese o problema da guerra, ninguém queria ficar livre, pela carga negativa que isso acarretava, pois ficar livre era ficar à parte, era ter qualquer coisa grave, enfim era uma grande porra.

O dia da inspecção era pois transformada numa grande festa, era chegar à idade adulta, éramos uns homens a partir dali. A farra durava até às tantas, com copos e uma visita à Espinheira, onde éramos acolhidos por umas senhoras “benfeitoras”, que aviavam a malta à vez, com a certeza que a GNR não aparecia nesses dias para estragar um “convívio” tão salutar.

Era de praxe e foi ali na fresquidão dos pinheiros e eucaliptos, em locais criteriosamente “seleccionados”, que muitos de nós tiramos as dúvidas que nos assaltavam noite e dia. Se era a direito ou atravessado!

Às 17 horas lá estava eu no largo fronteiro ao quartel, quando vi os nossos jovens participantes neste dia, a saírem ordeiramente em duas filas perfilando-se com a Bandeira Nacional à sua direita, para assistir ao arrear da dita, com toda a cerimónia, pompa e circunstância, que o momento impõe. Com grande pena minha, do facto não tenho fotos, pois esqueci-me do telemóvel. Seguidamente destroçaram até porque começava a chover muito.

Hoje levantei-me bem cedo pois andar na IC19 não fácil. Olhei pela janela e vi gaivotas a sobrevoarem os prédios construídos pelo J. Pimenta nesta enorme urbe que é a Reboleira há quase cinquenta anos. Tão longe do mar denota o mau tempo que se lá faz sentir. Também me fizeram vir à memória de quando elas poisaram nos mastros do Niassa, dois dias antes de chegar a Lisboa, mas nessa altura não era o mar revolto que elas anunciavam, eram notícias de boas-novas.

Quanto ao Dia da Defesa Nacional já no carro, disse-me ela que tinha sido uma seca e eu acredito.

Um abraço
JA
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16711: Estórias do Juvenal Amado (54): Aida, lembras-te de quando eu quis ir a Huelva?

4 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Juvenal,
Gostei imenso deste teu artigo. A diferença de sentimentos entre duas gerações com cinquenta anos aparte é fascinante.
Era eu um garoto quando me apercebi do desgosto de um tio meu que fora cortado na inspeção militar. Sentia-se menos homem e dizia que não valia nada, ele que era um jovem bom, alto, forte, excelente trabalhador.
Um corte que também o condenava a ficar na ilha que o vira nascer e a gorar-lhe a oportunidade de conhecer outra (s) terra (s).
Ele emigrou para a Califórnia nas vésperas de eu ir cumprir o meu serviço milita. A dor de não ter sido apurado pra o serviço militar nunca o abandonou.
O Dia da Defesa Nacional não é necessariamente um evento fútil. No caso vertente em um objectivo muito simples, expor a juventude portuguesa ao serviço militar. É compreensível que os jovens de hoje, sobretudo aqueles que ainda não tenham interiorizado o verdadeiro sentido da Nação e a Pátria, sintam que aquele dia seja uma seca.
Um abraço.
José Câmara

antonio graça de abreu disse...

Faço minhas as últimas palavras do José Câmara.O meu filho João, agora com 29 anos foi há uns dez anos a esse Dia da Defesa Nacional, e adorou.Ele gosta de Portugal e dos portugueses.

Abraço,

António Graça de Abreu

Juvenal Amado disse...

Meus caros

Como sabem os jovens de hoje não sentem o apelo da Pátria porque para eles ela é paradoxal. Quanto muito preocupam-se em acabar os cursos e terem trabalho porque na verdade estamos a falar em "gerações casinha do pais" como também cantam os Deolinda.
O país tem ser grande para que os jovens desenvolvam orgulho nele. Quando digo grande não falo em tamanho mas em dimensão moral.
Eles não sabem a sorte que têm de ter paz e democracia e que essas merecem que sejam defendidas a todo o custo.
Talvez os culpados sejamos nós que não soubemos transmitir-lhes, vê-se mais sentimento nacional em quem emigrou e que acaba por viver com mais intensidade o que se passa cá dentro dos que cá ficaram e se foram desgastando em oportunidades falhadas.


Hélder Valério disse...

Pois é Juvenal

Se há uma moeda, ele tem, necessariamente, duas faces.
E podem ser iguais? Poder, podem, mas não tenho conhecimento que assim seja.

Isto vem a propósito de quê?
Do teu texto/relato duma ida ao "Dia da Defesa Nacional".
De facto, os tempos são outros.
As motivações, as identificações, são diferentes das do nosso tempo.
A exaltação dos valores esbarra imensas vezes com a dura realidade em que os 'valores' são espezinhados, aviltados. Quem se pode rever nessas situações?

Por mim, acho bem que se procure mostrar que há uma identidade territorial onde nascemos e/ou vivemos. Que essa identidade tem um percurso. Tem uma História. E que compete às novas gerações assimilar os seus valores e transporá-los para o futuro.
Não sei se um "Dia da Defesa" chega.
Não sei se o 'modelo' praticado será o mais adequado.
Mas alguma coisa deverá ser feita.
Porque não o 'serviço militar obrigatório', com recruta geral e uma formação específica, aí coisa para 6 a 9 meses?
Desvantagens: o custo disso para o Orçamento.
Vantagens: a criação de laços de amizade, a troca de experiências, o 'desmamar' e saída da asa (e casa) dos pais, tudo isso contribuirá, positivamente, para o crescimento da juventude (que, francamente, me parece bastante infantilizada) e também se ganhará em temos da Instituição Militar com a prática que esses jovens não deixariam de adquirir e ainda do ponto de vista do colectivo uma maior noção, isso sim, da Pátria, da integridade territorial.

Completando a imagem de que uma moeda tem sempre duas faces, aí temos também um exemplo de que, se alguns acharam 'uma seca' o tal "Dia", outros houve que 'adoraram', não sabemos se pelo conteúdo do mesmo ou se porque "gostam de Portugal e dos portugueses", levando-nos assim a pensar que os outros, apesar de terem dito que não gostaram do que se passou (e não sabemos exactamente o quê), podem ter tido essa observação por "não gostarem de Portugal nem dos portugueses". Francamente!

Quanto ao paralelismo que foste fazendo com a tua experiência da 'da às sortes' foi de facto bastante refrescante.
Seria certamente uma muito melhor base para se escrever, para se fazerem considerações.
Realmente, como o José Câmara relata, não ser "apurado" era como que passar um atestado de menoridade, de fraqueza, de incapacidade e isso, para a época era como que colocar uma 'marca' numa pessoa.
Eu também fui presente a uma Junta em Santarém, com os 'mancebos' da minha Freguesia com os quais apenas tinha contactos esporádicos, já que não vivia lá, nessa freguesia do Cartaxo.
Já fizeram alguns encontros comemorativos mas não tenho participado.

Hélder Sousa