sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17019: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (40): 4 - O amigo Mohammed de Santa Maria da Feira

Vista aérea de Santa Maria da Feira
Com a devida vénia a Cultura Norte


1. Em mensagem do dia 29 de Janeiro de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", dá por fim à sua mini-série "O meu amigo Mohammed", com o envio da quarta história: o seu amigo Mohammede de Santa Maria da Feira.

Caro amigo
Aí vai a história do 4.º Mohammed, o de Sta Maria da Feira.
Grato pela colaboração e apoio.
Abraço
JFSilva


Memórias boas da minha guerra

40 - O amigo Mohammed

4 - De Santa Maria da Feira

O Neca do Souto era mais um dos jovens do meu tempo, oriundos de família humilde, condenados ao trabalho precoce. Ainda experimentou o trabalho de moço no fabrico de calçado junto do pai, mas logo optou pelo sector corticeiro. Lembro-me dele jovem, com fama de “trabalhador desenvolvido”, o que lhe dava oportunidade de ganhar “mais que a tabela”. Conversámos em Bissau (1968), quando ele já estava de regresso (eu chegava das férias). Contou-me que tinha juntado umas “coroas” antes de ir para a tropa, pois não contava com o apoio familiar, para aquele período. Todavia, não queria continuar no mesmo trabalho, pelo que pensava emigrar, logo que chegasse à terra.

Pilha de cortiça no campo

Quando regressei ao sector da cortiça (1987), já o Neca se tinha estabelecido no negócio da venda de cortiça em prancha. Com o dinheiro amealhado como emigrante na Alemanha, e, ainda, conhecedor do ramo corticeiro, havia aproveitado o bom momento que esse sector atravessava e lançou-se. Desta forma, veio a ocupar uma certa importância social que antes nunca obtivera. Além disso, pusera cá o filho Américo, a estudar no Colégio dos Carvalhos, a quem esperava dar outro nível de formação escolar.
Porém, o Américo não aproveitou bem o tempo de estudo. Contrariamente, era bem conhecido pelo seu corpanzil dolente, pela sua sornice e pelas faltas às aulas. Quando o pai se apercebeu de que ele já não ia longe nos estudos, chamou-o para o integrar na empresa ainda antes de ele ter ido fazer 4 meses de serviço militar.

Regressado da tropa, o Américo passou a sócio do pai e encheu-se de voluntarismo no negócio. Remodelou a empresa que, agora, além da venda da cortiça, passara à produção de rolhas. Ora, esta evolução, coincidindo com a entrada do jovem naquele meio empresarial, deu-lhe um estatuto de admiração e respeito. Por sua vez, o Américo aproveitava o momento e retribuía com simpatia, aprumo, bons carros e melhor vida. Tivemos, então, uma ligação mais próxima, mesmo para além do negócio. Confesso que o rapaz me despertou alguma simpatia.

Foi nessa altura que ele começou a aproximar-se da Mari Carmen do senhor Fontes, que havia chegado recentemente da Venezuela, onde a vida lhe correra favoravelmente. Ela completara os 18 anos mas mantinha a sua inexperiência amorosa e um comportamento bastante introvertido. Loira e muito atraente, mostrava bem que não é por acaso que as venezuelanas vencem tantos concursos de beleza. Foi um casamento de arromba. Já há muito tempo que não se via uma grandeza daquelas. Tudo que era importante, foi convidado para o evento.

Agora, o Neca já não tinha controlo em tanto investimento. Aquele negócio simples de comprar por 10 e vender por 11, melhorado, ainda, com alguma percentagem de pronto pagamento, foi cilindrado pelas despesas ou inovações criadas pelo filho. Por outro lado, a vida folgada que levava, nada favorecia o necessário maneio financeiro para aquele negócio. Foi fácil a obtenção de crédito baseado nas boas contas do pai. Porém, agora já não era possível comprar matéria-prima com as mesmas vantagens de outrora. Se antes se beneficiava de descontos de pronto-pagamento, agora teria que se pagar os juros das letras ou dos créditos solicitados.
Os juros correm noite e dia e as receitas necessárias não chegavam para tantos compromissos. É nesta fase, que o Neca do Souto, habituado às compras no Alentejo e Estremadura espanhola, se aventurou na aquisição de cortiça em Marrocos, onde era de preço mais acessível.

Nessa altura, o Neca, sabendo da minha facilidade na exportação de rolhas aglomeradas, falou-me da possibilidade da aquisição de um bom stock disponível de bastões desse material, próximo de Rabat. Por várias vezes encontrei lá o Neca acompanhado de um empregado que o ajudava na preparação das cargas e na vigilância da cortiça adquirida. O filho Américo também lá ia e até chegou a levar a mulher.
Um dia fui convidado para o serão no Hotel Kasbah, onde aparecem os melhores artistas musicais. Embora a música me parecesse quase sempre igual, a verdade é que ela excitava a assistência, especialmente quando acompanhada de bailarinas rebolando os seios e remexendo o umbigo e o baixo-ventre.
https://www.youtube.com/watch?v=6W3krLcMwJ8

Ali encontrámos o Neca do Souto e o seu amigo Sousa de Lourosa, acompanhados de duas belas jovens. Segundo o meu amigo Takirene (futuro sócio), este tipo de comportamento era normal. Explicou que as miúdas se apegam ao “seu homem” e o respeitam integralmente enquanto a relação se mantivesse. Ora isso já vinha acontecendo com o Neca do Souto, uma vez que passava lá grande parte do tempo. Quanto ao seu amigo Sousa, o caso era diferente. Gostava de ir a Marrocos e quando levava a mulher fechava-a no quarto, “por segurança”, enquanto saía para tratar dos negócios. “Preocupado”, dizia-lhe para não abrir a porta a ninguém. Constava que, nos habituais engates, chegou a servir-se de um quarto encostado ao da sua mulher.

Hotel em Temara

Eram lindíssimas as raparigas que proliferavam por ali, pela zona de Temara. Como essa zona balnear era bastante frequentada pelo turismo de qualidade, elas disputavam-se pela sua formosura, beleza e juventude. Apareciam pelo hall de recepção nos vários hotéis locais. Quando o número delas se excedia, lá vinha a “ramona”, que as levava por uns tempos, dando lugar à aproximação de outras. Dizia-se que a prostituição era proibida e era preciso salvaguardar essa boa imagem.

LaPlage Sable D’or

Normalmente a história dessas miúdas passava pela mesma causa: fuga da família. Eram criadas como um bem material para ser vendido em casamento. Porém, perdiam todo o seu valor em caso de perda da virgindade. E quando elas, ao casar, escondiam a realidade, enfrentavam perigo de morte. Falava-se que elas chegavam a desaparecer devido a crime perpetrado pelos próprios familiares.
Como profissionais do sexo, manifestam-se muito mais amorosas que prostitutas. Fazem tudo para prolongar as ligações amorosas que conseguirem. Vivem no sonho de vir a ter um só homem (amante/companheiro).

Como era espectável, a empresa do Neca passou a ter dificuldades financeiras. A produção de rolha foi-se reduzindo, tal como o número de trabalhadores ao serviço. A aposta em Marrocos acentuava-se de tal maneira que o Neca já passava lá a maior parte do tempo e o filho Américo também parecia “fugir” para lá, sempre que podia, na esperança de alcançar algum negócio fácil e rentável.

Como a Mari Carmen se recusava a voltar a Marrocos, o Américo também aparece por ali numa situação tentadora, possivelmente estimulada pelo exemplo do pai. E quando ele apareceu exuberante e descontraído a marcar quarto (suite) no hotel, apercebeu-se logo do interesse de Fátima Fakih, que o estava a mirar por perto. A miúda era muito gira e parecia ser a preferida naquele tipo de conquistas. Ele pareceu ficar hipnotizado. Dali, ao convite para um passeio, foi um repente.

Deixei de o ver por cá. Encontrei-o em Skirat. Vestia um balandrau cinzento claro e cobria a cabeça com aquele chapéu avermelhado em forma de vaso - um marroquino a rigor. Perguntei-lhe:
-Como é rapaz, estás a emigrar?
Ele, que não contava comigo, respondeu-me:
- Olhe, não é bem isso, mas estou bastante entusiasmado por uma mudança.
- Mas não podes fugir. És um homem casado e tens também os compromissos empresariais de muita responsabilidade.
- Não estou a fugir Sr. José. Claro que estou a procurar forma de pagar os meus encargos e vou conseguir.
E continuou:
- Também espero resolver o problema da mulher. Eu não a quero abandonar. Ela compreenderá o esforço que estou a fazer. Alá é grande!

Falámos do negócio e das implicações sentidas com as dificuldades financeiras. Claro que ele se mostrou ciente e capaz de controlar a situação.
Por fim, abriu-se um pouco mais e confessou que estava convicto de ter encontrado o amor da sua vida. Inicialmente fora atraído pela beleza e pela entrega amorosa que a Fátima Fakih lhe proporcionara mas, à medida que o tempo passava, maior era a paixão que sentia por ela.
É evidente que para além do sucesso nas relações sexuais, ele lhe descobriu outros valores que o prenderam.

Nunca mais o vi. Soube mais tarde, pelo próprio pai que o Américo fizera um retiro para aprofundamento do conhecimento da religião islamita, à qual se convertera e que até mudara de nome. Agora chama-se Mohammed Adib e vai casar com a Fátima Fakih, de Casablanca.

Em forma de comentário, o Neca acrescentou:
- Estas miúdas parecem que têm feitiço. São tão giras e tão meigas, que derretem qualquer gajo.

A empresa do Neca abriu falência e foi liquidada por vários credores. Deixei de os ver e, como eu precisava de acertar uma questão financeira pendente, fui procurar o contacto deles, através do Sr. Fontes, pai da Mari Carmen. Mal referi o nome do genro, ele reagiu:
- Nem me fale nesse filho da puta. Olhe que ele teve a coragem de vir falar com a minha filha para a convencer a ir viver com ele, porque, na sua nova religião, ele pode ter as duas mulheres.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16983: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (39): 3 - O amigo Mohammed de Marrocos

2 comentários:

Juvenal Amado disse...

O gajo sai-me cá um Mohammed de Sta ma Maria da Feira qual quê .........das arábias é que ele é . :-)


Um abraço Zé

Anónimo disse...


Mais uma história que só o Zé Ferreira seria capaz de conceber. Grande Zé Ferreira. Bem gostava de ser capaz de escrever assim.

Parabéns.
Um abração